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CEMME – Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas Janeiro, 2007 QUE FUTURO TEM PORTUGAL PARA OS PORTUGUESES CIGANOS? 1 José Gabriel Pereira Bastos Visão”, 24 de Abril de 1996 – Num inquérito realizado junto da população escolar portuguesa, à questão “Se dependesse de si, quem expulsaria de Portugal?”, trinta e quatro por cento dos jovens citaram os ciganos, que assim aparecem em primeiro lugar. Numa casa portuguesa fica bem / pão e vinho sobre a mesa / e se à porta humildemente bate alguém / senta-se à mesa com a gente. Fica bem esta franqueza, fica bem / que o povo nunca desmente / A alegria da pobreza / está nesta grande riqueza / de dar e ficar contente.” Refrão do hino nacional-popular 1. À descoberta do racismo em Portugal Quando em 1977 fui contactado para construir um dossiê sobre as minorias étnicas em Portugal, a pedido do Gabinete de Estudos da Secretaria de Estado da Juventude, não sabia o que me esperava, uma vez que, apesar de ser antropólogo e investigador, estava muito distante da realidade socio-historica e política dos portugueses ciganos. Trabalhando para esse dossiê, duas investigações (Bruto da Costa e M. Pimenta, 1991; Moreira, 1999) e a análise da Base de dados Entreculturas permitiram-me perceber que, comparativamente, a situação dos portugueses ciganos era muito pior do que a das minorias étnicas imigrantes que desde a década de 70 vinham entrando em Portugal, em todos os indicadores disponíveis (condições de vida; iliteracia, insucesso e abandono escolar precoce; taxas de aprisionamento). Pior do que isso, deu para perceber a extrema indiferença dos partidos parlamentares, do ACIME e dos sucessivos governos face a uma situação tão gravosa, na medida em que tendem a naturalizar e a enquadrar numa perspectiva de relativismo cultural o resultado destrutivo de relações interétnicas multicentenárias, que continuam activas na actualidade, lavando daí as suas mãos. O impacto que sobre mim tiveram estes factos levaram-me a procurar dados sobre o enquadramento histórico que tinha levado a esta situação, percebendo então que os ciganos em Portugal, desde o início do século XVI, com escassas excepções, estiveram submetidos a projectos sistemáticos de extinção identitária ou de 1 In, Mirna Montenegro (Ed) Ciganos e Cidadanias, Lisboa: Cadernos ICE, nº9 (no prelo)

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CEMME – Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas Janeiro, 2007

QUE FUTURO TEM PORTUGAL PARA OS PORTUGUESES CIGANOS?1

José Gabriel Pereira Bastos

“Visão”, 24 de Abril de 1996 – Num inquérito realizado junto da população escolar portuguesa, à questão “Se dependesse de si, quem expulsaria de Portugal?”, trinta e quatro por cento dos jovens citaram os ciganos, que assim aparecem em primeiro lugar. “Numa casa portuguesa fica bem / pão e vinho sobre a mesa / e se à porta humildemente bate alguém / senta-se à mesa com a gente. Fica bem esta franqueza, fica bem / que o povo nunca desmente / A alegria da pobreza / está nesta grande riqueza / de dar e ficar contente.” Refrão do hino nacional-popular

1. À descoberta do racismo em Portugal

Quando em 1977 fui contactado para construir um dossiê sobre as minorias

étnicas em Portugal, a pedido do Gabinete de Estudos da Secretaria de Estado da

Juventude, não sabia o que me esperava, uma vez que, apesar de ser antropólogo e

investigador, estava muito distante da realidade socio-historica e política dos

portugueses ciganos. Trabalhando para esse dossiê, duas investigações (Bruto da Costa

e M. Pimenta, 1991; Moreira, 1999) e a análise da Base de dados Entreculturas

permitiram-me perceber que, comparativamente, a situação dos portugueses ciganos era

muito pior do que a das minorias étnicas imigrantes que desde a década de 70 vinham

entrando em Portugal, em todos os indicadores disponíveis (condições de vida;

iliteracia, insucesso e abandono escolar precoce; taxas de aprisionamento). Pior do que

isso, deu para perceber a extrema indiferença dos partidos parlamentares, do ACIME e

dos sucessivos governos face a uma situação tão gravosa, na medida em que tendem a

naturalizar e a enquadrar numa perspectiva de relativismo cultural o resultado destrutivo

de relações interétnicas multicentenárias, que continuam activas na actualidade, lavando

daí as suas mãos. O impacto que sobre mim tiveram estes factos levaram-me a procurar

dados sobre o enquadramento histórico que tinha levado a esta situação, percebendo

então que os ciganos em Portugal, desde o início do século XVI, com escassas

excepções, estiveram submetidos a projectos sistemáticos de extinção identitária ou de

1 In, Mirna Montenegro (Ed) Ciganos e Cidadanias, Lisboa: Cadernos ICE, nº9 (no prelo)

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marginalização social, que duram até aos nossos dias, a coberto de pequenas mudanças

de pretextos e de estratégias. Embora Adolfo Coelho tenha publicado a maior parte

destes dados desde 1892 e tenha chamado a atenção para o facto de que, já nessa altura,

«na Espanha, a obra da assimilação tem progredido muito mais do que em Portugal,

para o que contribuiu sem dúvida o interesse que lá tem inspirado o gitano e por ventura

certas características comuns ao andaluz e ao cigano; enquanto nós, povo de

indiferentes, nada queremos saber do cigano e só sabemos o que o acaso nos obriga a

aprender.» (Coelho [1892] 1995:174), também este segundo conjunto de dados (que

passei a designar de «trauma histórico») foram escamoteados da opinião pública e

resvalaram na capa da indiferença dos políticos portugueses.

Em 2005, o Núcleo de Estudos Ciganos, do CEMME, ganhou em concurso

limitado, a execução de um estudo sobre a «comunidade cigana do Concelho de Sintra».

A execução desse estudo permitiu-me levar mais longe a pesquisa sobre a condição de

existência dos portugueses ciganos em Portugal. Preocupado com os dados sociológicos

de que dispunha, o contacto com o SOS Racismo e pesquisas mediáticas

complementares2 permitiram-me associar os dados históricos de índole jurídico-política

(do século XVI à actualidade), com o diagnóstico sociológico sobre a situação dos

portugueses ciganos nos anos 90 e, agora, com notícias (dos anos 90 à actualidade)

sobre o modo como as instituições portuguesas lidam com esses portugueses. Ora estes

dados confirmam que existe uma integral continuidade entre a política monárquica e

republicana (desde a 2ª dinastia), persecutória e intencionalmente destrutiva da

identidade cigana (desesperadamente violenta, sem grande resultado), e o conjunto de

acções e omissões que, também desde o 25 de Abril, continuam a condenar os

portugueses ciganos ao ostracismo social, permitindo discernir que a ciganofobia tem

raízes muito profundas em Portugal e, se nada for feito por quem de direito, ameaça

perpetuar a exclusão social destes portugueses ao longo dos próximos séculos, podendo

até mesmo agravá-la, como veremos adiante. O argumento, que abaixo desenvolverei,

parte do pressuposto que existe informação àcerca da «comunidade» de portugueses

ciganos que vivem em Portugal que ou não é do conhecimento do público em geral e

dos políticos portugueses em particular (em qualquer ponto do espectro parlamentar ou

2 Que agradeço às duas pessoas que me apoiaram, o dirigente do SOS Racismo, José Falcão, e a jornalista Joana Bastos, a quem dedico este trabalho, bem como à Mirna Montenegro, aos portugueses ciganos que fui conhecendo, ao André Correia e à Elsa Rodrigues, com quem desenvolvi a pesquisa em equipa e, ainda, aos meus alunos de antropologia, na medida em que não vejo futuro para uma antropologia sem causas.

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ideológico em que se situem) ou é, sendo que em ambos os casos, a falta de

conhecimento ou a falta de reacção adequada a esse conhecimento demonstra a

intensidade da ciganofobia portuguesa, mesmo nas suas elites e não apenas nas camadas

populares, bem maior do que possa parecer à primeira vista, uma vez que tem sido

disfarçada por actividades assistenciais e caritativas que, dada a sua geral ineficácia,

tendem a «confirmar» que o problema é dos ciganos (estrategicamente etnicizados) e

não do Estado português e dos portugueses genericamente considerados (se bem que

com excepções óbvias). Terminarei afirmando uma vez mais (como venho a fazer desde

1997) que salvo se for implementada política e socialmente uma estratégia de

perseguição criminal dos actores mais salientes da ciganofobia e de discriminação

positiva desta minoria étnica, que no prazo de uma ou duas gerações reverta a situação

exposta, o futuro dos ciganos em Portugal será o de continuarem a constituir, no seu

conjunto, (a) uma camada pobre de portugueses intencionalmente cada vez mais semi-

etnicizados e racializados, semi-marginalizados e semi-criminalizados,3 (b) tornada

dependente do erário público para depois ser acusada de subsídio-dependência, de

acordo com a estratégia conhecida como «blaming the victim» (acusação da vítima) e

(c) utilizada estrategicamente para fundar o sentimento de superioridade moral,

civilizacional e práctica dos portugueses, que como se sabe, é vulnerável e periclitante,

quando se comparam com «parceiros» mais competitivos, como sejam a Espanha e os

restantes países da União Europeia, nomeadamente norte-europeus.

2. A ACÇÃO DOS PORTUGUESES SOBRE OS «CIGANOS DE PORTUGAL»

2.1. PORTUGUESES CIGANOS – O TRAUMA HISTÓRICO Desde que Gil Vicente fez representar a sua Farsa das Ciganas, perante a corte

de D. Manuel I, em Évora, em 1521, até ao final da monarquia (1910), a situação dos

ciganos, em Portugal, foi marcada por constantes tentativas de erradicação total ou

parcial dos ciganos nómadas, de destruição das famílias ciganas, de apropriação dos

seus bens, bem como, no extremo oposto, mas com idêntica violência, de medidas

promotoras da sedentarização e da assimilação cultural compulsivas, as quais se

mostraram quase completamente ineficazes.

3 Na medida em que as feiras e a venda ambulante são cada vez mais policiadas e se encontram em decadência social e económica e não existe qualquer perspectiva que possam vir a ser aceites em trabalhos não sazonais, sendo que mesmo estes são cada vez menos abundantes no mundo rural, progressivamente desertificado.

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Intermitentemente, no entanto, foram aceites e legalmente protegidos os ciganos

sedentarizados (que obtinham «cartas de vizinhança») e, por breves períodos, aqueles

que lutaram ao lado de D. João IV nas guerras da Restauração, contra Castela (cerca de

1650) e aqueles que convinham ao Governador de Angola como colonos.

DATA REINADO

PENA

1526 Alvará de 13 de Março

«que não entrem ciganos no reino e saiam os que nele estiverem»

1538 Lei XXIV

«sejam presos e publicamente açoutados, com baraço e pregão» «[à 2ª vez] outra vez açoitada publicamente... e perderá todo o móvel que tiver»

1557 Lei de 17 de Agosto

D. João III

Acrescenta a pena das galés

1573 Alvará de 14 de Março

D.Sebastião

Novo prazo de 30 dias para que saiam; senão, açoites às mulheres, galés aos homens; declara caducas as licenças de permanência anteriormente concedidas

1579 Alvará de 11 de Abril

Cardeal D. Henrique

Concede novas licenças aos que «vivem bem e que trabalham e não são prejudiciais»4; os nómadas, que saiam do Reino dentro de trinta dias» ou sejam «açoitados publicamente e degredados para sempre para as galés»

1592 Lei de 28 de Agosto

Filipe I Dentro de 4 meses, se andassem em ranchos ou quadrilhas: executar com pena de morte, «sem apelação nem agravo»

1603 Ordenações Filipinas

«que não entrem no Reino Ciganos, Arménios, Arábios, Persas nem Mouriscos de Granada»

1606 e 1608 (Alvarás) 1613 e 1614 (Leis)

Filipe II

«não sejam passadas cartas de vizinhança» (condena às galés por 3, 6 ou 10 anos; exclui a pena de morte)

1646 Parecer do Procurador da Coroa sobre petição da viúva de Jerónimo da Costa

João IV

«mulher e filhos sejam havidos como naturais do reino» «seja feito cavaleiro fidalgo» «descendentes não tenham ofício mecânico» e «sirvam como soldados»

4 A oscilação drástica entre expulsão ou extermínio e assimilação forçada está bem presente neste Alvará, quando este obriga a que os Corregedores examinem as licenças anteriormente concedidas, informando-se de «como vivem e de que mesteres usam e se são casados e o modo e o meio de suas vidas e costumes e parecendo-lhes que vivem bem e que trabalham e que não são prejudiciais, lhes poderão dar licença, não permitindo que vivam juntamente em um bairro, senão em bairros apartados, e que andem vestidos ao modo português...» (Coelho [1892] 1995: 200-202).

Quadro 1 – Leis, regulamentos e decisões administrativas sobre os ciganos

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1647 Alvará de 24 de Outubro

Manda fixar residência a dez presos velhos, mulheres e filhos de gitanos; proíbe falar geringonça», usar trajes de ciganos e ler a sina; (penas = galés para os homens; degredo em Angola ou Cabo Verde, sem os filhos, pª as mulheres). Manda retirar os filhos aos ciganos a partir dos 9 anos de idade. 5

1649 Alvará de 5 de Fevereiro

Propõe-se «extinguir este nome e modo de gente vadia de ciganos», «desterrar de todo o modo de vida e memória desta gente vadia, sem assento, nem forro, nem paróquia, nem ofício mais que os latrocínios de que vivem»; seriam «embarcados e levados para servirem nas conquistas, divididos» «excepto os que actualmente assistem nas fronteiras e não andam na companhia dos outros (cerca de 250, premiados)»6

1686 Resolução de 10 de Junho

«vindos de Castela, sejam exterminados»; «filhos e netos de portugueses, tenham domicílio certo» ou serão «enviados para o Maranhão» (Brasil).

1694 Provisão ao Corregedor da Comarca de Elvas

Pedro II

«todos os ciganos nascidos neste reino que não tomarem géneros de vida de que possam sustentar-se, que dentro de dois meses, saiam deste reino, com pena de morte, (...) do mesmo modo que tenho resolvido com os ciganos castelhanos que entraram neste reino»

1708 Decreto

proíbe o nomadismo, o traje, a língua, negócios de bestas e outras imposturas (ler a sina), sob pena de açoites e degredo por 10 anos (galés, para os homens; o Brasil, para as mulheres)

1718 Decreto de 28 de Fevereiro

D. João V

Manda enviar para as conquistas– Índia, Angola, S. Tomé, Cabo-Verde, etc. - os muitos presos ciganos no Limoeiro

1754 Carta do Governador de Angola, Álvares da Cunha

D. José I

Pede que lhe enviem muitos ciganos, com suas mulheres, porque são os que melhor resistem ao clima e não tinham provado mal nos seus procedimentos

1800 Ordem de Pina Manique para o Corregedor de Elvas

D. Maria I «Prendam os que andam vagos pelo reino»; «os filhos de um e de outro sexo sejam transportados para a Casa Pia de Lisboa e instruídos»

5 A disposição é explícita: «(...) os juízes não consentirão que os ciganos criem os seus filhos ou filhas passando os nove anos de idade, e sendo capazes de servir os porão a soldada na forma que se usa com os órfãos (...).» (idem: 208-210) A orfandade, ditada legalmente, dos pequenos ciganos separados à força dos seus pais, constituiu um dispositivo que tem cada vez mais adeptos hoje em dia, entre a burguesia estéril ou «eticamente» iluminada. Numa outra perspectiva, de relações inter-étnicas, constitui, mais ou menos inconscientemente, um dispositivo de terror e de genocídio identitário, para levar uma minoria ao extermínio, a partir da «morte legal» dos pais e da morte identitária dos seus descendentes etnicamente indesejados. 6 Segmentos relevantes da população, dos peões aos fidalgos da Corte, pareciam não acompanhar voluntariamente a vontade de extermínio que aparece nos documentos reais, em nome do «povo». Assim, o alvará estabelece «as penas em que incorre quem lhes der ou alugar casas ou os recolher: «(...) sendo peões incorrerão na pena de três anos de degredo para Castro Marim e trinta cruzados para cativos e acusador; e sendo de maior qualidade em dois anos para África e cinquenta cruzados. E os fidalgos fora da Corte.» (Coelho [1892] 1995: 211-212)

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1848 Portaria

D. Maria II Exige aos bandos de ciganos o uso de passaporte, para poderem transitar pelo reino.

1920 Regulamº da GNR

1ª República

O capítulo sobre «Ciganos» prescreve uma «severa vigilância», dados os «seus frequentes actos de pilhagem».

1980 Conselho da Revolução

Declara inconstitucionais as normas anteriores

1985 Regulamento da GNR

Determina uma especial vigilância sobre os «nómadas» (artº 81)

1989 Acórdão de 28 de Junho

O Tribunal Constitucional considera não-inconstitucional o artº 81 do Regulamento da GNR atrás mencionado

1993 (10 de Maio)

A C. M. de Ponte de Lima ordena «aos indivíduos de etnia cigana» «que abandonassem o Concelho no prazo de oito dias e que de futuro apenas permanecessem 48 horas» (impedido por reacção do Procurador da República e do Provedor de Justiça)

2003 (Julho)

2ª República

A C. M. de Faro decidiu que não serão aceites no Concelho, ou que o terão de abandonar, as populações nómadas, particularmente os ciganos, que praticarem roubos ou desacatos. Desta decisão foi mandado afixar Edital nos locais públicos.

Fonte: Bastos e Bastos (2000) utilizando dados de Coelho (1994 [1892]), Nunes (1996 [1981]), Costa (1996); dados retrabalhados.

A perseguição contra os ciganos decorre da pressão popular sobre os reis e

outras autoridades, que lhes atribuiem contínuos malefícios escassamente definidos,

mas que em muitos casos escondiam a delinquência dos locais,7 «limpando» a imagem

de uns à custa de denegrir os outros. Fosse como fosse (e o exagero persecutório é

evidente e merece enquadramento teórico), a expulsão para Espanha (de onde

provinham); o açoitamento em praça pública e o degredo dos homens para as galés por

períodos de 3, 6 ou 10 anos e, nos períodos de maior perseguição, o degredo dos

homens para as galés por toda a vida; o estabelecimento da pena de morte (pouco

praticada, no entanto, tanto quanto se saiba); o embarque forçado das mulheres (e,

também de homens e de casais) para o Brasil e para África; os trabalhos forçados (em

7 A Provisão do Livro das Vereações da Câmara Municipal de Elvas, que em 1597 os expulsa, é bem clara quando reconhece explicitamente que «andava a gente da cidade tão escandalizada que se temia um motim contra eles, maiormente depois que houve alguns furtos que conhecidamente se soube serem feitos por eles; posto que as testemunhas não sabem especificamente quais dos ditos ciganos que o fizessem; e além disso por esta cidade ser de gente belicosa e da raia e assim de contínuo acontecessem muitos crimes de diversas maneiras, os quais se encobrem debaixo desta capa de dizerem que os fizeram os ciganos...». ( Coelho [1892] 1995: 203)

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período de crise); a proibição do uso da língua, do traje e das suas profissões

tradicionais e a apropriação policial dos seus bens e mercadorias; a separação forçada

dos casais, e dos filhos, em relação a estes (promovendo a sua entrega para adopção ou

o seu internamento na Real Casa Pia), tudo se provou tão injusto como ineficaz para

diminuir o seu número ou obter a sua integração forçada nos costumes locais.

2.2. PORTUGUESES CIGANOS – O TRAUMA SOCIOLÓGICO

2.2.1. A INVIZIBILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA DECRETADA PELA CONSTITUIÇÃO

Na sua maior parte, cidadãos portugueses, não existem, por isso mesmo, na

actualidade, dados oficiais sobre os ciganos portugueses, na medida em que a lei

constitucional vigente inviabiliza a recolha de dados étnicos (ou religiosos), com o

pretexto de evitar a discriminação (negativa) de minorias.

2.2.2. DA ESCOLARIDADE «IMPOSSÍVEL» À ESCOLARIDADE «OBRIGATÓRIA»

Nos anos 70, Olímpio Nunes encontra que «dos adultos com mais de 30 anos há

uma percentagem de analfabetos superior a 90%» (1996: 427). A mudança de

mentalidades posterior à revolução de 74, associada à sedentarização em curso, ao

posterior alargamento da escolaridade obrigatória para nove anos, bem como ao

estabelecimento, muito recente, de um Rendimento Mínimo Garantido para os mais

pobres, o qual fica dependente das crianças irem à escola, tem progressivamente levado

a um aumento exponencial de crianças ciganas nas escolas públicas (mais 72,2% em

cinco anos), para cerca de 6 mil em 1997-98 8.

92-93 93-94 94-95 95-96 96-97 97-98

INSCRITOS 4.280 4.499 4.963 5.096 5.466 5.930

4ª Classe 620 614 860 859 831 873

6ª Classe + EBM 43 64 78 66 92 101

8 Embora não existam dados, o trabalho de campo permite afirmar que, no entanto, os ciganos constituem, possivelmente, a minoria ética que mantém mais crianças fora da escola, um facto associado à sua «tradição» de nomadismo forçado. Embora este valor não possa ser projectado sobre o resto do país, convém ter em atenção que num estudo realizado pela diocese de Lisboa, “do total das crianças dos 6 aos 15 anos (1.683), 767, o correspondente a 45,6 % não foram matriculadas. Foram informações dadas pelos pais das crianças..” (Correia, in SOS Racismo 2001: 288).

Quadro 3 – Evolução do número de crianças ciganas escolarizadas [1992-93 a 1997-98]

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9º Ano 18 4 12 10 9 15

12º Ano 4 12 22 14

Fonte: Ana Maria Braga, Base de Dados Entreculturas, consulta particular, Junho 1999; dados

retrabalhados in Bastos 2003.

No entanto, a análise dos dados permite verificar a permanência de uma

mentalidade orientada genericamente para a obtenção da 4ª classe, de tal modo que

os ciganos registam uma pirâmide escolar marcada pela hecatombe e pela deserção: dos

matriculados no 1º ciclo (4 anos), em 1997-98, apenas 15,8 % se encontravam no

ano final (contra 26,3%, a nível nacional), o que indicia uma inusitada retenção nos

anos anteriores; destes, apenas foram aprovados em exame 55,4% 9 (contra 87,7% a

nível nacional e 78,9% dos cabo-verdianos); dos matriculados no ensino obrigatório e

no secundário (5.930), 91,6% frequentavam o 1º ciclo (contra 34,6 % a nível nacional

e 49,1 %, no caso dos cabo-verdianos, a minoria étnica mais desfavorecida, a seguir aos

ciganos)10.

Quadro 4 – Taxa de aprovação no final do 1º Ciclo (4ª Classe)

92-93 93-94 94-95 95-96 96-97 97-98

CIGANOS 65,1 59,2 50,6 52,5 45,9 55,4

CABO-VERDIANOS + 11,9 + 19,1 + 28,8 + 22,2 + 27,7 + 23,5

NACIONAL 86,0 88,2 86,0 85,7 85,9 87,7

Fonte: Ana Maria Braga, Base de Dados Entreculturas, consulta particular, Junho 1999;

9 As taxas globais de diplomação eram escandalosamente baixas no Alentejo. Especialmente em Beja (18.2 %, a mais de 62 pontos percentuais da média distrital) e em Évora (40 %, a 43 pontos da média distrital), bem como em Aveiro (34.4 %, a mais de 51 pontos da média distrital) e no Porto (44.9 %) mas aproximavam-se francamente das médias distritais na Região Centro: Coimbra (80 %) e Leiria (81.8 %). O que mostra bem que ou há tipos extremadamente diversos de ciganos portugueses ou há graus bem diferenciados de racismo regional com expressão no meio escolar. Como veremos adiante, o Grande Porto e o Alentejo são as duas principais fontes de notícias em que a perseguição aos ciganos é saliente. Embora existam vários determinantes do (in)sucesso escolar, diferenças desta grandeza exigiriam investigações que o Ministério da Educação não levou a cabo ou promoveu, tanto quanto se saiba, o que mostra a pouca utilização que foi dada a uma ferramenta analítica tão relevante como a Base de dados Entreculturas, que tem vindo a ser gravemente mutilada, em vez de aperfeiçoada. 10 Um facto decorrente da cognição que não vale a pena estudar porque, enquanto ciganos, nunca seriam aceites em empregos estáveis, tanto públicos como privados. É este facto que se transforma defensivamente na «tradição» que não só não valoriza a continuação dos estudos como promove que os rapazes tendam a acompanhar os pais nas suas deslocações de feira para feira, desde muito cedo, aprendendo o «ofício», e que as raparigas sejam tiradas da escola, a partir da puberdade, para que não entrem em namoros com jovens «senhores» («brancos») e mantenham intacta o que percepcionam como sendo, num quadro de grande inferioridade material, uma das fontes da superioridade moral da etnia cigana.

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dados retrabalhados [in Bastos 2003]

Nos ciclos seguintes, e comparando os anos finais de cada ciclo, os ciganos

desciam para cerca de um décimo (11,1%) no final do 2º ciclo, para cinquenta

vezes menos (2 %) no final do ensino obrigatório e para duzentas vezes menos no

final do secundário (0,5 %) face a uma pirâmide nacional de 92,9%, 91,6 % e 79,3%

(isto é, com uma quebra inferior a 10% entre o 1º e o 3º ciclo e de cerca de 20% até ao

final do secundário)11. Quanto ao ensino superior e universitário, é conhecida a

existência de uma dúzia de estudantes de ciências pedagógicas e de ciências sociais

(contra a frequência da universidade, em Portugal, no ano de 1998, por 2.028

angolanos, 1.077 cabo-verdianos, 873 moçambicanos, 398 guineenses, 277

santomenses e 152 outros africanos).

2.2.3. CONDIÇÕES HABITACIONAIS E ECONÓMICAS INFRA-HUMANAS

É reconhecido o esforço feito nos últimos anos para transferir os portugueses

pobres, os portugueses ciganos e os imigrantes que residiam em bairros da lata (cerca

de 60 mil pessoas) e em bairros de habitação degradada para bairros sociais. No

entanto, a mais recente investigação fidedigna, que (em Novembro e Dezembro de

1990) quantificou de perto as condições em que estas pessoas viviam em 53 bairros

física ou socialmente degradados da Grande Lisboa (Bruto da Costa e M. Pimenta,

1991), permite verificar que, antes da transferência para bairros sociais modernos,

os portugueses ciganos viviam em condições de extrema inferioridade face aos co-

residentes nos mesmos bairros marginalizados.

Quadro 5 – A falta de condições básicas nos alojamentos ciganos

- análise comparativa

FALTA DE CONDIÇÕES DE BASE NOS ALOJAMENTOS

SEM ÁGUA

SEM ELECTRICIDADE

SEM BANHO

SEM RETRETE

CABO VERDIANOS 33,2 15,0 41,6 9,5 ANGOLANOS 33,6 17,3 36,1 9,3 GUINEENSES 22,0 11,1 18,1 7,9 SANTOMENSES 46,4 26,0 47,4 13,4

11 Os cabo-verdianos, por comparação com o final do 1º ciclo, eram cerca de 70% no final do 2º ciclo (e não um décimo), cerca de 40% no final do ensino «obrigatório» (e não 2 %) e mais de 10% (11,2) no final do secundário (e não 0,5%, como os ciganos). Dito de outro modo, mantinham, em relação aos ciganos, proporções vinte vezes superiores à daqueles no 3º ciclo e no secundário. E, como veremos, valorizavam a continuação dos estudos no nível universitário, o que não se registava nos ciganos.

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MOÇAMBICANOS 23,2 5,9 29,0 5,8 INDIANOS 34,8 19,7 38,6 5,3 CIGANOS 68,8 44,6 75,9 60,7

Fonte: A. Bruto da Costa, M. Pimenta et al., Minorias étnicas pobres em Lisboa, Lisboa, Maio de 1991 [in Bastos e Bastos, 1999: 151]

No que se refere às condições de habitabilidade dos seus alojamentos, os

portugueses ciganos apareciam em último lugar em todos os indicadores, a uma muito

grande distância em relação a todas as restantes minorias étnicas pós-coloniais; a uma

tão grande distância que a noção de incomparabilidade se torna aqui pertinente, tanto

mais que se trata de uma minoria étnica portuguesa multi-centenária que não passou

pelas vicissitudes da imigração intercontinental e da fuga às guerras civis ou às

perseguições políticas pós-coloniais (o que prova que a perseguição política é

multiforme e pode dirigir-se selectivamente contra uma minoria étnica nacional). De

acordo com a pesquisa, mais de dois terços dos lares ciganos estudados (68,8 %) não

dispunham de água canalizada, contra os menos de metade dos lares santomenses (46,4

%). Sem electricidade, encontravam-se cerca de 45 % dos lares ciganos, numa situação

de incomensurabilidade com os lares moçambicanos (5,9 %). Sem banho, viviam mais

de três quartos (75,9 %) dos lares ciganos, contra menos de um quinto (18,1%) dos

lares guineenses. Mas a incomensurabilidade ressaltava sobretudo no que respeitava à

falta de retrete, em que os mais de 60% de carência registada nos lares ciganos não

tinham nada a ver com os 13,4 % de carência, a este nível, nos lares santomenses ou

com os 5,3 % dos lares indianos. Dito de outro modo, as graves situações de carência

encontradas nas outras minorias étnicas imigradas até pareciam relativamente

confortáveis (embora não o fossem) quando comparadas com a situação desta

minoria étnica portuguesa.12 Um outro indicador da falta de condições de

habitabilidade destas famílias é, nessas habitações, a carência de equipamentos

domésticos. Os lares ciganos, uma vez mais, apresentavam a maior carência deste tipo

de equipamentos, em todos os indicadores, com particular gravidade no que respeitava

à falta de frigorífico (66,1 %, contra 34,1 nos indianos e 14,8 nos cabo-verdianos) e de

fogão a gás (32,1 %). Neste último caso, a minoria étnica que se lhes seguia, os

santomenses, apresentava uma carência de «apenas» 5,2 %. Em consonância com as

carências no que respeitava às condições de habitabilidade e de falta de equipamento

12 Para extrapolarmos para a globalidade das minorias étnicas, falta-nos um indicador, para cada uma delas e, neste caso, para os ciganos, sobre a percentagem dos que viviam neste tipo de condições, em relação aos que delas de algum modo escapavam, o que de nenhum modo diminui a gravidade extrema das condições de habitação detectadas nos lares ciganos

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doméstico, do ponto de vista económico, os ciganos apresentavam, de longe, a pior

auto-imagem de todas as minorias étnicas consideradas, com os seus 87,1 % de

pobres e de muito pobres (38,0 %), neste último caso uma proporção novamente

incomensurável com os 9,1 % de agregados muito pobres registados a partir do

depoimento dos angolanos.

Quadro 7 – Auto-avaliação, pelos ciganos, da sua condição económica familiar – Análise comparativa

AUT0-AVALIAÇÃO PELOS CIGANOS DA SUA SITUAÇÃO ECONÓMICA FAMILIAR - ANÁLISE COMPARATIVA (1991)

0% 20% 40% 60% 80% 100%

TIMORENSES

INDIANOS

MOÇAMBICANOS

S. TOMENSES

ANGOLANOS

GUINEENSES

C-VERDIANOS

CIGANOS

Rico Nem rico nem pobre Pobre Muito pobre

Fonte: A. Bruto da Costa, M. Pimenta et al., Minorias étnicas pobres em Lisboa, Lisboa, Maio de 1991 [in Bastos e Bastos, 1999: 152 – dados retrabalhados]

Indiciando o seu processo de marginalização social, também a partir das

restantes minorias étnicas de origem africana e asiática, acrescia à deficientíssima

situação socio-económica dos ciganos o serem a minoria que menos gostava de viver

nos bairros em que vivia. A centração na família (eram os que mais referiam a sua

presença no bairro como um motivo positivo), a escassez de amigos e a percepção de

um ambiente social relativamente desfavorável (eram os que menos referiam amigos e

os que menos mencionavam o bom ambiente do bairro) revelavam uma estratégia de

fechamento defensivo sobre o próprio grupo étnico, com base na rede familiar.

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Tomando em consideração os dados anteriores, não admira que os ciganos se

mostrassem muito menos optimistas quanto ao futuro do que as outras minorias

étnicas.13

Quadro 9 – Expectativas dos ciganos quanto ao futuro – Análise comparativa

MELHOR PIOR IGUAL NÃO SABE

AFRICANOS 60,9 3,1 6,0 30,0

INDIANOS 34,8 1,5 11,4 52,3

TIMORENSES 41,2 2,9 5,9 50,0

CIGANOS 20,7 8,1 17,1 54,1

Fonte: A. Bruto da Costa, M. Pimenta et al., Minorias étnicas pobres em Lisboa, Lisboa, Maio de 1991 [in Bastos e Bastos, 1999: 153]

Convergentemente com estas comedidas manifestações de satisfação quanto ao

viverem nos bairros em que habitavam, os ciganos eram os que, a seguir aos

timorenses, mais manifestavam o desejo de emigrar para outro país (58 %), e a

minoria étnica que, com a mesma excepção, maior diferença apresentava entre os que

quereriam emigrar para outro país e os que não quereriam (+ 22,3 %). Convém

relembrar que, em relação aos timorenses, a diferença de contexto histórico é fulcral;

enquanto os timorenses, enfrentando a perseguição política, combatiam para refundar o

seu país, os ciganos portugueses visavam fugir do seu país, no qual não encontravam o

mínimo de condições sócio-culturais para viver decentemente.

2.2.4. A SITUAÇÃO PRISIONAL DISCRIMINATÓRIA

A situação prisional da minoria étnica cigana dos portugueses constitui um

indicador que merece ser pensado. No final de Maio de 1998, encontravam-se detidos

em prisões portuguesas, entre preventivos (34,7%) e condenados, 787 pessoas de etnia

cigana, mais de dez vezes a taxa de população nacional (não cigana) encarcerada

que, em 1997, era de 145 reclusos por 100 mil habitantes, e a proporção de mulheres

ciganas presas (11, 6 % de todas as presas) mais do que duplicava a média nacional

de encarceramento de ciganos, os quais constituíam 5,5 % de todos os presos à data

(J. J. Moreira: 1998: 8). Estes dados, mais do que os respeitantes à população

estrangeira, de origem africana, poderiam dar razão à hipótese de Maria Ioannis

13 Comparativamente com os 60,9 % de africanos, os 41,2 % de timorenses e os 34,8 % de indianos, apenas cerca de um em cada cinco (20,7 %) tinham expectativas positivas quanto ao futuro e o saldo positivo de 57,8 % nos africanos, de 38,2 % nos timorenses e de 33,3 % nos indianos descia nos ciganos para apenas 12,6 % de mais optimistas do que pessimistas quanto ao seu próprio futuro.

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Baganha de que «o sistema judicial discriminaria [estes] estrangeiros» (1996: 124-5),

embora numa direcção inesperada que seria a de que, a ser verdadeira a hipótese, o

sistema judicial ainda discriminaria mais estes portugueses.

Os dados sócio-económicos e atitudinais respeitantes à minoria cigana são

absolutamente congruentes com os dados escolares inicialmente analisados e com as

hipóteses culturais e identitárias aventadas. Partindo desta base socio-económica e da

falta de expectativas positivas quanto ao futuro o insucesso escolar massivo torna-se

inevitável. Entre a invisibilidade social inerente à pobreza e à exclusão social e a

excessiva visibilidade negativa decorrente da estratégia de aculturação antagonista

desenvolvida por ambas as partes, 14 potenciada pela generalidade dos média, os

ciganos portugueses permanecem como a mais grave e escandalosa de todas as

situações de racismo e xenofobia registadas em Portugal.15

3.3. PORTUGUESES CIGANOS – O TRAUMA DEMOCRÁTICO

3.3.1 OS «BONS PORTUGUESES» E OS SEUS «OUTROS»

Poderia ser suposto por alguns que a reintrodução da democracia, a partir do 25

de Abril, teria alterado significativamente a posição da minoria cigana no interior do

povo português. Para além do facto de terem sido abrangidos pelos processos

municipais de realojamento PER, não é evidente que algo mais tenha acontecido, na

consciência dos vários governantes, deputados, dirigentes de partidos, ou autarcas, com

algumas, poucas excepções, que devem ser atribuídas a uma formação ética

invulgarmente interiorizada. Certo é que, através do Rendimento Mínimo Garantido e,

posteriormente, do Rendimento Social de Inserção, foram pressionados para uma

inserção escolar que levou alguns milhares de crianças ciganas a frequentarem o

primeiro ciclo do ensino oficial obrigatório, sem que alguém desse mostras de se

questionar se o ensino oficial «obrigatório» era para ser levado a sério em relação à

nova geração de portugueses - ciganos ou outros, de um ponto de vista adjectivante - e

14 Que pode incluir e inclui o recurso a expedientes marginais, como o tráfico de droga, nos ciganos como noutras minorias e/ou pessoas económica e/ou identitariamente desfavorecidas ou socialmente excluídas. 15 A listagem dos levantamentos populares contra ciganos, no norte do país, bem como a acção coordenada de «milícias» populares, autarcas e polícias é, mais uma vez, incomensurável, com as agressões contra os africanos residentes em Portugal, como veremos a seguir.

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porquê os portugueses ciganos não aproveitavam para apanhar o comboio da

«civilização ocidental».

Nesta área, todos os comentários bem intencionados podem ser suspeitados de

demagógicos ou populistas. Por isso mesmo, em relação ao nosso «informante»

principal, o SOS Racismo, colocámos «sob suspeita» as suas motivações e

«censurámos» todos os seus devaneios humanistas e comentários moralizantes,

deixando apenas o «osso» das notícias.16 No entanto, face a estes dados, há uma

conclusão que se impõe provisoriamente, até que outros tipos de estudos, mais

sistemáticos, sejam efectuados: mesmo que faltem notícias positivas que importaria

recensear e possam ser questionáveis algumas das notícias que indiciam uma

ciganofobia larvar17 em amplas camadas do povo português (mais numas regiões e

estratos sociais do que noutros) e, nomeadamente, em nichos autárquicos e policiais

(uma ciganofobia que não compete a este estudo quantificar), existe uma dinâmica

preocupante de rejeição de um segmento relevante da população portuguesa

propulsionada por camadas populares dessa mesma população. Essa preocupação

torna-se maior quando a rejeição passa do ataque identitário ao ataque físico, e de

milícias populares para instituições eleitas e/ou representativas do estado de direito. E

torna-se ainda mais intensa quando os dados convocados (certamente incompletos)

indiciam o alheamento ou a passividade de instituições (Governo, Assembleia da

República, Igrejas, etc.) de que se esperaria uma atenção reflexiva e o lançamento de

uma dinâmica correctiva.

16 O SOS Racismo é uma instituição incómoda, porque expõe chagas sociais que muitos gostariam de ocultar, mas não goza de imunidade; é uma instituição que pode ser levada à barra dos tribunais pelas pessoas, autoridades ou instituições públicas ou privadas que se sintam difamadas pelas notícias que divulga, nomeadamente por escrito, nos seus boletins. Não temos notícia de que tal tenha acontecido, o que só por si não valida as notícias, mas pensamos que seria importante que o Estado Português, os tribunais e os partidos parlamentares exigissem um inquérito sobre todo este conjunto de notícias e tomassem depois as medidas consideradas convenientes: ou levar o SOS Racismo a tribunal ou implementar leis e acções que impeçam que a ciganofobia continue a produzir, com impunidade para muitas pessoas e núcleos institucionais, os efeitos deletérios detectados. 17 O principal indicador de que se trata de uma fobia étnica ao serviço de processos de diferenciação de um «outro cultural» e de hierarquização identitária baseada em processos de pejorativização e diabolização desse outro marginalizado, decorre do facto, patente na dimensão histórica atrás referida e da dimensão sincrónica agora convocada, de que (a) existe uma enorme desproporção entre os «crimes» imputados (escassamente documentados e de fraca dimensão) e as penas radicais fantasiadas ou aplicadas (o extermínio, a pena de morte, a escravização, o banimento, a «limpeza» étnica, etc.); e, por outro lado, (b) aquilo que face a grupos admirados (como o nosso próprio) seria considerado como uma «excepção» ser codificado, quando se trata do «outro pejorativado», como a «regra» negativa, que impede a consideração individualizada de cada pessoa e família, quando se trata de «ciganos», (c) ao ponto que os juízos racializantes se tornam em «julgamentos populares», sem recurso aos tribunais, e as decisões se tornam locais (numa vereação, numa esquadra uma escola, num café, etc.), dispensando a Lei e as instâncias governamentais.

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Como cientistas sociais, um primeiro fenómeno torna-se patente: nos discursos

populares, o «povo português» aparece clivado em dois: o «bom povo português»

(luso), que não é cigano nem inclui qualquer cigano, e os ciganos que, desse ponto de

vista, não só não são portugueses, como são claramente «inferiores» e deveriam ser

«limpos» ou «exterminados». O fenómeno extrema-se claramente, nas camadas mais

baixas do «bom povo português»: autarcas periféricos em busca de fama, milícias

populares suburbanas, sobretudo no Grande Porto, polícias de pequenas cidades do

interior alentejano, pais de crianças dotadas da exclusividade da «portugalidade» que se

julgam dotados do exclusivo da sua representação condigna e não querem

«promiscuidades». Neste drama em que os portugueses ciganos quase não têm voz,

outras ausências são notórias. O Governo de Portugal e a Assembleia da República,

eleitos e pagos para legislarem, primam por um silêncio diplomático. Os partidos

representados na Assembleia, ou não têm ideias, ou não as expressam, ou são

boicotados pelos média, que assim nos impedem de conhecer as iluminadas directrizes

dos «nossos melhores». Quando se expressam, como no caso do CDS, promovem a

ciganofobia (conferir opiniões do licenciado Manuel Monteiro). Há certamente um ou

outro Governador Civil, um ou outro autarca ou vereação, uns ou outro bispo, muito

poucos deputados que «têm opiniões» morais e «levantam a voz». Mas, como diz o

mesmo povo, «de boas intenções está o inferno cheio». Quanto a factos que reputamos

negativos, a longa lista de «passagens ao acto» de populações entregues à sua

«espontaneidade», de (alguns) autarcas coniventes, de (alguns) polícias sintonizados

com a raiva xenófoba dos antepenúltimos contra os últimos, fala por si, seja qual for o

modo que o leitor a interprete.

3.3.2 «NÓS NÃO QUEREMOS OS CIGANOS AQUI»: O DECÁLOGO PRODUTOR

DE VIDAS RACIALMENTE DISCRIMINADAS NO PORTUGAL «CRISTÃO»

E «DEMOCRÁTICO» DO SÉCULO XXI

A estratégia é clara: em primeiro lugar, trata-se de deixar a mão livre à iniciativa

popular, sempre que esta queira tentar impedir a sedentarização dos ciganos, punindo

quem lhes venda ou alugue terrenos ou casas, destruindo habitações em construção,

recusando o aluguer de apartamentos ou promovendo a expulsão de alugueres já

efectuados, retirando direitos adquiridos na venda em feiras, ou intimidando-os, em

nome do poder autárquico, a «circular» e a «sair do concelho», com racionalizações

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diversas, uma vez que os agentes desta acção, dizem, «não são racistas, querem apenas

viver em paz».

SOS Racismo: Boletim nº 4, de Junho de 1993 - A 10 de Maio de 1993, o executivo camarário de Ponte de Lima (distrito de Viana do Castelo) deliberou no sentido da expulsão dos indivíduos da etnia cigana do Concelho e da proibição, para o futuro, da sua permanência por período superior a 48 horas. Motivo: todos, ou quase todos os ciganos são passadores de droga (por sinal, o tráfico de droga é anterior à presença dos ciganos no Concelho). (...) Em virtude do clima emocional criado, parte da população cigana já abandonou o Concelho. Como o fizeram por sua “livre e espontânea vontade”, a Câmara atingiu parcialmente os seus objectivos ficando isenta (inclusive judicialmente) de qualquer responsabilidade SOS Racismo, 20 de Junho de 1993 – Após pressão popular, o acampamento cigano de Francelos, Vila Nova de Gaia, foi parcialmente demolido, durante uma acção camarária fortemente vigiada por várias dezenas de agentes da GNR que, antes, passaram o local a pente fino, na expectativa, frustrada, de aí detectar droga. SOS Racismo, 16 de Setembro de 1993 - Em 1993, a C. M. Amadora dá início às obras para instalação provisória (em pré-fabricados, com balneários conjuntos) num terreno do Alto da Damaia, dos ciganos cujas barracas tinham ardido uns meses antes. Ora, para este terreno, o Plano Director Municipal previa a construção de uma área de lazer. Este foi o mote para que um grupo de moradores “preocupados e indignados” convocasse uma reunião que decorreu na Junta de Freguesia da Damaia, em 16de Setembro de 1993, com muitas dezenas de habitantes. Houve um grupo de moradores preocupados com o teor anti-cigano da convocatória que alertou a imprensa (a TSF gravou uma reportagem da assembleia). Houve sempre, por parte dos organizadores que nunca se identificaram, a preocupação de tentar retirar qualquer carácter racista à questão (“isto não é racismo, mas não queremos os ciganos ali”). Mas a máscara não tardou a cair. Em ambiente de verdadeira histeria gerou-se uma onda contra a comunidade cigana (“Queremos tirar dali a merda dos ciganos”, ouvia-se alto e bom som). De “porcos” a “ladrões”, “vândalos” e “traficantes de droga”, os ciganos, que não tinham sido, sequer, convocados para a reunião, foram acusados de tudo. Os poucos que manifestavam opinião contrária foram impedidos de falar, acusados de serem muito novos e, como tal “inocentes”, ou então eram considerados “drogados”. A histeria foi tal que a reunião não pôde prosseguir. SOS Racismo, 21 de Março de 1996 – Nesta data, elementos da população de Oleiros formaram ”milícias populares” que, armados com paus, barravam a passagem a qualquer veículo e identificavam todos os automobilistas que fossem vistos a circular nas zonas de saída e entrada do acampamento cigano (Lugar do Monte). Esta comunidade foi explorada economicamente por oportunistas locais que especularam com o preço dos terrenos que lhes venderam e com o valor dos trabalhos de construção dos “pré-fabricados” que realizaram e, vê-se agora confrontada com as críticas e o “bode expiatório” para os males da freguesia. Um caso que teve imensas peripécias tristes como o êxodo da família de João Garcia por diferentes locais não só das freguesias de Vila Verde, como também por Braga e Guimarães, e que fez destacar o Governador Civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, pela defesa intransigente dos direitos humanos em todo este processo.

“Público”, 25 de Janeiro de 1997 - Quase 4 anos depois dos acontecimentos de Junho de 1993 (ver acima), a Câmara de Francelos, Vila Nova de Gaia, ainda com o mesmo presidente, nada fez para a inserção social da população (cerca de 13 famílias que aí residem há mais de 20 anos) e, de novo, resolvem os habitantes sair à rua para fazer “justiça” pelas suas próprias mãos: “caçar” os presumíveis toxicodependentes – “os que têm cara de drogados” -, nos apeadeiros de Francelos, Valadares e Miramar, na rua e dentro dos comboios da linha do Norte; “cortamos a linha do comboio, a estrada nacional 109 e, se não nos derem ouvidos, destruímos o acampamento”, diz João, enquanto exibe um revolver como prova da sua determinação. “Público”, 2 de Julho de 1998 - Foram distribuídos panfletos anónimos nas pequenas localidades de São João de Loure e Alquerubim (Concelho de Albergaria-a-Velha) apelando à formação de milícias “populares” contra o tráfego de droga nestas freguesias, responsabilizando a comunidade cigana que ali reside.”Todos os que venderem terra aos ciganos terão as suas casas incendiadas”.

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“Público”, 22 de Março de 1999 - A Câmara de Felgueiras, distrito do Porto, tinha marcado para este dia a entrega das chaves a 20 famílias, entre as quais 2 de etnia cigana, que foram contempladas com uma casa no lugar de Telheira, freguesia da Várzea. Três dias antes, tinha sido distribuído um comunicado anónimo e racista dizendo, entre outras coisas: “nós não queremos os ciganos aqui (…) para que não venham cá parar todos os lixos” e incitando à união das pessoas no dia da entrega das chaves para evitar que as pessoas daquela etnia fossem habitar o mesmo edifício. Este comunicado obrigou à suspensão da entrega das casas. SOS Racismo, Março de 2003 - O país conhecia o teor de um comunicado aprovado pelo executivo da Câmara de Vila Nova de Poiares, no distrito de Coimbra. Moradores tinham-no feito chegar ao SOS Racismo, pensando tratar-se de uma brincadeira. (...) Eis extractos do comunicado: “(…) cada um dos Poiarenses (…) defende a todo o custo a tentativa de infiltração de elementos que não mostrem ter condições de idoneidade de comportamento (…) é indispensável afastar aqueles que sejam reconhecidamente contrários ao cumprimento da ordem estabelecida e aos princípios defendidos pelos Poiarenses (…). Deve pois ser principal preocupação evitar quem não se identifique com os valores defendidos por todos nós Poiarenses, não seja admitido no nosso convívio, particularmente membros de grupos étnicos ou nómadas que nada têm a ver com a nossa vivência. (…) A venda ou aluguer de casa a pessoas que não preencham as condições de garantia de uma boa integração no nosso convívio, será de rejeitar pelos males que trará a todo o nosso espaço.” O presidente da edilidade, Jaime Soares, afirmava (16/3/2000) que só pessoas de má fé e mal intencionadas podiam dizer que o comunicado era racista e xenófobo. E no dia seguinte sentia-se “aborrecido” com a “leitura distorcida” que tinha sido feita do documento.” “A Capital”, “Lusa”, “Público”, 9 a 18 de Outubro de 2003 - A Câmara de Lisboa adia realojamentos pela 3ª vez; 18 famílias ciganas a realojar no âmbito do PER e que habitavam, há 25 anos, barracas a cair da Travessa do Pardal, na Ajuda. (...) A razão, afinal, é a necessidade de realojar as cerca de 120 famílias residentes na Estrada das Calvanas, (...), sendo que estas se recusam a partilhar o mesmo espaço de realojamento com os ciganos. “Jornal de Notícias”, 10 de Novembro de 2004 - Um grupo que só existe na net não quer ciganos na Fontela (Concelho de Estarreja). Uma suposta comissão de moradores quer as famílias fora do terreno que compraram a um particular (que lhes garantiu que podiam construir) onde construíram casas ilegalmente. O agregado de Bernardo Monteiro já tinha sido “escorraçado” de S. João da Madeira, onde viveram durante 20 anos, num terreno que não era deles e, por isso, tiveram que o abandonar. Nessa altura o despejo ocorreu com a presença de “mais de 50 polícias de choque”. Ninguém dá a cara, ninguém ousa identificar-se com a COMOAVA (Comissão de Moradores de Avanca) que já ameaçou “recorrer a vias mais rudes e drásticas”. Lusa, Porto, 1 de Junho de 2006 - Ricardo, 39 anos, um diácono remunerado na Igreja Baptista Lírio dos Vales, em Espinho. Num ápice, viu-se expulso, com a mulher e três filhos, da casa arrendada por intermediação de um amigo não cigano, mesmo tendo contrato assinado, fiador e pagamento adiantado de dois meses de renda, no valor global de 800 euros. "A senhoria alugou a casa desconhecendo a nossa etnia mas, mal a descobriu, expulsou-nos aos berros, dizendo que não queria inquilinos ciganos e ainda agrediu a minha mãe, que teve de receber tratamento hospitalar", afirmou Ricardo. Antes, o diácono sentira já o "peso da discriminação", quando, tal como outros da sua raça, foi excluído do processo de atribuição de novas casas em Paramos, sul de Espinho, no âmbito do Programa Especial de Realojamento, por pressão expressa em abaixo-assinado.

Em segundo lugar, trata-se de os rebaixar a uma condição infra-humana,

impiedosamente e de forma demonstrativa, de modo a circunscrever como uma

exterioridade e exibir a «inferioridade» deles, colectivamente considerados, mantendo-

os na periferia das vilas, em condições miseráveis e acusando-os depois da miséria que

lhes é sistematicamente imposta como se se tratasse de uma «característica étnica» e

não do resultado da perseguição ciganófoba sistemática e multissecular.

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SOS Racismo, Agosto de 1997 - Segundo informações recolhidas pelo SOS Racismo em 4/8/97, assiste-se em Portel, à guetização da família Romero. Cerca de 40 pessoas desalojadas, há 16 anos, do centro da cidade, onde viviam numas barracas de madeira mas com condições, foram atiradas para um terreno junto à IP2, chamado Estrada Nacional 18, para uma casa, propriedade da Câmara, que nem portas tinha, sem saneamento básico, sem água, nem luz (apesar das linha de electricidade, por ironia, passarem por lá), sem condições de habitabilidade mínimas, com um acesso em terra batida, com chuva a cair dentro de casa, as pessoas são obrigadas a partilhar espaços exíguos para dormir, sem recolha do lixo, etc. As crianças, para frequentarem a escola primária, têm de atravessar diariamente a referida IP (que liga Évora a Beja), os acessos ao terreno são de terra batida. SOS Racismo - Primavera de 1998 - Na freguesia de Silvalde (Concelho de Espinho), há 35 anos que várias famílias vivem em barracas ou em meia dúzia de tábuas ao alto, na maior das misérias, entre os ratos e toneladas de lixo. Algumas dessas pessoas vivem ali, nestas condições, há mais de 50 anos. Os sucessivos presidentes da Câmara têm prometido resolver a situação, mas sucessivamente também, nada tem sido feito. (...) Entretanto, pelas tábuas e barracas e pelas condições indignas em que vivem, ainda pagavam 3.500$00 de renda mensal. “Jornal de Leiria”, 18 de Janeiro de 2001 - A leptospirose, doença que se transmite através de alimentos contaminados por urina de ratos ou pelo contacto directo da pele com a terra onde estes animais deixam os seus excrementos, foi a causa da morte de um cidadão de etnia cigana. Este aglomerado de 22 famílias vive , no Concelho de Alcobaça, num terreno baldio na cidade, junto à Fundação Maria e Oliveira em condições indignas, sem luz eléctrica e apenas com uma bica de água. “Público”, 16 de Junho de 2001 - Dava conta do descontentamento dos futuros moradores do sítio de Pias. A autarquia construiu fogos para albergar as famílias de etnia cigana que ocupavam (há mais de 20 anos) 40 barracas no Bairro de S. Pedro. “Estamos longe da cidade, desterrados no campo, nem um café ali há. O que estão a fazer com a gente é racismo.” (...) A presença, dentro do bairro, a menos de 10 metros das casas, da Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) é uma das principais queixas SOS Racismo, 2004 - Na freguesia de Pias, Concelho de Serpa, cerca de 30 elementos da etnia cigana vivem em terreno próprio, em casas sem condições de habitação (sem casas de banho e onde é frequente chover). Não têm qualquer apoio da Junta de Freguesia, cujo presidente não se coíbe de passar o tempo a dizer que quer correr com os ciganos dali para fora. SOS Racismo, Boletim nº 31, Outono/Inverno/2004 – Em Castelo Branco, onde há três bairros onde habitam famílias ciganas, sem que se conheça problemas dignos de registo, a Câmara Municipal acaba de criar mais um gueto para ciganos, um bairro situado no lugar da Sapateira, que ficará a dois quilómetros da cidade, rodeado por eucaliptos e oliveiras por todos os lados. A sua construção obrigou a Assembleia Municipal a aprovar uma alteração ao PDM, pois o terreno em causa fica fora dos limites da área urbana. Com esta alteração, que obteve os votos favoráveis do PS, PSD e CDS e a abstenção da CDU, ficou dado o aval para a construção de um autêntico gueto que irá alojar as famílias ciganas que estão a viver em barracas num local próximo do chamado viaduto de acesso ao Bairro da Carapalha.. (...) Para a Câmara, é mais fácil despejá-los para fora da cidade, onde já se encontram algumas famílias, próximas do canil, em casas pré-fabricadas, num cenário da mais profunda indignidade humana.

SOS Racismo, 2005 - Na freguesia de Sobral da Adiça, Concelho de Moura, existe há mais de 50 anos, uma comunidade de 60 a 80 pessoas, que está situada mesmo ao lado de uma lixeira, já mandada encerrar (ordem essa que o presidente da Junta se “esquece” de cumprir para, assim, piorar as condições), sem água, luz, casas de banho, vivendo em barracas, em terra batida. As condições de habitabilidade são, se tal é possível, ainda piores. Rodeando este bairro existe uma moderna praça de touros, um campo de futebol com iluminação, várias pocilgas e galinheiros. Pois em todos estes locais há água e luz! Cada touro, os porcos e as galinhas têm direito a água, electricidade, a limpeza. Os 60 a 80 seres humanos, seus vizinhos, a nada disso têm direito. Esta população é querida pela restante população local que, na medida das suas possibilidades tem ajudado a minorar o sofrimento por que passa esta população.

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Em terceiro lugar, trata-se de os intimidar, de os agredir violentamente,

eventualmente de matar alguns deles e, quando possível, de os espoliar dos poucos bens

e «direitos» que ainda têm, com ou sem pretextos legais, a partir de milícias e de

autarcas «populares» ou de polícias locais, «sintonizadas» com a ciganofobia popular.18

SOS Racismo, primeiro semestre de 1993 - Os moradores de Francelos, Vila Nova de Gaia, com base no “aumento do tráfego de automóveis” e no “aspecto” dos indivíduos que “vêm de fora” e pretensamente “frequentam” o acampamento cigano, concluem que lá se faz tráfico de droga e, como “gente boa e respeitadora” que são, organizam milícias que “policiam” estradas, exigem identificação a quem passe e agridem quem não reconhece a sua «autoridade».

“Jornal de Notícias”, 19 de Abril de 1996 - O Ministério Público do Porto acusou um guarda da PSP de ter morto a tiro um indivíduo, João Espanhol, de etnia cigana, no Bairro das Areias. Em Março de 1997, durante o julgamento deste caso, o Ministério público pede a absolvição do guarda. Este, Areias de seu nome, e outro, Serafim Ferraz, foram acusados pelos filhos da vítima de os terem baleado. O advogado da vítima sublinha a sua estranheza em relação a todo o processo, principalmente por terem sido disparados 11 tiros sem que nem uma cápsula ou bala tenha sido encontrada no local. Além disso, as investigações foram levadas a cabo não pela secção de homicídios da PJ, mas sim pela de furtos. O colectivo do Tribunal de S. João Novo, presidido por Borges Martins, acabou por absolver o agente. SOS Racismo, 17 de Outubro de 1996 – Nesta data, na sequência de uma informação anónima, dando conta de estar a decorrer um assalto a uma loja, a PSP de Aveiro iniciou uma perseguição a três indivíduos de etnia cigana, pertencentes ao acampamento de Pinheiro, Albergaria-a-Velha. Nesta perseguição, viriam a ser atingidos mortalmente dois dos perseguidos. SOS Racismo, 13 de Dezembro de 1996 - Antecipando uma visita do Ministro da Educação à Obra de Promoção Social, que desenvolve um projecto de apoio à comunidade cigana aí residente, a PSP irrompeu pelo bairro de S. João de Deus, no Porto, revistando tudo e todos quantos se lhe depararam pelo caminho. A sede da Associação “Os Viquingues” foi também invadida e as pessoas revistadas, tendo sido apreendido um cabaz que estava em cima do balcão para ser sorteado no Natal. O cabaz foi levado para a esquadra e, até hoje, não se sabe o que lhe aconteceu. “Público”, 31 de Maio a 4 de Junho de 1997 - Um grupo de moradores de Grijó de Morracezes (Concelho de Vila Nova de Gaia), decidiu organizar milícias “populares”: armados de varapaus, dezenas de populares concentraram-se nos acessos ao acampamento cigano. Já se registaram algumas agressões. Os objectivos parecem ainda não estar bem definidos, uns dizem que é expulsar os toxicodependentes, outros dizem que só se satisfarão com a expulsão dos ciganos. (...) No meio de mais um episódio de milícias “populares” estão cerca de 20 crianças, entre os 3 meses e os 13 anos quase abandonadas, entregues aos cuidados de duas mulheres, uma das quais deficiente. SOS Racismo, Abril de 1995 - Em Junho de 1994, na esquadra da PSP de Matosinhos, Romão Monteiro, feirante de etnia cigana, é assassinado pelo guarda da PSP Domingos Antunes. Romão Monteiro começou por se suicidar (com a arma do guarda e com as mãos algemadas atrás das costas), depois foi vítima de um acidente (a arma disparou-se), e, finalmente assassinado, uma semana depois de muitas contradições por parte do guarda e do próprio Comando da PSP. No entanto, uns meses mais tarde (7 de Abril de 1995) o guarda Antunes saia em liberdade, na sequência do acórdão do tribunal, que o inocentou da prática de homicídio voluntário de que estava acusado pelo Ministério Público. Segundo o tribunal, não houve dolo ou dolo eventual (dolo – intenção ou voluntariedade de um acto criminoso). O alegado desconhecimento sobre o facto de que a arma se encontrava carregada no momento do crime, foi o principal argumento da defesa e foi também o que levou o tribunal a considerá-lo inocente da prática de homicídio voluntário. No

18 Estes são alguns poucos exemplos e não dos piores que os líderes da Igreja de Filadélfia ou outros lideres ciganos complementarão com facilidade, como o têm vindo a fazer em vários encontros públicos, isto se houver uma autoridade disposta a ouvi-los, a averiguar as alegações e a mandar proceder em conformidade com a Constituição e as leis.

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entanto, o tribunal de Matosinhos deu como provado o facto do guarda Domingos se ter dirigido em direcção ao detido de arma em punho dizendo: “O que tu merecias era um tiro”, premindo o gatilho e atingindo-o. O Comando da PSP manteve sempre a versão de suicídio apesar de o tribunal a classificar como “falsa, grave e em elevado grau desprestigiante para a PSP”. A mesma ideologia era reinante entre os agentes policiais “educados” pelo seu comando, pois diante do Tribunal, aquando da leitura da sentença, em Abril de 1995, vários guardas e graduados da PSP iam ameaçando os elementos do SOS Racismo e afirmando que “era preciso ‘limpar’ todos os ciganos…”

“Público”, 17 de Janeiro de 1998 - Quatro militares da GNR de Almada (condenados em 1995 por agressão ao cidadão Francisco Carretas, em 1992) estão finalmente presos e a cumprir a pena de 9 e 8 meses no presídio militar de Santarém. “Correio da Manhã” e “Público”, 17 de Janeiro de 1998 - A PJ Militar esta a averiguar o caso do comandante do posto da GNR de Tolosa, Concelho de Nisa, acusado por um subordinado de estar envolvido em presumíveis roubos a indivíduos de etnia cigana. “Púbico”, 14 de Janeiro de 2000 - O bairro de São João de Deus, no Porto, foi mais uma vez alvo de uma rusga policial, no dia 11). Cerca de meia centena de polícias, agrediram violentamente, segundo testemunhas inclusive da associação “Os Viquingues”, idosos, mulheres grávidas crianças e jovens. SOS Racismo, Junho de 2000 - Em finais de 1999, o jovem cigano Manuel Mercedez é detido pela PSP, em Estremoz, após uma revista arbitrária e onde o facto de ter cerca de 1.000$00 na sua carteira foi dado como indício de tráfico de droga. A “prova” do crime, os mil escudos, bem como outras acusações falsas e não provadas, foram suficientes para levar o caso a tribunal. Não deu em nada, mas custou cerca de duzentos contos com o advogado. Em 15 de Março de 2000 vai, de novo parar à esquadra. Desta vez, a detenção resultou em diversas agressões físicas, insultos e avisos como: “Não gostamos de ciganos por aqui” e “para a próxima sais de maca”. Este caso, por iniciativa do SOS Racismo, foi levado à Câmara e relatado na Imprensa local (“Brados do Alentejo”). A partir daqui, ficámos a saber que casos mais graves teriam acontecido com amigos, familiares e conhecidos. Falámos com essas pessoas e as detenções partiam quase sempre de suspeitas, ora de roubo, ora de tráfico de estupefacientes e nunca foram a tribunal. Resultavam geralmente em agressões físicas dentro da esquadra (bastonadas, pontapés e murros). Também ocorriam casos de tortura que tinham como objectivo confessar os falsos crimes de que eram suspeitos. A 17 de Junho de 2000(...), o agente de serviço Luís Borrelho ia afirmando coisas como estas: “nesta esquadra nenhuma pessoa é maltratada”, nunca “viu violência administrada a quem não o merecesse, só em casos de legitima defesa”, e que “nunca houve detenções injustas”. A sua hipocrisia leva o elemento do SOS a tocar no assunto dos ciganos, ao que ele responde “os ciganos não são pessoas, é um caso diferente”, “se levaram porrada, deveriam ter levado duas e três vezes mais”. (...) “você nunca terá problemas aqui na esquadra pois é uma pessoa, agora os ciganos são uma raça a abater, por mim eram todos metidos na praça de touros e era pegar-lhes fogo. (...) Tudo isto é também do conhecimento do Presidente da Câmara, pois o filho dele testemunhou tudo isto.

SOS Racismo, Janeiro de 2002 - No passado dia 29/1/2002, foram mostradas imagens (TVI) de uma rusga efectuada pela GNR, no Bairro da Desgraça, em Coruche, Santarém, bairro habitado por famílias de etnia cigana, a qual violou os mais elementares princípios dos direitos humanos (arrombamento brutal de todas as casas, na busca, com o auxílio de cães, de bens e sua confiscação, no desrespeito completo pela propriedade alheia pisando e partindo vários objectos). Vimos também crianças de olhos assustados, velhos de ar admirado, jovens algemados ainda na cama. Todo este aparato (com a televisão atrás?) para encontrar droga que não apareceu em lugar nenhum. Miguel Sousa Tavares comentou o acontecimento com palavras equilibradas: desmontou o insólito da cena e o uso desproporcionado dos meios envolvidos. Chamou a atenção para o pouco valor encontrado, admitindo que também os ciganos têm direito a ter dinheiro consigo. Interrogou-se, afinal, se o comportamento da GNR teria sido idêntico se não se tratasse de famílias ciganas.

SOS Racismo, Setembro de 2004 - Três jovens ciganos, ao serem identificados por 8 ou 9 agentes da PSP, foram, sem motivo e sem perceberem porquê, algemados, agredidos e conduzidos ao posto da Cruz de Pau (distrito de Setúbal), sendo, depois, postos na rua sem qualquer explicação. Quando pediram a identificação dos agentes, um deles disse que “se não estivesse a tomar medicamentos, arrancava-lhes a pele, ciganos!”

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Em quarto lugar, trata-se de impedir a sua integração nas «nossas» cidades e vilas,

nos «nossos» bairros e escolas, a partir das pressões populares, com a anuência

expressa e/ou com a omissão táctica de líderes políticos, populares e autarcas, de

polícias e líderes locais de opinião.

“Público”, 14 de Março de 1993 – Mata Cáceres (PS), presidente da Câmara de Setúbal, dirigindo-se a algumas dezenas de ciganos, afirmou: “desde que deixaram de andar de carroça e passaram a andar de automóvel, estragaram isto tudo”. “Jornal de Notícias”, “Expresso”, “Público”, de 15 de Maio de 1993 - O vereador Daniel Campelo (PSD), afirmou que”Ponte de Lima não será ninho, nem refúgio dos ciganos”. “Público”, 20 de Setembro de 1996 – O Presidente da Junta de Freguesia de Gulpilhares, Alcino Lopes, referindo-se à comunidade cigana de Francelos, afirma que “é sempre com reservas que vejo a saída para um caso tão complicado como este. Para a população, a melhor seria provavelmente a saída pura e simples dos ciganos para outro Concelho.”. SOS Racismo, Novembro de 1996 - Martinho Gonçalves, deputado do PS por Braga, ficou tristemente célebre pela sua actuação xenófoba e racista no caso de Oleiros, sobretudo por causa da famosa frase “o traficante lusitano não perturba o meio rural” ao passo que a mesma actividade por parte dos ciganos já seria perturbadora. SOS Racismo, Março de 1997 - Na reunião da Assembleia Municipal de 28/2/97, o presidente da Junta de Freguesia de Gandra, Concelho de Paredes (PSD), Armando Costa, disse: ”os ciganos nasceram para roubar quem trabalha”; “dou mil contos a quem me trouxer um cigano sério”; “vivem de habilidades e à volta da droga” e, preocupado com a segurança na sua localidade ainda disse: ”porque se fosse falar de Lisboa referia-se aos negros que toda a gente sabe que ainda roubam mais”. Este caso evoluiu e levou à condenação do referido autarca a nove meses de prisão com pena suspensa. “Público”, 23 de Abril de 1997 – Manuel Monteiro (PP) não está nada satisfeito o candidato do seu partido à Câmara de Braga, Miguel Brito. Tudo porque este advogado assumiu a defesa jurídica de João Garcia. “Visão”, 15 de Junho de 2000 - “Ciganada…fora!” Anúncio da edição da biografia de Ferreira Torres, presidente da Câmara Municipal de Marco de Canaveses (CDS), onde se dá alguma relevância a afirmações racistas por parte do autarca.

SOS Racismo, 28 de Abril de 2003 – Nesta data, a Junta da Freguesia de Fornelos (Concelho de Barcelos) e a JSD recusam a presença de mais ciganos na freguesia.

SOS Racismo, 8 de Outubro de 2003 - Um grupo de pais e encarregados de educação dos alunos da Escola do 1º Ciclo de Rebordinho/Teivas, em Viseu, decide expulsar as 14 crianças ciganas que frequentavam esse estabelecimento de ensino público. O Centro de Área Educativa (CAE) de Viseu, em vez de resolver o problema, transferiu as crianças. SOS Racismo, Julho de 2004 - Na Assembleia Municipal de Castelo Branco, o presidente da Câmara, Joaquim Morão foi peremptório: “Nem os ciganos querem ser integrados, nem a cidade os quer integrar”; “nenhum cidadão quer o cigano à sua porta”.

Em quinto lugar, há que impedir impunemente o seu acesso a empregos fixos, de

longa duração, que proporcionem a mesma segurança, estabilidade e integração que os

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restantes portugueses desejam para si e para os seus e, em simultâneo, ir destruindo as

precárias condições de sobrevivência obtidas através da venda ambulante e em feiras.

SOS Racismo, Março de 1996 - Um feirante de etnia cigana é agredido durante uma noite na esquadra de Sintra, roubado (estava a vender sem facturas, o material é retido pela polícia e, na relação do material apreendido pela polícia, em vez de assinalar os cento e tal pares de calças, aquela aponta apenas 25) e ameaçado de igual tratamento caso apresentasse queixa. “Publico”, 11 de Março de 1999 - A autarquia remodelou o espaço da feira semanal, vedou-o, redistribuiu os espaços de venda e exige que todos os feirantes paguem uma taxa. Apesar do elevado número de agentes da PSP, a confusão despertou quando cerca de 15 feirantes ciganos não puderam instalar as suas tendas porque não tinham qualquer documento que provasse que há muito costumavam frequentar a feira de Famalicão. “Jornal de Notícias”, 15 de Outubro de 1999 - Um cidadão de etnia cigana detido no dia 13 por alegadamente estar a fazer venda ambulante em lugar impróprio, foi violentamente agredido por vários polícias à paisana e esteve 2 horas algemado a uma cadeira na esquadra de polícia de Miraflores, Concelho de Oeiras. SOS Racismo de Setúbal, 5 de Março de 2004 - A Câmara de Setúbal diz que quer “alterar a imagem da cidade” e decidiu matar o mercado da Camarinha, lançando no desemprego e na fome dezenas de famílias do comércio ambulante e, por arrasto, quem trabalha nos cafés e lojas circundantes. (...) Metade destes comerciantes é cigana. É importante saber que as famílias ciganas que trabalham no Mercado da Camarinha são queridas das populações que servem. A Câmara (...) acena-lhes com uma falsa alternativa –o mercado da Xêpa - situado fora de portas, que só atrai compradores ao Domingo, quando há disponibilidade e tempo para lá se deslocarem. SOS Racismo, Maio de 2004 - No mês de Maio, no jardim da Estação da Amadora, agentes da PSP da Amadora agridem vendedoras e vendedores ambulantes ciganos, partindo-lhes braços e pernas. Lusa, Porto, 1 de Junho de 2006 - Fernanda Silva, uma cigana de origem espanhola, que chegou a trabalhar para a autarquia de Vigo, depois de se radicar na Areosa, no extremo norte da cidade do Porto, vai somando recusas de emprego. "Obteve o oitavo ano de escolaridade, tem experiência em jardinagem, está disponível para um emprego a tempo parcial mas, quando vêem que é cigana, rejeitam-na de imediato", conta a assistente social Paula Pimenta, que tem acompanhado o seu drama.

Em sexto lugar há que segregá-los, impedindo o usufruto de supermercados,

cafés, restaurantes e outros equipamentos comerciais e de diversão, oficialmente abertos

a todo o tipo de públicos nacionais e estrangeiros, mas vedados aos ciganos a partir da

«iniciativa privada» racista, com a cumplicidade passiva das autoridades.

SOS Racismo, Maio de 2001 - A 29/5/2001, Manolo, o presidente da Associação Cigana de Matosinhos acusou o Restaurante Proa de racismo por se ter recusado a servi-lo e a outros quatro ciganos. “Mal entrámos, foi-nos dito por um empregado que não serviam ciganos.” (...) José Peixoto, sócio gerente do restaurante, confirmou que foi dito aos ciganos que não seriam servidos no seu restaurante, mas negou tratar-se de racismo. SOS Racismo em 20 de Maio de 2004 – Uma carta recebida relata a xenofobia que existe por parte dos seguranças do JUMBO de Setúbal, pois mal entra um cigano no supermercado começa logo a ser vigiado e perseguido. Um dia o chefe da segurança chegou a afirmar: “A ideia não é que os ciganos deixem de fazer compras aqui, mas se deixarem ainda melhor.”

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SOS Racismo, Dezembro de 2004 - Em Outubro de 2004, o SOS Racismo tomou conhecimento de uma agressão cometida sobre um jovem casal de ciganos que se encontrava num jardim de Moura. Com receio de represálias não quiseram apresentar queixa. No entanto, este caso veio alertar o SOS Racismo, que se deslocou já algumas vezes a Moura, para o que se estava a passar nesta povoação onde os ciganos são impedidos de entrar em cafés, apenas por causa da sua condição de ciganos. Muitos produtos são comprados por elementos desta etnia a um preço mais caro do que é praticado com outros habitantes. Nos dias em que muitos deles recebem o Rendimento Social de Inserção, as forças de segurança, de uma forma sádica e desumana, entretêm-se a passar multas por mau estacionamento.

Em sétimo lugar, se se tornar impossível a marginalização drástica, que

imponha o retorno a um nomadismo que sobre eles foi forçado nos últimos

quinhentos anos, há que segregá-los em bairros e «parques nómadas»

«monoculturais», bem como em escolas e turmas «só para ciganos», promovendo a

emergente figura moralmente iluminada do apartheid bem intencionado, discreto,

racional, altruísta e «respeitador» da cultura dos outros, emblemático da

portugalidade apaixonada por si própria.

“Público”, 14 de Março de 1993 - Este diário afirmava que a Câmara de Setúbal estava a estudar a hipótese de criação de um bairro residencial só para ciganos, na periferia da cidade, com características mais adequadas ao seu modo de vida. O Presidente da Câmara, Mata Cáceres (PS), admitiu o risco de segregação desta medida, mas considerou que era a melhor solução para resolver os problemas raciais em Setúbal. “Público”, 15 de Novembro de 1996 - Uma escola primária de Viseu tem estado a funcionar com uma turma constituída apenas por cerca de vinte crianças de etnia cigana. O director da escola ameaça ainda frequentemente os colegas com quem tenha más relações, de que os coloca na “sala dos ciganos”.

“O Despertar”, 30 de Abril de 1997, - A Câmara de Coimbra está a desenvolver um projecto para a criação de uma “aldeia cigana”, onde as famílias nómadas possam viver de acordo com o seu “modo de vida” mas com as mínimas condições de higiene e salubridade. “Público”, 5 de Junho de 1997 - O presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo quer construir um parque nómada que tem sido visto com maus olhos por alguns sectores da população. A Câmara não avança sozinha mas sim em parceria com a GNR, Misericórdia, Segurança Social e outros. “JN” e “Público”, 2 de Outubro de 1998 - Seis crianças com idades entre os 7 e os 12 anos aguardam há mais de duas semanas que lhes digam em qual das duas escolas se hão-de apresentar. Só querem saber porque as empurram de um lado para o outro. “Será por sermos ciganos?”, pergunta um dos pais das crianças. Os pais dos restantes alunos da Escola Básica de Quinhendros dizem que as crianças ciganas deveriam ir para a de Montemor-o-Velho (Coimbra), enquanto que a associação de pais desta última diz que a primeira é mais perto do acampamento. (...) Depois de uma reunião com o Centro de Área Educativa (CEA), foi decidido criar uma sala de aula especial para as crianças em causa e “transferi-las dentro de um ano para a escola, então já com todas as condições exigidas pelos pais. Como uma espécie de ano de integração zero”, disse Vieira Lourenço do CEA. “Público”, 19 de Outubro de 2000 - A estratégia de acolhimento de 12 alunos ciganos vindos duma escola da Figueira da Foz para a Escola Básica nº 1 da Tocha, no mesmo Concelho, gerou polémica: a escola e o Centro da Área Educativa (CAE) de Coimbra explicaram a criação desta turma monocultural, de alunos com idades entre os 6 e os 15 anos e com níveis de escolaridade diversos, com o objectivo transitório de aferir os seus níveis de conhecimento para, de seguida, os integrar nas várias turmas. O Sindicato dos Professores da Região Centro acha que houve pressão dos encarregados de educação para que aqueles alunos não fossem para as turmas dos seus filhos.

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“Jornal de Notícias” e “Público”, 1 de Setembro de 2000 - Trinta e três famílias residentes em barracas na Quinta do Geão, foram realojadas em casas novas em Argemil, Concelho de Santo Tirso. A comunidade mostrava-se bastante satisfeita com as novas casas mas entristecidos por terem abandonado o centro da cidade e o contacto com os não ciganos. “Público”, 4 de Janeiro de 2005 - A comunidade cigana a viver no Concelho de Paços de Ferreira há 15 anos vai ter habitações “etnicamente correctas”. O processo foi conduzido em permanente diálogo com a comunidade. “Público”, 7 de Janeiro de 2005 - a Câmara de Beja vai construir um “Parque para Nómadas” destinado a famílias ciganas. Este parque localiza-se na periferia de Beja junto ao canil/gatil municipal e destina-se a acolher as 40 famílias da comunidade cigana residentes no Bairro da Esperança cujas barracas vão ser demolidas. Manuel Camacho, vereador, recusa ver no “parque nómada” uma nova forma de gueto. “A experiência demonstrou-nos que a integração de comunidades ciganas e não ciganas é muito difícil porque gera conflituosidade”. Lusa, 29 de Abril de 2005 - O director regional de Educação do Norte, Lino Ferreira, enfrentou em Bragança, há pouco mais de um ano, a contestação dos encarregados de educação da escola EB 2/3 Augusto Moreno, à instalação de uma turma constituída maioritariamente por alunos ciganos. Embora a turma tenha sido constituída, a maior parte dos elementos desistiu e não está a frequentar o ensino. (...) Para o Alto-Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, padre Vaz Pinto, "é impressionante que a comunidade cigana que convive connosco há 500 anos ainda esteja em grande parte excluída, com dificuldades ao nível da habitação, da escola, da saúde". SOS Racismo - Moradores de Maximinos, Concelho de Braga, subscreveram um abaixo-assinado com 400 assinaturas em que se opõem ao realojamento de algumas famílias ciganas em apartamentos devolutos. A população diz que “este tipo de gente merece viver em zonas próprias para elas, em bairros isolados e controlados”.

Complementarmente, a este novo interesse mental, «científico» e

«democrático», pela «cultura cigana» e, portanto, «etnicamente correcto», há que, em

oitavo lugar, deixar cair as poucas iniciativas sociais que na última década iam na

direcção, não propriamente de resolver a questão, mas de começar a envolver os

próprios portugueses ciganos na luta para mudar algo, mesmo que muito pouco.

“Público”, 13 de Janeiro de 2000 – Apesar de terem sido formados cerca de 50 mediadores – pelo Ministério da Educação, por Juntas de Freguesia ou Associações – e de a sua presença ser reclamada pelas escolas devido à importância do seu papel na integração dos alunos das minorias étnicas, este ano lectivo nenhum deles foi colocado, para além de não terem um estatuto oficial ao nível da sua situação profissional. “A Capital”, 26 de Maio de 2002 - As “Oficinas Romani”, uma escola de formação profissional e integração social para a etnia cigana, corre o risco de encerrar definitivamente as suas portas por falta de viabilidade financeira. Desde 1997 a funcionar com cursos 1º e 2º ciclos, marcenaria e construção de guitarras, corte e costura, etc., centenas de jovens ciganas e ciganos passaram pela escola que, agora o Instituto do Emprego e Formação Profissional não quer continuar a financiar. (a escola acabou definitivamente em 2003). “JN”, 13 de Novembro de 2004 - As jovens ciganas de um bairro de habitação social da Ajuda, em Belém, correm o risco de ver acabar o curso de formação profissional (costura) que vinham fazendo no projecto “Ajuda em Casa”, promovido pela Junta de Freguesia. Este projecto começou em 2000, visando o acompanhamento psicossocial de 65 famílias, a maioria de etnia cigana, residentes em bairros de habitação social naquela zona. Fonte do Ministéri da Segurança Social explicou que o projecto era até 2003 e foi prolongado até 2004, prazo que termina em Dezembro. O presidente da Junta vê com “pena e preocupação” a falta de financiamento, mas garante que vai “tentar tudo por tudo para que não acabe”.

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Em nono lugar, como cúpula estadual da ciganofobia popular, há que não tomar

a sério a questão ciganófoba 19, uma vez que o(s) Governo(s) e a(s) Assembleia(s) da

República, 20 a par da(s) Igreja(s), apesar de alguns arrebates morais serôdios e

impotentes, têm mais com que se preocupar e, no fim de contas, acabam por achar que

nesta área das relações interétnicas, não há nada a mudar, uma vez que os portugueses,

como se sabe, não são racistas (dizem) e «eles» é que «têm a culpa» da condição em que

vivem (e, há quem acrescente) persistem em viver, embora sempre a reclamar (não se

sabe bem porquê), possivemente «porque eles são mesmo assim», tal e qual como eram

há 500 anos». 21

De onde, em décimo lugar, há é que promover «o conhecimento e a valorização

da identidade e cultura originária das comunidades ciganas», que certamente se

desenvolveram numa redoma asséptica e nada tem a ver «connosco», e manter tudo na

mesma, em nome do «respeito da sua diversidade cultural». Basta, pois, da parte do

Estado, criar uma política de boas «relações interculturais», regular a venda ambulante,

«actividade económica por excelência exercida pela comunidade cigana, assumindo

"um papel fundamental" na sua integração social» (segundo a versão da autoridade

então competente), e dedicar algumas verbas à promoção de «estudos temáticos sobre

esta minoria».

19 Embora uma andorinha não faça a Primavera, registamos pela positiva intervenções públicas e ou legais dos Deputados José Leitão e Helena Roseta, em Março de 1993, no rescaldo dos incidentes de Ponte de Lima, a intervenção do Governador Civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, em Janeiro de 1997, a propósito dos incidentes com os ciganos de Cabanelas,), mas é preciso acentuar tanto a «bondade» como a inutilidade destas atitudes espúrias e inconsequentes. Que se saiba, os ditos deputados nada fizeram, na Assembleia da República, para alterar o quadro legal, constitucional e jurídico, que sustenta este statu quo histórico. Do mesmo modo, não consta que as denúncias morais provenientes dos Bispos de Setúbal e de Braga que, em Agosto de 1996, afirmaram, o primeiro que é uma “vergonha que a Igreja tenha abandonado os ciganos, que são portugueses como os outros”, e o segundo, que «o comportamento das populações [cristãs] de Oleiros e Cervães têm na sua base sentimentos racistas», tenham levado a qualquer alteração da trajectória ciganófoba discreta (ou subtil, como alguns preferem) da Igreja católica em Portugal. Por alguma razão a integração de famílias ciganas na vida paroquial sacramental e comunitária é uma excepção muito rara, e por isso os ciganos viram-se obrigados a desenvolverem igrejas étnicas, embora haja paróquias que os cooptaram para desempenharem o papel assimétrico e complementar de «seus» pobres. 20 Por exemplo, prestar a sua atenção à criação do Grupo dos Amigos da Sesta ou, mais recentemente, à Associação dos Amigos dos Gatos, cujas iniciativas evidenciam o elevado grau civilizacional atingido pelo «Ocidente cristão», em geral, e pela «nação» portuguesa, em particular. 21 Na opinião de uma reputada especialista espanhola, Teresa San Roman; comunicação pessoal, no final de uma sessão agitada na FCSH, em que vários homens e mulheres ciganos contestaram as «descrições etnográficas» (e a ignorância de conferencistas actuando como «especialistas»), chamando a atenção sobre a discriminação xenófoba e sobre a violência social e policial que sobre eles era exercida. .

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Lusa, Porto, 1 de Março de 2005 - Duas associações da comunidade cigana assinaram hoje, no Porto, com o ACIME e 60 autarquias uma carta de princípios destinada a disciplinar a venda ambulante. Na carta de princípio o Estado reconhece que a venda ambulante é a actividade económica por excelência exercida pela comunidade cigana, assumindo "um papel fundamental" na sua integração social, com respeito da sua diversidade cultural. (...) O Alto-comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, padre Vaz Pinto, afirmou que esta assinatura representa um acordo "livre e voluntário entre as partes, que estabelece princípios e não cria obrigações legais". LUSA, 7 de Abril de 2006 - O Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas assinala a presença e o contributo das comunidades ciganas na história e na cultura de Portugal com a publicação de seis estudos temáticos sobre esta minoria. (...) Com estas publicações, fruto da investigação de especialistas em diversas áreas de intervenção e da vida deste povo, o ACIME procurou promover "o conhecimento e a valorização da identidade e cultura originária das comunidades ciganas".

Como de costume, em Portugal, algumas «medidas» avulsas e inconsistentes,

sem qualquer compromisso envolvido, tomaram o lugar das políticas omissas e de um

«contrato social» promotor de uma cidadania sem adjectivos (étnicos). É preciso,

no entanto, para exigir aos ciganos o cumprimento dos seus «deveres cívicos» (na

venda ambulante, por exemplo), que os governos lhes devolvam primeiro os «direitos»

cívicos, económicos, culturais, morais e identitários que lhes foram confiscados nos

quinhentos anos de presença em Portugal, e lhes continuam a ser retirados em três

décadas de uma democracia recente que, tendo criado rupturas noutras áreas, não evitou

a continuação da discriminação étnica e foi cúmplice da continuação de uma política

informal de promoção do nomadismo forçado, da exclusão e da marginalização

social, da iliteracia, do empobrecimento e do encarceramento assimetrizantes,

factos denegados pela invocação das políticas «oficiais» e posteriormente ignorados ou

etnicizados, isto é, atribuídos aos ciganos como se essas fossem suas «características

culturais» intrínsecas.

Um programa de acção ético-democrático consequente deveria, pelo menos,

integrar as seguintes medidas: o esclarecimento da população sobre a perseguição

racista feita aos ciganos portugueses durante os últimos quinhentos anos, seguido de

um pedido de desculpas e da implementação de uma política, espaldada pela

Assembleia da República; a promoção de um processo de reeducação para a

multiculturalidade das forças policiais portuguesas, com exclusão dos elementos

que não sejam reeducáveis; a promoção de uma campanha para a multiculturalidade

junto dos serviços de atendimento ao público (emprego, habitação, saúde,

escolaridade, etc.), tanto a nível central como autárquico; a alteração da Constituição,

de molde a reconhecer os portugueses ciganos como uma minoria étnica, com

dignidade e direitos próprios; a instituição de um Provedor dos portugueses ciganos,

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capacitado para exigir a punição judicial de quem propuser ou promover discriminações

habitacionais, profissionais, na prestação de serviços de saúde e escolares, bem como

identitárias contra os portugueses ciganos e de manter actualizada a monitorização do

processo correctivo; a implementação de um período de discriminação positiva, com

promoção sistemática e bem apoiada da escolarização dos juvenis e com reserva de

postos de trabalho para os que finalizem os diferentes graus de escolaridade

(obrigatória, secundária e universitária), pelo menos na função pública, a todos os

níveis (como se fez na Índia, com os intocáveis e com os tribais), definido não

temporalmente mas por objectivos de correcção dos resultados da discriminação sócio-

histórica sistemática; e a criação de uma Fundação independente e secular (como a

Fundação Ghandi, na Hungria), mas financiada pelo Estado Português e por mecenas,

destinada à prossecução do objectivo de uma integração sócio-económica, não

assimilativa, tendencialmente paritária com a média da restante população, com

um plano de acção calendarizado, estabelecido e desenvolvido com a participação de

representantes de ambos os sexos das «comunidades» ciganas de Portugal. Esta

Fundação geriria, com parcerias autárquicas, planos de educação de adultos, de

desenvolvimento económico, de micro-crédito, de formação empresarial, de criação de

empresas, e de apoio às empresas e cooperativas criadas, de formação de animadores

culturais e de mediadores escolares ciganos, bem como de creches e de centros

culturais com participação cigana relevante, apoiando ainda a consolidação e a

progressiva abertura intercultural de associações cívicas e religiosas, dando particular

atenção às iniciativas das jovens ciganas, etc.

BIBLIOGRAFIA:

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