Luciano Figueiredo Maquiavel

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teoria política sobre o poder da monarquia católica em Portugal, apesar de não ver com bons olhos os expedientes dissimulatórios, não conseguiuevitar seu uso diante da gravidade que assumiu a luta de resistência dos súditos na América. Em muitas dessas situações, se sustentouo uso da dissimulação, especialmente entre 1640 e a primeira metade do século XVIII. Na mais importante esfera de debates dos problemaspolíticos da colônia — o Conselho Ultramarino —, a recomendação da arte do segredo foi francamente defendida, mas, progressivamente,condenada, uma vez que, aparentemente, foi incapaz de reduzir as revoltas. A defesa da dissimulação em O príncipe, mesmo se distinguindoda razão de Estado católica, baliza o debate que toma conta dos autores da política cristã nos séculos XVI e XVII.

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  • DOI: 10.5533/TEM-1980-542X-2014203604 Revista Tempo | 2014 v20 | DossiTradues de Maquiavel:

    da ndia portuguesa ao Brasil

    Maquiavelianas brasileiras: dissimulao, ideias polticas e revoltas coloniais (Portugal, sculos XVII e XVIII)1

    Luciano Raposo de Almeida Figueiredo[1]

    Artigo recebido em 25 de julho de 2014 e aprovado para publicao em 15 de setembro de 2014.[1] Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense (UFF) Niteri (RJ) Brasil.

    Resumo A teoria poltica sobre o poder da monarquia catlica em Portugal, apesar de no ver com bons olhos os expedientes dissimulatrios, no con-seguiu evitar seu uso diante da gravidade que assumiu a luta de resistncia dos sditos na Amrica. Em muitas dessas situaes, se sustentou o uso da dissimulao, especialmente entre 1640 e a primeira metade do sculo XVIII. Na mais importante esfera de debates dos problemas polticos da colnia o Conselho Ultramarino , a recomendao da arte do segredo foi francamente defendida, mas, progressivamente, condenada, uma vez que, aparentemente, foi incapaz de reduzir as revoltas. A defesa da dissimulao em O prncipe, mesmo se distinguindo da razo de Estado catlica, baliza o debate que toma conta dos autores da poltica crist nos sculos XVI e XVII. Palavras-chave: dissimulao; Portugal; Brasil colnia.

    Maquiavelianas brasileas: disimulacin, ideas polticas y revueltas coloniales (Portugal, siglos XVII y XVIII)

    ResumenLa teora poltica sobre el poder de la monarqua catlica en Portugal, a pesar de no ver con buenos ojos los expedientes disimuladores, no pudo evitar su uso en la gravedad de la lucha de resistencia por los sujetos de Amrica. En muchas de estas situaciones, el uso de la disimu-lacin fue apoyado, especialmente entre 1640 y la mitad del siglo XVIII. En el mbito ms importante de las discusiones de los problemas polticos de la colonia El Consejo de Ultramar , una recomendacin del arte del secreto fue abiertamente defendida, pero condenada, ya que, al que parece, no fue capaz de reducir las revueltas. La defensa del disimulo en El prncipe, mismo que sea diferente de la razn de Estado catlica, orienta la discusin entre los autores de la poltica christiana en los siglos XVI y XVII.Palabras clave: disimulacin; Portugal; Brasil colonia.

    Brazilian Machiavellians: dissimulation, political ideas, and colonial rebellions (Portugal in the 17th and 18th centuries)

    AbstractThe political theory on the power of the Catholic monarchy in Portugal, despite not seeing dissimulatory expedients with good eyes, could not prevent their use in face of the severity that assumed the resistance struggle of the subjects in America. In many of these situations, the use of dissimulation was supported, especially between 1640 and the mid-18th century. In the most important sphere of debates on the political problems of the colony the Overseas Council , the recommendation of the art of dissimulation was openly advocated but progressively condemned, once that, aparently, it was unable to diminish rebellions. The defense of dissimulation in The prince, even different from the Reason of State, guides the debates that take over the authors of poltica christiana, or Christian Politics, in the 16th and 17th centuries.Keywords: dissimulation; Portugal; Brazil colony.

    Machiavellianes brsiliennes: dissimulation, ides politiques et revoltes coloniales (Portugal, XVIIe et XVIIIe sicles)

    RsumLa thorie politique du pouvoir de la monarchie catholique au Portugal, bien que pas en voyant dun bon il les montages dissimulateurs, na pas pu viter de les utiliser face la gravit des luttes de rsistance des sujets en Amrique. Dans la plupart des situations, la dissimulation a t sou-tenue surtout entre 1640 et la premire moiti du XVIIIe sicle. Dans le plus important cadre des dbats politiques Le Conseil dOutre-mer, la recommandation de lart du secret a t dfendue, mais ensuite condamne progressivement, car apparemment na pas t en mesure de r-duire les rvoltes. Les arguments en faveur de la dissimulation dans Le prince, tout en se distinguant de la Raison de ltat catholique, a marqu un tournant dans le dbats couverts par les auteurs de la politique chrtienne aux XVIe et XVIIe sicles.Mots-cls: dissimulation; Portugal; Brsil colonial.

    1Estudo desenvolvido no mbito no projeto de bolsa produtividade do CNPq Tradies intelectuais e lutas polticas na Amrica portuguesa moderna, sculos XVI-XVIII. O embrio deste artigo foi a comunicao apresentada no Colquio internacional Maquiavel dissimulado: heterodoxias poltico-culturais no mundo luso-brasileiro, na UFF, em outubro de 2011. Sou grato ao convite de Rodrigo Bentes Monteiro, que acreditou em uma nota de rodap perdida num velho artigo. Cabem agradecimentos a Srgio Alcides, Enzo Baldini, Giuseppe Marcocci, ngela Barreto Xavier e Silvia Patuzzi pelas vivas sugestes propostas durante os debates. Sou grato aos pareceristas annimos da TEMPO que contriburam para reparar omisses e imprecises.

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    Quem no pode dissimular no pode reinar. Frase atribuda a Lus XI, rei de Frana

    A inteno e o gesto

    Era um tempo em que se morria pela honra. Por ela, Lus Barbalho Bezerra, governador do Rio de Janeiro, sucumbiu. Para um conquistador leal, forjado nas lutas contra os ndios, holandeses, piratas e outras feras que rondavam So Paulo e, mais tarde, o povoado fluminense, foi fatal deixar de atender ao desejo de seu soberano. As circunstncias, como quase sempre acontecem em situaes com esse tipo de desfecho, envolviam dinheiro.

    A dcada de 1640 do sculo XVII foi durssima para os moradores da cidade do Rio de Janeiro. Afetados pelas disputas europeias que repercutiam no imprio portugus, uma enorme presso fiscal, agravada por problemas na comercializao do acar e da aguardente da terra, exigiu dos flumi-nenses colaborao para financiar a defesa do porto ante a aproximao dos holandeses, que haviam ocupado o nordeste em 1630 e Angola em 1641. Colaborando para o clima tenso, a divulgao do breve papal de 1639, proibindo a escravido indgena, indispe os colonos com os jesutas. Para completar, nos primeiros anos da dcada, uma epidemia de varola devasta boa parte da populao de escravos.2

    nesse ambiente delicado que o governador Lus Barbalho recebe ordem do soberano, em 1643, para enviar Bahia todo o dinheiro cunhado no Rio de Janeiro, a fim de ajudar na defesa da capital da Amrica portuguesa. Osflu-minenses reagem sangria com um motim, tentando tomar das mos do governador o cofre com as moedas cobiadas. Mais bem organizados, os rebel-des impedem que Barbalho cumpra a vontade de Sua Alteza e ele, arrasado pelo peso da desonra, morre alguns dias depois.3 Sem perder tempo, a cmara e os moradores elegem a toque de caixa o capito-mor Duarte Vasqueanes para seu sucessor. Mas o governador-geral do Brasil tinha outros planos para a administrao local. Sediado na cidade de Salvador (Bahia), Antnio Teles da Silva despacha o mestre-de-campoFrancisco de Souto Maior para assumir a capitania. Mais tumultos ocorrem. Vasqueanes, que mal esquentara a cadeira, mobiliza toda a guarnio militar para barrar os planos do forasteiro. Debalde. Sob um clima pesado de confrontaes, seguindo de mo armada devida-mente acompanhado por um tero, o mestre de campo enfrenta os adversrios e cumpre a ordem do governador-geral.4

    Os integrantes do Conselho Ultramarino, instituio que atravessava seus pri-meiros anos de funcionamento desde sua recriao em 1642, foram convocados

    2Vivaldo Coaracy, O Rio de Janeiro no sculo XVII, 2. ed. rev. e aum. Prefcio de Francisco de A. Barbosa, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1965, p. 119.3Arquivo Histrico Ultramarino (daqui para a frente AHU), Parecer do Conselho Ultramarino, Lisboa, 25 de outubro de 1644, cd. 13, f. 131v-133.4Idem, Bahia, Luisa da Fonseca, Parecer do Conselho Ultramarino e Treslado de uma junta que se fez sobre os avisos que agora se tiveram do Rio de Janeiro e da morte de Luiz Barbalho Bezerra, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1644, doc. 1077, fl. 6-7.

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    a julgar e aconselhar o soberano diante do escndalo do tumulto.5 Movidos pela prudncia e sem vacilar, os conselheiros recomendam ao novo governador evi-tar castigar os rebeldes a qualquer custo.6 Apesar da afronta, tampouco deveria entabular qualquer investigao para apurao dos responsveis. A frmula de lidarcom tal sedio foi recomendada a Francisco de Souto Maior de maneira clara, cabendo a ele adotar por mais necessrio, a dissimulao delas [as demonstra-es de castigo] por ora. Se as atitudes dos sditos haviam sido reconhecidamente graves, mais graves, contudo, eram as circunstncias delicadssimas que ameaa-vam a preservao da praa do Rio de Janeiro, lugar decisivo para as articulaes imperiais no Atlntico sul. A descapitalizao da economia local com a falta de Angola e o rio da Prata a primeira, mercado de escravos, conquistada pelos holandeses; o segundo, fonte de prata, fechada definitivamente aos portugueses com o fim da Unio Ibrica era a p de cal que faltava. Diante disso, poucos ali duvidariam de que a represso exemplar deveria ser descartada, reconhecendo que, para a manuteno do Rio de Janeiro, mostrava-se imprescindvel apostar na harmonia do ambiente local e contar com a milcia e [a] continuao das fortifi-caes, o que totalmente depende da vontade e unio do povo.

    Sem o saber, encaram um desafio que iria ocup-los sem trgua dali para frente. No me refiro ao dilema de recomendar castigos ou alvio s punies merecidas por sditos que resistiam s autoridades rgias, mas ao expediente da dissimulao, que, acionada pelos recorrentes conflitos nas regies da Amrica portuguesa, colabora para o debate sobre a luta poltica na poca moderna.

    As sugestes do Conselho Ultramarino reforavam a obra de construo da coeso poltica naquele momento delicado de rompimento da Unio Ibrica. Assim como o que se passava no reino, a comunicao com as partes do imprio era fundamental.

    De forma prtica, a gesto do Imprio luso se traduzia, em parte, pelo prprio dilogo entre os Conselhos Superiores da monarquia, que discutiam sua administrao diplomtica, militar, finan-ceira e patrimonial. Contudo, por outro lado, a gesto tambm sofria interferncias de papis advindos dos espaos perifricos do Imprio. Eram as elites locais que escreviam ao rei, seja por meio de arbtrios ou remdios, ou expressavam suas intenes e interesses pelas Cmaras, correspondncias oficiais, dentre outras formas de comunicao poltica. Informavam as realida-des locais, subsidiavam as decises e viabilizavam o governo.7

    5Desde o livro de Marcelo Caetano, O Conselho Ultramarino: esboo da sua Histria, Lisboa, Agncia Geral do Ultramar, 1967, demorou algum tempo para o Conselho Ultramarino, como tema especfico de estudo, voltar a provocar interesse. Dentre eles, ver Edval de Souza Barros, Negcios de tanta importncia: o Conselho Ultramarino e a disputa pela conduo da guerra no Atlntico e no ndico (16431661), Lisboa, Centro de Histria de Alm-Mar, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, 2008 e Eric Lars Myrup, Governar a distncia: o Brasil na composio do Conselho Ultramarino, 16421833, In: Stuart Schwartz; Eric Myrup (orgs.), O Brasil no imprio martimo portugus, Bauru, Edusc, 2009, p. 275-276.6Necessrio registrar que os debates e as opinies travadas no mbito do Conselho Ultramarino, por razes variadas, nem sempre se cumpriam no plano da prtica dos que governavam. Este estudo no pretende conferir a execuo das medidas recomendadas que, algumas vezes, chegavam tarde ou podiam ser evitadas pelos governadores que no se furtaram a executar e castigar.7Marcello Jos Gomes Loureiro, O Conselho Ultramarino e sua pauta: aspectos da comunicao poltica da monarquia pluricontinental (16401668) notas de pesquisa, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Colloques, mis en ligne le 14 octobre 2013. Disponvel em: . Acesso em: 6 set. de 2014; Idem, A gesto no labirinto: circulao de informaes no imprio ultramarino portugus, formao de interesses e construo da poltica lusa para o Prata (16401705), Rio de Janeiro, Apicuri, 2012.

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    Ao novo governador, sugerem os ministros, cabia usar de toda a brandura. Francisco de Souto Maior acatou a orientao, confirmando ser muito tra-balhoso e imprevisvel para a segurana do Rio de Janeiro punir os rebeldes, sem deixar de notar, como merece tal indignao de nossa nao. Eleainda farejou algo de mais srio no descontentamento dos moradores, pois estes teriam sido considerados at suspeitosos na lealdade. No era pouco imaginar que sditos dos quais dependia a preservao de uma regio vital do imprio ultramarino vacilavam em sua fidelidade ao soberano. Do documento final da junta que o governador-geral organizou para avaliar as circunstncias, esca-pou a sentena plasmada dos manuais polticos que vinham circulando nos pases catlicos: quando as foras no so conformes ao respeito dos fins a dissimulao em tais matrias o meio mais seguro entre a conservao do estado e autoridade dos prncipes.8

    Seus efeitos naquele contexto no decepcionaram os formuladores da arte de governar sditos coloniais: brandos e dispostos, os moradores sossegaram, aceitando inclusive pagar mais impostos. O resultado do segredo, segundo a leitura dos conselheiros, permitiu que fluminenses percebessem que foram merecedores do castigo e, em reconhecimento pela clemncia rgia demons-trada, tornaram-se confiantes e zelosos em relao ao seu rei. Mais do que o rigor merecido, escreveram os ministros, teria pesado como instrumento de dis-ciplina coletiva o medo e arrependimento com que os sente. Assinado em 11 de outubro de 1644, o como parece de D. Joo IV ordenando o cumprimento naqueles termos encerra o primeiro captulo da execuo da dissimulao como poltica de Estado.9

    Tratada com reserva no vocabulrio poltico dos pensadores catlicos na Pennsula Ibrica, as recomendaes de dissimulao passariam a ganhar realce nos debates que envolveram as autoridades portuguesas surpreendi-das com a multiplicao imprevisvel de contestaes dos sditos espalhados pelos domnios do Novo Mundo. O sculo das revoltas que transcorreu no Brasil entre 1640 e meados do sculo XVIII, concentrando uma quantidade impres-sionante de rebelies formais nas quais autoridades rgias foram desafiadas em diferentes graus, exigiu que novas formas de reao fossem elaboradas a fim de enfrentar a desarmonia que sacudia o corpo poltico da monarquia, afe-tando em especial as relaes com os sditos ultramarinos.10

    Algumas dcadas depois, as solues para lidar com sditos rebeldes volta-riam pauta dos oficiais que integravam o Conselho Ultramarino. Sobre a mesma cidade do Rio de Janeiro, as notcias que chegavam eram mais graves, reportando

    8AHU, Bahia, Lusa da Fonseca, Parecer do Conselho Ultramarino e Treslado de uma junta que se fez sobre os avisos que agora se tiveram do Rio de Janeiro e da morte de Luiz Barbalho Bezerra, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1644, doc. 1077, fl. 6-7. 9Idem, Francisco de Souto Maior governador do RJ da conta de como tomou posse daquele governo e avisa de algum particular tocantes a segurana daquela capitania, cd. 13, fl. 122-123v.10Para uma viso de conjunto das revoltas coloniais, ver Laura de Mello e Souza, Motines, revueltas y revoluciones en la Amrica portuguesa de los siglos XVII y XVIII, Historia General de Amrica Latina: procesos americanos hacia la redefinicin colonial, vol. 4, Paris, 2000, p. 459-473, e Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Rebelies no Brasil Colnia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

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    uma rebelio comeada em novembro de 1660 em que a populao havia desti-tudo Salvador Correa de S e Benevides e nomeado um novo governador e outros representantes para atuar na cmara. As razes relacionavam-se mais uma vez com a presso fiscal destinada a cobrir gastos com a defesa e com o alijamento do poder local de grupos econmicos importantes.11 Soldados, fazendeiros e agregados, aproveitando-se do afastamento temporrio do titular da capitania, prendem o governador interino Tom de Souza Alvarenga e nomeiam em seu lugar Agostinho Barbalho, filho justamente do falecido Lus Barbalho Bezerra. Poucos meses depois, em fevereiro de 1661, Jernimo Barbalho substituiria o irmo no poder. Salvador Correa de S e Benevides tratou de reagir. No incio de abril desse ano, tropas vindas da Bahia e de So Paulo e uma armada portuguesa entraram em ao para a retomada do poder na capitania. Depois de prender as lideranas responsveis pelo motim, Benevides no vacila, sentenciando morte Jernimo Barbalho e executando sumariamente a pena capital.

    O episdio chega ainda quente na mesa dos ministros do Conselho Ultramarino. Nessa instituio, desaguavam as crises e a ela cabia debater e propor solues para as colnias: Nenhum outro organismo do governo, afirma Laura de Mello e Souza, se empenhou tanto, com acerto ou com erro, na redefinio do imprio portugus de ento, consciente que urgia mudar para conservar o mando.12

    Em abril de 1661, depois de o Conselho Ultramarino consolidar suas reflexes sobre o levantamento no Rio de Janeiro e sobre os procedimentos do governa-dor, voltam a defender a discrio com as investigaes dos culpados. Apesar de reconhecerem que o negcio seja to grave e de tal qualidade, sustentam que se deveria agir ali da mesma maneira que fizeram em contestaes recen-tes em outras partes do imprio, como em Macau (1646) e no Ceilo (1652), quando, ao contrrio da punio, se fez pouca demonstrao pela distncia.13

    11Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na Amrica portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (16401761), Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1996 (cap. 1 - A revolta da cachaa); Charles R. Boxer, Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola, 16021686, So Paulo, Edusp, 1973, p. 306-345 (cap. VII - Capito-general do sul); Antonio Filipe Pereira Caetano, Entre a sombra e o sol: a Revolta da Cachaa, a freguesia de So Gonalo do Amarante e a crise poltica fluminense (Rio de Janeiro, 16401667), Dissertao de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2003.12Laura de Mello e Souza. O sol e a sombra: poltica e administrao na Amrica portuguesa do sculo XVIII, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 90.13AHU, Parecer do Conselho Ultramarino sobre o que escrevem os oficiais da cmara do Rio de Janeiro acerca do levantamento que houve no povo daquela capitania contra Tom Correia de Alvarenga, Lisboa, 7-4-1661, cd. 16 (consultas mistas), fl. 11-12.

    O sculo das revoltas no Brasil exigiu que novas formas de reao fossem elaboradas

    a fim de enfrentar a desarmonia que sacudia o corpo poltico da monarquia

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    A dissimulao em relao devassa, julgamentos e aes judiciais a res-peito do crime cometido pelos grupos fluminenses triunfa, apesar da execuo sumria de uma de suas lideranas. Ao monarca cabia, especialmente em cir-cunstncias difceis como aquela em que os instrumentos de seu poder no conseguiriam agir com eficcia, adotar uma conduta paternal com os sditos sem, de forma alguma, deix-los perceber que tinham praticado alguma coisa errada, argumento semelhante quele empregado na crise com os moradores em 1644. E os conselheiros concluem seu voto: as sadias mximas de estado ensinam que mais vale abrir-lhes agora um crdito de confiana, do que exas-per-los, dando-lhes um pretexto para se valerem de outra nao [].14

    Enquanto em 1644 h meno suspeita de falta de lealdade, agora o foco tem endereo certo, aludindo possibilidade de os fluminenses recorrerem outra Coroa. Esse ltimo enunciado bastante original quando aplicado a um domnio territorial do imprio portugus e, ao mesmo tempo, uma chave para se com-preenderem as bases de defesa da dissimulao por parte das autoridades. Afinal, desde finais do sculo XVI, com a guerra de independncia dos Pases Baixos em relao Espanha, as rebelies tornaram-se meios de mobilizar comunidades a reverem sua posio em relao ao soberano. No perodo que transcorre entre a morte de Lus Barbalho e a de seu filho Jernimo, algo se modifica ainda mais nas circunstncias polticas europeias quando a Catalunha, tambm por meio de uma rebelio, rompe com a Coroa espanhola e busca a sujeio ao rei francs. Na per-cepo dos conselheiros, os riscos provocados pela sedio fluminense poderiam ir pelo mesmo caminho: a alta traio ou o irridentismo dos seus prprios vassalos.

    Esses fantasmas parecem conter a pulso punitiva, dando lugar dissi-mulao em diversas outras contestaes. Notcias de distrbios semelhantes chegam para exame dos conselheiros em 1666, vindas de Pernambuco. Em agosto daquele ano, o governador Jernimo de Mendona Furtado, o Xumbergas, agastado com a elite, representada pela cmara de Olinda, havia sido preso e embarcado de torna-viagem para Lisboa. O governador era acusado de uma srie de atos tirnicos que feriam os interesses dos grupos locais e, alegavam, interesses de Sua Majestade, pois embolsava receita dos donativos, facilitava comrcio clandestino com os franceses, recunhava moeda e desrespeitava imunidades eclesisticas.15 Para governar, a cmara de Olinda organiza uma junta provisria e comunica ao conde de bidos, vice-rei do Brasil, que estava senhora da cidade. A reao do Conselho Ultramarino no parece muito dife-rente das anteriores. Apesar de reconhecerem que o desaforo exigia castigo exemplar, admitem que, naquele momento, por mais grave que fosse o com-portamento dos vassalos, o melhor era remediar o acontecido.16

    14Consulta do Conselho Ultramarino, maio de 1661. Publicado em Frazo de Vasconcellos, Archivo nobiliarchico portuguez, 1 srie, n. 6, p. 13, apud Charles R. Boxer, Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola, 16021686, So Paulo, Edusp, 1973, p. 338.15O episdio da deposio do governador de Pernambuco, com toda sua complexidade, inaugura a A fronda dos mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 16661715, obra seminal de Evaldo Cabral de Mello, So Paulo, Companhia das Letras, 1995. Ver captulo O agosto do Xumbergas, p. 19-50. 16Ibidem, p. 46.

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    Elogio, hesitao, ocaso

    Inquietaes no faltaram a partir da primeira dcada do sculo XVIII, quando tem lugar uma poltica centralizadora que limita a margem de manobra das elites coloniais, provocando uma das conjunturas insurgentes que marcou as relaes entre Portugal e o Brasil.17 H uma considervel reduo das autonomias locais colocadas sob controle da magistratura alinhada com os interesses da Coroa e a transferncia para a administrao local das despesas com a defesa. Os sditos reagem de diferentes partes da Amrica, em ritmos e formas distintos.18

    Ao lidar com as violentas resistncias dos paulistas em ceder espaos polticos na administrao das Minas recm-descobertas, por muitas vezes, as autoridades e gover-nadores de So Paulo e Rio de Janeiro foram aconselhados a encobrir qualquer mpeto punitivo. Entre o castigo e o perdo, escreve Adriana Romeiro, o Conselho julgou por bem dissimular as estripulias dos paulistas.19 Em 1709, num dos episdios mais dra-mticos dessa disputa entre as autoridades a servio de Portugal e os conquistadores das minas, paulistas e emboabas, o governador do Rio de Janeiro, D.Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre, foi expulso pelos vassalos rebeldes ao tentar entrar com sua comitiva nos domnios aurferos. Diante daquele crime, o governador seguinte, D. Antnio de Albuquerque, que recebeu a mesma tarefa imperiosa de controlar as Minas, no final do mesmo ano, seria advertido a no tentar naquelas circunstncias lavar a honra do seu antecessor. Aconselhado pelos ministros do tribunal do ultra-mar, deveria tomar o caminho mais prudente, e de toda a dissimulao, por se no arriscar um negcio da mais alta consequncia que pode haver.20

    Na Bahia, a circulao de boatos entre os moradores de Salvador anunciando impostos, aumento do preo do sal e outras novidades azedam a recepo do novo governador-geral do Brasil, D. Pedro de Vasconcellos e Souza, em 1711. Para completar, o pagamento dos soldados estava atrasadssimo. Em outubro, em um dia de fria dos moradores, o governador foi cercado e assistiu impvido toda a cidade se rebelar marinheiros, padres, soldados, oficiais mecnicos, peque-nos comerciantes.21 Liderados por um traficante de escravos, carente de um dos braos e, por isso, alcunhado de o Maneta, destroem algumas casas at se acal-marem diante de uma procisso que o arcebispo improvisou. Antes de acabar o dia, as negociaes resolvem a crise e o governador, coagido, perdoa a todos e suspende qualquer possibilidade de novos tributos e aumento de preos. 40 dias depois, no incio de dezembro, novo tumulto estala e uma multido armada aos gritos de Viva o Povo e morram os traidores cerca D. Pedro para pression-lo a preparar sem demora uma esquadra para navegar at o Rio de Janeiro e enfrentar

    17Laura de Mello e Souza, Motines, revueltas y revoluciones en la Amrica portuguesa de los siglos XVII y XVIII. In: Enrique Tandeter (dir.), Historia General de Amrica Latina: procesos americanos hacia la redefinicin colonial, vol. 4, Paris, Ediciones Unesco, 2000, p. 459-473.18Para Pernambuco, ver Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 16661715, So Paulo, Companhia das Letras, 1995.19Adriana Romeiro, Paulistas e emboabas no corao das Minas: idias, prticas e imaginrio poltico no sculo XVIII, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2008, p. 80.20Ibidem, p. 302. Lembra a autora que a prudncia adotada no impediu a aplicao de castigos.21Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na Amrica portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (16401761), Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1996.

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    os franceses que ocupavam a cidade. Em meio s negociaes, chega a notcia de que o Rio de Janeiro j estava livre dos corsrios. Dias depois, o governador desfe-cha uma devassa que determina sequestro de bens, executa punies at mesmo com aoite em pblico e ameaa de degredo os cabeas do protesto.

    A atitude do governador-geral provoca uma grande celeuma. Logo que toma conhecimento dos procedimentos deste, o Conselho Ultramarino no tem muitas dvidas de que a pacificao das revoltas foi um total desastre. D.Pedro deVasconcellos teria metido os ps pelas mos, dando provas de total inabilidade na conduo poltica com aquele tipo de distrbio na Colnia. Perdoara rebeldes (sem ter esse poder, prerrogativa do soberano) que resis-tiram cobrana dos tributos ordenados por El Rei e punira, com empenho quase tirnico, sditos que s queriam defender o patrimnio do reino ata-cado por invasores. Eainda escrevia ao Conselho o governador solicitando a abertura de mais uma devassa. Bastante contrariados com a imprudncia de D. Pedro, um dos conselheiros admite que o governador [...] se tem havido com tal empenho em o castigar que parece quer satisfazer a sua clera em toda aquela cidade.22 Aos poucos, os debates ao redor do tribunal foram delineando os contornos delicados que envolviam a arte de governar sditos distantes.

    Em Lisboa, enquanto os implicados mofavam na priso, uma longa discus-so se arrastou por 17 meses at a deciso final do rei envolvendo, como poucas vezes se viu, uma fora-tarefa de ministros do Conselho Ultramarino e procura-dores da Fazenda e da Coroa. Dessa vez, a matria exigiu mais do que os ministros do Conselho Ultramarino tinham para oferecer. As recorrentes revoltas coloniais se tornaram assunto que convocou a interveno de outras instncias de aconse-lhamento rgio.23 Os debates no indicavam apenas uma nascente impacincia com as atitudes hostis dos sditos ultramarinos, mas punham em xeque a eficin-cia pretrita dos expedientes dissimulatrios empregados at ali, combinados ao perdo, para tratar os rebeldes.24 O quadro nesses princpios do sculo XVIII era distinto daquele enfrentado pelo Conselho Ultramarino nos anos imediatos da Restaurao em 1640. A acumulao de revoltas que se sucediam no Brasil h pelo menos 50 anos e a ocorrncia de mais de dez rebelies espalhadas pelas regies do Brasil (sem contar as diversas rebelies em Minas) que exigiam grande ateno estavam ficando insustentveis. Isso parece ter pesado na mudana de condutas.

    22AHU, Parecer de Antonio Roiz da Costa, s.d., Bahia, documento avulso no identificado., cx. 6, doc. 108.23Embora a documentao do Conselho Ultramarino oferea o material documental essencial para nossa interpretao, outros agentes e instituies pesaram nos rumos do processo de gesto das crises polticas. Ver, em especial, Maria Fernanda Bicalho, As tramas da poltica: conselhos, secretrios e juntas na administrao da monarquia portuguesa e de seus domnios ultramarinos, In: Joo Fragoso; Maria de Ftima Gouva (orgs.). Na trama das redes. Poltica e negcios no imprio portugus. Sculos XVIXVIII, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2010, p. 343-371. Convm tambm considerar que os pareceres do Conselho Ultramarino no possuam carter deliberativo, assessorando o soberano com conselhos que podiam ou no ser admitidos. O uso massivo dessa documentao, por outro lado, no deve fazer crer que fosse o Conselho instncia de deciso a determinar o desfecho das insurreies ou da ao dos oficiais a respeito delas.24O tema da aplicao do perdo vem sendo amplamente estudado por Joo Henrique Ferreira de Castro em seu projeto de doutorado Castigar sempre foi Razo de Estado? O debate sobre a punio s revoltas ocorridas no Brasil: da defesa dos perdes progressiva legitimao da violncia (16601732), desenvolvido no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, associado cultura poltica do Antigo Regime e s negociaes envolvendo as elites locais.

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    O procurador da Coroa, em dezembro de 1712, advoga, por exemplo, o cas-tigo exemplar. Em seu parecer, sublinhou a ineficcia do perdo em situaes anteriores quando a benevolncia no foi capaz de desestimular novos tumultos.

    Viram estes moradores da Bahia que o levantamento das Minas [17071709], os dois de Pernambuco [17101711], o de Sergipe del Rei [1708] e do Rio So Francisco, no s no foram castiga-dos, nem ainda os cabeas, mas geralmente perdoados, [...] e por isso se animaram a fazer este

    opina o procurador.25 A concluso no chega a surpreender: se se perdoar com[o] os outros no haver povo algum no Brasil que no tumultue e se oponha contra as resolues de Vossa Majestade, com tanto prejuzo do bom governo e paz.26 Deixa uma lio a esse respeito:

    Grande virtude a da clemncia, principalmente nos Prncipes. Mas de tal natureza, que se exercida repetidas vezes, e de ordinrio, degenera em vcio, porque convida a delinquir, e nesta suposio entendo que este tumulto no s se no deve perdoar, mas nem ainda dissimular, antes castigar-se com a severidade das leis, no o povo, porque a este deve Sua Majestade perdoar, mas os cabeas, os motores, consulentes, e instigadores deveria julgar e prender.27

    Esse recuo da dissimulao tinha seu limite, como o prprio procurador reconhecia ao dizer que

    tudo o que tenho requerido, se entende no caso, em que no haja franceses no Rio de Janeiro, ou em outra qualquer parte do Brasil, porque havendo-os tenho por mais conveniente dissimular este caso, at cessar o receio deles. 28

    Os ministros do Conselho Ultramarino partilharam a mesma opinio, que o soberano mais tarde subscreveria ao ordenar em 1713 o perdo de todos, desde que os impostos voltassem a ser cobrados.

    Com ou sem dissimulao, a aplicao de castigos nesse tipo de protesto, inte-grado quase sempre pelas elites locais, poderia trazer efeitos contrrios. Aoinvs de amedrontar, provocar irritao dos sditos baianos. Considerando-se a per-manente presena de inimigos farejando riquezas e alianas com os moradores braslicos numa costa to afastada do reino, no era bom negcio se indispor com eles. Por isso, recomendavam os conselheiros ultramarinos, as penas e provveis execues deveriam a todo custo ser evitadas em ocasio em que o Estado esteja invadido por alguma armada, ou esquadra de inimigos, porque neste caso no convir usar deste meio [punies e execues], mas reserv-lo para ocasio de

    25...os primeiros dois por Vossa majestade, e os mais pelo governador da Bahia, exceto o de Sergipe Del Rei que no sabe se o fora.... AHU, Parecer do Conselho Ultramarino, Biblioteca Nacional do Brasil (BNB), Documentos histricos (DH), 1952, vol. 96, p. 42.26Ibidem.27Ibidem, p. 42-43.28Parecer do procurador da coroa no Parecer do Conselho Ultramarino, Ibidem, p. 43.

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    mais sossego. At l, s usar dos termos de brandura e persuaso.29 Na mesma toada, como sempre pesando os muitos riscos de atiar a insatisfao dos pr-prios governados em circunstncias to delicadas, recomendam

    que se ponha perptuo silncio nesta causa, perdoando o pri-meiro dos motins e, no caso dos condenados pelo segundo motim, tirando-se-lhe a infmia em que tem em corrido [incor-rido] pela sentena.30

    E pedem os conselheiros, como era de se esperar, a cabea do governador inbil. Sob o signo da dissimulao, fazia-se, mais uma vez, as pazes necessrias para o bom governo colonial.

    Ainda que o perdo edulcorado pelo segredo tenha mais uma vez vingado nessa esfera de debates, desfez-se um certo consenso sobre a dissimulao que prevalecia como recomendao nos debates dos conselheiros rgios ao lidar com rebeldes. Asdiscus-ses em torno da atitude do governador foram um momento de inflexo na aplicao da dissimulao. Uma ciso clara comea a se desenhar no tribunal do Conselho Ultramarino a respeito da opo punitiva ou o perdo dissimulado. Com os episdios de revoltas em 17101711 que aconteceram nas principais capitanias da Amrica por-tuguesa, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, nasceria uma hesitao que vacilava entre punir, perdoar ou dissimular. Em passagem da carta escrita em 1715 ao governador de Pernambuco, Flix Machado, recordaria as opinies conflitantes que circulavam:

    Sempre entendi que nenhuma repblica se podia conservar faltando nela prmio para os bons e castigos para os maus. A esta ltima classe, pelo que a experincia tem mostrado, pertencem muitos dos moradores dessa capitania [Pernambuco] e como sempre [se] livra-ram bem das insolncias com que as cometeram, como era possvel que deixassem de as continuar?

    Lembra a seguir que at ali prevalecera sempre a opinio de que se devia evitar aplicar castigos, com o

    fundamento que, se se procedesse com rigor contra os delinquen-tes, se poderia aumentar a sublevao; e que o embarao em que o Reino se achava com a guerra no dava lugar a que o procedimento fosse rigoroso [...] e assim persuadia a prudncia que por ora se dis-simulasse com o castigo.

    29AHU, BNB, DH, 1952, vol. 96, p. 50.30Idem, Bahia, Parecer do Conselho Ultramarino, Lisboa, 12 de janeiro de 1713, documento avulso no identificado, cx. 7, doc. 96.

    Grande virtude a da clemncia, principalmente nos prncipes. Mas de tal natureza, que se

    exercida repetidas vezes, e de ordinrio, degenera em vcio, porque convida a delinquir

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    E provoca: com o tempo parece-me que tem mostrado que se no seguiu a melhor opinio.31

    A espiral repressiva progride. Diante da sedio de 1720 em Vila Rica, no corao de Minas, a avaliao sobre o tema reaparece, nos intensos debates que se avolumam aps a atitude do governador que executa os lderes sumariamente. O desfecho se tornou lendrio. Aps semanas de tumulto popular, presses, manifestos e aes armadas, o conde de Assumar rene a Companhia dos Drages, tropa de elite que chegara especialmente para atuar contra motins no Brasil, e massacra os principais envolvidos. Ataca o ncleo das resistncias nos morros prximos, incendiando as casas doslderes. Aqueles que no conseguem fugir so sentenciados morte, e um dos lderes, Felipe dos Santos, sumariamente enforcado e esquartejado diante da populao de Ouro Preto. Tais expedientes repressivos obedeciam ao intuito de exemplaridade e aterrorizao: lhe mandou o Conde [de Assumar] arrastar pelas ruas, e depois de enforcado, esquartejar, mais para terror que para castigo.32 A prudncia que enlaava o par perdo/dissimulao foi trocada pela impacincia que embala os castigos.

    Se o encobrimento das intenes fazia parte das tcnicas de governo para a conteno dos protestos, a dissimulao podia se constituir em um recurso poltico acionado por grupos rebelados, a mesma arma adotada no outro extremo da relao com as autoridades.33 Esses recursos podem ser detecta-dos em Vila Rica quando, para seus lderes, as falsas notcias que espalham para desacreditar o governador se convertem em mecanismos de ao pol-tica utilizados em momento de disputa pelo poder, segundo o recente estudo de Jonathan Martins Ferreira.34

    Antes desse autor, Maria Vernica Campos, em uma importante tese sobre as condies de governo em Minas, at hoje no publicada, bem traduziu as formas que a dissimulao assumiu nessa revolta:

    O que era defeito no rebelde convertia-se em virtude no gover-nante. No h a nenhuma contradio. Como governador, o uso da simulao era sinal de prudncia e ponderao. No sdito, especialmente no amotinado, era falta grave e prova de desres-peito ao rei e a seus representantes.35

    O Conselho Ultramarino se dividiu a respeito da deciso tomada pelo governador. De um lado, os crentes na necessidade de expedientes dissimulatrios; de outro, aqueles

    31Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 16661715, So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 403.32Laura de Mello e Souza (org.), Discurso histrico e poltico sobre a sublevao que nas Minas houve no ano de 1720, Belo Horizonte, Sistema Estadual de Planejamento, Fundao Joo Pinheiro, Centro de Estudos Histricos e Culturais, 1994, p. 166. 33Uma das passagens mais originais do estudo de Rosario Villari, Elogio della dissimulazione: la lotta politica nel Seicento, 2. ed., Roma, Laterza, 1993, p. 25, a discusso do modo como a oposio e a resistncia aos poderes no sculo XVII se apropriam de um recurso desenvolvido no sculo anterior exclusivamente para ao do governo. 34Jonathan Martins Ferreira, margem da palavra oficial: dissimulao e boatos no motim de Vila Rica, Dissertao de mestrado, Universidade Estadual de Montes Claros, 2013, p. 141. Sobre o tema da dissimulao como recurso de oposio poltica, ver tambm Fernando R. de la Flor, Pasiones fras: secreto y simulacin en el Barroco hispano, Madrid, Marcial Pons, 2006, especialmente o captulo Ocultacin y engao em la colonia, p. 173-182, e Rosario Villari, op cit., especialmente, p. 25-29. 35Maria Vernica Campos, Governo de mineiros: de como meter as minas numa moenda e retirar-lhe o caldo dourado 16931737, Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2002, p. 227.

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    aferrados tradio punitiva. A maioria do grupo (Lus deMello da Silva, Alexandre da Silva Correia, Joo Teles da Silva, Joo Pedro de Lemos e Joo de Souza) subscreveu, apesar da diferena nos detalhes, a opinio de que os tumultos em Vila Rica

    foram insolentssimos, e de prejudicial exemplo, e por isso dignos de grave demonstrao, e de nenhuma sorte de perdo, ou dissi-mulao, porque os muitos que se tem perdoado, ou dissimulado foram a causa destes, e sero de mais, se se no castigarem. [Mais adiante dizem:] quanto ao procedimento de queimar as casas do morro e morte de Philippe dos Sanctos [sic], suposto parea que este procedimento foi rpido e violento esta mesma a medicina de to graves achaques, como sedies e levantamentos populares, onde deve o castigo ser pronto, e assim lhe foi lcito proceder com modo militar, que o mesmo conde no ignora, onde se no requer mais que a averiguao da verdade, sem mais forma ou figura de juzo, principalmente em fragantes [sic] delitos.36

    O Conselho defendia junto punio algum segredo:

    que em semelhantes e to apertados casos pode o governador e general obrar tudo o que lhe parecer em remdio deles, ainda que no possa mostrar o motivo que o obriga, nem dele se lhe deve pedir conta; o ponto que os tumultos se sosseguem, e as empresas se executem.37

    Na obra em que procura defender a atuao implacvel com que encerrou a rebelio, o conde de Assumar condena frontalmente a dissimulao nesse tipo de caso. No assombroso Discurso histrico e poltico, faz seus os alvitres de Diego de Saavedra Fajardo na sua ideia de um prncipe poltico-cristo, que adota diretamente: conviene no disimular taes desacatos, porque no crien brios para outros maiores como o castigo deveria ser aplicado sem vacilo, sendo quitadas las cabeas de los autores de la sedicin, y puestas em publico.

    Nada, diziam, amedronta ou sossega mais o povo.38

    A dissimulao foi condenada junto com o perdo que, at ali, alguns gover-nadores podiam conceder. As palavras do conde de Assumar e dos conselheiros a respeito das novas diretrizes repressivas no so mais do mesmo. Elas guar-davam sintonia com as ordens apregoadas por D. Joo V, em 11 de janeirode 1719, proibindo os governadores do Brasil de concederem o perdo em caso de rebelio, sob a justificativa de que, graas ao perdo, as rebelies vinham aumentando.39 Afirma Joo Henrique de Castro:

    36AHU, Sobre a conta que da o conde de Assumar D. Pedro de Almeida governador e capito general das Minas Gerais dos motins e tumultos que nelas tem havido, e vo as cartas que se acusam, cd. 233, fl. 218-223v. 37Ibidem.38convm no dissimular tais desacatos, para que no criem fora para outros maiores, como o castigo deveria ser aplicado sem vacilo, sendo arrancadas as cabeas dos autores da sedio e colocadas em pblico. Laura de Mello e Souza (org.), Discurso histrico e poltico sobre a sublevao que nas Minas houve no ano de 1720, Belo Horizonte, Sistema Estadual de Planejamento, Fundao Joo Pinheiro, Centro de Estudos Histricos e Culturais, 1994, p. 163. 39Carta de Sua Majestade ao Governador sobre no poder dar perdes a nenhum culpado como se declara (11/01/1719), Arquivo Pblico do Estado da Bahia. Microfilmes, Ordens Rgias n. 6, flash 4, doc. 3 apud Joo Henrique Ferreira de Castro, A represso a revolta de Vila Rica de 1720: perdo e punio sob a tica da justia no imprio ultramarino portugus, Dissertao de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012, p. 232. Segundo o autor, essa proibio rgia representa um papel crucial para se compreender adequadamente a atitude do governador conde de Assumar de dispensar o perdo.

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    at aquele momento a Coroa portuguesa jamais havia dado uma demonstrao to clara do quanto o perdo havia perdido prestgio em Portugal nos ltimos anos e, de maneira especial, do quanto as revoltas ocorridas no Estado do Brasil contriburam para isto.40

    O segredo continuaria, porm a dar provas de sua utilidade. Ainda que deixe de frequentar a linguagem dos conselheiros ultramarinos, autoridades coloniais lanariam mo do recurso nessa fase em que o perdo j no parecia ter espao. Nos sertes de Minas Gerais, o governador interino Martinho de Mendona de Pina e de Proena serviu-se da simulao a fim de ter sucesso na priso dos envolvidos em uma assustadora rebelio na regio s margens do rio So Francisco e rio das Velhas. Depois de controlada, sem muito acesso para executar diligncias e prises nas fazendas e localidades isoladas e dis-tantes do centro da capitania, o governador usa de um ardil desavergonhado. Espalha entre a populao a notcia de que a devassa a respeito da sedio estava concluda e as diligncias encerradas, informando ainda que os juzes que visitavam as propriedades cuidavam apenas de inspecionar os sequestros. Desarmados os espritos, os oficiais do governador conseguem prender quase todos os implicados, em breve sentenciados.

    O erudito governador sabia o que estava fazendo e as vantagens da simula-o eram quase sempre reprovveis, conforme argui Martinho de Mendona.

    Ainda que no lcito enganar positivamente algum, prudente lcita nestes casos usar de engano negativo, ou simulao, per-mitindo ocasio de se enganarem, [...] a cautela e artifcio, com que nesta matria me tenho havido, que pode facilitar muito a matria das prises.41

    A partir dos debates que se seguem revolta do Maneta na Bahia em 1712, da ordem rgia de 1719, impossibilitando a concesso do perdo por parte dos governadores e, considerando-se ainda as opinies majoritrias no Conselho Ultramarino a respeito da represso sem chances de perdo e sem dissimula-o da revolta de Vila Rica em 1720, a arte do segredo parece refluir no trato das rebelies coloniais.

    40Joo Henrique Ferreira de Castro, A represso a revolta de Vila Rica de 1720: perdo e punio sob a tica da justia no imprio ultramarino portugus, Dissertao de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012, p. 247.41Instrues de Martinho de Mendona de 1 e 2 de maio de 37, p. 133 apud Diogo de Vasconcelos, Histria mdia de Minas Gerais, Prefcio de Francisco Iglsias, Introduo de Baslio de Magalhes, 3. ed., Belo Horizonte, Itatiaia/INL, 1974.

    Ainda que o perdo edulcorado pelo segredo tenha mais uma vez vingado, desfez-se um certo

    consenso sobre a dissimulao que prevalecia como recomendao ao lidar com rebeldes

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    dissimulao, a exemplaridade pblica dos suplcios; ao perdo, o cas-tigo. O exame das conflagraes que ocorrem no perodo posterior indica certas diferenas ao que vinha se desenrolando at ali e talvez at mesmo efeitos dessas mudanas. Os espaos para as revoltas formais reduzem-se para as comunidades coloniais. Sob o ponto de vista quantitativo, elas ocorrem com menos frequncia e poucas delas, a partir de 1720, mostram-se capazes de agregar as elite locais e outros grupos sociais, com exceo das revoltas do serto de Minas em 1736. Das 21 revoltas contabilizadas entre 1720 e 1757 no levantamento para o site Impresses rebeldes palavras e documentos que forjaram a histria dos protestos no Brasil,42 sua grande maioria expressava um tipo comum de protesto na colnia em que ocorriam demandas segmentadas de grupos sociais especficos, como escravos, ndios, soldados.

    Ainda que no desaparea, chegando mesmo a ser empregada em situaes de punies exemplares contra rebeldes, a linguagem da dissimulao perde espao, influenciada por um movimento presidido pelo processo de centra-lizao e reduo da fora do Conselho Ultramarino a partir dos anos 1730.43

    Oscilando entre os extremos de perdoar ou punir, a possibilidade de dis-simular, ainda que com todo o custo representado pela sua proximidade com a mentira, foi uma sada debatida com intensidade flagrante na cultura pol-tica do Novo Mundo. Converteu-se na melhor contribuio da poltica catlica para lidar com as circunstncias especficas ao se buscar governar sditos em domnios distantes pouco dceis s condies de injustia, desproteo e ind-cios de alguma tirania que a condio colonial lhes impunha.

    Maquiavelices

    O elenco de mximas que circulou nos debates entre governadores coloniais, ministros da junta ultramarina e outros conselheiros rgios procurou defender o papel do segredo em circunstncias delicadas, ainda que uma das principais qualidades do soberano fosse o compromisso com a verdade, sem falar na vir-tude e na prudncia. O vocabulrio dos oficiais no mundo luso-brasileiro no que tange dissimulao pouco se diferenciava daquilo que tantas vezes se escutava: um prncipe prudente no pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial, ou ainda, jamais faltaram aos prncipes razes para dissimular.

    Essas ltimas frases lidas em seu contexto tornam-se bem mais instigantes. Elas foram depuradas de uma obra escrita mais de um sculo antes de os vas-salos rebeldes da Amrica agitarem a poltica portuguesa. No clebre captulo XVIII dO prncipe, obra de Nicolau Maquiavel que vem luz em 1513, Deque forma os prncipes devem guardar a f, o secretrio de Florena evoca a legi-timidade da dissimulao por parte dos soberanos. Escreve o florentino que

    42http://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/. Acesso em: 14/07/2014.43Assim como o peso poltico do Conselho varia ao longo da temporalidade abarcada nesse artigo, varia tambm seu papel em relao a diferentes reinados e circunstncias polticas.

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    deveis saber, portanto, que existem duas formas de se comba-ter: uma, pelas leis, outra, pela fora [...] Ao prncipe torna-se necessrio, porm, saber empregar convenientemente o ani-mal e o homem [...] E uma sem a outra [natureza] a origem da instabilidade [...] [est] um prncipe obrigado a bem ser-vir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leo, pois este no tem defesa alguma contra os laos [armadilhas] e a raposa, contra os lobos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laos e leo para aterrorizar os lobos [...] um prncipe prudente no pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir [...] dado que [os homens] so prfidos e que no a observariam [a palavra] a teu respeito, tambm no s obrigado a cumpri-la para com eles. Jamais faltaram aos prncipes razes para dissimular que-bra da f jurada.44

    Poucas linhas adiante, vai alm, aconselhando que, para colocar aqueles princpios em prtica, deve o prncipe ser grande simulador e dissimulador.45

    A defesa da arte do engano pelos governantes, dispensados da obrigao de manter a qualquer custo sua palavra, foi, segundo Maurizio Viroli, um dos conselhos mais subversivos lanados pelo autor de dO prncipe.46 Maquiavel contrariava abertamente os clssicos, ao considerar a dissimulao indispen-svel ao governo dO prncipe, que deveria empreg-la por quanto tempo fosse necessria.47 Suas ideias nadam tambm contra a corrente do gnero espe-lhos de prncipes que alcanara grande sucesso na Europa a partir meados do sculo XV, defendendo irredutivelmente as virtudes crists como valor supremo a ser preservado por aqueles que governam.48 Dentre as que mais nos interes-sam aqui, Giovanni Pontano aconselhava ento aos prncipes que nada mais lamentvel que um soberano no cumpra sua palavra, ainda ante seus ini-migos.49 No mesmo ritmo em que a obra de Maquiavel demolia os princpios dos humanistas que preconizavam as excelncias da honra, glria e da virtude acima de qualquer coisa, nascia sua nfase no papel central da dissimulao. O governante precisava, para ele, aprender como no ser virtuoso para conse-guir manter o poder diante da perversidade humana que o cercava. Escrevia o

    44Nicolau Maquiavel, O prncipe, Escritos polticos, Traduo de Livio Xavier, 3. ed., So Paulo, Abril Cultural, 1983 (Os pensadores), p. 73-74.45Ibidem, p. 74.46Maurizio Viroli, Machiavelli, New York, Oxford University Press, 1998 (Founders of Modern Political and Social Thought), p. 88. Perez Zagorin defende a fora do argumento desse captulo da obra, ainda que ressalte a novidade da noo de que o prncipe no obrigado a manter a f com seus sditos: Ways of lying: dissimulation, persecution, and conformity in early modern Europe, Cambridge, Harvard University Press, 1990, p. 6 (ver captulo Dissimulation in historical context, p. 1-14). Ver ainda Quentin Skinner, Maquiavel. Pensamento poltico, So Paulo, Brasiliense, 1988, p. 69-70.47Ibidem, p. 71.48Ibidem. Ver, ainda, Marcelo Jasmin, Poltica e historiografia no Renascimento italiano: o caso de Maquiavel, In: Berenice Cavalcante (org.), Modernas tradies: percursos da cultura ocidental (sculos XVXVIII), Rio de Janeiro, Acccess, 2002, p. 181.49Quentin Skinner, Los fundamentos del pensamiento poltico moderno, vol. 1, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1993, 2 vols., p. 152.

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    secretrio em seu manual que o prncipe no necessariamente deve ter todas as boas qualidades, mas certamente deve parecer que as tm.50

    A razo pela qual Maquiavel atribui tanta importncia s artes da dissimu-lao e ocultao se faz clara quando observamos sua outra afirmao acerca do papel das virtudes na vida poltica, escreve Quentin Skinner.51 Nemsempre a atitude virtuosa daqueles que governam deveria ser obrigatoriamente vir-tuosa, se as aes mais perversas pudessem trazer maiores vantagens. Maspara agir assim, cuidando em ltima anlise de manter seu poder, era essencial ao prncipe aparentar ser virtuoso. Bem dissimular era tudo.

    Maquiavel levou longe a defesa da dissimulao como chave para o xito, enfren-tando a tradio do pensamento ocidental que, apesar de tambm consider-la o caminho para o sucesso, acabavam por conden-la. A dissimulao, como tema de debates associado tica, existia pelo menos desde a Antiguidade Clssica.52 Era um tpico central no pensamento ocidental, na moral teolgica e na filosofia, segundo defende Perez Zagorin, estando relacionado aos dilemas da conscin-cia humana, conduta, s virtudes e aos vcios, confrontados com o problema da mentira. Qualquer um que pense poder conquistar uma glria duradoura atravs do fingimento se engana demais, escrevia Ccero (Livro II de A obrigao moral). Aocontrrio das slidas razes com que glria verdadeira era formada, todas as for-mas de fingimento logo caem ao cho como frgeis flores, dizia.53 Santo Agostinho tampouco perdoava qualquer tipo de mentira, seja em que circunstncia fosse, asso-ciada ao pecado e ao mal.54 Umavez que faltar com a verdade era um problema capital para qualquer cristo, compreende-se a dificuldade de se aceitar a mentira no domnio do governo. Quando praticada pelas autoridades, corroa os princpios da constituio do reino.55 Telogos e moralistas se debruaram sobre o problema para refletir em que situaes a mentira era justificada.56

    50Quentin Skinner, Los fundamentos del pensamiento poltico moderno, vol. 1, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1993, 2 vols., p. 157.51Ibidem. No iremos aqui desdobrar mais do que o necessrio a respeito da discusso sobre virtude e virt na obra de Maquiavel, tema de vastssima bibliografia.52Felix Gilbert, Machiavellism, In: Philip P. Wiener (org.), Dictionary of the history of ideas, Tomo III, New York, Charles Scribnerss Son, p. 116-126.53Quentin Skinner, Maquiavel. Pensamento poltico, So Paulo, Brasiliense, 1988, p. 71.54Perez Zagorin, Ways of lying: dissimulation, persecution, and conformity in early modern Europe, Cambridge, Harvard University Press, 1990 (ver captulo Dissimulation in historical context, p. 1-14). Ver tambm Jon R. Snyder, Dissimulation and the culture of secrecy in early modern Europe, Berkeley; Los Angeles, University of California Press, 2009, p. 17.55Ver Jos Antonio Maravall, Teoria del Estado en Espaa en el siglo XVII, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997.56Perez Zagorin, op cit., p. 1-14.

    Maquiavel contrariava abertamente os clssicos, ao considerar a dissimulao indispensvel ao

    governo do prncipe, que deveria empreg-la por quanto tempo fosse necessria

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    Novas perspectivas sobre o segredo no brotaram apenas na Itlia. SeMaquiavel sustentou o uso da dissimulao como oportunidade e neces-sidade diante da poltica do prncipe, ela tambm se tornaria recurso para manter a ordem, sob a nova ideia de razo de Estado permeada pelo esprito catlico.57 A partir do sculo XVI, a rigidez dos modelos de uma tica virtuosa foi ajustada com a emergncia da poltica barroca, que desenvolve catego-rias e espaos de inovao. Tratava-se da superao dos velhos paradigmas, incapazes de enfrentar um mundo que se transformava, em que a oposio e resistncia ativa ao poder exigiram uma tcnica elaborada oficial e exclu-sivamente para ao de governo.58 A conteno moral necessria para o agir poltico, afastando-se da ortodoxia moral e merece espao comum na linguagem poltica.59

    Para Rosario Villari, a dissimulao uma das expresses dessa poltica barroca. a chave mais importante de sua complexidade nos sculos XVI e XVII, chegando a se tornar, para ele, um dos aspectos especficos da vida poltica e dos costumes.60 Nessa ltima centria, a teoria da dissimulao j se encon-trava legitimada e devidamente presente no vocabulrio poltico, assumindo um valor universal. Por isso, afirma o historiador italiano, a dissimulao lcita e honrosa para o Prncipe, aconselhvel ao corteso e em certas condi-es tolervel no homem comum. Conectado a isso, a pacincia valorizada como virtude dos sditos. A prudncia e a pacincia tm profunda afinidade com a dissimulao (equivalente, esta, da arte da pacincia). o elemento fundamental da prudncia poltica. A insistente exaltao da prudncia como virtude fundamental do prncipe propunha um modelo de comportamento que, objetivamente, tendia a assumir valor universal, muito alm das inten-es dos tericos e moralistas.61

    Lentamente admitida nas prticas de governo da monarquia portuguesa, nem por isso pronunciava-se o nome de Maquiavel. Exceto quando se tratava de conden-lo. Nesse momento antimaquiaveliano, cabia a aproximao entre a dissimulao e as ideias do secretrio florentino. NaAmrica, mais precisamente no Rio de Janeiro em pleno sculo XVII, a crtica mostrou-se vigilante. O governador Salvador Correa de S e Benevides escreveu rainha regente de Portugal, D. Lusa de Gusmo, em 10 de abril de 1661, uma carta na qual narrou os distrbios, j mencionados aqui, que tomaram conta da cidade por efeito dos quais esteve destitudo temporariamente de seu governo.

    O trecho que nos interessa desse documento refere-se meno que Salvador Correa de S e Benevides faz participao do capito, fidalgo e pro-prietrio Agostinho Barbalho Bezerra, em cujas terras tem incio a resistncia armada e que, em seguida, teria sido dragado pelos rebeldes no convento de

    57Rosario Villari, Elogio della dissimulazione: la lotta poltica nel Seicento, Roma, Laterza, 1987, p. 18-19.58Ibidem, p. 25.59Ibidem, p. 28-29.60Ibidem, p. 18.61Ibidem, p. 28-29.

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    So Francisco, onde se refugiara, e alado condio de governador escolhido pelo povo.62 Benevides descreve situao comum nesses processos quando algum homem de prol era escolhido e conduzido compulsoriamente pela turba para governar. No texto, defende que Agostinho exerceu a funo com acerto, conciliando e procurando manter as coisas sob controle. Registra, porm, que a multido, sempre instvel, desconfiou da fidelidade do novo governador causa. Benevides escreve, ento, a respeito da opinio do povo rebelado diante das atitudes de Barbalho: parecendo-lhes maquiavelice, pois teria dado indcios, depois de ter assumido, de que apenas aceitara o posto para merecer prmios de Sua Majestade e escapar do castigo por sua participao na revolta.63

    O uso do substantivo sugerindo, em sentido figurado, um propsito maquia-vlico revelador das associaes, evidentemente negativas, que as atitudes de simulao e dissimulao passaram a ter com o pensador italiano. Nessecon-texto especfico, o emprego da expresso maquiavelice, atitude atribuda a Agostinho Barbalho, se aproxima mais da ideia de simulao que de dissimu-lao, pois ele teria fabricado adeso ao movimento, escondendo intenes que contrariavam a causa. Simulao o artifcio por meio do qual se quer mostrar de uma forma o que se , mas a realidade outra.64 Para os rebeldes, uma atitude reprovvel; para Benevides, talvez no. Ao contrrio, uma mentira sem tanta gravidade moral, que no se confunde com engano nem prejudica a moral catlica quando se precisa manter a ordem.65

    A referncia desabonadora do termo maquiavelice, associado simulao, estabelece um contraponto conveniente. A palavra traz uma crtica velada-mente antimaquiaveliana que comps o arsenal de oposio aos princpios do pensador italiano em Portugal.De um lado, flagrante o desconforto com a presena dos pressupostos maquiavlicos ali, antes de mais nada porque, como resumiu em termos gerais Claude Lefort, Maquiavel convida o leitor para uma interrogao acerca dos fundamentos da poltica e comea por lhe proibir que se apie sobre as verdades estabelecidas pela tradio humanista

    62Sobre o episdio, ver Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na Amrica portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (16401761), Tese de doutorado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1996 (cap. 1 - A revolta da cachaa). 63...na opinio de muitos mais culpado parecendo-lhes maquiavelice para [o?] desculpar do castigo, e que em vez deste o premiasse VMje. com a continuao do governo, na falta ou ausncia minha... . Notcia de um motim, no Rio de Janeiro, enviada Rainha Regente, dona Lusa de Gusmo, por Salvador Correia de S. Rio de Janeiro, 10 de abril de 1661. Biblioteca Nacional de Portugal, Reservados, cd. 10563/83, fl. 195-196.64Alguns pensadores espanhis do sculo XVII estabelecem diferena entre dissimulao e simulao. A ao de dissimular lcita, correspondendo atitude de no revelar o que se sabe ou se suspeita; j simular aparece como ao reprovvel na medida em que diz uma coisa e faz outra. O tema aparece em Jos Antonio Maravall, Teoria del Estado en Espaa en el siglo XVII, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 257. Conforme Torquato Accetto, a simulao ao desonesta na moral cortes, posto que enganadora: Simula-se aquilo que no , dissimula-se aquilo que : Torquato Accetto, La disimulacin honesta, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2005, p. 21.65A respeito da formulao em sentido positivo da ideia de simulao pela moral catlica em Portugal, ver o trabalho de Bruno Silva de Souza, O fantasma de Maquiavel: antimaquiavelismo e Razo de Estado no pensamento poltico ibrico do sculo XVII, Dissertao de mestrado, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropdica, 2011, p. 70 et passim.

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    ou crist.66. Por isso mesmo, sua leitura era interdita em Portugal, repudiado ao lado de outros polticos mpios e imorais como Bodin e Hobbes.67

    Por outro lado, contudo, preciso com clareza se distinguir do pensador italiano. Lus Reis Torgal afirmara em sua obra, na qual visita as concepes de poder dos principais autores da poca da Restaurao, que, de certa forma, todos partilham o compromisso da poltica crist como uma espcie de arte, que supe a necessidade do emprego do clculo e da habilidade.68 Concorre a prudncia para a virtude do prncipe e um governo justo, cristo e pacfico. Ela, em suas palavras, a virtude fundamental que ocupa na tica poltica crist, o papel de substituto do clculo imoral da poltica maquiavlica.69 Ospensa-dores catlicos nos principais textos da segunda metade do XVII formulam e debatem a dissimulao, como afirma Bruno Souza em estudo sobre o anti-maquiavelismo em Portugal, um tema caro aos autores catlicos na hora de diferenciar uma certa prudncia catolicamente autorizada da astcia e mal-cia caractersticas de Maquiavel.70

    Um dos bons exemplos Sebastio Cesar de Meneses que, em Suma pol-tica, se dedica razo de Estado, afastando-se das formulaes maquiavlicas. Dentre os temas que enfrenta, est o da reputao do prncipe, capaz de realizar o princpio do bom governo. Bruno Souza salienta que contrariamente ao que defendia Maquiavel, para os autores catlicos no bastava [apenas] aparentar possuir as qualidades, mas possu-las verdadeiramente.71 Sebastio Csar de Meneses, ao defender as qualidades que conduz o bom prncipe cristo, toma a dissimulao como atitude negativa, admissvel, porm, quando usada com prudncia e sem intenes de mentira.72

    66Claude Lefort, Sobre a lgica da fora, In: Clia Galvo Quirino; Maria Teresa Sadek (orgs.), O pensamento poltico clssico, So Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 35-58; 56.67Antnio Manuel Hespanha (coord.), Histria de Portugal, vol. 4, Lisboa, Estampa, 1992, p. 121. Sobre antimaquiavelismo em Portugal, ver Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal. Estudos de histria das ideias polticas, Lisboa, Althea Editores, 2007. 68Lus Reis Torgal, Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao, vol. II, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981, p. 186.69Ibidem, p. 182.70Bruno Silva de Souza, O fantasma de Maquiavel: antimaquiavelismo e razo de Estado no pensamento poltico ibrico do sculo XVII, Dissertao de mestrado, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropdica, 2011, p. 68.71Ibidem, p. 61 (ver, especialmente, o captulo Sebastio Csar de Menezes: os alicerces da razo de Estado).72Peter Burke parece no ter atentado para a diferena ao mencionar que muitos dos que atacavam violentamente Maquiavel podem ser flagrados recomendando dissimulao e mesmo a quebra dos tratados como ele fazia. Peter Burke, Tacitism, sceptisism, and reason of State, In: James Henderson Burns (org.), The Cambridge history of political thought 1450-1700, Cambridge, Cambridge University Press, p. 479-499; 483.

    A partir do sculo XVI, a rigidez dos modelos de uma tica virtuosa foi ajustada com a

    emergncia da poltica barroca, que desenvolve categorias e espaos de inovao

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    Em qualquer homem, aborrecida a dissimulao, e no Prncipe ainda mais abominada [...] Porm, a dissimulao, no h-deser para enganar, e fingir, que a mentira opem-se ao que est no entendimento como verdadeiro.73

    Fora de Portugal, mas em dilogo permanente com os portugueses no sculo XVII, pensadores espanhis em debate ao redor dos impasses da poltica crist tambm abrem espao cauteloso para a dissimulao. Baltazar Gracin, em seu Manual da arte da discrio (1653), defende que a maior prova de sabe-doria a dissimulao.74 Francisco de Quevedo, em Poltica de Dios, condena ferozmente as artes dissimulatrias; em outra obra, cede s razes de Estado para postular: quien no disimula no adquiere imprio, quien no sabe disimu-lar lo que disimula no puede conservarle. La disimulacin en los Prncipes es traicin honesta contra los traidores.75

    Artes e tretas

    Na linha de frente dos conflitos, os letrados oficiais da Coroa se inspiravam nas recomendaes dos pensadores catlicos para se guiar no agitado mar da Amrica. Os enunciados da arte do segredo que os conselheiros rgios e autori-dade esgrimiram s voltas com as rebelies dos luso-brasileiros no eram novos.

    Martim de Albuquerque destacou que

    Se os tericos portugueses do sculo XVII in genere reprova-ramadoutrina da razo de Estado, a crueldade poltica, a mentira, a quebra da palavra, a fraude e a simulao como mtodos de governo, isso no significa a ausncia de um certo maquiave-lismo prtico, sobretudo durante o movimento da Restaurao. Explicam o facto, embora o no justifiquem, as circunstncias do pas que lutava pela sua sobrevivncia, no sendo, consequen-temente, sempre fcil actuar de acordo com as normas ticas.76

    Dessa forma, ainda que se recusasse a Maquiavel e seu pragmatismo amo-ral, isso no significava recusar o exerccio de uma poltica pragmtica, atenta aos condicionantes do momento e condicionalismos histricos o tacitismo.77

    73Sebastio Csar de Menezes, Suma poltica, 1649, p. 103-104 apud Bruno Silva de Souza, O fantasma de Maquiavel: antimaquiavelismo e Razo de Estado no pensamento poltico ibrico do sculo XVII, Dissertao de mestrado, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropdica, 2011, p. 63.74Perez Zagorin, Ways of lying: dissimulation, persecution, and conformity in early modern Europe, Cambridge, Harvard University Press, 1990, p. 1-14; 8. (ver captulo Dissimulation in historical context).75quem no dissimula no impera, quem no sabe dissimular o que dissimula no pode mant-lo. A dissimulao dos Prncipes traio honesta contra traidores. Francisco de Quevedo y Villegas, Primera parte de la vida de Marco Bruto, Madrid, 1644, In: Obras de Quevedo, vol. I, [S.l., s.n.], p. 163 apud Jos Antonio Maravall, Teoria del Estado en Espaa en el siglo XVII, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 256.76Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal. Estudos de histria das ideias polticas, Lisboa, Altheia Editores, 2007, p. 76-77.77Antnio Manuel Hespanha (coord.), Histria de Portugal, vol. 4, Lisboa, Estampa, 1992, p. 133. Sobre Tcito, ver Jos Antonio Maravall, Teoria del Estado en Espaa en el siglo XVII, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 379; Lus Reis Torgal, Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao, vol. II, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981, p. 138.

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    Sob a ideia da razo de Estado, reivindicando princpios catlicos, o caminho parecia aberto para justificar o uso da dissimulao nos dom-nios distantes, tornando-se a Amrica seu grande laboratrio. O historiador Evaldo Cabral de Mello, em suas leituras sobre as revoltas em Pernambuco, percebeu com sua habitual preciso o papel da dissimulao e assinalou a distino entre sua aplicao no contexto da Amrica portuguesa e as ideias do florentino. Ao se referir atitude de uma autoridade eclesistica, sob con-texto particular, observou que esta

    tratou, portanto, de dissimular, para empregar o verbo no sentido consagrado pela poltica crist, que desempenhara nos pases catlicos o papel de equivalente funcional do maquiavelismo, oficialmente condenado pela igreja. Graas dissimulao, os governantes podiam, sem correr o risco de perder a alma, protelar, ludibriar e mistificar quando o servio dEl Rei e a tranquilidade estivessem em jogo.78

    A condio de equivalente funcional do maquiavelismo na busca de resultados objetivos em circunstncias dramticas destinada a conter maiores danos ao reino de Portugal se desenrola sob certo padro discursivo a respeito da dissimulao diante da punio aos sditos revoltosos no Brasil. Isso sem ferir os ideais de virtude e prudncia que deveriam cercar a imagem do sobe-rano e dos oficiais que o representavam e serviam.

    Nessas circunstncias, a condensao e a intensidade das sedies nos domnios ultramarinos de Portugal, especialmente na Amrica, tornam a pol-tica da dissimulao uma experincia nica, uma vez que a teorizao que se processava na Europa no sculo XVII alcanou instantaneamente o plano da prtica. De acordo com o que observamos at aqui, ela foi admitida em condi-es especficas que permitissem conservar a monarquia, receitada para fins prticos. Um deles era evitar que o castigo exemplar, merecido pelos rebeldes aos olhos da lei, provocasse mais insatisfao diante do impacto social com eventuais prises, execues, confiscos e morte. Ao contrrio, como uma das autoridades proferiu, melhor do que punir, o governador s usar dos termos de brandura e persuaso. 79 A conduta convertia em vantagem o que parecia fraqueza: a conduta paternal que simbolizava a imagem do soberano ganharia fora diante de sditos sem, de forma alguma, deix-los perceber que tinham praticado alguma coisa errada. Ou ainda, como j citado, sadias mximas de estado, dizia um dos conselheiros, ensinam que mais vale abrir-lhes agora um crdito de confiana, do que exasper-los. 80 Segundo o telogo Carvalho

    78Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 16661715, So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 298.79Parecer do Conselho Ultramarino, BNB, DH, 1952, vol. 96, p. 50.80Consulta do Conselho Ultramarino, maio de 1661. Publicado em Frazo de Vasconcellos, Archivo nobiliarchico portuguez, 1 srie, n. 6, p. 13 apud Charles R. Boxer, Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola, 16021686, So Paulo, Edusp, 1973, p. 338.

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    de Parada prescrevia em sua Arte de reinar (1643), o prncipe no deve usar rigor excessivo, que provoca dio.81

    Mesmo porque, aodar vassalos com ameaas de punio era um mau negcio nas circunstncias polticas do governo de colnias distantes, como era frequente se admitir. Na ocasies em que o Estado esteja invadido por alguma armada, ou esquadra de inimigos, [...] no convir usar deste meio [punies e execues], mas reserv-lo para ocasio de mais sossego.82 Ou ainda se [se] procedesse com rigor contra os delinquentes, se poderia aumentar a suble-vao. 83 Outros expressam temores semelhantes que podiam dar-lhes um pretexto para se valerem de outra nao.84

    Ganhar prazo em situaes de crise era virtude do prncipe prudente. Recomendava-se deixar o tempo passar, superando-se as circunstncias dif-ceis para adiante vencer, usando a meios virtuosos, sem estarem contaminados pelo mal.85 A espera, segundo Rivadeneyra, deveria acompanhar a dissimulao. Como prova de prudncia dos que governam multides: el mirar la conyuntura y razn tambin aprovecha para disimular algunas cosas, por graves que sean y merecedoras de castigo, y guardarle para su tiempo.86 Diante das alteraes de vora, como ficaram conhecidos os sucessivos protestos naquela cidade em 1637 que se irradiam pelo territrio do reino sob a Unio Ibrica, Castela vacilou diante dos rebeldes humores. Temia-se, segundo D. Francisco Manuel de Melo, a possvel influncia do exemplo para outros domnios espanhis:

    A uns pareceu se devia dissimular com aqueles povos inquietos, at melhor tempo, a troco de no confessar s naes da monar-quia se se achava nela alguma to ousada; outros entenderam que com a nova do erro convinha chegasse a do castigo.87

    81Lus Reis Torgal, Ideologia poltica e teoria do estado na Restaurao, vol. II, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981, p. 181.82AHU, Parecer do Conselho Ultramarino, BNB, DH, 1952, vol. 96, p. 50.83Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos nobres contra mascates: Pernambuco 16661715, So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 403.84Consulta do Conselho Ultramarino, maio de 1661. Publicado em Frazo de Vasconcellos, Archivo nobiliarchico portuguez, 1 srie, n. 6, p. 13 apud Charles R. Boxer, Salvador de S e a luta pelo Brasil e Angola, 16021686, So Paulo, Edusp, 1973, p. 338.85Jos Antonio Maravall, Teoria del Estado en Espaa en el siglo XVII, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 249.86observa a conjuntura e a razo tambm aproveita para dissimular algumas coisas, por mais graves que sejam e merecedoras de castigo, e guarde-a para seu tempo. Ibidem, p. 248.87D. Francisco Manuel de Melo, Tcito portugus. Vida, morte, dittos e feitos de El rey Dom Joo IV de Portugal [ca. 1638], Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1995.

    Sob a ideia da razo de Estado, reivindicando princpios catlicos, o caminho parecia aberto para

    justificar o uso da dissimulao nos domnios distantes, tornando-se a Amrica seu grande laboratrio

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    A suspenso temporria da punio, ou do processo judicial, quase sempre acompanhava a dissimulao: Por ora, os castigos esperariam; at cessar o receio de ameaa estrangeira, era prefervel aguardar; os castigos, cabia reser-v-los para ocasio de mais sossego; persuadia a prudncia que por ora se dissimulasse com o castigo. Foram essas algumas das recomendaes com os rebeldes na Amrica colonial. A ideia de tempo , portanto, essencial para os prudentes, que Gracin chama de a arte de deixar estar. Cede-se agora para vencer depois.88

    No poucas vezes, a recomendao para no castigar rebeldes no Brasil Colnia fazia par com a imposio de um silncio geral a respeito. Que se ponha perptuo silncio nesta causa, muitas vezes se escreveu. Tratava-se aqui de atualizar no Novo Mundo lies da poltica crist, especialmente a respeito da justia punitiva dos prncipes. Sebastio Csar de Meneses admite que h certas culpas para as quais, por razes de natureza poltica, melhor evitar punio. Diz: Casos h punveis que convm se no castiguem, por no per-petuar sua memria, em lugar de escarmento.89

    Por outro lado, a condenao da dissimulao que se mostra incapaz de reduzir crises e a defesa do castigo exemplar bebem nas mesmas fontes da poltica crist. O corretivo deve ser exemplar, pois reafirma a autoridade do prncipe e evita novos tumultos. Em sua defesa, afirmavam os conselheiros ultramarinos ser o castigo a medicina de to graves achaques, como sedi-es e levantamentos populares, onde deve o castigo ser pronto.90Adaptavam mximas elaboradas sob o drama da poltica barroca europeia. Inspiravam-se em um princpio equivalente ao que defendia a dissimulao, embora aqui servisse para justificar atitude inversa. O princpio do amor com que os reis deveriam tratar seus vassalos era defendido, sendo ele regulado pelo respeito e autoridade. Antnio de Sousa Macedo sustenta o uso do castigo severo oca-sionalmente como forma de manter a ordem e a estabilidade: a severidade no causa dio, mas respeito, com um castigo atalha muitas culpas, e grande Clemncia ser cruel uma vez.91

    Diz ainda, a pena medocre irrita, no atemoriza os nimos, mostra que o crime no foi totalmente reprovado, ou que o Prncipe no ousou castig-lo, com que fica contemptvel [sic], e o povo insolente.92

    Muitas so as passagens que expressam o raciocnio resoluto de alguns con-selheiros: nenhuma sorte de perdo, ou dissimulao, porque os muitos que se tem perdoado, ou dissimulado foram a causa destes, e sero de mais, se se

    88Jos Antonio Maravall, Teoria del Estado en Espaa en el siglo XVII, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 249.89apud Lus Reis Torgal, Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao, vol. II, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981, p. 210.90Sobre a conta que da o conde de Assumar D. Pedro de Almeida governador e capito general das Minas Gerais dos motins e tumultos que nelas tem havido, e vo as cartas que se acusam, AHU, cd. 233, fl. 218-223v. 91apud Lus Reis Torgal, op cit., p. 197.92Ibidem, p. 199.

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    no castigarem.93 Tambm aqui os pensadores catlicos parecem fornecer as linhas gerais dessas lies. Diego Saavedra Fajardo escrevia: La confianza del perdon haze atrevidos a los Subditos, i la Clemencia desordenada cria desprecios, ocasiona desacatos, i causa la ruina de los Estados.94 Algo muito semelhante escreviam os conselheiros em seus pareceres: Grande virtude a da clemncia, principalmente nos Prncipes. Mas de tal natureza, que se se exercita repe-tidas vezes, e de ordinrio, degenera em vcio, porque convida a delinquir. 95

    Ainda que inspirada e claramente lastreada na leitura dos moralistas e pensadores sob a poltica crist, as recomendaes e o campo de ao das autoridades estiveram no Brasil balizados no apenas pela moral catlica mas, especialmente, pelos riscos polticos de alta traio, inconfidncia e a perda do patrimnio. Em vista disso, a dissimulao foi acolhida em um papel decisivo como instrumento de governo. A forma que assumiu a linguagem da dissimulao no Brasil alargou as possibilidades de a poltica crist se ajustar inquietao exagerada e aos riscos extremos que se verificava nesses dom-nios da monarquia portuguesa.

    Quando se tratava de preservar o poder, garantir o bem comum e cumprir a harmonia sobre a terra dos homens, os pensadores cristos podiam superar a violncia e os expedientes prticos muitas vezes atribudos a Maquiavel, de quem queriam se imaginar a lguas de distncia. Mas as falsas aparncias por vezes se desmancham luz da ironia. D. Francisco Manuel de Melo, com sua pena afiada, revelou o lugar das coisas ao sugerir que nossa Corte [...] pode ler e ensinar artes, e tretas aos Tcitos e, Machiavelos.96

    93Sobre a conta que da o conde de Assumar D. Pedro de Almeida governador e capito general das Minas Gerais dos motins e tumultos que nelas tem havido, e vo as cartas que se acusam, AHU, cd. 233, fl. 218-223v. 94a confiana no perdo deixa os sditos atrevidos, e a clemncia desordenada cria desprezo, traz desacatos e causa a runa dos Estados. Idea de un principe politico christiano: rapresentada en cien empresas, por Don Diego de Saavedra Fajardo ... En Monaco [s.n.], a 1 marzo 1640; En Milan [s.n.], a 20 de abril 1642. Disponvel em: . Acesso em: 4 fev. 2014.95AHU, Parecer do Conselho Ultramarino, BNB, DH, 1952, vol. 96, p. 42-43.96...D. Francisco Manuel de Melo, ao dirigir-se a Francisco de Sousa Coutinho, afirmar: A malicia corre tal (segundo ouo), que a nossa Corte no sendo antigua, pode ler, e ensinar artes, e tretas aos Tcitos, e Machiavelos apud Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal. Estudos de histria das ideias polticas, Lisboa, Altheia Editores, 2007, p. 77.