Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

12
6º Congresso SOPCOM 2981 A política cultural em Portugal na entrada do novo século Maria João Anastácio Centeno Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa Resumo Vários têm sido os governos que a partir de 1974 têm encetado políticas que respeitam a pluralidade criativa e “a crença pós-iluminista na razão civilizadora, associados à aposta moderna nas responsabilidades e capacidades do Estado na estruturação da vida cultural, seja pelo lado dos equipamentos, seja pelo lado da procura pública ou do estímulo financeiro à criação, seja pelo lado da educação dos gostos” (Silva, 2004b: 16). A bandeira da democratização da cultura, de que fazem parte a acessibilidade dos bens e oportunidades culturais e a generalização de consumos culturais “esclarecidos”; o compromisso estatal em torno da garantia de um serviço público de cultura e de condições materiais e institucionais para a criação artística independente; e a hipervalorização da educação ou formação dos “públicos”, como via real para a qualificação do tecido e da prática cultural constituem o fio condutor das propostas desenvolvidas ora mais à direita, ora mais à esquerda. A política de descentralização dotou grande parte do território com equipamentos que, a serem perspectivados como lugares de mediação e encontro, têm de ser vividos e incorporados na experiência da população local como espaços sociais, para tal têm de ser espaços vivos que inspiram um entendimento comum do lugar, que funcionem como elementos unificadores e ajudem a forjar uma identificação e posse públicas desses espaços - os espaços públicos devem ser feitos o mais públicos possível. A presente comunicação pretende dar conta do contributo que as organizações culturais, nomeadamente as que constituem a Rede Nacional de Teatros e Cine-Teatros, têm ou poderão ter, enquanto novos espaços públicos, na promoção da discussão pública de ideias. A política cultural central A transformação, a que temos vindo a assistir, das principais cidades portuguesas, em que o motor económico é a cultura, tem passado por, numa primeira fase, dotá-las de equipamentos a nível físico, como é exemplo a construção e/ou recuperação de teatros e cine-teatros; no entanto, para que esses espaços sejam vivenciados e sentidos como fazendo parte do colectivo, ou seja, como novos espaços públicos há todo um trabalho a realizar pelas estruturas responsáveis por esses equipamentos. É nas cidades que se concentram trabalhadores qualificados, infra-estruturas (equipamentos culturais), estabelecimentos de ensino especializado e superior, proximidade a sedes de decisão, realização de grandes eventos culturais, meios de transporte, etc., o que faz com que consigam responder às exigências de flexibilidade da nova economia e se aproximem do conceito de „cidade criativa‟, termo introduzido por

description

Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

Transcript of Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

Page 1: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2981

A política cultural em Portugal na entrada do novo século

Maria João Anastácio Centeno

Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa

Resumo

Vários têm sido os governos que a partir de 1974 têm encetado políticas que respeitam a

pluralidade criativa e “a crença pós-iluminista na razão civilizadora, associados à aposta

moderna nas responsabilidades e capacidades do Estado na estruturação da vida

cultural, seja pelo lado dos equipamentos, seja pelo lado da procura pública ou do

estímulo financeiro à criação, seja pelo lado da educação dos gostos” (Silva, 2004b: 16).

A bandeira da democratização da cultura, de que fazem parte a acessibilidade dos bens e

oportunidades culturais e a generalização de consumos culturais “esclarecidos”; o

compromisso estatal em torno da garantia de um serviço público de cultura e de

condições materiais e institucionais para a criação artística independente; e a

hipervalorização da educação ou formação dos “públicos”, como via real para a

qualificação do tecido e da prática cultural constituem o fio condutor das propostas

desenvolvidas ora mais à direita, ora mais à esquerda.

A política de descentralização dotou grande parte do território com equipamentos que, a

serem perspectivados como lugares de mediação e encontro, têm de ser vividos e

incorporados na experiência da população local como espaços sociais, para tal têm de

ser espaços vivos que inspiram um entendimento comum do lugar, que funcionem como

elementos unificadores e ajudem a forjar uma identificação e posse públicas desses

espaços - os espaços públicos devem ser feitos o mais públicos possível.

A presente comunicação pretende dar conta do contributo que as organizações culturais,

nomeadamente as que constituem a Rede Nacional de Teatros e Cine-Teatros, têm ou

poderão ter, enquanto novos espaços públicos, na promoção da discussão pública de

ideias.

A política cultural central

A transformação, a que temos vindo a assistir, das principais cidades

portuguesas, em que o motor económico é a cultura, tem passado por, numa primeira

fase, dotá-las de equipamentos a nível físico, como é exemplo a construção e/ou

recuperação de teatros e cine-teatros; no entanto, para que esses espaços sejam

vivenciados e sentidos como fazendo parte do colectivo, ou seja, como novos espaços

públicos há todo um trabalho a realizar pelas estruturas responsáveis por esses

equipamentos.

É nas cidades que se concentram trabalhadores qualificados, infra-estruturas

(equipamentos culturais), estabelecimentos de ensino especializado e superior,

proximidade a sedes de decisão, realização de grandes eventos culturais, meios de

transporte, etc., o que faz com que consigam responder às exigências de flexibilidade da

nova economia e se aproximem do conceito de „cidade criativa‟, termo introduzido por

Page 2: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2982

Franco Bianchini (especialista em planeamento cultural) em conjunto com Charles

Landry em 1995.

O espaço público por definição é aquele a que todos os cidadãos têm acesso,

onde as pessoas se reúnem para, espontânea ou deliberadamente, constituírem um

público e fazerem ouvir a sua voz política, “um lugar de dever cívico, fermento político

ou educação social” (Balibrea, 2003: 36), mas que pode ser limitado a fonte de

entretenimento.

Se a criação do espaço público for realizada combinando a lógica dos mercados

globais com as relações institucionais locais e não se atender às necessidades e desejos

da população local, desvirtua-se o sentido de espaço público como lugar de mediação e

encontro, o que nos coloca perante “uma redefinição de espaço público que sublinha a

sua função como espaço de lazer e de consumo cultural, desenfatizando a de lugar de

encontro e politização” (Balibrea, 2003: 36).

Os espaços culturais devem ser vividos e incorporados na experiência da

população local como espaços sociais, para tal têm de ser espaços vivos que inspiram

um entendimento comum do lugar, que funcionem como elementos unificadores e

ajudem a forjar uma identificação e posse públicas desses espaços; os espaços públicos

devem ser feitos o mais públicos possível.

Contrariamente à obra de arte, que inserida num recinto hermético e protegida da

degradação, é vista mas não usada, o espaço público pretende-se marcado pelo visitante

que não terá o papel de observador passivo, mas interveniente que deixa marcas e

rastos.

É claro que as organizações culturais não podem, nem é desejável que o

pretendam, controlar os significados que um espaço público pode gerar nos seus

utentes, aquilo que verdadeiramente podem e devem é potenciar o acesso15

, o uso desse

espaço da forma mais universal possível, para que esse espaço possa mediar a

subsequente produção social de negociações e conflitos e se converta num espaço social

e público.

A experiência repetida de usufruto e circulação pelos espaços construídos, o uso

desses espaços gera uma dinâmica de sentidos. “Insistir nesta dinâmica de construção

social do espaço permite politizar a presença” do novo espaço, porque “confere

representatividade, capacidade transformadora e entidade de sujeito (e não só de

15

Limitar de que forma fôr o acesso a um espaço público é tornar real a interpretação elitista da cultura.

Page 3: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2983

objecto) à comunidade local, frente à hegemónica força significadora (…) daqueles que

projectam, financiam e gerem os espaços urbanos de uso público” (Balibrea, 2003: 50).

A proposta passa por uma vinculação fluida, que tem de ser construída espacial e

discursivamente com a comunidade local, convertendo-a em protagonista da

significação identitária que se vai associando a esses espaços. “É possível conceber

espaços onde aconteçam as obras de culto pelas quais uma determinada comunidade se

identifica, se reconhece e se revitaliza. Afinal é isto programar!” (Ribeiro, 1998: 6).

O poder político em Portugal, independentemente de se situar mais à direita ou à

esquerda, tem vindo a reconhecer a autonomia relativa do campo cultural (com os seus

actores, as suas posições e relacionamento e as regras de jogo que lhe são próprias).

Vários têm sido os governos que a partir de 1974 têm encetado políticas que

respeitam a pluralidade criativa e “a crença pós-iluminista na razão civilizadora,

associados à aposta moderna nas responsabilidades e capacidades do Estado na

estruturação da vida cultural, seja pelo lado dos equipamentos, seja pelo lado da procura

pública ou do estímulo financeiro à criação, seja pelo lado da educação dos gostos”

(Silva, 2004b: 16).

“Direita e esquerda „clássicas‟ identificam objectivos e instrumentos comuns,

embora os apresentem, justifiquem e utilizem diferenciadamente. Tais são: a bandeira

da democratização da cultura, de que a acessibilidade dos bens e oportunidades culturais

e a generalização de consumos culturais „esclarecidos‟ constituem cara e coroa; o

compromisso estatal em torno da garantia de um serviço público de cultura e de

condições materiais e institucionais para a criação artística independente; e a

hipervalorização da educação ou formação dos „públicos‟, como via real para a

qualificação do tecido e da prática cultural” (Silva, 2004b: 16).

A partir de 199516

, a política cultural pública (designação que pressupõe a

cultura como uma categoria de intervenção pública) tem sido marcada por uma

vinculação a uma atitude cultural tradicional de “uma esquerda moderna que não renega

o clássico” (Silva, 2004b: 20)17

e que entende a cultura como uma visão do mundo, ou

mais concretamente as obras envolvem, além dos direitos autorais imputáveis a um acto

criativo, o discurso que é comunicado aos demais. “Aceitemos, assim, que as políticas

públicas em matéria cultural, sendo indispensáveis, devem crescentemente incorporar

16

Ano da institucionalização do Ministério da Cultura. 17

“Falar de modernidade deve querer dizer falar de uma actualidade como presente cronológico que

sincroniza tradição e modernidade” (Conde, 1998: 80).

Page 4: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2984

elementos de estimulação e co-responsabilização da pluralidade de actores e interesses

que se exprimem na chamada sociedade civil” (Silva, 1997: 44).

A intensificação do investimento do Estado central nomeadamente em redes de

estruturação da vida cultural ao longo do território, como são exemplos a Rede Nacional

de Bibliotecas Públicas lançada em 1986 e a de Teatros e Cine-Teatros lançada no ano

de 1999 no âmbito da política cultural desenvolvida pelo XIII Governo Constitucional,

desenvolveu no poder local um processo semelhante de alargamento de acção e

recursos, que em poucos anos fez com que a despesa dos municípios portugueses com o

sector cultural ultrapassasse o orçamento do Ministério da Cultura (tomando como

referência o ano de 2007, estamos a falar de 600 milhões de euros para o primeiro caso

contra metade para o segundo, mediante dados apresentados por Jorge Barreto Xavier,

Director-Geral das Artes; não podemos esquecer que a partir do ano 2000, com o

lançamento do Programa Operacional da Cultura18

, esta tendência saiu facilitada).

A política cultural local

Quase nenhuma política cultural camarária, apesar das diferenças de programa,

sensibilidade e meios materiais disponíveis, dispensa o investimento em acções de

prestígio e impacto mediático: sejam elas a aquisição e/ou recuperação de grandes

equipamentos físicos (como são exemplo os equipamentos que compõem a Rede de

Teatros e Cine-Teatros) ou acontecimentos culturais extraordinários (os grandes

acontecimentos como as exposições internacionais ou as capitais da cultura).

Atendendo às três características do poder local que influenciam na concepção e

estruturação da acção cultural municipal, nomeadamente o consensualismo (tendência

para apresentar a acção camarária como uma espécie de „emanação necessária da

vontade comunitária‟), o presidencialismo (que confere um poder reforçado ao

presidente da câmara na construção e gestão das redes sociais e na definição de

finalidades e procedimentos) e a formulação de prioridades em patamares (em que a

infra-estruturação do território se constitui como o primeiro e principal patamar), o que

sobressai é “a reduzida capacidade da acção cultural autárquica para gerar diferenciação

ideológica” (Silva, 2007: 13). O investimento na cultura constitui-se como uma

18

O Programa Operacional da Cultura teve início a 27 de Julho de 2000, no âmbito do III Quadro

Comunitário de Apoio (QCA III) para Portugal no período 2000-2006 e previa pela primeira vez um

apoio autónomo ao universo cultural e mais especificamente, através da Medida 2.1 a criação e animação

de uma Rede Fundamental de Recintos Culturais. O programa contribuiu com cerca de 40 milhões dos

mais de 71 milhões de euros de investimentos estimados.

Page 5: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2985

consequência lógica da abrangência de uma acção local comprometida com as

„necessidades das populações‟, o que faz com que o discurso político varie pouco em

função das visões do mundo e dos programas dos partidos com forte representação

autárquica.19

Os factores de oposição e mudança não estão predominantemente

associados aos partidos locais, o que mostra que “as câmaras municipais têm sido mais

receptoras do que produtoras de política cultural. Ou, dito com mais rigor: têm sido

parceiras, cada vez mais presentes e necessárias ao seu sucesso, de programas de origem

e enquadramento nacional” (Silva, 2007: 14), de que são bons exemplos as redes em

que a participação do poder local responde à solicitação do governo central de partilha

de custos de investimento de capital e mais tarde de gestão dos equipamentos. E estes

programas têm sido recebidos pelos municípios como oportunidades que raramente

desperdiçam. Outro exemplo foi o Programa de Difusão das Artes do Espectáculo20

(lançado mais uma vez pelo Ministério da Cultura) que entre 1999 e 2002 conquistou a

adesão de dezenas de localidades.

Os quatro pilares que caracterizam “um programa comum de intervenção

autárquica no Portugal dos anos 2000” são: a descentralização, o equipamento, a

formação de públicos e a aposta em eventos distintivos, o que denota que “não é na

lógica de diferenciação ideológico-política de matriz partidária, segundo o eixo

direita/esquerda, que a política cultural local se justifica e representa a si própria”

(Silva, 2007: 15). As políticas culturais autárquicas não se diferenciam por factores

locais de natureza político-partidária, tendem então a acompanhar, qualquer que seja a

força política liderante, a evolução das políticas culturais nacionais.

19

“Ora, os mais fortes, ao longo dos 30 anos do poder local democrático, vêm sendo o PSD e o PS e,

depois, noutro degrau, o PCP e o CDS. O PCP foi o primeiro a destacar, na sua doutrina e prática

autárquicas, o domínio da cultura, tal como, aliás, o da educação. E, durante parte importante daqueles

anos, influenciou sobremaneira o conjunto do discurso político local sobre a cultura: de facto, tópicos

estruturantes da doutrinação comunista – a ênfase na democratização, como generalização do acesso

gratuito a equipamentos e eventos culturais, a hipervalorização do associativismo local, como

protagonista dos processos de criação e recepção artísticas, a reivindicação de competências e recursos,

como condição necessária e suficiente para a alavancagem da vida cultural local, e a definição da cultura

como uma oportunidade maior para a legitimação social dos executivos e a projecção supralocal dos

territórios – todos foram tópicos em que o PCP foi pioneiro, face aos demais partidos, e que por assim

dizer moldaram, durante vários anos, o discurso político-cultural municipal” (Silva, 2007: 13). 20

Este programa foi “concebido como uma triangulação entre entidades proponentes de espectáculos

(estruturas de criação, produção e/ou formação no teatro, na música e na dança), autarquias e o organismo

competente do Ministério da Cultura, então chamado Instituto Português das Artes do Espectáculo. (…)

O PDAE recebia, sistematizava e divulgava a informação recebida das entidades proponentes, sobre

actividades em carteira e das autarquias, sobre as suas propostas de compra, e financiava as aquisições

municipais, numa base de 50%. (…) Entre 2000 e 2002 participaram no PDAE 115 das 278 autarquias do

Continente (41%). Em termos populacionais, essas 115 autarquias totalizam quase metade dos residentes

no território nacional” (Silva, 2007: 23/4).

Page 6: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2986

No entanto, não podemos deixar de atender ao lugar de destaque que as políticas

culturais têm vindo a alcançar no conjunto das políticas municipais, bem como ao lugar

dos serviços culturais no conjunto da administração autárquica. A autonomização do

pelouro da cultura é uma novidade com particular expressão nas décadas de 1990 e

2000, que denota “uma nova identidade e centralidade da política e da administração

cultural local, mas vale também como formação de uma tecnoestrutura local envolvida

nas dinâmicas culturais, composta por técnicos e quadros superiores” (Silva, 2007: 16).

Por outro lado, os próprios responsáveis políticos e técnicos municipais pelo

pelouro da cultura têm vindo a diferenciar-se segundo o género, a geração, a

qualificação académica, a condição socioprofissional e a sua maior ou menor

proximidade face a meios artísticos e académicos de âmbito nacional ou internacional, o

que também contribui para a forma como os respectivos cargos têm vindo a ser

exercidos. A cultura tem vindo a assumir uma centralidade no plano das representações

e dos discursos desses agentes sem precedentes na curta existência das políticas

culturais locais, o que deixa antever a possibilidade de essas mesmas políticas estarem

cada vez mais despertas para a importância que a cultura pode ter na identidade

colectiva local, afirmando a sua singularidade no contexto nacional.

Saber como uma dada política cultural identifica e procura superar os limites dos

processos de democratização cultural por simples generalização do acesso a bens

canónicos, como interpela a compartimentação institucional e disciplinar das formas

culturais e como concebe a extensão e a importância relativa dos sistemas de artes, é

essencial para compreender a sua „modernidade‟. Estará tanto mais próxima deste pólo

quanto mais defender que não bastam as „casas de cultura‟ e outros instrumentos

habituais de „disseminação‟ e que é preciso desconstruir a própria diferenciação entre

produtores e receptores, quanto mais recusar a rigidez das hierarquizações entre alta e

baixa cultura ou erudito e popular, quanto mais apostar nas zonas intermédias e de

intermediação entre formas e espaços culturais, quanto mais recusar a lógica dos

espaços reservados da cultura para articular territórios, espaços públicos e criações

culturais, quanto menos devedora for do sistema tradicional de literatura, teatro, música

e artes plásticas, monumentos e museus, e mais alargar o âmbito de incidência da

política cultural às „artes médias‟, ao domínio audiovisual e às práticas

transdisciplinares. (Silva, 2004b: 17-8).

Nos últimos anos, esta atitude tem vindo a reflectir-se nas políticas locais: “no

que toca a um equipamento não basta adquirir e conservar, embora as duas operações

tenham custado e custem muito dinheiro aos municípios. Não basta ainda geri-lo, no

sentido administrativo da palavra. É preciso animá-lo, usá-lo, fazer dele um pólo de

actividade cultural continuada. Neste plano, as câmaras têm disposto de três recursos:

ou asseguram internamente tal tarefa, coisa complicada para a generalidade delas, dada

a debilidade da sua estrutura técnica; ou procuram soluções de parceria e

Page 7: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2987

complementaridade com a administração central, apostando nos programas que esta

valoriza; ou recorrem aos protagonistas locais, quer eles se apresentem como criadores

ou produtores individuais, quer estejam reunidos nas associações e cooperativas” (Silva,

1995: 259). Ultimamente, os municípios têm tentado modificar os termos da relação de

patrocínio cultural autárquico, preferindo ao „subsídio‟ a compra de serviços aos

produtores, introduzindo alguma selectividade na concessão de apoios ou imprimindo

alguma singularidade à actividade cultural de cada cidade, de modo a criar, consolidar e

projectar acontecimentos ou estruturas emblemáticas21

.

A experiência da Rede Nacional de Teatros e Cine-Teatros

Da Rede Nacional de Teatros e Cine-Teatros fazem actualmente parte 12

equipamentos, ou seja, das 18 capitais de distrito que inicialmente foram pensadas para

virem a ser dotadas com salas de espectáculos, só 12 o foram na realidade. O Centro

Regional de Artes do Espectáculo (CRAE) de Évora lançado em 1996 e o CRAE de

Viseu lançado em 1998 justificam o facto de essas duas cidades não terem sido

contempladas pela rede; Lisboa “não foi identificada como cidade carenciada e, de

facto, dispõe de equipamentos culturais, nacionais ou privados em bom estado de

conservação e em actividade” (Silva, 2004a: 245); Porto, Coimbra e Setúbal não fazem,

por diferentes motivos, parte integrante da rede.

Metade dos equipamentos que compõe a rede depende directamente da autarquia

no sentido de a sua direcção ser assegurada por departamentos e divisões da câmara; a

outra metade é assegurada por empresas municipais, em que a direcção tem alguma

autonomia relativamente à orgânica da própria autarquia.

Sendo os Serviços Educativos, os responsáveis por promover a experiência

comunicacional dialógica, como diria Habermas, sabemos que estas organizações, ao

envolverem os diferentes públicos, não se limitam a apresentar manifestações culturais,

mas promovem a acção e a disputa argumentativa, ou seja, aumentam a esfera pública

no sentido intersubjectivo.22

É um trabalho a longo prazo, virado para a formação do

21

Augusto Santos Silva designa este tipo de acções por acções estruturantes, “aquelas que permitem

garantir suportes físicos, humanos, organizativos e financeiros às actividades dos agentes culturais, sejam

eles mais criadores ou mais usufruidores de bens culturais” (Silva, 1997: 44). Essas acções não se limitam

à construção e manutenção de equipamentos, como salas de espectáculo; implicam a dotação em museus,

bibliotecas, mediatecas, arquivos, escolas e a difusão organizada de bens patrimoniais. Augusto Santos

Silva acrescenta que é precisamente este tipo de acções que constitui a „obrigação primeira‟ do Estado. 22

“Nesta vontade de aproximar públicos e obras, cruzam-se actividades ligadas à produção-difusão e à

reprodução-formação, pretendendo-se, então, renovar o próprio processo produtivo. (…) A animação

pode contribuir para romper, utilizando uma expressão de Giddens, com a „fixidez espácio-temporal‟,

Page 8: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2988

gosto, vinculado ao princípio de que do despertar de apetências e hábitos de convivência

com bens e organizações culturais, desde a infância, depende o mais importante da

consolidação futura de públicos cultivados.

A análise da realidade de cada um dos equipamentos mostra-nos que

aproximadamente metade não dispõe de um serviço desta natureza; a realidade é

diferente se atendermos aos equipamentos que são dirigidos por empresas municipais,

dos 6 equipamentos, 5 têm serviço educativo. O que denota uma clara preocupação por

parte dos responsáveis em não só difundir as artes do espectáculo mas também em

desenvolver práticas educativas que permitam alcançar outro dos objectivos estratégicos

das políticas culturais, a formação de públicos, cuja realização constitui o melhor factor

de sustentação da oferta artística. “O que importa é facilitar e estruturar a aquisição

progressiva pelos sujeitos de disposições e competências necessárias ou favoráveis à

fruição cultural, o que se faz tanto melhor quanto mais oportunidades se gerar de

contacto precoce, cumulativo e prolongado com a multiplicidade das expressões, obras

e correntes que faz a riqueza da cultura” (Silva, 2004a: 261).

O conceito de “novos” públicos deve ser pensado em termos de faixa etária23

,

mas também e de acordo com o vector da democratização no acesso à cultura, a

possibilidade de realizar novas práticas e alargar as categorias sociais. “Na perspectiva

de democratização cultural que defendo, importa (…) criar condições para que, nos

diversos espaços de afirmação cultural, a recepção da obra se prolongue em

aproximação empático-sensorial ao acto criador (expressão/comunicação) e esta última

promova intervenções autónomas ou, no mínimo, atenue inibições, ao nível da criação

cultural propriamente dita” (Pinto, 1995: 195). Este processo de democratização tem

então uma dupla perspectiva, a de alargamento de públicos e a de atenuação de

distâncias entre recepção e criação, ou, como lhe chamaria Walter Benjamin, a

promoção de uma recepção táctil que desloca o espectador da contemplação para formas

de apropriação mais activas.

Cooperando regularmente com a comunidade envolvente e as suas forças

dinâmicas: escolas, associações, poderes e serviços públicos, empreendedores

subvertendo rotinas há muito institucionalizadas. Noutros casos, permite a fidelização, o alargamento e a

formação de públicos, contribuindo, mais ou menos decisivamente, para ultrapassar o mero efeito de

marketing cultural, imprescindível, sem dúvida, mas de cariz demasiado efémero (Santos, 1998: 249/50). 23

“Os jovens reentram nas preocupações culturais das câmaras municipais pela porta da educação dos

públicos e dos gostos. Mas os jovens enquanto estudantes, sobretudo nas escolas básicas e secundárias”

(Silva, 1995: 262).

Page 9: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2989

económicos e sociais, criadores e estruturas de criação e produção24

, o equipamento

cultural “não está apenas a potenciar a sua procura e a assegurar o seu futuro: está

também a usar a porta nobre de entrada no meio social e o mais poderoso factor do

enraizamento nele” (Silva, 2004a: 280).

É fundamental, por outro lado, apostar na relação destes equipamentos culturais

às instituições associativas locais. “Assumir o movimento associativo, não como adorno

da democracia ou prolongamento instrumentalizado do poder administrativo, mas como

um interlocutor privilegiado e um agente dinâmico da concepção, execução e avaliação

das intervenções culturais na cidade, e em particular nos espaços públicos, parece ser a

atitude que, nesta matéria, melhor se compatibiliza com uma política simultaneamente

voluntarista e não dirigista de democratização social” (Pinto, 1995: 204). O movimento

associativo deve ser envolvido directamente na concepção das intervenções culturais.

“A debilidade das empresas culturais privadas faz com que, em cada cidade, se

destaquem como interlocutores da Câmara Municipal, para lá da administração central,

certas organizações locais de criadores e/ou consumidores, que assumem a forma de

associações ou cooperativas. (…) Nenhuma destas estruturas, que cumprem com maior

ou menor eficácia funções culturais, dispõe de meios financeiros próprios suficientes

para sustentarem as suas actividades, estando, portanto, em situações de mecenato

incipiente, dependentes de financiamento estatal. E eis outro factor de reforço do papel

das instituições do Estado na cena cultural urbana” (Silva, 1995: 258).

Por outro lado, deve atender-se à produção cultural local e às funções

patrimoniais das organizações e poderes públicos (mobilizar cidadãos para o debate e

participação colectiva sobre os futuros possíveis de cada cidade).

A intervenção cultural, “através da irrupção de configurações inovadoras de

sentido que arrasta, intervém efectivamente no estabelecimento de redes de acção

comunicacional que, em princípio, alargam o campo de compreensão dos possíveis e

apoiam o movimento dos sujeitos para se libertarem da dominação – expandindo as

„oportunidades de poder dizer e contra-dizer‟, criando „distância de emancipação‟,

mobilizando, em suma, energias e recursos político-comunicacionais recalcados” (Pinto,

1995: 201-2). Através do desempenho dos Serviços Educativos, a recepção não se

limita ao consumo ocasional de produtos-já-feitos, mas acompanha, „por dentro‟, as

24

Torna-se claro que a tríade associações, jovens e estudantes é fundamental, mas por outro lado é

também imprescindível atender a segmentos da procura e a públicos urbanos que não se reduzem aos

mencionados.

Page 10: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2990

condições e os processos de produção cultural, os bastidores, as técnicas, os ensaios,

etc.

Em articulação com os organismos que trabalham em áreas sociais específicas,

abre-se ainda mais o leque de possibilidades de actuação: junto de desempregados, da

terceira idade, de grupos de risco, emigrantes, doentes e deficientes graves, ou seja, dos

excluídos. “Servem estas observações para nos fazerem compreender a excepcional

delicadeza de que se há-de revestir a concepção e aplicação de projectos de animação

cultural em espaços socialmente desqualificados. Além de terem de „gerir‟ a

complexidade inerente à heterogeneidade social dos públicos-alvo, compete-lhes

tentarem inserir-se de forma virtuosa em processos de recomposição identitária que

globalmente visem o combate à exclusão social” (Pinto, 1995: 205).

A aposta passa também pelos grupos de amigos e pelo voluntariado, pelo

trabalho prolongado ao longo do tempo.

“Importa reunir uma série de recursos: técnicos especializados, em particular

animadores/mediadores socioculturais, disseminados pelos espaços-tempos de

sociabilidade e de aprendizagem (nomeadamente as escolas e as associações) e

funcionando em rede; artistas dispostos a dialogarem e a desmistificarem a „aura‟

supostamente inacessível da criação; equipamentos com departamentos educativos

activos; domínio das problemáticas da diversidade cultural; abdicação de qualquer

„ponto de vista soberano‟, patente na tentação, tantas vezes implícita, de transmitir a

„boa e verdadeira cultura‟ ou, de um outro ângulo, as „boas maneiras‟ de se ser

espectador ou elemento de um público” (Lopes, 2003: 10).

Trata-se no fundo de redimensionar o conceito de público e dar-lhe a

abrangência suficiente para contemplar não só os visitantes e espectadores dos teatros,

mas também todos os que lhes correspondem em termos das dinâmicas locais e

regionais, estamos a falar de escolas, associações e cooperativas locais, bem como

criadores e estruturas de criação e produção.

Referências bibliográficas

AAVV (2003) Cidade/Artes/Cultura, Revista Crítica de Ciências Sociais, 67, Coimbra:

Centro de Estudos Sociais.

AAVV (1994) Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Actas do

Encontro de Vila do Conde, Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia.

BALIBREA, Mari Paz (2003) “Memória e Espaço Público na Barcelona Pós-Industrial”

in Cidade/Artes/Cultura, Revista Crítica de Ciências Sociais, 67, Coimbra: Centro de

Estudos Sociais, pp. 31-54.

BARRIGA, Sara/SILVA, Susana Gomes da (coord.) (2007) Serviços Educativos na

Cultura, Porto: Sete Pés.

Page 11: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2991

CARRILHO, Manuel Maria (2001) A Cultura no Coração da Política, Lisboa: Ed.

Notícias.

(1999) Hipóteses de Cultura, Lisboa: Ed. Presença.

CONDE, Idalina (1998) “Contextos, Culturas, Identidades” in VIEGAS, José Manuel

Leite/COSTA, António Firmino da (orgs.) Portugal: que Modernidade?, Oeiras: Celta,

pp. 79-118.

___________(1997) “Cenários de práticas culturais em Portugal (1979-1995)” in

Sociologia – Problemas e Práticas, nº 23, Lisboa: CIES – Centro de Investigação e

Estudos de Sociologia, pp. 117-188.

HABERMAS, Jürgen (1973) Problemas de Legitimación en el Capitalismo Tardío (or.

Legitimationsprobleme im Spätkapitalismus), Madrid: Cátedra, 1999.

____________(1964) “The Public Sphere: An Encyclopedia Article” in New German

Critique, 3 (Fall), 49-55.

____________(1962) Mudança Estrutural da Esfera Pública (or. Strukturwandel der

Öffentlichkeit), Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

LOPES, João Teixeira (2003) Escola, Território e Políticas Culturais, Porto: Campo

das Letras.

NEVES, José Soares (2005) Despesas dos Municípios com Cultura (1986-2003),

Lisboa: Observatório das Actividades Culturais.

PINTO, José Madureira (1995) “Intervenção cultural em espaços públicos” in

SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.), Cultura & Economia, Actas do

Colóquio Realizado em Lisboa, 9-11 de Novembro de 1994, Lisboa: Instituto de

Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, pp. 191-207.

____________(1994) “Uma Reflexão sobre Políticas Culturais” in AAVV, Dinâmicas

Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Actas do Encontro de Vila do Conde,

Lisboa: Associação Portuguesa de Sociologia, pp. 767-792.

RIBEIRO, António Pinto (1998) “A Cultura em Portugal no Final do Século: Entre a

Abundância e a Miséria” in OBS, nº 3, Lisboa: Observatório das Actividades Culturais,

pp. 4-6.

SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.) (1998) As Políticas Culturais em

Portugal, Lisboa: Observatório das Actividades Culturais.

(coord.) (1995) Cultura & Economia, Actas do Colóquio Realizado em Lisboa,

9-11 de Novembro de 1994, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de

Lisboa.

SILVA, Augusto Santos (2007) “Como Abordar as Políticas Culturais Autárquicas?

Uma Hipótese de Roteiro” in Sociologia – Problemas e Práticas, nº 54, Lisboa: CIES –

Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, pp. 11-33.

Page 12: Centeno - A Política Cultural Em Portugal Na Entrada Do Novo Século

6º Congresso SOPCOM 2992

____________(2004a) “As Redes Culturais: Balanço e Perspectivas da Experiência

Portuguesa, 1987-2003” in AAVV – Públicos da Cultura, Lisboa: Observatório das

Actividades Culturais, pp. 241- 283.

____________(2004b) “Como Classificar as Políticas Culturais? Uma Nota de

Pesquisa” in OBS, nº 12, Lisboa: Observatório das Actividades Culturais, pp. 10-20.

____________(1997) “Cultura: das Obrigações do Estado à Participação Civil” in

Sociologia – Problemas e Práticas, nº 23, Lisboa: CIES – Centro de Investigação e

Estudos de Sociologia, pp. 37-47.

____________(1995) “Políticas Culturais Municipais e Animação do Espaço Urbano”

in SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos (coord.), Cultura & Economia, Actas do

Colóquio Realizado em Lisboa, 9-11 de Novembro de 1994, Lisboa: Instituto de

Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, pp. 253-270.