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UMA OLHADA EXCLUSIVA COM QUATRO CAPÍTULOS DO PRIMEIRO LIVRO DA SAGA: CENTRAL DE ESPECIALIDADE

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UMA OLHADA EXCLUSIVA COM QUATRO CAPÍTULOS DO PRIMEIRO LIVRO DA SAGA:

CENTRAL DE

ESPECIALIDADE

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CENTRAL DE

ESPECIALIDADE

E O PLANO CONTRA DOUTOR GENERAL

WILLIAM DANTAS

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Para Terezinha Dantas, minha vovó querida que me mostrou

seguir o caminho do bem.

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A maldade é uma rota escura, árdua de trilhar, em oposto a ela

surge o bem, onde a grande arma contra a ignorância é a verdade.

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SUMÁRIO:

Capítulo 1

Cientista famoso ♦ X

Capítulo 2

Retorno à Sanquo ♦ X

Capítulo 3

Escola Estrela Branca ♦ X

Capítulo 4

A fábrica abandonada ♦ X

Capítulo 5

???????????? ♦ X

Capítulo 6

????????????? ♦ X

Capítulo 7

????????????? ♦ X

Capítulo 8

????????????? ♦ X

Capítulo 9

????????????? ♦ X

Capítulo 10

????????????? ♦ X

Capítulo 11

??????????????? ♦ X

Capítulo 12

???????????????? ♦ X

Capítulo 13

????????????????? ♦ X

Capítulo 14

???????????????? ♦ X

Capítulo 15

????????????????? ♦ X

7

Capítulo 16

??????????????????? ♦ X

Capítulo 17

??????????????????? ♦ X

Capítulo 18

??????????????????? ♦ X

Capítulo 19

??????????????????? ♦ X

Capítulo 20

????????????????? ♦ X

Capítulo 21

????????????????? ♦ X

Capítulo 22

????????????????? ♦ X

Capítulo 23

??????????????????? ♦ X

Capítulo 24

????????????????? ♦ 275

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CAPÍTULO UM

CIENTISTA FAMOSO

MIRRO NICHOLAS FATDGE FAZIA QUESTÃO de ser importante. Era uma característica registrada dele desde pequeno, as suas ideias promissoras de crescer na vida em curto prazo foi o ponto chave para o aborrecimento da mãe. Para ela a melhor opção era seguir carreira de médico, na certa renderia bons frutos, mas para sua decepção ele gostava da formulação de teorias, da aplicação das leis testadas nos laboratórios. Um dia talvez, quem sabe, encontrasse uma empresa que acreditasse em seu potencial e que estaria disposta a pagar muito bem para um iniciante cientista. Não era do tipo que fazia nada por obrigação, fazia somente as coisas que gostava, na hora em que estava mais capaz para isso. O pai nunca lhe deu incentivo, afinal agiu como a maioria abandonando o filho. Nem por isso, Mirro Nicholas Fatdge, deixou de ser feliz e levar normalmente a vida como qualquer outro. Para falar a verdade era impossível dizer o quanto gostavam dele e o quanto ele gostava de sua família. Decidiu que era melhor investir numas ações esquecidas até se estabelecer financeiramente, dependendo dos poucos amigos verdadeiros que possuía. Costumava gastar muito, pouco estava preocupado com o dia de amanhã, pois na sua visão aquele que não curtia a vida é que era o indiferente. Ele era capaz de sentir que o futuro lhe reservava bons frutos, já que tinha alcançado boas etapas dos estudos. Avançara muito no campo profissional (conquistara aquela vaga de emprego pela qualidade técnica elaborada de seu currículo), conseguira comprar uma casa num bairro nobre em Lusse e ainda de sobra arranjara tempo para namorar certa jovem que teria sido seu anjo nas horas mais difíceis. A cada semana sempre checava se seu nome estava presente na lista dos promovidos. Era comum que a Corporativa 31, uma empresa manipuladora de elementos químicos para testes padrões ou produzidos, imprimisse em total acordo com as gerências os agraciados, aqueles que melhor tinham se saído em suas funções ou realizaram algum trabalho excepcionalmente extraordinário. Mirro nunca conseguiu entender porque seu nome não saíra na lista em nenhuma das semanas. Por outro lado tinha sorte no amor. Jennifer Paula Gramanianno aceitara-se casar com ele depois de relutantes tentativas, algumas desnecessárias, porém todas ao ver dele sutis e sinceras. O casamento teve poucos convidados e terminou bem cedo, afinal foram precisos em estabelecer um horário para o término daquela demora cansativa. Eles agiam assim mesmo, o silêncio fazia milagres num diálogo e o barulho era terrivelmente estressante. Totalmente apaixonados, um casal de jovens que tinham juntado seus pertences para viverem juntos e totalmente independentes sem nenhuma reclamação do que deveriam fazer, sem nenhum intruso lhes dizendo como agir. Foi à própria vida, que lhes indicou o caminho, tornando-o mais fácil com os passar dos anos. Estavam casados havia dois anos e desde aquela época pareciam não ter mudado muito na fisionomia. Mirro continuava aquele homem esbelto, idade 26 anos. Tinha um cabelo loiro curto meio cacheado, olhos azuis iguais ao do céu, uma sobrancelha média, um nariz médio afilado e uma boca grande. Um corpo rígido de altura mediana. Seu peso era ideal para uma pessoa daquela idade. A aparência era de uma pessoa saudável que

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toma sol todas as manhãs, que corre no parque nos fins de semana e que é adepto por uma comida não prejudicial à saúde. Jennifer era mais nova do que o marido, 24 anos. Seu olhar transmitia segurança e tranquilidade, enquanto seu rosto parecia uma porcelana que nunca fora tocada. Seu cabelo era castanho escuro totalmente ondulado, o que a deixava parecendo uma rainha das épocas antigas, ainda mais com suas mãos pequenas visivelmente delicadas e macias. Era um pouco magra, mas se dedicava a ganhar alguns quilos fazendo alguns exercícios e deixando de comer certas tentações como bolos e tortas, mas mesmo assim ainda parecia uma dama. Até que certo dia Mirro agiu por impulso quando estava cuidando de um setor, em plena atividade na Corporativa 31. Saberia que não haveria ninguém ali para ficar xeretando do que ele tinha planejado em mente. Era quase hora do almoço, isso iria dar mais tempo para ele limpar caso tudo desse errado, assim não teria como alguém ficar sabendo. Olhou para as bancadas, certificando-se de era seguro continuar seu minucioso plano. Então quando formou o sinal de positivo em seu cérebro correu para o primeiro equipamento que encontrou: um de tamanho pequeno, com vários dispositivos e botões complexos de diversas cores e tamanhos. Procurou por ali os fios, por alguma razão consumiu-se toda a bateria e era preciso recarregar o quanto antes. Tratou logo de fazer os ajustes no eixo central do material enquanto ligava com a outra mão o fio que agiria como uma recarga. Era um esforço que fazia sem total segurança do que aquilo poderia gerar. Cogitou num momento em precisar de mais anéis de metal ou de um pouco de solda, mas seu limite havia chegado e teria que deixar tudo em ordem para ninguém suspeitar de seus feitos. Quando chegou a casa logo no início da noite foi surpreendido por uma recepção calorosa, o que fez com que ele deixasse de lado a impressão de um dia cansativo. Jennifer havia preparado para Mirro seu prato favorito, macarronada ao molho branco e já o esperava ansiosa sentada em uma das cadeiras da arrumada e iluminada sala de jantar. Aquilo significava alguma coisa, acreditava talvez que pela expressão sorridente da esposa pudesse ser uma visita familiar ou algo parecido. Ele estava disposto a ouvir de tudo, portanto aguardou quietamente por qualquer que fosse o assunto.

— Estou grávida! — anunciou Jennifer estonteante diante do marido — Já estava na hora, você não acha? Aquilo era realmente bom, mas olhando para seus gastos excessivos em apenas dois anos, era um investimento que podia estar sendo poupado para ser usado em momentos importantes como aquele, mas que foram jogados fora junto com o tempo. Se as coisas não melhorassem para ele, como iria sustentar três pessoas com o seu salário? Ele mesmo sabia... Não ganhava lá muita coisa. Relembrou-se do que tinha feito mais cedo, não se agradou muito com aquela ideia... Já era possível que existisse naquele momento uma pessoa para tomar proveito de sua própria invenção.

— Sim, acho que sim — disse ele ao brincar com o garfo na comida. Ele soube que teria de agradar a esposa. Afinal ela tinha se esforçado para garantir a felicidade dele também. Ao levar uma garfada razoável para a boca não teve coragem de olhá-la fixamente, mas foi capaz de distinguir temperos que ela usava com tanta precisão. Ela parecia absolutamente feliz que não se contentava em guardar nenhuma notícia sobre a descoberta para o marido. Mirro como bom ouvinte continuou aproveitando seu jantar.

— Alice Braga decidiu que me visitaria hoje lá no escritório e como saio cedo para almoçar decidi convidá-la para encararmos o restaurante Vijas na esquina da Valente

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com a Delrio Solimões — contava Jennifer risonha — Pedimos o prato principal com dupla sobremesa, ultimamente eu estava evitando comer sobremesa, mas hoje não sei por que ousei em pedir. Quando chegou parecia que estava tudo tão gostoso, que eu não exaltei duas vezes em repetir. “Resultado, acabei passando mal. Minha sorte que Alice estava dirigindo e me levou para um hospital não tão longe do endereço onde estávamos. Eu estava prestes a vomitar a qualquer momento, não queria fazê-lo na frente de todos que ali estavam. Sentia um enjoo desconforme do cheiro daquele ambiente, todo aquele cheiro de álcool, remédios e pessoas doentes deixavam-me perturbadas. Fui atendida como caso de emergência, logo não tive que esperar muito. O médico que me atendeu era bastante experiente sobre o assunto, Leonardo Polares fez os procedimentos básicos e concluiu o que Alice vinha suspeitando enquanto estávamos a caminho de lá, sobre eu estar grávida. Não só de um menino, mas de gêmeos.” Mirro quase se engasgara com uma batata levemente escondida na camada de molho branco. Ele tinha ficado nervoso e preocupado, como nunca costumava agir.

— Gêmeos? — repetiu ele largando o garfo de uma das mãos. — Sim, dois meninos. Futuramente eles serão os nossos filhos — confirmava Jennifer

alegremente, demonstrando estar preocupada também. — Realmente muito legal da parte de Alice lhe ajudar, querida — concordou Mirro

recuperando o garfo. — Ela tinha ido apenas me visitar para ver como eu estava e de repente... Aconteceu

sabe? Foi tudo muito rápido. Jennifer estava esperando um comentário que lhe fizesse sentir importante, mas este não veio, então ela prosseguiu com seus pensamentos.

— Fora isso se tudo der certo com eles estarei disposta a convidá-la para ser madrinha —disse Jennifer contente por seu marido estar com ela — Em Lusse é a única em quem eu cegamente confio. Não saberia como iria dizer isso, ainda mais em seu cômodo favorito. Não queria estragar os prazeres de uma jovem prestes a se tornar mãe, nem da felicidade construída antes e após o casamento, porém lá no fundo debatia-se uma força revelando-o da obrigação de lhe informá-la da verdade, nem de não esconder nada. Viu-a tomando um gole d’água e finalmente saboreando a comida que ela mesma tinha preparado. Sua chance era aquela. Ele aproveitou com total fé essa oportunidade.

— Jennifer, não teremos condições de criar duas crianças — disse Mirro enfaticamente sem gaguejar. — Você vai receber seu auxílio gravidez, mas quem realmente ganha mais aqui sou eu e se eu não ganhar urgentemente uma promoção vou ter que me desdobrar para duplicar nosso orçamento.

— Calma amor, nada está perdido ainda — seu tom de voz era absurdamente tranquilizador. — Alice Braga pode nos ajudar... Se tinha um motivo para Mirro Nicholas Fatdge ficar emburrado era quando as pessoas achavam que poderiam contar com os amigos para resolverem seus problemas, entrando assim na vida particular deles e roubando-lhes toda a privacidade que lhes foi concedida, considerando como quebra de valores. Era como se num jogo de futebol cedesse a bola para o adversário fazer o gol ao invés de você.

— Não acho certo envolver Alice Braga nisso — disse Mirro que rejeitava totalmente a comida a sua frente — Ela nem é da família.

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— Ah, mas você mesmo disse que não teremos condições de cuidar deles. Teremos que conversar com Alice para ver se ela concorda em nos ajudar, por enquanto — comentou Jennifer ao pegar uma toalha de papel. O jantar teria terminado em discussão se ele contasse tudo que estava sentido, mas achou melhor não. Com ela grávida, possivelmente era arriscado perder os bebês. Ela parecia tão desconfortável, saíra de cena levando os pratos e copos sujos juntamente com os recipientes de comida para serem lavados, mal demorou alguns segundos até Mirro segui-la. A cozinha era um espaço agradável, com seus móveis pré-moldados de cor creme em perfeito tom com os azulejos. Em perfeita sintonia com os móveis estavam os eletrodomésticos ainda com a aparência de novos e belíssimos, mas nada se comparava as janelas amplas que traziam luz e de vez em quando um vento refrescante. Dali era visível a sala de jantar e uma porta que dava acesso a lavanderia. Jennifer estava ocupada num canto, sobre a pia moldada na pedra, lavando um prato desenhado nas bordas por linhas firmes e precisas, não notando a presença dele.

— Deixa que eu cuido disso — disse Mirro para a esposa. Jennifer enxaguava o prato, haviam do lado dela uma leva de panelas secando parecendo que estavam novas em folha. Ela tinha feito tudo sozinha antes do marido chegar e agora mesmo ele estando lá não precisaria dele.

— Não precisa — confirmou Jennifer dando conta agora de um dos dois copos — Já estou quase no fim! Poderia perdê-la, mas jamais ousou o mal das crianças.

— Isso tudo porque não concordei em ser ajudado por aquela sua amiga, Alice Braga — disse Mirro impaciente. — É só eu conseguir uma promoção que tudo se resolve, ok? O clima estava tenso, porém o amanhecer de um novo dia trouxe novas esperanças para aquela família. Jennifer tinha deixado o café de Mirro pronto numa das bancadas da cozinha. O cheiro agradável fora perceptível quando ele atravessou à porta que dava acesso a cozinha, notando também outra coisa que chamou sua atenção. Cartas, talvez? Ali jogadas sobre uma mesa de centro, porém quando sua visão foi se aproximando teve um colapso momentâneo, não estava enxergando bem para perceber que se tratava de contas a pagar. Todas com um vencimento em uma semana no máximo. Achava que uma boa consulta num oftalmologista faria bem, não antes de ir trabalhar. Adorava trabalhar, porém tinha a impressão que a Corporativa 31 com seu imenso quadro de funcionários iria decretar estado de falência logo e não estava longe de acontecer. Poderia falar por ele, que nunca tinha faltado a nenhum dia de serviço. Ele que viu a ascensão de vários funcionários, alguns depois do tempo que ele ingressou para trabalhar lá, mas era pouco em sua opinião. Não observaram o quanto ele se esforçou para dar ali o seu melhor, o quanto ele realmente precisava para manter sua família. Nada disso notaram. Na certa encontrariam alguém mais jovem com uma formação em tempo hábil e aí então seria o seu fim, seria demitido como muitos foram. Era triste admitir, mas não via mais graça em ser funcionário daquela empresa. Eles iriam ter um prejuízo maior com a saída dele. E o local escolhido para a vingança foi o deposito de material reutilizável. Para entrar a pessoa teria que passar por um jato de ar em uma câmara isolada que retiraria qualquer impureza não detectada a olho nu. Certamente aquilo logo de início não apresentou problema para ele, até o chefe de Mirro aparecer. Um homem chamado Razner Luscovit,

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que parecia mais estar trajando roupas espaciais do que uma proteção feita de um tecido especial contra a exposição dos produtos químicos.

— Mirro você está indo limpar esta sala? — perguntou Luscovit bastante apressado por sinal — O Saulo me informou para aquele que entrasse aí ajustar a temperatura das dobradiças.

— Sim, estou indo limpar lá dentro — mentiu Mirro parecendo bem convincente. — As dobradiças duram mais no frio. Vou consertar, pode deixar comigo!

— Ótimo, encontre-me quando terminar. — disse Luscovit por aquele traje que sufocava até a fala — Quero dar uma palavra com você. Luscovit afastou-se, rumando para o final de outro corredor até desaparecer de vista. Mirro, no entanto, concentrava-se numa forma de arruinar aquela área por completo. Todos aqueles equipamentos pesados destacados por etiquetas e separados por utilidade iriam rachar ao meio e com certeza alguns iriam explodir. A instabilidade da temperatura era difícil de prever, mas iria surtir mais efeito ao girar um instrumento de precisão para que ficasse totalmente nas temperaturas altas e de nível quente. Quanto mais alta o número melhor, primeiro apareceu no visor o 100, depois o 120 e crescia ainda mais. Com aquele estrago feito, muitos iriam quebrar a perna socialmente e ficar desempregados, incluindo ele próprio. Correndo risco de vida deixou aquele setor o quanto antes. A sala de Luscovit era separada dos líderes encarregados da produção de cada setor e ficava isolada no primeiro andar. Mirro achou melhor não provocar o chefe ao decidir entrar em sua sala, que por sinal era cheia de arquivos e processos em aberto na gigante mesa de escritório de madeira que ele possuía. Somente uma planta, visível ao final da sala, era incomum aquele ambiente de progresso, ao contrário dos processos ela estava murcha e quase sem vida. Mal dava para perceber suas flores brancas de tão apagada que estava. Luscovit agora estava sem aquele traje estranho e lia um artigo científico recente pelo computador, quando viu Mirro desligou somente a tela.

— Analisei nestas últimas semanas nossos melhores funcionários — ia dizendo Luscovit fitando-o — E acabei percebendo que você era o único deles a não ganhar uma promoção...

— Para você ver... Trabalho aqui já faz um bom tempo. — Na certa você se enquadra neles — continuou Luscovit. — Seria justo lhe conceder

esta oportunidade, depois de anos de... Mirro foi poupado do resto do que Luscovit dizia. Alguma pessoa, daquelas sem educação fora entrando, parecendo coberta de fuligem. A pessoa era um líder talvez daquele turno de trabalho. Um homem que também devia ter família para cuidar. Logo se expressou para quem quisesse ouvir. Mirro receando ouvir o pior.

— O depósito de materiais reutilizáveis acabou de explodir! Várias ligas de metais contribuíram para impedir a localização de onde o incêndio surgiu.

— Estranho Joan. Mirro era quem estava lá agora a pouco — disse convicto um calmo Luscovit. Luscovit virou sua enorme cabeça para onde estava sentado Mirro, exigindo explicações.

— Era você que estava lá! Como aconteceu isso? — Não sei — disse Mirro criando assim outra mentira — Estava tudo em ordem antes

de eu sair. De qualquer modo, o homem chamado Joan retirou do bolso um equipamento minúsculo, cheio de botões e funções e foi até onde estava Luscovit. Entregou-o para

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ele o aparelho. Mirro o reconheceu, era a sua criação que forjaria para ganhar a tão sonhada fama na empresa. Luscovit analisava-o com exasperação e cuidado. Pareciam que tinham falado a respeito disso antes de Mirro aparecer para conversar com o chefe.

— É realmente o que vai nos tirar do poço — disse Luscovit com um brilho em seus olhos escuros nunca antes visto. — Andamos recentemente cortados dos gastos do governo, mas agora isso vai mudar. Joan estava totalmente cheio de si. Mirro tinha a sorte de estar ali para poder acabar totalmente com esta felicidade.

— O que Joan se esqueceu de lhe dizer foi não sou o criador desse aparelho — comentou Mirro expressivo — Pois, quem o criou fui eu!

— Ah... Sendo assim. Estou falando com um homem em especial — disse Luscovit — Um dentre muitos que vai fazer jus a nossa reputação enquanto cientistas. Luscovit tomava notas em sua ata enquanto ria até não aguentar mais. Isso teria que ficar registrado. Houveram muitas falhas e esperavam que ele fosse capaz de consertar todos os erros. Uma estupidez pensar assim. Joan, por outro lado não entregaria seu ouro tão fácil.

— Ele foi bem desonesto com o senhor, venho notado isso há um tempo — disse Joan ao que se concluía não havia nada a perder. — Passou tão rápido por mim lá embaixo para vê-lo que só havia uma razão para isso. Queria estar bem longe quando explodisse tudo. O cerco parecia ter se fechado para Mirro. Como soubera da armação mirabolante de seu único plano? Não obteve resposta por osmose e tudo o que pode perceber foi à expressão vazia de Luscovit mudando para uma próxima de alguém prestes a ter um acesso de raiva.

— Isso que Joan diz é verdade? — perguntou Luscovit, não controlando o tom alto da voz, suspeitando de qualquer expressão do semblante de Mirro.

— Pode se dizer que sim — respondeu Mirro sem precisar de coerção. — Você é o culpado da explosão lá em baixo? — perguntou Luscovit incapaz de

definir agora se realmente tinha credibilidade pelo rapaz ou se apenas estivera escondendo um lunático dentre outras pessoas com capacidade.

— Apenas eu sou o responsável por tudo — respondeu Mirro não vendo mais sentido nenhum em continuar naquele jogo, onde apenas ele sairia perdendo. Se alguém entrasse naquela sala ali agora não aguentaria ficar calado muito tempo. Iria pedir urgentemente a demissão de Mirro e em troca provavelmente promoveriam Joan mais uma vez. Antes teriam xingado Mirro de centenas de palavras caídas em desuso. Luscovit parecia que estava pensando as mesmas coisas, não suportara ficar calado e engolir uma verdade desconfortável para seus ouvidos. Não teve insegurança ao falar.

— Pense no que você acabou de perder rapaz — disse Luscovit amedrontado de estar cara a cara com o culpado por aquele incêndio. — Uma oportunidade única que não bate a porta dos jovens a todos os momentos.

— Eu perdi meu sonho — confirmou Mirro não cabendo naquela cadeira em que estava sentado. — Somente agora percebi que trabalhar aqui foi um desperdício de tempo, mal me notavam. Precisavam de mim apenas para fazer o serviço nojento e depois podiam levar todo o crédito. Achavam que eu deveria estar feliz de vida, mas infelizmente não estou, pois perdi a chance de me tornar um cientista famoso.

Luscovit tinha escutado tudo com atenção e quando Mirro terminou, tentou lhe confortar com a sua versão, que aos olhos dele era a correta.

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— Você já tinha construído a sua reputação. Os novatos até queriam desfrutar igualmente do seu estilo de trabalho! Isto só pode ser traduzido da seguinte forma... — disse Luscovit em seu cargo de gerência para um cientista famoso que acreditava ser um qualquer — Você era famoso. Mais do que qualquer outro, bem é claro que para alguns era duro admitir. Luscovit parou por um momento, logo estaria disposto para continuar. — As oportunidades iriam vir — disse Luscovit ao que lembrava a figura de um conselheiro — Era só ter um pouquinho mais de paciência. — Não sei o que foi pior em toda a minha vida: vir trabalhar aqui, ou ser totalmente paciente — continuou Mirro com a voz grave — Tive tanta paciência que o meu limite acabou. Cansei. — O meu limite também acabou como o seu — disse Luscovit sem fazer qualquer rodeios — Não fazemos mais questão de termos você trabalhando conosco. Está demitido. Procure os recursos humanos no setor pessoal e cuide-se, vai precisar. Boa sorte em sua vida, em qualquer uma que escolher para si. Mirro não estava nem um pouco ligando para o que os outros iriam achar. Ele ia se dar muito bem, com um currículo daqueles em mãos o próximo emprego seria super fácil de achar. Saiu dali encarando Joan bem de perto. Era horrível ter que fazer o papel de bom moço quando não queria. Os recursos humanos não iriam devorá-lo vivo, então ficaria tudo bem. Chegou em casa por volta das nove horas da noite e ainda estava passando a novela global que Jennifer nunca pode assistir porque trabalhava, mas que agora estava debruçada em uma das cabeceiras comendo um pouco de goiabada restante da geladeira. Ela se assustou ao vê-lo ali tão tarde do horário habitual dele. — Pensei que seu trabalho fosse até as seis horas da noite — comentou Jennifer evitando o olhar da televisão. — Realmente era — concordou Mirro nem um pouco abatido. — Era? — repetiu Jennifer lembrando-se da noite passada — Oh, vai ver então você finalmente deve ter conquistado uma promoção? — Não se trata de uma promoção, não ainda — disse Mirro parecendo naquela luz branca meio doentio — Eu fui demitido. — Demitido? — frisou ela. — Sim. — respondeu-lhe o marido. — Mas vão lhe pagar? Por todos os anos trabalhados? — Acho que vai ser difícil amor. Fui demitido por justa causa. Era o fim. Teriam que poupar muito naquele estágio. Ela até desligou a televisão para não sobrecarregar o consumo da energia. — Uma pena, lhe contaram o porquê? — perguntou Jennifer angustiada, a voz quase falhando. — Queimei sem querer todo um setor, uma peça se soltou e causou todo o estrago — mentiu Mirro uma terceira vez e sua esposa nem sabia disso. Foi aí que ele notou. Do lado dela o jornal diário trazia em seus cadernos uma seção exclusiva de emprego e no título bastante chamativo procurava-se um cientista famoso com anos de experiência. Mirro acreditou naquilo e precisava saber do número para poder ligar. Queria voltar a trabalhar amanhã mesmo. Ele e Jennifer tinham contas em aberto que não poderiam deixar de serem pagas. Ele tinha que pegar aquele jornal sem ser perturbado pela esposa.

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— Ainda bem que está a salvo, não queria pensar na possibilidade de estar viúva neste momento — comentou Jennifer com simplicidade. Lembrou-se que Jennifer era acostumada e gostava de dormir cedo. Usou tentar seu melhor argumento. — Eu vou arrumar outro emprego — disse Mirro sonhador.

— E vai conseguir, eu sei disso — acompanhou Jennifer exaltada. — Por enquanto vou-lhe ajudar — disse Mirro — Você pode aproveitar e ir descansar. Não vou deixar outra vez que lave a louça. Pode fazer mal para os bebês. Ajudou Jennifer a levantar do sofá três lugares de cor marrom escuro e com cuidado a levou até as escadas.O corrimão a ajudaria no acesso ao segundo andar. — Boa noite querida. Fique tranquila. — disse Mirro — Estará tudo em ordem quando descermos amanhã para tomarmos café juntos. — Eu sei que estará — disse Jennifer começando a subir. Como prometido Mirro Nicholas Fatdge tinha deixado como sempre estivera à cozinha. Perfeita, com todas as panelas em seu devido lugar e todos os pratos acessíveis quando bem quisessem em um armário próximo da dispensa. Com tudo cheirando de novo retornara para a sala. Vasculhara a página até achar aquela vaga desejada que vira mais cedo pela manchete e a encontrou quase no fim, veio como o último caderno do jornal. Tudo o que precisava era de um número ou até mesmo um endereço que lhe informaria a respeito desse emprego. Passou por tantos que exigiam cursos de informática e não teve a sorte de encontrá-lo. Curiosamente virou uma página que parecia molhada, na certa teria feito as duas páginas parecem apenas uma, mas agora ele sabia tinha que fazê-la secar para enfim saber o seu conteúdo. Não importava se iria gastar energia, isso teria que ser feito. Ligou um pouco o ar condicionado, deixando a temperatura muito acima dos 37 graus. Não demorou muito até ambas as partes se separarem de uma vez e ao obter essa confirmação desligou o ar no mesmo instante. Leu com cuidado o que estava escrito. Estava ali espremida entre o anúncio da oferta de duas vagas para arquitetos no topo da página. Era realmente uma chance surreal, sem contar do salário que era praticamente o triplo do que Mirro recebia na Corporativa 31. Isso foi capaz de encher seu ego, mas para seu desprazer as vagas ficariam em aberto até amanhã. Ficou tão abismado com o endereço que não hesitou duas vezes em aceitar. Correu então para arrumar o essencial, não retornaria ao quarto com medo de acordar Jennifer. Queria ser famoso e aquele era o momento. Não ousaria desistir dos seus sonhos, nem se para isso tivesse que desistir da própria família. Se um já seria difícil de cuidar, imagine um duplicado com a mesma personalidade... Um tédio que só ele imaginava. Não tinha intenção de ser pai de dois garotos. Eles iriam ser o oposto do que ele não fora? Preferiu não esperar para descobrir, esqueceu que um dia teve a chance de conhecer alguém especial. Saindo de casa, deixara um bilhete de poucas palavras afixado na porta. Se não fosse pela inesperada mudança de atitude do jovem rapaz, eles bem que poderiam ser felizes para sempre. Ela mal sabia que ele tinha a deixado só. Esperou os carros passarem para que pudesse atravessar pela avenida. Caminhou livrando-se de pessoas desconhecidas, alcançando a estação de trem tendo como plano de fundo as estrelas cintilantes lá acima. Comprara uma passagem só de ida para seu destino.

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Encostado num banco de espera para passageiros pensou ter visto uma mulher sair de uma lanchonete e que estava olhando em sua direção, não podia descrever se era alguma conhecida. Percebendo aquela luz forte se aproximar, soube que era o seu trem, em plena velocidade e não mais precisou ter receio de quem quer que fosse. Com a chegada do trem, ele foi o único a embarcar das pessoas que estavam esperando e quando fechou suas portas de ferro, ouviu-se seu apito forte e estava pronto para seguir em frente, sem parar até chegar a seu destino. Enquanto isso, Jennifer Paula Gramanianno estava dormindo no seu quarto sem realmente desconfiar de que seu marido não estava mais presente. Sonhava que estava em uma mansão em que suas paredes tinham vários anúncios de emprego pretensiosos e chamativos. Alguns pagavam bem demais que algumas pessoas entravam sem serem convidadas para saberem da novidade e já iam se vendendo para conseguirem um desses maravilhosos empregos. Mirro Nicholas Fatdge era um deles. Conseguiram convencê-lo para ser um representante importante, gerente geral de uma empresa no sul. Ele aceitou no ato, mas antes debochou dos outros rindo, riscando um fósforo em um pedaço de metal fazendo com que a haste pegasse fogo. Atormentou a todos com labaredas que começaram queimando as cortinas. Daí surgiu em pleno saguão um trem apinhado de gente mal encarada esperando ele subir para partirem com elas sem Jennifer. Jennifer acordou duvidando da possibilidade daquele sonho ser real. Não era real... Era só um sonho. Estava somente ela no quarto e o único barulho que se ouvia era um zumbido crescente vindo das ruas em frente a sua casa. Cada vez mais perto pensou que reconhecia aquele som... Eram sirenes se aproximando, isso não indicava ser bom sinal. Três ou quatro carros do esquadrão da polícia avançando a rua em direção a sua casa alta horas da madrugada. Ela pegou uma lanterna, acreditando que se tratava de um assalto e então desceu as escadas. Verificou todos os cômodos, nenhuma pessoa estava presente, nem lhe roubaram nada. Achou mais seguro, portanto abrir para a polícia que batia na porta da sua casa. Para a sua surpresa Alice Braga estava com os policiais. — Vai ser um choque para você saber disso, eu sei — comentou Alice segura do que estava dizendo — Mas, eles acharam melhor você saber por mim que Mirro fugiu. — Mirro jamais faria isso comigo — disse Jennifer prestes a desmoronar no desespero — Alguém deve ter o sequestrado, por inveja. Ele era uma pessoa boa. — Ele estava sozinho... Reconheci-o pelo seu jeito de andar ao sair da lanchonete onde estava. Cauteloso como sempre — respondeu Alice. Um dos policiais, o que era alto e musculoso mal entendia o que ela passava. — Você vai ficar bem? — Não. Ele estava aqui horas atrás. Íamos ser uma família de verdade juntamente com nossos filhos. — Desculpe desapontá-la, mas ele não violou nenhuma lei, portanto não há razão para investigarmos porque ele se mandou. — Não é claro que não violou. Alguém o sequestrou, é o que acho! Alice Braga havia dispensado os policiais. Concordou em passar a noite com sua melhor amiga até que estivesse pronta a enfrentar novamente as coisas, mas deixou tudo bem claro. — Ninguém o sequestrou — admitiu Alice ao ajeitar um colchão no chão — Ele simplesmente a deixou.

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— Eu ainda tenho as esperanças de que ele pode retornar — concluiu Jennifer. Jennifer angustiada não parava de pensar onde ele estava, mas era tarde. — Obrigada por tudo — disse Jennifer pronta para tentar ter outros sonhos — Eu não sei o que seria de mim se eu não tivesse você como amiga. Nove meses se passaram em Lusse depois daquele dia fatídico em que Alice Braga fora visitar Jennifer trazendo uma má notícia e cada novo mês que entrava, aquela jovem mãe parecia ficar mais elegante. Os gêmeos acabaram nascendo no dia 22 de Março de 2035 de parto normal realizado pelo renomado doutor Leonardo Polares. A diferença de horário do mais velho foi apenas de cinco minutos para o mais novo, mas mesmo assim continuavam idênticos, até quando estavam chorando na presença da enfermeira do hospital. — Eles são lindos — Jennifer foi capaz de dizer — Loiros como o pai. Os bebês recém-nascidos tinham alguns fios claros que lembravam e muito o pai. Quando abriram os olhos Jennifer percebeu que parecia com os olhos claros dela. Olhavam tudo com atenção como se tudo fosse novidade. Como Jennifer estava fraca para segura-los, Alice ajeitou-os no colo. — Eles precisam de um nome — comentou Alice ao segurar os bebês. — Mirro Nicholas Júnior Gramanianno será o nome do mais velho, em homenagem ao pai — disse Jennifer segura de sua escolha. Fez uma pausa momentânea para que tomasse um tempo para decidir. Sua visão estava falhando, devia ser por causa dos remédios que havia tomado antes de entrar na maca para realizarem os procedimentos. Havia tomado uma decisão, descansaria em seguida pelo bem da sua saúde. — Lirro Nicholas Dragoni Gramanianno será seu irmão em homenagem ao fundador de Lusse, Lirro Del Figueira Lusse — continuou Jennifer cansada. Ela virou na cama, cobrindo-se com um edredom de algodão de tom branco mapeado com flores lilás feito sob medida para seu tamanho. A pouca cor que tinha lhe faltava... — Descanse — aconselhou Alice — Eu tomo conta deles, pode deixar... Alice Braga de Gomes Barreto era a única amiga verdadeira dela em Lusse. As duas tinham feito a mesma faculdade de Administração e pelo que se sabia gostava muito de crianças. Quando podia visitava uma entidade carente há sete quadras do apartamento onde morava ajudando na doação de recursos. O local ajudava crianças abandonadas pelos pais que não tinham para onde ir. Lembrava-se que a cada festa que eles faziam todos homenageavam de alguma forma as doações com alguma lembrança. Não haveria lembrança maior há não ser fazer o bem. Era isso que tentava passar para as crianças. Começara a tomar aquela experiência caso um dia pudesse ser mãe também. Pousava seus olhares naqueles seres humanos frágeis que a correspondiam convictos de que estavam passando bem e que nada iria lhes acontecer. Tão fofos, pensou. Estivera louca para vê-los crescer, apertar suas rosadas bochechas. Os segundos tornaram-se dias, os dias viraram semanas. As semanas pouco a pouco deram seguimento há outros anos. Os acontecimentos misteriosos daquela noite agora estavam no passado. Mirro e Lirro iriam completar 10 anos em uma semana, porém não estariam mais em Lusse para comemorar com a madrinha dos dois, pois Jennifer – a mãe dos gêmeos – tinha recebido horas antes um presente. Passagens de avião para ela e os filhos. Ao se recuperar do susto conseguiu esboçar uma reação.

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— Alice, preciso saber o quanto você gastou aqui! — exclamou Jennifer abismada — Não me parece correto. — Não importa o quanto eu gastei — assegurou Alice risonha — Esse é meu presente e não vou aceitar que este seja devolvido. Sua chance de mudar de vida está em Sanquo, não mais aqui. Jennifer ainda segurava as passagens. Curiosa olhou para quando o voo partiria. Alice fizera realmente um bom serviço. O seu voo estava marcado para o final de semana. — É melhor você começar a arrumar as malas o quanto antes — disse Alice circulando pela sala de estar — Sua casa pode render um bom dinheiro se você a vender. Use-a para a poupança dos meninos. — Será que Mirro e Lirro não vão sentir falta de Lusse? — perguntou Jennifer angustiada. — Eles são jovens Jennifer, sabem se adaptar muito bem — respondera Alice. — Vai ser melhor para eles, tenho certeza. Jennifer olhou-a de relance e então disse: — Pois bem, iremos nos preparar então!

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CAPÍTULO DOIS

RETORNO À SANQUO

MOTIVADA A ESQUECER SOBRE QUALQUER ALUSÃO que lhe remetia sobre o passado, Jennifer aproveitou a chance concedida pela amiga para mudar de cidade. Seria um momento perfeito para recomeçar do zero, até mesmo para as crianças que sofreram sabendo que cresceram sem ter a presença de um pai. Agora precisava contar com a família num momento como esses, mas tinha certeza de que eles iriam ajudá-la, não tinha dúvida disso. Seus pais nunca a negaram proteção e conforto. Ainda mais quando descobrissem que se tratasse dos netos. Alice Braga era quem estava dirigindo pela estrada. Fez questão de tirar o tempo livre do serviço para levá-los com antecedência até ao aeroporto, impedindo que Jennifer gastasse o pouco dinheiro juntado com a venda do imóvel. Seu conhecimento da cidade a permitiu que fizesse duas paradas, uma quando Jennifer precisou comprar uma garrafa d’água e outra quando Lirro precisava realmente ir ao banheiro. Na segunda parada ela ainda aproveitou para reabastecer o carro, o combustível estivera rareando depois de passarem da praça. Quando retornou ao volante decidiu que seria melhor atalhar entre avenidas livres ou entre ruas de difícil acesso, todas claro seguras de qualquer perigo. Ficaria preocupada caso perdessem o horário que tinha agendado para eles com tanta disposição, não seria esse o dia para mais sofrimento, estavam quase lá. Tinham percorrido vários quilômetros em menos de quarenta e cinco minutos, pouco importava se quebrassem o recorde. Aquele veloz Himã vermelho, ano 2040 estacionou numa vaga livre do aeroporto não fazendo nenhum barulho esquisito de motor com defeito. O que restavam fazer era retirar as bagagens do porta-malas, colocá-las em um carrinho e levá-las consigo aonde quer que fossem. Depois quando ouvissem um sinal esperariam em uma sala circular com ar-condicionado e revistas de viagem atuais até que fossem explicados os procedimentos de voo e, ao término desta poderiam então se dirigir ao avião. Eles ainda ficaram reunidos um tempo conversando, sentados e aproveitando o sorvete que cada um havia escolhido para si numa sorveteria alegre. Decidiram que só entrariam na sala quando faltassem cinco minutos. Aquela despedida amigável iria sempre permanecer nas risadas, nos afetos, no sentimento de união. O tempo se consumia devagar pelas tantas pessoas que passavam por eles, por tantas palavras que não foram ditas ali. Entretanto, a hora havia finalmente chegado. — Cuidem-se — disse Alice emocionada caminhando juntamente com eles até a entrada de uma porta que dava acesso a uma sala. — E não se esqueçam que eu vou querer sempre saber das novidades. — Manterei você informada — disse Jennifer sincera e tranquila como geralmente era — Eu prometo. Mirro e Lirro não conseguiram partir sem antes dar um abraço apertado na madrinha. Ela repetiu o gesto carinhoso nos dois. — Vocês cresceram bastante — disse Alice num tom de despedida — Continuem estudiosos como sempre foram.

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A partir daquele portal eram somente uma família incomum. Uma mãe e seus dois filhos, gêmeos univitelinos, esperando pela hora da liberação do portão de embarque. Sentados ali acompanhados de muitas outras pessoas das quais não tinham conhecimento. O único sentimento prevalecente era a ansiedade de um futuro nada distante. Eles haviam perdido Mirro ao que parecia ser uma fuga e somente ela acreditava que um dia ele poderia retornar. Não fazia ideia de como levaria a vida de agora em diante, mas por dentro era forte. Encontraria uma forma de seguir em frente afinal seus filhos ainda precisavam dela. Seus pensamentos a trouxeram de volta a realidade. Para aquela sala fortemente iluminada, onde muitos estavam agitados remexendo bolsas de colo procurando suas passagens. Ela imediatamente percebera que o bipe devia ter soado em algum lugar, pois os passageiros levantaram-se apressados em direção ao portão de embarque. Devia ser realmente isso, pois a voz musical de uma mulher vindo de uma caixa de som na parede confirmou: — Liberação do portão de embarque. Voo 2130. Destino: Sanquo. Saída as 11:00 horas. Não esperando outra confirmação cuidou de conduzir os filhos até o final de um corredor, onde no final havia uma linha que bloqueava o caminho e só passavam aqueles que entregavam suas passagens. Um auxiliar da companhia aérea de pele morena as recebia num coletor projetado ao lado dele. — É a primeira viagem de vocês? — perguntava o moço sorridente ao passarem. — Não, mas é a primeira dos meus filhos — respondia Jennifer retribuindo o sorriso não vendo a hora de encontrar sua poltrona. Por questões de segurança talvez, as poltronas do avião estavam numeradas de acordo com um documento que haviam recebido logo quando entraram no saguão. Não tardariam em encontrar suas poltronas, que para alívio dos garotos ficava próximo ao banheiro. — Eu vou sentir falta de Lusse — comentou Mirro, filho de Jennifer, mas que era mais parecido com o pai, inclusive nos cabelos loiros. — Eu também — acompanhou Lirro, seu irmão gêmeo que era apenas cinco minutos mais novo. — Vou sentir falta de Augusto e dos outros. Das piadas que fazíamos. Uma aeromoça trajando o azul-escuro da companhia aérea vinha caminhando suavemente até um microfone adaptável numa das instalações contidas no avião. Ela esperou o restante dos demais passageiros se acomodarem e quando a porta por trás dela se fechou, foi que pode finalmente ligá-lo e dar o seu aviso. — Bem-vindos clientes da Mil Linhas Aéreas. Supondo que esteja tudo bem, vou dar início a uma pequena apresentação de como funcionará nossa programação até a conclusão de nosso destino. Qualquer que seja a sua dúvida, favor tocar um sinal no lado direito do braço de sua poltrona que logo o atenderemos... Mirro localizou um botão vermelho com o logo da Mil Linhas Aéreas para o caso de dúvidas no local indicado pela aeromoça. — Ele também poderá ser acessado caso algum de vocês desejem saciar sua fome, sede ou se necessitarem ir ao banheiro. Sendo assim, vocês não precisaram se levantar. Poderão se quiser ouvir uma boa música nas quinze estações de rádio disponíveis pelo touch screen ou ainda assistir a programação de filmes sugeridos por nossos clientes ou ainda acessar a internet para aliviar os nervos. Falarei mais quando estivermos próximos de nossa conexão em Lagos.

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Quando a aeromoça chamada Valéria terminou, Lirro tratou logo de experimentar todas as estações de rádio disponíveis do avião. Enquanto isso Valéria estava passando na direção deles até um homem de aspecto engraçado que havia apertado o sinal. Ele se negava a entender como a internet funcionava naquelas alturas. — Bem é bastante simples. Estamos próximos da estação telefônica global, portanto captamos o sinal primeiramente. — explicou ela. — Esse futuro é capaz de tudo um pouco... A viagem seguia tranquila e nenhum risco de queda iminente havia. Jennifer estava folheando uma revista de bordo, Mirro trocava de canal até encontrar uma divertida programação na sessão dos filmes de ação e fantasia e Lirro cansado de ouvir algumas de seus cantores prediletos, desligou o aparelho que pairava ali próximo a ele e decidira tirar um reconfortante cochilo. O irmão o havia acordado horas depois e pelo que pode perceber, já que estava sentado na poltrona próxima a janela do avião era de estarem em outra cidade. Reparou que ali devia ser outra faixa de terra que cobria um espaço entrecortado por várias lagoas e riachos. Deveria ser a conexão deles em Lagos. Os olhares das pessoas haviam ido de encontro com a aeromoça, eles supostamente esqueceram a tal conexão. O avião como um brinquedo de alta tecnologia ia pousando com precisão num aeroporto principal. — É uma parada rápida para encher o combustível. Vocês devem voltar em uma hora e meia. Não precisarão se preocupar com o resto, pois avisaremos vocês... — ia dizendo Valéria alegre para os esquecidos. Os passageiros tinham tomado a saída sul e a maioria aproveitou aquele tempo para explorar a beleza do lugar. Lagos deveria ser realmente no passado um lugar bem seco, onde pouco se via chover. Agora tinha aqueles declives bem desenhados sobre o solo, sem contar das extensões azuis ricas de vida: lagos, lagoas, pequenas cachoeiras. O aeroporto tinha uma fonte de três momentos na entrada. Era uma vista bonita, parecida com o fundo de uma grande piscina retalhada de muitos azuis. A família tinha decidido permanecer próximo a uma livraria. — Como é a vovó, mãe? Ela é legal? — perguntaram os gêmeos juntos — Oh sim. Vai gostar de receber vocês dois como netos. Se não estou enganada será até capaz de preparar um delicioso super-morangueiro. — O que é isso? — perguntou Lirro curioso. — Um prato de morangos que ela mesma inventou. Nunca quis me contar a receita. — Mmm, parece ser do tipo divertida de avó — foi o que concluiu Lirro. Diferentemente de Lusse, Sanquo ficava mais ao oeste, próxima a uma cadeia de montanhas lineares, todas abarrotadas de grandes complexos habitacionais em meio aos desníveis gerados pela natureza. Abaixo se viam aos olhares curiosos dos gêmeos, inúmeras florestas com suas tonalidades pertencentes para as variações do verde e um lugar completamente novo. Jennifer conhecia aquele lugar antes do casamento, mas agora este seria o lar de seus filhos longe daquela intrigante tragédia. Eles estavam intrigados a respeito do que poderia haver ali, se fariam novos amigos assim como os que tinham deixado em Lusse. O avião agora seguia por uma estrada curta, diminuindo bruscamente sua velocidade. Instante depois surgiu à aeromoça explicando sobre os procedimentos de aterrissagem, corrigindo o erro do passageiro da poltrona 22 ou quando apertou corretamente o cinto de Jennifer. O destino final foi à vaga de estacionamento número 2, onde se fez uma curva dinâmica e precisa.

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Os passageiros saíram do avião tomando rumo num imenso corredor que dava acesso a um saguão de bagageiros. Ali malas e mochilas de viagem, incluindo bolsas de colo e outros pertences esperavam serem reavidas por seus donos. Jennifer logo encontrou uma menor que levara na viagem e a sua mala no meio do frenesi de mãos dispostas a também localizarem a sua. A mala dos meninos veio logo em seguida com um solavanco. Juntos puderam chamar um táxi na saída. Jennifer mandara o homem rumar para a Rua Claros e Lírios, número 14, quadra 3, Sanquo Júnior. — É pra já — confirmou o homem erguendo as malas para botá-las no porta-malas e continuou. — Entrem, espero que curtam a viagem. A viagem não foi demorada. Logo eles haviam contornado uma estrada em formato de círculo por onde por cima passava um viaduto e descido uma ladeira suave no fim de um bairro bastante agradável de morar. O condutor havia freado no fim da Rua Claros e Lírios, onde tudo que era notável era uma grama verde crescente nos jardins bem cuidados do verão. Jennifer saiu do carro, foi de encontro a uma mulher que saíra de casa para aguar suas plantas no jardim. O homem continuou com seu serviço ajudando a levar as malas para a calçada. Eles já tinham pagado a quantia para ele na metade do caminho. — Mãe...! A mulher desnorteada parecia ter tomado conta de quem estava ali presente, portanto, virou-se. — Jennifer? — perguntou desacreditada a sua mãe. — E essas malas filha? — Vim para morar com você mãe — respondeu Jennifer com um enorme entusiasmo — Estou retornando para minha terra natal... Agora, claro com meus filhos. Se fosse outra mãe trataria logo de expulsa-la de casa, mas isso Júlia Gramanianno não fizera. Fez logo questão de mandá-los entrarem. Apesar disso estava feliz da vida, viveria na companhia de seus herdeiros até que chegasse à hora de sua partida. Que para a força existente naquela pessoa, estava bem longe de acontecer. — Eles não parecem você nem um pouco — ressaltou Júlia fechando a porta depois que passaram — Mas eles ainda são meus netos. — Pensava que a senhora fosse mais velha vovó! — comentou Lirro — Não sou velha, meu neto. Apenas... Digamos que não posso revelar minha idade. É deselegante — disse Júlia esboçando um fraco sorriso. Mirro lembrou-se de uma coisa que havia chamado a sua atenção logo na entrada. Um quadro. Bem se era possível conhecer sua avó, então onde deveria estar o seu... — Vovô! — exclamou Mirro que correu para abraçar um senhor forte de cabelo curto e grisalho. O homem retribuiu o abraço, mas era muita informação. Eles tinham que se entender dali em diante se quisessem continuar a ser o que eram: uma família normal. — Jennifer, eles são meus netos? — perguntou ele incrédulo. — Sim pai — confirmou sua filha indicando para os garotos — Estes são Mirro e Lirro. O pai de Jennifer parecia ter ouvido algo semelhante ao Brasil ganhar a Copa do Mundo. Algo que perfeitamente entendia, era o que acreditavam ser felicidade. — Eles estão em que ano escolar? — Eles irão para o quinto ano agora. — E você sabe onde vai matriculá-los? Conhece alguma escola de referência? — Não. Estive anos fora.

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— Então pode deixar que eu cuido disso filha. Eu quero o bem para meus netos. Vou matriculá-los na Escola Estrela Branca, dizem ser uma boa escola para alunos inteligentes. Jennifer apenas concordou, saberia que seu pai faria o que era sensato para os netos. Escolheria sem dúvida o que era melhor para eles. Ela por outro lado estivera correndo de um lado para o outro da cidade em busca de emprego. Enquanto isso os meninos ficaram cientes de um evento esportivo que acontecia num campinho de futebol de grama baixa. Decidiram em conjunto para irem ver o evento. Afinal que mal poderia haver em uma nova cidade? — Sanquo não parece tão ruim, veja! Tem até campo de futebol! — disse um contagiante Lirro ao contornarem um elevado patamar que dava acesso as arquibancadas. — É irado! Era realmente um estádio a céu aberto, um dos melhores talvez. Pelo que notaram poderia servir para todos os eventos: uma corrida de atletismo ou até mesmo virar uma grande quadra de vôlei de praia. Sem contar com a arquibancada protegidos por uns arcos sutis e bem arquitetados para suportarem a força da chuva ou do vento. No campo uma turma bem animada vinha adentrando trazendo a força de um dinossauro predador. Outros além daquela vieram e formaram ali uma espécie de agrupamento com cada equipe em suas marcas definidas pela tinta no gramado. Os gêmeos ficaram eletrizados, eles nunca tinham visto nada parecido com aquilo. — Onde será que fica o posto de inscrições? — Mirro... Você não está falando sério, né? Você não joga bem nem como zagueiro! — insinuou Lirro avaliando o irmão. — É porque eu nunca tentei de fato — continuou Mirro erguendo-se. — É aí que você se engana... Eu vi você tentar e acabou dando vexame. — salientou Lirro puxando o irmão de volta para seu lugar na arquibancada. Uma mulher de camisa leve e calça esportiva adentrava o campo e trazia uma caixa pequena onde de dentro haviam números. Logo descobriram que estava se tratando de um sorteio. Os times que já haviam retirado esperavam ansiosamente pelo seu adversário num palanque montado logo ao fundo. Os meninos estavam chateados e cansados, estavam ansiosos para ver uma partida de verdade e a primeira só iria acontecer na primeira semana de Abril. Levantaram-se ao mesmo tempo, totalmente desapontados e sem olhar para trás, sem terem presenciado tantos outros times juvenis terem seu momento. — Que bela tarde nos tivemos — disse Lirro enjoado — Não fizemos muita coisa. — Talvez o amanhã seja diferente. É só tentarmos o que ninguém tentou ainda. — comentou Mirro feliz. — Como assim? — Somos jovens e ainda teremos muito para aproveitar. Além disso, sexta-feira é nosso aniversário. Estaremos um passo a mais da puberdade. — Não quero que você me lembre disso. Júlia Gramanianno, a avó dos garotos tinha uma excelente disposição para fazer pratos maravilhosos e quase nunca reclamava das infinitas horas que passava sozinha na cozinha. Quando eles entraram pela porta que dava acesso a sala juraram que tinham visto um rosto sorridente na direção deles. Não se enganaram, momentos depois a avó vinha batendo com uma das mãos uma massa começando a clarear numa tigela grande de plástico.

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— Eles chegaram Jennifer! — exclamou Júlia sorridente. Percebendo que seus filhos acabaram de retornar, ela se adiantou até eles. — Ah vocês estão aí. Por onde andaram? — Vovô garantiu que seria uma boa ideia se visitássemos o estádio — respondeu Mirro solene. — Obviamente devia ter se enganado — admitiu Lirro pouco convicto do contrário — Não foi uma mega diversão que esperávamos. Amargurada pela péssima notícia de um primeiro dia sem muitas novidades, ela queria ter a oportunidade de reconfortá-los. Devolver aos dois um motivo para continuarem felizes depois daquilo que se lembravam muitíssimo bem e que tinha a ver com o pai dos dois. Júlia escutava tudo calmamente sem deixar de continuar batendo o bolo. — No começo nada será fácil. Entendam isso... Mas fiquem tranquilos. Sei de algo que pode deixá-los ansiosos e seguros. Com certeza tirará o peso do que aconteceu no passado. — disse Jennifer pacientemente. — O que é? Conta! — exclamou Lirro inquieto. — Lembra que o avô de vocês iria conseguir uma vaga para os dois na Escola Estrela Branca? — perguntou Jennifer pausadamente. — Aham. Ele disse que era a melhor escola para alunos inteligentes — disse Mirro que estava do lado do irmão a uns cinquenta centímetros de distância dele. Jennifer sentou-se de joelhos para ficar na altura de ambos. Olhou-os com tranquilidade, eles iam se dar bem. Conseguiram-se ser excelentes alunos em Lusse, então Sanquo era equivalente ao tipo de lugar ideal para provar isso. Ela nunca se sentiu tão honrada em vê-los crescer tanto. Em breve eles fariam onze anos, uma ocasião que não poderia jamais passar em branco. — Ele me avisou agora a pouco que conseguiu queridos. Pelo que soube não vai demorar muito. O ano letivo começa nesta próxima segunda-feira. Achei que vocês iriam ficar contentes. Vai ser melhor poder ir para algum lugar que lá no fundo vocês conhecem tão bem quanto aqui, não? — supôs Jennifer com a entonação suave e gentil de sempre. — Sim mãe. Vai ser ótimo! — concordou Lirro. — Então vamos ter só mais este final de semana — anunciou Mirro diante do aviso. — É isso sim é trágico — disse Lirro abertamente para todos ouvirem. Júlia parou um instante de bater o bolo, parecia entender o que seus netos sentiam. Lá no fundo sabia que havia uma parte neles que lembravam sua filha sem dúvida. Só agora podia ver aqueles detalhes antes não percebidos com clareza. Eram sem dúvida seus netos e não deixou que seu cérebro a fizesse esquecer disso. — Bem, eu sei que vocês esperavam um presente digno para rapazes que estão entrando em outra fase da vida — disse Júlia vívida — Mas que a verdade seja dita, eu não sou rica. Minha aposentadoria me sustenta tão bem, mas não é muito. Então fiquei pensando em algo que pudesse diverti-los, mas também contribuísse para com a diversão dos convidados, foi com esse pensamento que decidi preparar o bolo. É um presente, a minha altura, feito com amor. — Finalmente vou conhecer o Super Morangueiro. — disse Mirro dando um beijo na bochecha da avó — Não tem de quê vó! — Saborear um bolo preparado por uma excelente cozinheira vai ser excelente, ’brigado vó! — elogiou Lirro.

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E foi assim que eles formaram uma ligação fraternal muito forte, capaz de muitas coisas para quem vira o impossível de perto. Estavam completos por dentro, mas alguma peça parecia não estar pronta para voltar a funcionar. Jennifer ignorava o fato do que a motivou retornar as suas origens. Para sua própria segurança não se atreveu a tocar nos objetos do marido, guardou-as num depósito para móveis velhos e quebrados no interior da casa. Ali estavam presentes também uma caderneta e um álbum de fotografias que se recordava muitíssimo bem. Como poderia esquecer sua formatura? Mas, para sua infelicidade ele estava ali também. Oculto, porém visível em uma ou duas fotos, segurando uma taça de vinho sem sequer prová-la. Era muito ruim apegar-se tanto em lembranças que não podem ser esquecidas ou apagadas. Segurou-se forte para não chorar e não o fez desta vez, devolvendo o álbum para seu esconderijo decidiu que seria bom ver como estavam seus filhos em um novo espaço. Ao abrir a porta pensou ter ouvido alguma coisa se espatifar, mas devem ter sido os pequenos galhos caindo com a força do vento e entrando em contato físico com o solo frio e duro. Notando que tudo estava bem guardou uma irritada Jennifer que quase nunca aparecia. — Parece que os dois gostaram do quarto — a mãe dos gêmeos admitiu. — Tenho uma cama só para mim e um banheiro particular a nossa espera — deixou claro Lirro. — Ela é bem macia. Um travesseiro só já estava bom, mas quando se tem o triplo de um é melhor ainda. Jennifer tinha reparado a quietude de Mirro, seu filho mais velho. Ele já estava deitado e parecia que tomara banho. Os cabelos loiros claros estavam penteados de qualquer jeito. Ainda não estava dormindo. — Quando ele vai voltar? — perguntou Mirro sentindo que sua mãe estava do seu lado, sentada em uma das duas camas — O papai? Pensou cautelosamente no sentimento mais verdadeiro. Aquela que provavelmente não afetaria a sua confiança para os olhares do filho. — Nunca mais querido. Ele quis assim. Desapareceu, deixando para trás todos nós — respondeu Jennifer com esforço para a voz sair. — Mas ele sabia que nós éramos... — Sim, ele sabia. Que vocês eram filhos dele. Minha tristeza maior é saber que exista um motivo mais importante do que os dois. Ela evitou a claridade do aposento por um momento e depois enxugou com a manga da blusa lágrimas pequenas que escorriam de seu rosto sem controle de onde encontrar um novo abrigo. Fez isso com intensa rapidez, nada que provocasse desconforto para seus filhos. Ela se manteria forte para eles aprenderem a temer também a dor. A dor era passageira sua mente pensante concluía. Conceda-lhes um bom descanso e uma ótima noite, você também precisa, era o que pensava a seguir. — Mirro, seu pai era um homem excelente. Tinha as qualidades que podem definir qualquer pessoa de cultura. Orgulho-me tanto, mas tanto mesmo, que eu não poderia ser injusta de não lhe conceder uma digna homenagem. Ainda mais para o próprio filho que ele nunca chegou a conhecer. Ela pausou um segundo e continuou. — Agora descansem. Não os trouxe até aqui para serem infelizes. Quero os dois animados. Vamos fazer as compras para casa na feira amanhã, então quero os dois acordados bem cedo. Boa noite.

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— Boa noite mamãe! — soaram os dois em resposta. O dia seguinte passou como um vendaval para Lirro, porém para Mirro a tarde trouxe bastantes novidades. Eles conheceram Jorge Jonathan, um feirante autônomo que tornou a sua herança de uma velha tia falecida em uma autêntica feira com tudo o que há disponível no mercado como frutas, legumes de todo tipo e qualidade, incríveis receitas e temperos. Sua mais formidável habilidade era a pesca, isso o ajudava a gerir com mais propriedade e conhecimento a seção de frios. Adorava tirar vantagem das mais recentes pescas para os clientes antigos, embora fosse uma piada interna sem nenhuma maldade. Eles também visitaram o Museu de Sanquo, um lugar histórico que conta com um acervo nunca antes visto em toda a História do Brasil. Sem contar que exploraram o Shopping de Sanquo Jr. por inteiro quase duas vezes, pois quando saíram estava escurecendo e eles ainda estavam com as compras que haviam feito no carro. Jennifer carregava a última sacola para dentro de casa, quando eles se debandaram para o segundo andar a fim de dormirem. Tinham dividido um hambúrguer tamanho família, a refeição mais duradoura que um dia já provaram. Amanhã era o grande dia – o aniversário dos dois – dia 22 de Março. Acordar sabendo que iria completar uma idade nova deixou Lirro ainda mais ansioso e ao mesmo tempo com dúvidas. As férias estavam no fim. Era somente mais aquele final de semana e só. Nem mais uma visita no Museu de Sanquo, ou nem para contemplar o videogame maneiro do Shopping, ou sequer se entretendo ao ouvir as lições básicas de pesca sugeridas por Jorge Jonathan. O que os contentava era saber que eles ainda tinham uma família: avô e avó. O avô João Thiago Gramanianno sempre quando podia relembrava-se do passado e adorava ver uma ótima partida de futebol pela tevê. Quando moço fora um humilde querendo vencer e ganhar seu dinheiro da forma honesta. Especializou-se em conserto das telas planas e das famosas 3D’s que apareciam em inúmera quantidade no mercado, juntou um bom dinheiro e pode comprar uma casa acessível na época. Passadas décadas, sua casa deve teve uma valorização do preço de compra quadruplicado. Muitos são os imigrantes e ofertas para a compra do imóvel, mas ele se recusa a vendê-lo. Já faz parte da herança da família. Deverá ficar tudo com sua filha Jennifer Paula Gramanianno. A avó foi que tornou possível tudo aquilo. Versátil na boa gastronomia e na mais deliciosa doceria, criou o prato que na sua realidade é um bolo chamado Super Morangueiro. Júlia Matilde Gramanianno herdara o nome Gramanianno numa cerimônia católica simples, mas segundo contava parecia que a festa em si devia ser mesmo espetacular. Ela que sempre aconselhou Jennifer nos papos carinhosos de uma mãe protetora, não saberia que a mesma filha pudesse retornar para seu colo maternal eterno, nunca frágil. Júlia vestia-se num rendado formal em tons lilás pastel parecendo bastante animada. Certificando-se de que tudo estava em ordem pôs sua toalha de mesa nova que havia comprado antes de Jennifer e seus netos lhe fazerem uma bela surpresa. Ela trouxera os salgadinhos que tinha encomendado de uma amiga e os distribuíra ordenadamente por toda a extensão da mesa. Alguém já deveria ter colocado os copos, pois eles estavam ali. Os pratos como de costume não desapontavam em seguir seus companheiros. Voltando para a cozinha retirou do congelador o bolo. Faltava o toque final, eles ficariam surpresos. Quando a maioria dos convidados chegou, que por sinal, nem eram tantos foi realmente dado início a festa. João conversava com um amigo que vira Jennifer crescer

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saudável. Júlia servia sua amiga cozinheira Narissa, que em hipótese também comparecera ao aniversário. Mirro e Lirro estavam parados entre a mesa em que estavam sendo oferecidos os comes e bebes e o musicalizador parecendo meio ilhados, sem muitas opções do que se fazer. A festa em si até que estava bem original; nada parecia lembrar nenhuma outra festa antes vista. Algo como ter DJs tocando para os convidados, ou show ao vivo. Os convidados também não estavam ali por ganância, queriam estar ali comemorando aquela passagem para mais uma etapa de todo o coração, pois realmente gostavam daquela família. Isso contava muito para o moral de cada um. Depois de não terem aproveitado muita coisa, ou de não existir alguma pessoa da idade deles para conversar, acharam melhor seguir em frente e assopraram o bolo juntos tendo antes disso a euforia de uma cantoria dos “Parabéns pra você” bem sucedida. Assim que terminaram Júlia carinhosamente desejou aos netos: — Parabéns. Tudo de bom para vocês Logo em seguida veio a mãe dos gêmeos. — Igualmente, mas com um beijo a mais — acompanhou-a Jennifer dando para cada um dos gêmeos um beijo de afeto gracioso, algo que lembrava e muito as mães. Assim que terminou acompanhou-a seu pai, avô dos dois. — É das crianças que se transformam os adultos — refletiu João revirando os bolsos, retirando dali um objeto curioso — Um amuleto da sorte, para momentos de necessidade. Foi meu maior tesouro em toda a minha juventude. Espero que compartilhem isto da melhor maneira. Eles admiraram o amuleto frio como rocha de cor azul-esverdeado. Olhando de perto parecia lembrar algo entre o laranja claro ou o vermelho-rubi. Deveria mudar de cor de acordo com os pensamentos de cada um. Assim guardaram numa sacola pequena de renda marrom. Fizeram um acordo mental de jamais levar aquela velharia para a escola. Os adultos retomaram seus grupos de interesse e as pessoas com quem estavam conversando, deixando Mirro e Lirro novamente isolados, embora Lirro estivesse gostando do pop que tocava em uma das estações de rádio. Um aniversariante era capaz de sentir mais fome do que qualquer outro convidado que eles não aguentaram em encherem o prato na mesa dos salgadinhos. Apoderaram-se de uma mesa perto do musicalizador, para a sorte deles o som não estava tão alto. Os tímpanos eram resistentes naquele nível de música. Eles mal se contentaram em suas fortalezas interiores. — Foi bondade fazer uma festa de aniversário para nós, não acha? — perguntou Lirro prestes a provar uma bola de queijo. — Sim, foi. Infelizmente não conhecemos nossos convidados. — avaliou Mirro com prudência. Jennifer localizou seus filhos. Pelo que eles notaram deviam estar tirando as fotos agora. Para o desprazer dos dois não poderiam recusar, mas triste seria vê-los; eles não eram nem um pouco fotogênicos. Isso não indicava que eram feios, mas somente não conseguiam evitar as lentes furiosas de uma máquina fotográfica e seus excessivos flashes quando tentavam. — Decidiram comer, logo agora? — perguntava Jennifer caminhando ágil onde se localizavam os dois — Mas ainda não acabou... Não agora que vamos começar a sessão de fotos. — Essa não! — falaram baixinho.

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Teve fotos com zooms, bem detalhadas e com vários convidados, mas as que Lirro e Mirro acharam mais importantes foram ao lado da sua família verdadeira. Sorrindo ficaram gravados em quase vinte e cinco das setenta fotos tiradas. Logo depois da sessão a sobremesa estava servida, mas poucos ficaram para sua degustação. Alguns tinham o dia de serviço amanhã e não podiam perder o horário. Mirro e Lirro retornaram a sua mesa, recebendo outra vez um novo parabéns vindo de um amigo antigo de Jennifer, que por azar dos dois não se lembrou de trazer o filho. O aniversário terminara às onze horas em ponto. Júlia e Narissa ainda discutiam sobre um livro de culinária que ambas tinham comprado, mas ela aproveitava a oportunidade de comparecer e amistosamente se despediu. Júlia era bem compulsiva com relação à limpeza. Ordenou que cada um terminasse uma missão até o fim do dia. Mirro e Lirro teriam que realocar o lixo e recolher os plásticos num saco maior de coleta seletiva. Ao concluírem sua tarefa dirigiram-se ao segundo andar onde puderam descansar e imaginar como seriam recebidos em uma nova escola.

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CAPÍTULO TRÊS

ESCOLA ESTRELA BRANCA

A AGITAÇÃO DO COMEÇO DO ANO LETIVO ERA PERCEPTÍVEL há três quarteirões da entrada da escola. Aquele corre-corre frenético de alunos esquecendo-se até de olhar para os lados quando iam atravessar a faixa de pedestres. Era a empolgação do que seria estudado, quem seriam as novas amizades para aquele ano, mas o que muitos estavam interessados em saber era quem seriam os professores que ministrariam as aulas. Delas em especial todos estavam evitando se habituar, embora futuramente desejassem conversar a respeito das suas matérias tidas como favoritas. Mirro e Lirro logo descobriram que era uma escola bem localizada. De esquina com duplo pavimento para estacionamento, algo que deixaria qualquer pai com uma inveja de matricular seu filho ali. Uma sorte e tanto, Jennifer conseguir uma vaga bem a tempo para seus filhos na melhor escola pública do local. — Daqui em diante deverão seguir apenas vocês meninos — ressaltou Jennifer ao estacionar numa vaga livre. — Ouçam, hoje será o meu dia atarefado visitando empresas variadas em busca de um emprego que admita as minhas qualificações, por isso não poderei vir buscá-los como pensei que faria. Quero que voltem são e salvos para casa por conta própria. Vocês são capazes, eu sei disso. Ela saiu do estacionamento com a mesma capacidade de manobrar o volante agilmente com ambas as mãos. Dando um adeus que pareceu eterno por poucos segundos fez uma curva e então desapareceu. Eles estavam em um universo que já conheciam bem. Tudo o que tinham a fazer como o passo número um era cruzar o portão. Foram recebidos por um senhor de pouca expressão que era o porteiro. Uma tarjeta de metal que usava na altura das vestes o identificava como Delavux. Devia ter idade aproximada de quarenta anos e isso não reduzia em proporções matemáticas a impressão que poderia deixá-los de fora caso se atrasassem por tempo suficiente, mas mesmo assim foi imparcial quando se dirigiu aos gêmeos: — Bom-dia. Um bom início do ano letivo aos novatos. — Obrigado — disseram ao passar. Ao cruzarem pela entrada deram acesso a uma quadra que fazia parte do prédio maior. Fora totalmente reformada para o início das atividades. Em ambos os lados havia uma arquibancada planejada com escadas de acesso para o andar superior em cada término de uma seção. Era uma vista panorâmica incrível para quem nunca tinha entrado ali, sendo que o local todo lembrava um palácio antigo; belo por seus imensos corredores, imponente por seus portões trabalhados em inúmeros detalhes, cada canto que parecia sem vida tinha uma planta de boa aparência para dar conta do aspecto ornamentação. Toda a estrutura física transmitia-lhes a ideia de segurança. O espaço era em comparação as demais escolas, bastante arejado com suas firmes janelas gradeadas em lugares estratégicos. Logo perceberiam que aquela era apenas uma parte da escola, um pátio interno localizava-se no extremo da entrada na área da saída norte. Outro prédio seguia-se ao lado do maior, com quatro andares. Uma cantina erguia-se diante de uma praça circular entre os dois prédios na área externa, marcando a divisa entre os lados. Um menor

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ficava aos fundos, fazia parte do serviço técnico e de serviços gerais. Era uma área da qual os alunos não tinham acesso. Ao contrário do que poderia se imaginar, a quadra não estava lotada. Muitos pareciam já ter localizado suas respectivas salas de aula. Um quadro com avisos fora estabelecido no centro, muitos olhares curiosos davam atenção ao que estava contido ali. Pensaram bem que também poderiam se certificar do que estava acontecendo. Aproximaram-se devagar, era uma lista com muitas turmas e muitos nomes nela. Quase não havia mais espaço para botar uma folha contendo em si outra lista com nomes. Existiam apenas quatro turmas do quinto ano e a numeração de cada uma fora alterada sem aviso prévio, uma mensagem erguia-se para que procurassem Floriana na secretaria da escola. Na listagem que saíra o nome dos gêmeos não estava contido. — Isso é estranho. Você não acha? — disse Lirro tomando conta de que eles não pareciam ser novatos daquele lugar coisa nenhuma. — Estamos matriculados, isso é o que sabemos — ponderou Mirro recuperando-se do falso baque — Temos que correr, as aulas começam às sete e meia em ponto. Essa senhora... Floriana deve estar na secretaria. Vamos ter que encontrá-la para sabermos o que houve de errado. A secretaria resplandecia um leve aroma de tranquilidade e permanência no pouco espaço em que fora construída. Graciosos arquivos combinavam em harmonia com o carpete de onde também dividiam o espaço algumas estantes, todas elas com pastas etiquetadas sobre assunto e em ordem alfabética. Quando um aluno ou responsável deste precisasse resolver alguma pendência ou assunto dirigia-se num espaço contido dentro do maior, destinado apenas para aqueles fins burocráticos. O local era separado apenas por uma porta, mas mantinha a essência da sua antessala com a mesma categoria, porém essa contava com um simples acervo pessoal, aos fundos da ocupante da sala, alguns livros atuais de um assunto totalmente novo, revistas educativas e uma agenda. Um retrato das férias recentes estava disposto sobre a mesa. Os tons claros e vivos daquele lugar não faziam à ocupante ter algum motivo de deixar seu posto de trabalho. Ela continuava analisando um pedido urgente que parecia sem solução em sua mesa, quando de repente... — Foi mal se lhe atrapalhei — disse Lirro ao perceber que o barulho da porta fechando tirou toda a concentração da mulher. Ele aproximou-se dela acompanhado do irmão mais velho. Era muita sorte mesmo encontrá-la ali, não tendo que esperar alguma resolução de um assunto pendente em outro lugar. Floriana tratou de escutá-los com enorme atenção já que era difícil retomar o serviço. — É um pedido incomum que não se vê todo dia, mas... Qual o problema com vocês rapazes? — Floriana expressava-se sem esperar alguns segundos a mais para dar alguma emoção na entonação da voz. Eles ficaram perdidos. Poucos momentos haviam passado conhecendo a cidade de Sanquo, porém tão pouco tempo não adiantaria saberem tudo sobre as localizações dos endereços. Mal conseguiam se guiar em Lusse. Só tinham a impressão de não terem ainda adquirido a identidade no lugar onde se encontravam. Era uma nova vida que iriam ter, mas onde ela estava? Muito longe? Talvez perto? Não era justo ficarem perdidos no único local que conheciam de fato. — Nossos nomes — respondeu Lirro — Não constam na lista.

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— Não constam? — repetiu Floriana pelo que parecia acessar a um sistema escolar pelo computador — Pois bem, vou checar pelo sistema. Apenas eu e o diretor temos acesso. Ela havia parado de digitar por um instante. — Nomes? — Mirro Nicholas Júnior Gramanianno e o do meu irmão é Lirro Nicholas Dragoni Gramanianno — respondeu Mirro interessado ao ver o que Floriana digitava — Sabe nos dizer por que nossos nomes não constam naquela lista? Nosso avô foi quem nos matriculou anteontem. Nossa mãe até imprimiu nossa requisição de matrícula pelo site da escola. Floriana digitava apressada. Era impossível, pensava. Havia sido a responsável pela liberação das matrículas antes das listagens oficiais serem publicada nos murais da escola. Ela mirou a tela desconfiada como se outra pessoa pudesse ter acesso àqueles arquivos salvos no disco rígido, portanto seria prudente protegê-los enquanto houvesse tempo. E assim o fez. Somente ela agora poderia ser conhecedora daquelas informações e quando possível liberá-las para alguém confiável. Suas únicas indagações eram quem havia causado aquele sumiço de última hora dos nomes e em quem poderia confiar tal segredo quando enfim as férias recomeçassem. Sabia que tinha tudo em ordem e como sempre fazia uma cópia salva de todas as requisições. Ela havia mostrado a original para os garotos. Eles ficaram chocados com o que viram. — Vocês estão aqui, mas quando mudo para esta some... — Floriana trocava de arquivo enquanto falava. — Estranho isso só acontecer com o nome dos dois. — Bom, pelo menos a senhora tem uma prova conclusiva de que estamos matriculados aqui — disse Mirro feliz, não podiam retirar a vaga deles por uma piada mal feita e sem gosto — Temos que localizar nossa sala, não podemos ficar atrasados. Aquele era um assunto que devia ser tratado logo. Então ela os mandou esperarem lá fora, enquanto certificava-se de que estava tudo trancado e a salvo de qualquer perigo. Seja lá quem fosse a pessoa que mexera naqueles arquivos estava trabalhando naquele mesmo ambiente hostil da aprendizagem tomando forma e corpo na mente de tantos jovens destinados a sonhos, muitos não realizados pelos pais. Era evidente sua disposição quando os encontrou esperando por ela em concluir este assunto. Floriana indicou um caminho que levava a uma escada em espiral, acima deste havia outro corredor e por toda sua extensão viam-se portas, cada uma delas continha uma placa referente sobre a funcionalidade da sala. Ela fez sinal para que eles a acompanhassem e não deu outra, Mirro e Lirro estavam desesperados sem saber para onde iam. Várias pessoas circulavam ali, eram tantas que não tinham a mínima ideia de quem eram. — Aonde vamos? — quis saber Lirro esforçando-se para acompanhar a secretária que fazia passos apressados. — Só uma pessoa sabe o que fazer nesta situação... E sua sala é a diretoria, sorte estar bem próximo agora — disse Floriana quando cruzou a biblioteca, fazendo aquele barulho engraçado com o solado do sapato — Vai dar tudo certo! Difícil acreditar... Mas acho que aquilo ocorreu pelo nosso sistema estar sobrecarregado. Eles haviam chegado ao final do corredor e ficaram parados na frente da diretoria. Dali em diante iriam se encontrar com o diretor em pessoa, mas quando entraram ambos sentiram uma avalanche de estranhamento. Era como se cada decoração presente naquele espaço fosse planejada exclusivamente para ser ocupada por uma mulher. Infinitos prêmios de qualificação, troféus das últimas olimpíadas de matemática e um vaso recém comprado de flores davam destaque a uma prateleira de mogno que cobria

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um lado inteiro da parede. Não era um lugar muito confortável, era menor do que um quarto comum de casal. Uma placa identificava a possível diretora e ficava disposta na mesa do diretor. Talvez ela devesse ser mesmo importante já que sua foto estava moldurada por detrás da mesa. Isabel Bragança era o seu nome, mas seu chamado não veio. — Floriana Arabela, que surpresa. Entre! — exclamou o diretor parecendo nem um pouco surpreso diante de sua presença. O diretor era um homem a Eles prosseguiram até certo ponto e depois então tudo ficou envolto em silêncio... Que foi se quebrando aos poucos por Mirro. — Desculpe-me, mas era uma diretora, não era? — perguntou Mirro contemplando os arredores complexado pela diferença direcional da escola — Quando entramos lembro-me de ter reparado o nome... Isabel... Se eu não me engano. O diretor, porém não estava nem um pouco interessado naquele assunto. O nome de Isabel lhe dava calafrios e como uma mosca, afastou de seus pensamentos. Decidiu dar uma resposta direta e talvez acalmar os ânimos dos novatos. — Bem assim como os alunos, funcionários não duram para sempre, não é mesmo? — disse o diretor expressando-se demoradamente para o menino — Alguns levam o cargo tão a sério que se esquecem até de um período de descanso. Dirigiu a atenção agora para a secretária que tinha se posicionado em pé durante a breve conversa. Não o teria visitado se não significasse urgência. Ele foi complacente, permitindo a falar sobre o motivo de que a levou visitar sua sala. — Algo deu errado no nosso sistema hoje mais cedo. Os nomes desses garotos não apareceram corretamente como deveria. Eu tenho certeza de que não foi minha culpa... Amargurada e ainda em estado de choque por algo que nunca faria, Floriana decidiu puxar uma cadeira próxima e ali descansou suas pernas. Não poderia ser demitida. Amava onde trabalhava e os alunos gostavam tanto dela que tinham até feito um fã clube organizado nos intervalos. Era uma família diferente que nunca abandonaria. O diretor não permitira ela completar o resto. Que intenções ele teria? Será que ele a demitiria? — Acalme-se Floriana. Afinal isso não é coisa de outro mundo... — falou o diretor em suas intenções para acalmá-la. Floriana sentiu-se confortável. Seu estado de espírito melhorou com aquelas palavras, mas então ela se lembrou que ainda não tinha resolvido o problema dos meninos. — Como vamos fazer então? Os meninos precisam de uma classe — alertou Floriana. — A pressa é inimiga da perfeição, já dizia o ditado! Eles terão uma classe, sim... Vai levar alguns segundos para eu analisar isto com cuidado — ele apanhou seu comunicador portátil ao dizer isso. Parecia que ia demorar a manhã inteira para o diretor alocá-los em uma sala de aula ideal, até que ele chamou Floriana para ver um detalhe no computador dele e ficaram ali trocando ideias, um discordando do outro. Sem saberem o que ia acontecer, Lirro e Mirro se entreolharam e ficaram ali acompanhando toda aquela movimentação. Eles puderam notar que Isabel estava presente, mesmo quando ausente. Suas gratificações, seus prêmios como a melhor diretora do ano, até seus pertences pessoais estavam numa mesa de canto, pelo que parecia intocável desde a sua saída, e isso os fez admitir ser algo muito estranho.

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O diretor por fim tinha chegado a uma resposta e ia contar para os garotos, mas Lirro surgiu com uma nova pergunta. — E os pertences dela, no dia seguinte ela não voltou para buscar? — perguntou Lirro achando maluquice alguém viajar sem seu celular. — Vocês querem mesmo saber... Essa Isabel nunca gostou desta escola, insistiu neste cargo para entrar facilmente na carreira política. É do tipo de pessoa que intimida os adversários e se contenta com isso. — disse o diretor ainda segurando a resposta em suas mãos — Sorte dos dois virem estudar aqui sob meus olhares. É mais fácil se enturmar quando o diretor não é jogo duro, como Isabel, vocês verão... Tudo ficará mais tranquilo depois desse dia. O diretor por fim tinha chegado a sua conclusão que não seria nada agradável aos gêmeos. — Não queria fazer isso, mas acontece que vou ter de separar os dois — o diretor soltou aquela resposta enquanto carimbava uns papéis, mal olhando para eles. — Separar? — repetiu Lirro chocado com a notícia. — Exatamente, já deve ser bastante terrível tentar reconhecer quem é quem. — admitiu energicamente o diretor mesmo com uma expressão bastante cansada de vê-los ali. — Deviam estar alegres, é realmente difícil conseguir uma vaga de estudos aqui. Floriana havia ficado muda, não sabia como confortar os garotos num momento como aquele. Lembrou-se de sua infância difícil sem os pais, adotada por uma enfermeira de bom coração. Estudara na mesma escola, sim a Escola Estrela Branca tinha rendimento impressionante, as melhores notas de todo o Brasil. Ela acabou criando ao longo dos anos um laço com a escola, por assim dizer. Foi sua segunda vida. Entrementes, Lirro não deixou passar em branco. — Vivemos juntos todos esses anos — ele argumentou horrorizado. — Nós somos irmãos e ainda por cima gêmeos, ou seja, passamos por tudo juntos. — Aposto que conseguirão ser fortes, disso tenho certeza — disse o diretor erguendo a cabeça para analisá-los melhor diante da papelada que os separava — Nos estudos então, pelo visto, vocês devem ser craques... Tiram de letra. — É... Talvez. — disse Mirro decepcionado por aquela decisão idiota. Pena não ter os comprovantes em sua mão, porque se tivesse iria induzi-lo a refazer essa escolha, optando por colocá-los em uma mesma classe, mas não teve coragem para discutir nada quando o diretor alertou para Floriana levá-los as suas salas quando este enfim terminasse de lhes informar para onde iriam ficar. — Lirro Nicholas Dragoni Gramanianno, você irá para a sala da professora Thelma Rizmins, logo no segundo andar, sala 402 — informava o diretor posicionando seus óculos bem perto do documento em que estava lendo. — Quanto ao seu irmão gêmeo, Mirro Nicholas Júnior Gramanianno, por outro lado conhecerá Rúbia Valéria, sala 403. Quem observasse de fora não acharia que fosse tão ruim assim. Até os gêmeos tinham acreditado nessas palavras. — Estaremos no mesmo corredor — disse Lirro confiante sem se tocar que ainda estava de frente para o diretor. — Pelo menos não será tão difícil encontrá-lo — disse Mirro esquecendo-se do diretor também. O diretor havia repassado o documento para Floriana que agora o mantinha em mãos, ele queria voltar ao seu trabalho habitual, então precisava fazer-se entender urgentemente.

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— Eles já podem ir Floriana — disse secamente — Tenho muitos papéis para assinar nesta manhã, lembre-os de acompanhar, sim? Floriana fez aquilo com maior prazer, mostrou-os o resto da escola como um guia num passeio turístico, eles estavam admirados por tantos alunos formados e ela própria se orgulhou de poder contribuir com a formação de tantos outros. Na metade do caminho até as salas, ela teve que deixá-los, lembrou-se de emitir os avisos de inicio do ano letivo, mas nem por isso deixou de informar de seguissem aquele mesmo corredor estreito. — Sabe-se lá como funciona esse sistema — disse Lirro ainda visivelmente abatido por estarem em classes diferentes. — Por que, como assim? — perguntou Mirro mal entendendo o comentário feito pelo irmão. — Mamãe fez nossa matrícula um dia antes das aulas começarem — respondeu Lirro capaz até de decifrar uma charada — Ela me disse que estava tudo certo, íamos ficar na mesma turma. — Vai ver com aquela confusão, abriram-se novas ofertas de vagas para novatos. — pensou Mirro com poucas dúvidas. — Pode ser, deve ter sido isso, mas ainda acho muito estranho. Vamos, senão chegaremos atrasados! Lirro foi à frente arriscando derrapar nos últimos metros do corredor estreito, procurando atentamente por outra façanha radical que nenhum aluno jamais tentaria. Sua manobra quase parou um grupo de alunos que estavam indo para a sua primeira aula de Educação Física do ano. No fim do corredor lá estavam elas, as salas de aula, imponentes como sempre foram. Lirro acenou para o irmão informando-lhe com gestos para procurar por ele na hora do intervalo. Mirro ao entender o sinal partiu para procurar sua sala, ao avistar o número da porta no final do corredor, sala 403, tinha absoluta certeza de que não haveria erro. Sua cabeça era perceptível aos seus novos colegas de classe que olhavam para ele com certa curiosidade. Enquanto isso, em outra porta Lirro estava entrando em sua sala, quando Mirro foi surpreendido por sua nova professora, Rúbia Valéria. — Oh, entre — disse Rúbia fazendo questão de não deixá-lo fora da sala. Mirro seguiu a professora bem de perto. Ela lhe indicou um lugar vazio que poderia ser ocupado, por sinal bem distante da lousa. Não via à hora de voltar a abrir os livros, estudar e o que era estranho, deixar de ser o centro das atenções. Era formidável permanecer ali quieto, remexendo em sua mochila, procurando alguma coisa que demorasse mais tempo do que o normal, quando... — Apresente-se para a turma — disse Rúbia para Mirro, querendo manter em sua classe a socialização — Não é educado conversar com uma pessoa sem saber seu nome, creio que nenhum de nós conhece muita gente. Hoje, porém, vamos ter essa oportunidade de nos apresentarmos. Ele tinha ficado meio tímido, mas tudo o indicava que deveria ser o primeiro. E não deu outra, logo ele se encaminhou até ficar numa posição favorável e então se pronunciou para que a turma toda lhe ouvisse. Todos ficaram quietos, esperando a qualquer hora um desastre. — Eu sou o Mirro Nicholas — apresentou-se Mirro para alguns que certamente prestaram atenção ao que ia dizendo. — Mudei-me com minha família faz poucos dias.

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Rúbia era diferente de outras professoras, ela gostava de um diálogo sincero e aberto com toda a classe para que ministrasse suas aulas. Com esta não foi diferente hoje. — Hum... Certo, qual é a sua terra natal então? — perguntou Rúbia disposta a conhecê-lo. — Nasci em Lusse — respondeu Mirro evitando os olhares da turma. Lusse era mesmo um lugar incrível, mas nada estava mais dentro dos padrões como Sanquo. Uns até riram quando Mirro disse que nasceu lá. Uma garota, porém, sentada na primeira fileira escutava tudo com atenção, pensando para si que essa era uma forma de respeito para com um novato. A professora mal continha seu estado de espírito. — Nossa mesmo? — animou-se a professora tranquila estando quietamente do lado de sua mesa — Tive sorte de conhecer no ano passado, é absolutamente fantástica e... Não há do que reclamar, visitei algumas praias e fiz um tour por toda a cidade. Eles realmente entendem a importância da preservação e investem pesado nisso, mas não vamos prolongar este assunto. Temos muito a aprender neste ano. Ela deu uma caminhada elegante até Mirro e com carinho foi conquistando novamente a turma, que parecia ter sumido daquele espaço. Quando todos ficaram concentrados, interveio novamente Rúbia. — Antes quero que todos se apresentem para Mirro, o nosso novo colega de classe — sibilou Rúbia que retornava para sua mesinha. Os alunos de um a um, foram se levantando e dizendo seus nomes. Uns meio nervosos falavam muito rápido, outros não tinham medo de falar em público. Tudo começou na primeira fileira com a garota que escutava tudo com atenção. — Eu sou Anália Marquez Prima, mas pode me chamar de Ana Prima — apresentou-se de modo gentil a quem Mirro não tirou os olhares. Seguidamente foi um garoto, de cabelos curtos e ruivos que parecia gostar de futebol. — Marcelo Bernardo Garra — apresentando-se educadamente. Seguiu-se a ele uma menina de tranças com rosadas maças do rosto, que estava sentada ao lado de Ana. — Patrícia de Lima Ottomano — apresentou-se logo após Marcelo. Logo após Patrícia, apresentou-se um menino simples, porém educado, de cabelo raspado e pele morena clara. — Carlos George Prima — apresentou-se da cabeça da primeira fileira. Após Carlos terminar sua apresentação, apresentaram-se muitos outros dos quais Mirro lembrou-se apenas do primeiro nome, o primeiro de cada colega de classe, dos quais foram: Tina, Juliana, Barbara, Eduardo, Henrique, Raphael, Israel, Rosária, Fernando, Augusto, Valente, Guilherme, Ricardo, Thiago, Gabriel, Samuel, Suzana, Krusta, Bianca, Ciro, Priscila, Patrick, Iago, Osmar, Cibele, Diego, Carol e Rodrigo. Rúbia mandou que Mirro retornasse ao seu lugar assim que Rodrigo terminou sua apresentação. — Pois bem — retomou Rúbia as suas obrigações como regente de classe. — Vou aplicar para esta classe uma simples revisão, nada para temerem, ok? Ela suspirou sonhadora quando se dirigiu a lousa. — Uma preparação para um novo ano começa com uma revisão — comentou e começou a escrever no quadro a revisão. Mirro estava remexendo em sua bolsa, não conseguia achar o que estava procurando. Ele arrumara na noite anterior, e sem dúvida não havia se esquecido de nada para aquele dia, mas não podia estar totalmente convicto se sua caneta não estivesse ao

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alcance. Olhou no chão, quer checar se ela poderia estar lá. Ela sem dúvida estava sim, mas alguém a pegou antes dele. Uma garota sorridente com aroma das flores que lhe pareceu bem arrumada, acabava de lhe devolver a caneta. — Ela é sua, não é? — disse a menina mais feliz ao ver alegre o garoto — Aqui está! – e logo retornou a atenção para o seu caderno. Passados uma meia hora ou mais, a professora Rúbia tinha preenchido toda a lousa com sua pequena revisão de início de ano. Os alunos erravam de propósito, só para se gabarem mostrando seus melhores corretivos de marca. Mirro não precisou se gabar, pois terminou o exercício antes até de Anália Prima, que parecia que tinha entrado em estado de choque. Pelo visto era a menina que tinha mais probabilidade de acabá-lo antes do intervalo da merenda. Até a professora quando recebeu tudo respondido se surpreendeu. — Bom, se tudo continuar assim, sabe que terei o maior prazer em aprová-lo para o ano seguinte. — disse quando o devolveu seu caderno com uma enxurrada de certos. O intervalo da merenda tinha sido um desastre total. Ele não se lembrava do caminho para as quadras, e o que era pior não tinha encontrado Lirro. Vez ou outra tentava achá-lo em alguma sala em que era permitida a entrada dos alunos, mas não conhecia nenhum dos que vira, ficando totalmente frustrado. Quando finalmente estava reconhecendo o corredor que o levava as quadras ele percebeu que o horário encerrou, e tinha de voltar depressa para perto dos seus colegas de classe. Mirro, porém, não precisou de tanto esforço. Todos os alunos estavam convocados para chegarem à quadra o quanto antes e de longe teve a impressão de ver o diretor subir em uma espécie de palanque montado dentro da escola e se encaminhar para falar em um microfone ligado em caixas acústicas para que não se desgastasse a voz. Mirro pensou que ele ia dar uma espécie de boas vindas, mas se enganou. Quando os alunos chegaram e ali ficaram reunidos, aproveitou essa chance para enfim achar Lirro, ele passou por dois fortões do nono ano que estavam passando mensagens, por uma garota alta do sétimo ano que pelo visto treinava vôlei e por um grupo animado querendo mais uma semana de férias. Ele acabara se perdendo, entre os próprios alunos da mesma escola em que passou a frequentar. Não andara muito, mas tinha em mente que a qualquer momento o diretor emitiria sua mensagem, portanto ele tinha que estar preparado para quando acontecesse. Perto de uma das entradas da quadra, o porteiro esquadrinhava tudo sem querer participar. E nem sinal de Lirro. A visão geral não foi possível, os alunos menores tinham tomado conta das arquibancadas e só restava sair perguntando, mas ninguém sabia de um novato com o nome de Lirro. Ele estava começando a ficar sem ideias, quando o som se ergueu sobre o barulho dos estudantes afoitos. Era o diretor que agora tinha o microfone em mãos e estava tudo pronto para ser escutado pelos alunos. — Sou o novo diretor, Sérgio Mônaco Barrel. Estou grato de ter recebido esta oferta, trabalhar com estudantes é para mim algo sério. Não estamos prontos para recebê-los no momento, temos um problema escolar que deverá ser resolvido, na parte elétrica... Nada tão sério, mas por questões de segurança o melhor a fazer é retirá-los daqui o quanto antes. E é por esse motivo que estou dando de presente para todos os alunos da Escola Estrela Branca o resto do dia de folga, contribuímos dessa forma com a diferença. Foram tantos os gritos de alegria derivados daquela atitude do diretor que fez com que os estudantes corressem apressados para suas salas em busca de seus pertences, Mirro

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não teve escapatória, para sua má sorte, os alunos de sua classe só poderiam sair juntos. Segundo Rúbia aquela prática reduzia o índice de roubos entre os alunos e tinha feito progressão. Eles saíram tudo juntos, estilo jardim de infância – e Mirro logo desgrudou. Já havia passado dessa fase, mas acima de tudo queria encontrar o irmão. Sentia que ele estava por perto, mas tinha a sensação de que não podia vê-lo, nem ouvi-lo. Acompanhou alguns alunos que decidiram sair pelo portão mais próximo, mas de alguma maneira sentia sua mochila frouxa demais, como se estivesse caindo. Parando decidiu melhor ajustá-la; Verificou seus livros, os cadernos, e eles estavam todos ali, inteiros e não tinha perdido algum sequer. Fechando o zíper da bolsa viu o seu problema entrar em foco, os alunos já haviam deixado a escola e ele ficara lá dentro, somente ele, sozinho num corredor deserto que agora se tornara escuro e sombrio, podendo a qualquer momento ser trancado lá dentro, sem saber a localização da saída, pois os alunos, seus guias, o haviam deixado para trás. Ele ainda podia enxergar a luz de fora no pátio da escola e era para lá que ele estava se encaminhando. Não podiam permitir um erro desses, talvez o Lirro contasse tudo o que sabia para os avós dele e eles provavelmente viriam ajudar. O calor estava aumentando, os raios de sol tornavam-se mais intensos. Estava por volta das dez horas e nem sinal de ajuda. Ele cruzou ponta a outra de corredores, tentando investigar se via algum funcionário, ou talvez topasse com dona Floriana por acaso – aí poderia lhe contar do barulho engraçado que seu sapato fazia toda vez que encontrava o chão, mas aquela pessoa que vinha passando era a que menos esperava; o Sr. Delavux vinha encurtando caminho em um corredor próximo, agindo de modo suspeito. Reconheceu o garoto e para o desgosto deste foi ao seu encontro. — Você é o novato de hoje mais cedo, não foi alertado que os alunos foram liberados das aulas? — perguntou e Mirro notou que trazia consigo uma lanterna na mão esquerda. Mirro evitou o brilho fraco emitido pela lanterna. — Sim, mas não sou o único novato. Meu nome é Mirro! — É claro, devo ter me esquecido. São muitos alunos que aqui estudam... Por alguma razão aqui está escuro, venha comigo... Delavux o conduziu até o pátio, desligando finalmente a medíocre lanterna. Mirro pensou ter visto dois alunos ainda nos portões, mas não tinha certeza de era mesmo uma visão real. Ele se lembrou do diretor e do modo como se portava quando pensavam que havia uma diretora. — O senhor não acha estranho... Ter tanta decoração na diretoria? — perguntou Mirro forçando-se para lembrar-se dos inúmeros troféus ganhos por Isabel. — Ser porteiro nunca me permitiu entrar na sala do diretor — respondeu o porteiro magoado. O menino teve a leve sensação de estar se intrometendo nos pensamentos do Sr. Delavux. Não queria zangá-lo, mas ele era sua única esperança de sair dali. — Eu devia ter achado o meu irmão... Nos somos... — disse Mirro. — Gêmeos, eu percebi — falando bastante preocupado — Não vou permitir que fique na escola sozinho, ainda mais neste estado! Mirro que quando pequeno tinha medo de escuro, achou bastante surreal a forma como o porteiro havia aparecido minutos atrás. Bateu de leve na mochila com os livros salteando lá dentro, parecendo agora bem pesada. O porteiro estava quase sendo sua bóia de salvação, mas ele se lembrou que não conhecia nada além da casa dos seus

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avôs ou do complexo esportivo em que ele e o irmão tinham visitado. Para além do pátio calçado de pedras encontrava-se uma das saídas da escola. Mirro a fitava percebendo os cadeados que a protegiam. — É tarde, prenderam-me aqui dentro! — expressou-se Mirro aflito observando além das grades do portão para as pessoas realizando outros afazeres. — Como vou sair? — Não se preocupe, caso não tenha notado eu sou o porteiro! Delavux era um homem disciplinado, mas em situações de emergência era extremamente ágil. Na maior parte do tempo os alunos não o viam, nem lhe davam atenção, os professores raramente trocavam palavras com ele, era um funcionário assim como qualquer outro, que deveria apenas cumprir sua função e só. Ele, porém lembrava-se de cada rosto, de cada nome, até mesmo dos antigos alunos que completaram o Ensino Médio e ali se formaram, para ele não importava estar no ponto mais baixo da hierarquia escolar, ele não tirava vantagem de ninguém e sempre quando possível ajudava. Ajudar nunca era demais, esse era seu lema. E se propôs a ajudar mais um aluno, dentre tantos que valeu a pena querer ajudar. As chaves estavam presas em seu cinto e dentre tantos molhos não foi difícil encontrar a certa, sua prática era extremamente eficaz. Tinham conseguido e Mirro havia ficado mais quieto. Ele jurou até ver um riso naquele rosto imparcial. — Da próxima vez tome o cuidado para não ser o último, apenas eu tenho as cópias de todas as chaves — ele disse enfim — Você não vai querer dormir sozinho numa escola, sem nada para comer, ou vai? Até Mirro tinha esquecido o medo de quase ser trancado sozinho numa escola e acabou rindo também. Nem aquele sol forte, abrasador e gigante iria acabar com a sua felicidade. Mas como voltaria? Era novo ali, Sanquo tinha sido a cidade onde sua mãe nasceu e viveu grande parte da sua vida, até conhecer o pai dele, mas aquela não era a sua terra natal. Precisava de um tempo maior de adaptação para conhecer tudo o que precisasse caso se perdesse, porém tudo havia acontecido rápido demais, tão rápido que não foi o bastante para memorizar o pouco que descobriu. Sem se lamentar ocorreu-lhe que não tinha agradecido. — Obrigado Sr. Delavux, se não fosse pelo o senhor eu seria trancado aqui — sibilou Mirro. — É muita sorte sua, eu nunca verifico as salas — disse Delavux. Mirro deu adeus ao porteiro e ficando de costas para a escola se deparou numa avenida onde o tráfego era devagar, os motoristas buzinavam sob o intenso calor e reclamavam de um semáforo que mal trabalhava. Os carros percorriam as ruas como jabutis e os pedestres aproveitavam aquele impasse para chegarem aos seus destinos. Mirro tinha se juntado com um grupo de pessoas prontas a continuarem sua rotina, eles conseguiram atravessar entre os espaços dos veículos em questão de segundos. Tendo alcançado o outro lado conferiu sua memória outra vez para ter certeza de para onde iria a seguir, mas estava difícil de recordar, achou melhor dobrar numa esquina onde havia uma banca de revistas. Os ônibus iam e viam em direções opostas, se ao menos soubesse qual deveria pegar, mas se esqueceu que tinha gasto toda a mesada na preparação da viagem, pagando um corte de cabelo decente e comprando uma mochila sensacional que há muito tempo desejara. Seu fôlego foi bastante para continuar aquele caminho, onde ele percebeu em prática as desigualdades urbanas - prédios ao lado de casas de madeira e alguns becos sem iluminação - presenciou ao mesmo tempo uma pessoa de rua dormindo em uma

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parada de ônibus e logo a frente um rapaz que estava comemorando seu aniversário na presença de toda a vizinhança. Estava fatigado quando sentou no banco da praça, onde finalmente encontrou sombra para aliviar as suas forças do verão. Largou a sua bolsa ao seu lado. Não daria mais nem um passo. Aquele calor infernal estava o deixando tonto e certamente não iria chegar para o almoço. Recuperar as energias agora era fundamental, mas sem dinheiro nada podia ser adquirido. A praça tinha sido arquitetada pela própria Zunni Zero, há exatamente sete décadas atrás. Plantas ornamentais enfeitavam pilastras estilosas, enquanto árvores frutíferas espojavam sua beleza diante das demais, pequenas, porém graciosas e as flores levemente decoradas a paisagem davam em si um toque especial como uma receita secreta. Zunni Zero ao que tudo indicava era arquiteta, Mirro não a contradisse seja lá onde estivesse, mas observando as nuvens brancas como giz provavelmente tinha mais chances de estar errado. Queria o conforto de sua casa outra vez, suas costas seriam capazes de gritar de tanta dor, mas ele não arredou o pé dali, sabia muito bem que andar fatigado era o pior a fazer no momento. Ele chegou a delirar, imaginando que Lirro estivesse ali perto causando um tumulto no início da rua, levantando o asfalto e fazendo um furo no solo infértil, causas estranhas e complicadas que poucos entenderiam, contudo existiam tantos sinais ao seu redor da coisa da qual estava se formando que ele logo saiu do transe. Uma espécie de cortina branca em forma de vapor alargava-se sobre o parque numa velocidade super-humana, descoordenada e puramente densa que ia se descortinando sobre todas as possíveis coisas ali presentes, incluindo seres vivos. As plantas apresentaram um orvalho diferente, branco-gelo totalmente impuro. Os objetos se tornaram cada vez mais sólidos e firmes e já não apresentavam o pouco conforto que pareciam ter. Mirro tinha avaliado para qual direção seria mais fácil correr e sair dali são e salvo. Tinha escolhido a direita. Não ousou olhar para trás, recuperou a mochila antes de tomar seu impulso, pedindo ao seu corpo que suportasse pelo menos mais aquele esforço. Não fazia ideia do que aquilo era, portanto não queria estar lá para saber, saindo em disparada lembrou-se do irmão contra a vontade de sua mente. — Lirro? O irmão estava em sua mente, sim. Mirro sentia aquela alegria quando ele saia vitorioso de um confronto no videogame. Tinha certeza de ia encontrá-lo ou talvez aquilo fosse apenas o seu desejo, um sentimento profundo de saudade. Suas forças não foram plausíveis para sair daquela estranheza medonha. Estava envolto em sua própria mente talvez, ou quem sabe fosse um sonho. Impossível ser um sonho, tinha escutado o barulho do portão ser fechado depois quando foi embora. Sua visão havia ficado turva, assim que ela ficou boa estava lhe transmitindo pela primeira vez uma área desconhecida assolada por um matagal assustador a qualquer criança pequena, mas não estava sozinho. Um vira-lata marrom que também tinha sido afetado pela aquela espécie de neblina misteriosa, acreditava que Mirro era algum outro cachorro amigo. Mirro tinha notado o cachorro investir antes que pudesse cair num lamaçal próximo. Esquivou-se a tempo, usando sua mochila como proteção. — Calma rapaz... — disse Mirro não prevendo o que ia acontecer.

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O cachorro se preparou para outro ataque, posicionando de frente rangendo os dentes e mantendo os olhos bem abertos saltou por um dos braços abaixados do garoto, que estavam evitando serem atacados novamente. A mochila era o alvo. O garoto procurou alternativas para não sair ferido, um galho seco, uma pedra, mas... Queria ter a segurança que aquele cachorro não saísse abatido. O bicho abocanhou em cheio o escudo do menino, feroz como um animal selvagem faria e então fez com que o objeto caísse, aquele barulho em nada afetou todo o resto, mas o cachorro não se deu por contente, puxou com toda a força restante de seus caninos a mochila para além do matagal que diante daquele ponto se erguia e para lá foi arrastando; Mirro não teve outra opção senão segui-lo, queria recuperar sua bolsa inteira. Não haviam ruas que davam acesso ao matagal, isso foi capaz de sentir quando Mirro entrou ali, no entanto, aquele vapor irritante continuava vagueando como se nunca parasse. Isso era ruim, pois com ele presente mal dava para ver a direção exata de uma saída com segurança. O matagal levava zero em questão de segurança, nenhum aviso de PERIGO estava afixado naquele lugar. Aquelas sombras ali criadas adiante poderiam ser olhos? Não, pensou. Já bastava ter aquele dia para recordar. Continuou sua trilha seguindo as pegadas do cachorro até uma construção escura, cheia de chaminés. Era maior do que uma casa de campo e provavelmente perfeita para um estúdio de gravação de algum filme de terror, com um muro sombrio ao fundo e várias peças de metal cortadas ao meio, que foram jogadas de lado por alguém. - Ei volte aqui! – gritava o menino, porém aquela aventura parecia estar apenas entusiasmando o bicho. Seus grunhidos anunciavam que ele finalmente havia largado a mochila. A mochila não tinha rasgado, mas seu conteúdo sofrera com aquela viagem mal sucedida. Por sorte não iria carregá-los, com a longa caminhada que havia feito, provavelmente já estava escurecendo. O cachorro brincalhão finalmente tinha tomado sua consciência, por causa daquela neblina que havia cessado. Sabendo que não deveria estar ali, partiu de imediato. No entanto, Mirro não tinha ideia de onde se encontrava agora. Começava a escurecer, e até seus olhos não sabiam se tudo aquilo era mesmo real. Não tinha medo, sabia enfrentar até o escuro de seu quarto se fosse preciso. Eram poucos passos até a entrada, nela haviam muitas placas, avisos de segurança, notificações de demolição do prédio, que a princípio nunca ocorreram. Uma enxurrada de entulho prestes a virar o novo lixo da sociedade, mas que estranhamente nunca saia dali. Mirro que já estava perdido, decidiu entrar naquela fábrica abandonada. Mirro não foi capaz de descrever o que sentiu ao entrar, mas resumiu tudo na palavra estranho. Um processo todo estava parado em uma linha, diante de outro corredor chegava-se ao que deveria ser a sala de reuniões. Era estranho saber quantos empregos terminaram quando a fábrica fechou. Mirro tinha certos motivos para acreditar em sua falência. E uma delas era o preço que cada máquina trazia consigo debaixo do código de barras. Além delas foram ofertadas para uma multinacional nova no mercado, uma das que fabricavam eletrônicos. O que lhe impressionou veio a seguir: um centro de operações químicas ainda meio intacta, os tubos de ensaio ainda contendo líquidos diversos com diferentes tonalidades de roxo e azul. Aquela chama de interesse fez com que o menino avançasse a uma mesa espetacular. De estilo moderno, com linhas bem traçadas nos cantos, os mesmos tubos

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foram jogados sem qualquer cuidado. Mirro pegou um, tocou-o de leve e levantou até onde sua vista alcançava. Estava prestes a descobrir se era uma mistura simples daquelas que aprendera no segundo ano escolar, mas os pensamentos foram afugentados quando o próprio frasco rachou por si mesmo, fazendo com que todo o líquido contido dentro dele transpassasse na palma de suas mãos. Lá do alto, numa das sacadas interiores da estrutura uma sombra com perfil humano reparava tudo atentamente, avançava sem assustar o menino, permanecia inaudível ao perceber a gravidade que Mirro havia se metido.

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CAPÍTULO QUATRO

A FÁBRICA ABANDONADA

MIRRO TREMIA-SE TODO. Sentia um frio desconforme, mas não era febre. Infelizmente sua cabeça doía muito e mal sentia o dorso de sua mão. Com a dor vinha uma sensação estranha de tontura, exigindo com isso muita energia do seu corpo. Com a pouca energia restante ele mal se erguia corretamente; Numa de suas tentativas acabou sendo desajeitado e caiu com toda a força restante da mesma forma que uma pedra cai no chão. O frasco quebrado permanecera ali caído, poucos centímetros depois do local onde estivera armazenado, fragmentado em pontiagudos pedaços de vidro. Na completa escuridão e sem remorso algum ou piedade do menino a sombra ria sombriamente com imenso prazer. — Eu fui capaz de sentir isso também — disse a sombra tentando controlar seu riso. — O que é isso? — perguntou Mirro recuperando-se parcialmente da dor. — É poder... — respondeu a sombra parecendo se afastar. Mirro havia se choqueado novamente. Um ser humano normal jamais suportaria uma baixa temperatura por tanto tempo, contudo ele ainda não tinha mostrado sinais alguns de cansaço, mas não soube como conseguiu reerguer seu corpo. O frio percorria seu corpo em máxima velocidade, não havia ainda compostura ou controle. Não teve ideia do que aquilo representaria se alguém o descobrisse daquela maneira, ia ficar isolado dos demais? Numa sala vazia sem receber visitas? — Eu não quero... Tira! — Mirro expressou-se com intensa repulsa agitando as mãos, tentando aquecê-las desesperadamente. — Tirar? — ouviu-se uma risada fria perceptivelmente sem vida. — Uma vez dentro de você não há como... Pertence a você como sua vida. Deveria estar alegre, muitos queriam ter essa oportunidade. Experimentar essa sensação de liberdade é um choque profundo que até a alma é capaz de gritar alto. Mirro não perdera as esperanças. — Mas não pode ser para sempre, deve haver... —... Não há acredite! Tinha que sair dali. Buscar ajuda. Deveria contar? Mas ninguém acreditaria se ele contasse que tinha poderes. Lembrou-se quando era criança e voltara a ter novamente sete anos, ele e o irmão imaginavam que estavam indo salvar a terra. Ambos soltavam magias poderosas pelas mãos para deterem o terrível vilão, que prometera destruir o mundo numa brincadeira que eles inventaram. Tudo era proveniente da imaginação, do tipo que qualquer criança faria, mas o assunto ali era bem diferente. Ele estava encurralado e acima de tudo perdido. Com fome também, mas nem um pouco com sono. Irritado com aquela voz zumbindo alto em sua cabeça feito batidas no metal. Decidiu dar o troco. — Quem é você? — soltou Mirro deixando falar mais alto sua coragem. — Ha ha ha... Mas que pergunta óbvia, eu sou o que você é! Cheio de dons, destinado à fama e a glória. Todos parecem querer lhe conhecer, lhe admirar, gostar de você. Eu sou tudo e mais um pouco. Eu sou o mundo e muito mais. Eu sou a sede de vencer. A sombra parecia estar tirando graça da inocência do menino. — Você deve estar enganado. Não sou nada disso não!

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— Pode não ser agora... Talvez futuramente, mude de opinião! Ele viu no alto. Uma estrutura ligava a outra sala. Daquele lugar partiam os dizeres malignos da sombra. Antes de receber a carga, não tinha se dado conta disso. Mirro curvou a mão para o alto em direção ao teto. Uma gélida massa se produziu e com força atingiu a parte inferior daquilo que era a entrada. Logo, uma força de ar gelado preencheu a sala e pareceu ficar mais fria quando Mirro esboçou mais confiança. A sombra tinha tentado parar aquela nova neblina. Era mais forte do que a tinha produzido antes, não conseguiria detê-la, a menos que... — Pare! O garoto apenas estava seguindo seus instintos. Sem dúvida criara aquela neblina, mas não sabia como fazê-la parar. Com isso, ela foi ficando mais forte. — Pare! Eu mandei parar! Você não quer morrer também quer? — Eu...? — Neblinas são densas, assim como o poder que você carrega. Um poder denso e concentrado, carregado completamente de energia. E ela lhe representa agora, é a sua vida. Usando-a sem precedentes pode lhe custar bem caro. É uma especialidade bem crucial essa que você me tomou. O ar gélido foi sendo controlado aos poucos, mas o garoto fora mais esperto. Antes que sumisse por completo, ele se esconderia por detrás da mesa de experiências e então teria outros problemas para resolver. Tudo correu bem e a sombra desceu dois níveis para investigar melhor seu alvo. Nada mais existia no centro de operações, só uma leve brisa gelada encontrando uma saída pelo duto de ventilação. Mirro sentiu que a sombra percorreu os demais lugares a sua procura até cruzar a porta que dava acesso a uma área restrita a funcionários. A batida de porta fechando foi o suficiente para informar que Mirro estava seguro, por enquanto. Ele manteve sua mente no lugar, o coração palpitava forte... Ele receava a qualquer momento ser encontrado no interior daquele labirinto moderno. O design lhe dava calafrios e suspeitar que muitos trabalharam ali há alguns anos atrás lhe assustava e muito. As nuances correspondiam e seu cérebro lhe indicava uma trajetória acessível, entre os conteúdos de caixas recém-embaladas. Era um perímetro em que poderia até caber um gigante de seis metros de altura, várias embalagens permaneciam a denegrir o ambiente, era uma área onde a sujeira tinha alcançado a outro patamar. Várias paredes estavam manchadas num mofo horrível que nenhuma mãe jamais permitiria aos filhos, várias caixas estavam entupindo o coletor de lixo. Várias coisas sem função estavam empilhadas num canto sem destino, esperando a sua vez de ser considerado também como “lixo”. E com isso Mirro foi captando novamente a voz, uma voz cínica... Tomada pelo rancor... —... Eles já deveriam ter me apresentado o relatório, é complicado quando eles se prolongam... A outra voz parecia um tanto casual, tranquila, mas bem conhecida pelo garoto. — Não precisa ficar tão irritado chefe, logo eles trarão resultados... Garanto que não irão demorar, eles são os melhores... Mirro equilibrou-se, sentando-se um pouco para ouvir atentamente o que tramavam lá no alto do prédio. Eles estavam sendo tão discretos, não eram burros em revelar tudo.

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Ainda mais quando aquele “ser” em especial sabia que o garoto detinha uma de suas habilidades. — Vamos com calma! Há um rapaz no prédio que ainda não saiu... Ele sabe progredir com facilidade, não devemos deixá-lo que tome controle daquela especialidade. Espero que todos trabalhem daqui por diante com esforço redobrado... É o que custa o preço de se ter tudo em mãos, assim como eu tive a chance logo de cara... Mirro foi desviado da conversa e então perdeu tudo o que rolava, ele se apoiou num escombro debruçado numa estrutura rígida de metal e ergueu novamente o corpo, correu para longe ultrapassando seus limites, não marcando os pontos por onde passava, mas não parava para um descanso, seguia em frente sempre correndo. No lugar onde supostamente estava ouvia um barulho engraçado. Talvez fossem ratos fugindo de uma perigosa ratoeira, mas como não cessou tomou fôlego para ir de encontro com o perigo. Se qualquer parte de seu corpo fosse identificada, estaria em terríveis apuros, por isso teve a sabedoria de evitar ser visto quando se curvou para o chão, de corpo inteiro, lembrando que evitar ruídos salvaria sua vida. Faltava pouco agora, tinha chegado com mãos fatigadas até uma parede caiada onde era possível ver uma sacada dupla, mal iluminada bem no alto da erguida fundação. Uma pessoa que estivesse cansada e com sono não repararia no que estaria acontecendo ali no momento, as duas figuras envoltas nas sombras continuavam trocando palavras confusas, quase imperceptíveis, Mirro não quis saber sobre o que falavam, pois um ruído tinha começado a ficar claro, aos ouvidos do menino. Continuou tomando cuidado com as peças de metal espalhadas desajeitadamente no piso, que para sua infelicidade era escorregadio, fez maior esforço para identificar a localização do barulho. Lembrou-se novamente quando era criança. Sempre brincava de todo o tipo de brincadeira e se divertia a beça com o irmão, mas percebeu em sua mente ainda consciente que aquilo era uma espécie de esconde-esconde diferente, onde havia centenas de obstáculos a sua frente, porém nenhuma diversão. Era o seu desejo naquele momento: diversão. Estava precisando também de um descanso razoável e de uma ducha revigorante. Por que não foram parar na mesma classe? Lembrou-se disso quando o barulho finalmente havia cessado, ao chegar a um armário tamanho família. Daqueles capazes de caber qualquer tipo de coleção. Por volta dele pilhas de livro e caixas de todos os tamanhos ofuscavam sua visão, permitindo que o garoto se levantasse para resgatar seja lá quem fosse. Ele não soube se era exatamente alguém, mas teria de acertar algo dessa vez, todavia estava prestes a abrir a tranca circular daquele armário. O fez devagar e o suor não alcançou o rosto, tinha acabado de concluir uma volta completa, quando sem querer tomou um susto. Amarrada em vários fios, uma mulher de aspecto jovial tentou-lhe retribuir aquela gratidão com o olhar meio vazio. Incapaz de tentar fugir por si mesma, ela aguardou pela bondade do menino. Ele agiu como um canhão avançando para sua mochila, procurando algo que pudesse ser útil. Voltou sem demora com uma tesoura de aspecto bem adolescente. A mulher não demorou a entender que o garoto estava disposto a ajuda-la e fez o que pode para que ele cortasse todas suas amarras. A comunicação não verbal ajudou naquele processo, ele sem querer machuca-la avançou cuidadosamente até por um fim em seu isolamento. Sua expressão era fraca, mas demonstrava por dentro ser uma pessoa forte, contudo abraçou o menino sorridente.

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Mirro a reconheceu tardiamente, envolto em seus pensamentos e sobre o que tinha passado nesse dia. Algo sobre uma névoa ter ser sido criada por ele e sobre uma pessoa da qual nunca chegara a conhecer. Mas essa pessoa que ele havia libertado era sem dúvida uma ótima pessoa. Estava claro que ela não tinha viajado para lugar nenhum, estivera amarrada sabe-se lá por quantos dias, ou até meses. Ela era a diretora da Escola Estrela Branca, não havia como negar que aquele sorriso contagiava não só os funcionários, como também os alunos. Mirro havia ficado chocado ao se recordar da gravura na sala do diretor. — É a senhora! Você é a diretora! — disse Mirro agitado assim que a memória lhe pegou desprevenido. — Suponho que sim — ela disse fracamente, temendo cada segundo que passava ali. Ele se lembrou de que devia maneirar na voz, procuravam por ele em toda parte. Parte dele de alguma forma sentia isso, mas não quis transpassar mais nervosismo. — Quem fez isso com a senhora? — perguntou Mirro, levemente atento ao seu redor. — Não recordo, fui trabalhar a alguns dias... Teve uma reunião importante e os professores estavam super empolgados com a feira de ciências e então quando me dei conta, estava aqui, trancada neste armário e amarrada completamente por estes fios — disse sem falhar. Mirrou pediu que ela fizesse silencio por um momento, tinha certa impressão de que ainda conversavam. O que era absolutamente verdade, as duas figuras não paravam de se mexer ao longe, tagarelando bem baixinho. Abriam espaço para uma terceira, uma pessoa que Mirro nem esperou para ouvir a voz. — Aqui não é seguro, temos que partir agora! — avisou Mirro para a verdadeira diretora. Ela rastejou de fininho para fora do armário, onde tinha sido uma prisão nada legal. Ainda havia confiança em seu olhar, uma marca nítida de uma pessoa considerada antipática não seria dessa forma. Mirro ignorou sua informação a respeito da diretora, iria conhecê-la melhor em breve, se possível. — Espere! Precisamos saber o que estão tramando e o que pretendem, não é a toa que eles me prenderam — sibilou a diretora em bom tom — Quero saber por que eles precisavam me tirar do caminho. Mas aquela parte foi a mais difícil, esperar algum detalhe naquela conversa que chamassem a atenção dos dois. A sensação de fadiga foi tomando controle, era só uma questão de tempo para deixa-los desfalcados, coisa que por sorte, não aconteceu. Sem dúvida o terceiro ser em questão havia se esquecido de quem estava presente, revelando detalhes importantes. — Seremos maiores do que a natureza chefe se seguirmos esses objetivos — ouviu-se uma voz firme e expressiva, que sabe se posicionar com eloquência. — Estamos perto das nossas peças chaves do plano e a meu ver é uma honra, participar disso tudo com o senhor... A resposta tinha chegado à altura, logo em seguida. — Queria também acreditar que sim, mas só de pensar que perdemos uma carga importante numa missão que você, como eu, reconhece que fracassou... Iremos esquecer o plano original e seguir minhas ordens — a voz da sombra era autoritária e bastante audível — Agora sou eu que estou no comando. A respiração redobrada do outro ser os informava que ele não estava acreditando no que ouvira.

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— O plano original é a ferramenta que nos move... Tem que ser cumprido como foi criado. — Não, não. Eu lhes digo que não, ele não sabe uma forma melhor de fazer com que tudo venha a ser perfeito... Ele parecia haver se calado, quando... — Doutor General, acredita mesmo? — Sim, vou mudar os rumos de uma vez por todas. Aqueles fracotes devem me respeitar daqui por diante... Não há mais espaço para sonhos tolos e ideias vazias. A conversa havia encerrado e lá de seu lugar Mirro foi capaz de sentir vibrações de passos cruzando os corredores naquele escuro. Deveria ser quase meia-noite e Mirro não estava com sono, mas havia muito no que pensar dali pra frente. Sorte que agora tinha uma pessoa para dividir seus pensamentos. — E então, a senhora tem alguma ideia do que se trata? — perguntou Mirro bem baixinho. — Tenho algumas sugestões, mas nenhuma realmente lhe interessaria — respondeu a diretora recuperando sua voz. — O lado ruim disso tudo é que eu não consegui descobrir por que me prenderam aqui, mas eu partirei em busca de respostas... Ela indicou uma última amarra que o garoto não havia notado, na altura do tornozelo direito. Mirro a libertou por definitivo. Agora teriam que encontrar a saída, o lugar por onde Mirro havia entrado. Eles mantiveram o sigilo por todo o percurso de volta, não cometendo nenhuma falha. Os sinais da nova identidade de Mirro continuam intocáveis, exceto por um frasco a menos que ele não se recordava qual era, mas contornando ali haveria a saída... Onde encontraram uma lua ainda em estágio crescente como se estivesse balançando numa rede. — Eu devo lhe agradecer, você tem muito sangue frio meu jovem! — Nem me recorde, por favor! Ela o guiou em direção ao grande portal e juntos caminharam por uma estrada que levava a uma das estradas principais. Ela fez transparecer que era parente do garoto, é claro que ele estaria em sérios apuros com a polícia se descobrisse um garoto altas horas da noite em claro fazendo sabe se lá o que. Esperaram até um táxi chegar, um dos que contava com alta proteção contra assalto e que fazia parte de uma frota conhecida pela cidade. — Eu vou precisar de um tempo para pensar em tudo o que aconteceu, pode manter esse segredo afastado de todos por enquanto? — perguntou a diretora sentindo-se confortável naquele assento aveludado. — Sim, pode contar comigo — respondeu Mirro lutando para não bocejar. Ela sorriu fingindo que dormia. Mirro a olhava com admiração, passou a viagem inteira emocionado com o fato de ter salvado alguém. Uma pessoa de boa índole por sinal. Tanta bondade caberia em ações, tanto que ela fez questão de pagar a corrida do motorista. Mirro tinha sido entregue em casa, estava são e salvo... Isabel havia contribuído para isso, antes do carro partir novamente, ela desejou ter mais um tempo para se despedir finalmente do garoto. — Meus alunos devem ter sofrido a beça sabendo de minha falsa partida, mas eu vou limpar minha ficha com eles, em breve pode ter certeza. — Certo, cuide-se daqui para frente, viu? — Pode deixar, mas agora você jamais deve se esquecer de estar sempre alerta. O perigo pode estar ao seu lado e você nem prestar atenção. Obrigada mais uma vez

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jovem... E cuide-se também, não pude lhe proteger dessa vez, mas quando chegar a hora conte comigo. — Tudo bem! Tchau. Mirro acenou com a mão num gesto rápido de despedida por conta do horário e teve que remexer os bolsos a procura de sua chave, que por sinal não fora encontrada. Na esquina uma turma nada amistosa estava espreitando os olhos para uma mansão ao lado e a próxima casa era a de Mirro. Ele tentou forçar o trinco, mas quando o fez sentiu que havia girado por completo. Outra pessoa já havia feito todo o esforço. Lirro havia aberto a porta. De alguma maneira seu outro elo saberia que estava em apuros e partiu ao seu encontro. — Lirro, ainda bem que você apareceu! Lirro havia rastreado de vista o grupo quando ainda estava no andar de cima e não se deteve até puxar completamente o irmão para dentro de casa e trancar sorrateiramente a porta. — Agora sim, você parece mais seguro. Onde é que esteve? Estava preocupado... Tive que fingir ser você e eu ao mesmo tempo — disse Lirro ao contrário do que geralmente costumava ser, bem calmo. — Nossa mãe sentiu minha falta? — perguntou Mirro se ignorando em responder — Todos nós sentimos. Não foi fácil fazer entender que você estava aqui, mas na realidade não estava. — respondeu Lirro olhando para seu outro eu. Mirro tirou a atenção do irmão, acompanhou o corrimão da escada que dava acesso ao segundo andar, entrou na segunda porta que dava acesso a um dos quartos principais. Lirro o seguiu como um irmão sempre faz, ainda esperando respostas, mas elas não vieram. — Estou morrendo de sono Lirro, amanhã conversamos sobre isso, tudo bem? — disse Mirro tomando espaço numa das camas. Lirro não era adepto de brigas, por isso nem fez questão de revidar, deixou o irmão descansar como águas tranquilas de um córrego jovem, mas se deparou com algo estranho em cima de seu criado mudo. Um copo d’água estava disposto a seu alcance e sua sede apenas crescia, mais e mais por estar diante do copo. Ele se arriscou a combater seus pensamentos estranhando se ele mesmo tivesse levado aquele copo para cima. Sua sorte era quem queria vê-lo feliz, portanto ele não pensou duas vezes, antes de acompanhar o irmão naquele sono tranquilo tomou todo o conteúdo presente naquele copo. Matando sua sede, caiu no sono e não queria saber de outra coisa a não ser dormir.