Cenários do castelo

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Seis anos depois... A escuridão já caíra sobre os terreiros,as senzalas e os engenhos. E os primeiros cantos solitários ao Rei Ketu já explodiam por entre os banbuzais que sombreavam as várzeas e os córregos murmurantes. Quando as primeiras sombras de homens escuros palmilhavam as raízes dos imbuzeiros e os primeiros grupos de escravos se acotovela - vam sob o troco da árvore sagrada de Ioko - a ladainha da Virgem ex - explodiu nos ares vindo da capela do outeiro. Em coro eles cantaram também.A Virgem dengosa,amorosa derra- mara seu hálito sobre homens brancos e negros espalhados aqui e ali enquanto seu manto azul celeste transfigurou-se nos céus pontilhados de estrelas cintilantes. Lá ao longe,para além de Tapuitapera,a pedra dos Tapuias,uma lua que parecia uma gamela,erguia-se preguiçosa a se balançar em sua rede de tucum,invisível aos olhos dos brancos e dos negros envolvidos em suas fantasias religiosas. Iaci colocou as mãos nas cadeiras e envolveu-se na manta índia tecida por sua avó que deixara para além das barracas de Ornelas,onde o gran- de Rio imperava.E uma saudade profunda se abateu sobre seu coração moreno e livre aprisionado naquelas quatro paredes da fortaleza dos brancos. Fora trazida pequena pelo guerreiro grande e embora o amasse como um Pai, uma palavra triste contorcia-se em seu coração que aprendera ser a saudade dos seus.Enquanto ficasse a ali tinha a garantia de paz no Ser- tão.Se fugisse os rifles voltariam a falar e uma chuva de flechas cobriria o sol que aquecia as ocas de sua tribo,a grande nação Gurgueia. Foi quando a cúpula abobadada da capela de Nossa Senhora da Concei - ção se encheu de incenso sob os olhos azuis de chumbo do padre Bernar- Do Pereira.na verdade,eles imploravam misericórdia divina e um perdão que lhe parecia impossível nesta vida que se aproximava do fim... Eram olhos cinzentos,arrodeados de raias de sangue,que refletiam a dor do penitente quando se irritavam com as nuvens plúmbeas do Te Deum... Não eram olhos de um sacerdote para o qual convergiam as atenções piedosas da família em prece. Eram cenários onde lágrimas brotavam sem parar durante a Consagra - ção.Sob a visão confusa do cálice que se elevava,ele descortinava colu - nas de cavaleiros encourados em ombreiras e máscaras de metal branco. Do fundo de sua alma em transe,eles apareciam como Cavaleiros do Apo - calipse a assombrar a caatinga com seu cavalgar.Onde nuvens de poeira cobriam homens e montarias engolindo-os sob o sol inclemente do Sertão. Em pouco tempo as árvores raquíticas que compunham o cenário melancó-

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Page 1: Cenários do castelo

Seis anos depois...

A escuridão já caíra sobre os terreiros,as senzalas e os engenhos.E os primeiros cantos solitários ao Rei Ketu já explodiam por entre osbanbuzais que sombreavam as várzeas e os córregos murmurantes. Quando as primeiras sombras de homens escuros palmilhavam asraízes dos imbuzeiros e os primeiros grupos de escravos se acotovela -vam sob o troco da árvore sagrada de Ioko - a ladainha da Virgem ex -explodiu nos ares vindo da capela do outeiro. Em coro eles cantaram também.A Virgem dengosa,amorosa derra-mara seu hálito sobre homens brancos e negros espalhados aqui e alienquanto seu manto azul celeste transfigurou-se nos céus pontilhadosde estrelas cintilantes.Lá ao longe,para além de Tapuitapera,a pedra dos Tapuias,uma lua queparecia uma gamela,erguia-se preguiçosa a se balançar em sua rede detucum,invisível aos olhos dos brancos e dos negros envolvidos em suasfantasias religiosas. Iaci colocou as mãos nas cadeiras e envolveu-se na manta índia tecidapor sua avó que deixara para além das barracas de Ornelas,onde o gran-de Rio imperava.E uma saudade profunda se abateu sobre seu coraçãomoreno e livre aprisionado naquelas quatro paredes da fortaleza dosbrancos.Fora trazida pequena pelo guerreiro grande e embora o amasse como umPai, uma palavra triste contorcia-se em seu coração que aprendera sera saudade dos seus.Enquanto ficasse a ali tinha a garantia de paz no Ser-tão.Se fugisse os rifles voltariam a falar e uma chuva de flechas cobririao sol que aquecia as ocas de sua tribo,a grande nação Gurgueia.

Foi quando a cúpula abobadada da capela de Nossa Senhora da Concei -ção se encheu de incenso sob os olhos azuis de chumbo do padre Bernar-Do Pereira.na verdade,eles imploravam misericórdia divina e um perdãoque lhe parecia impossível nesta vida que se aproximava do fim...

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Eram olhos cinzentos,arrodeados de raias de sangue,que refletiam a dordo penitente quando se irritavam com as nuvens plúmbeas do Te Deum... Não eram olhos de um sacerdote para o qual convergiam as atençõespiedosas da família em prece.Eram cenários onde lágrimas brotavam sem parar durante a Consagra -ção.Sob a visão confusa do cálice que se elevava,ele descortinava colu -nas de cavaleiros encourados em ombreiras e máscaras de metal branco.Do fundo de sua alma em transe,eles apareciam como Cavaleiros do Apo -calipse a assombrar a caatinga com seu cavalgar.Onde nuvens de poeiracobriam homens e montarias engolindo-os sob o sol inclemente do Sertão.Em pouco tempo as árvores raquíticas que compunham o cenário melancó-lico da terra calcinada formaram filas que assistiam a passagem dos sobe -ranos de um reino pobre que ia até os rios encharcados do Maranhão,ondeos vaqueiros morriam de hemorragia anal enquanto suas montarias se ato-lavam até os peitos,imobilizandas nos vales úmidos, onde a surucucu inje-tava seu veneno no homem ou no animal que invadira os seus domínios.

O som da sineta dos acólitos retiniu em seus ouvidos e a cena dantescada coluna de guerreiros aterrorizantes cedeu lugar ao ritual da Benção emfamília. Lá fora o canto do Rei Ketu ganhava os ares numa sintonia pagãque revivia o paraíso da África perdido para sempre.De novo – sua alma se encarnava nas vestes sacerdotais que ornavam tem-porariamente um corpo cansado pelas pelejas da guerra ou desgastadoPelo amor impossível que pouco à pouco ceifava seus tecidos empurrando-O a uma velhice precoce e solitária.Bernardo queria morrer muito breve.Lágrimas acres e salinas correram porSeu semblante marcado pela querra e pela prece como rios de enxurrada

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Que banhassem de repente,os tabuleiros onde cactos espinhosos submer-gissem representando sentimentos asfixiantes de remorso,amor e dor nocenário de sua alma perdida...Um passado marcante atormentava sua vocação e resistia ao milagre dosVotos que ele abraçara.Em poucos minutos a capela se esvaziara e a família se recolhera á ceiano alpendre do oitão onde as irmãs da Soledade pintaram a Santa Ceia queornamentava o altar da Virgem,antecipando a imagem da refeição que jáse iniciara do outro lado da casa.