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ARTIGO ARTICLE 1843 1 Departamento Interdisciplinar de Rio das Ostras, Universidade Federal Fluminense. Rua Recife s/n, Jardim Bela Vista. 28890-000 Rio das Ostras RJ. [email protected] Centralidade de gênero no processo de construção da identidade de mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas Gender centrality in the process of identity construction of women involved in drug trafficking Resumo O presente artigo tem como objetivo dis- cutir as especificidades dos crimes cometidos por mu- lheres, em particular a participação feminina na rede do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Pretende ain- da distinguir a criminalidade feminina da masculi- na. O estudo se baseia em reflexões realizadas a par- tir de entrevistas com oito mulheres com uma histó- ria de envolvimento no tráfico de drogas em favelas do Rio de Janeiro. A partir de uma abordagem dis- cursiva sistêmica 1 , a análise trata dos micro e macro elementos envolvidos na construção da identidade das participantes do estudo. Os resultados demons- tram de que forma a entrada, a permanência e a saída de mulheres do tráfico de drogas podem ser compreendidas à luz de questões de gênero que, jun- tamente com cor e classe, determinam em grande parte os papéis desempenhados e os lugares ocupados por homens e mulheres na sociedade mais ampla. Palavras-chave Gênero, Violência, Criminalida- de, Tráfico de drogas, Discurso Abstract The present article aims to discuss the specificities of crimes perpetrated by women, espe- cially the female participation in drug trafficking in Rio de Janeiro, Brazil. In addition to that, it intends to distinguish female from male criminality. The study is based on reflections made through inter- views conducted with eight women presenting a his- tory of involvement in drug trafficking in the slums of Rio de Janeiro. Through a systemic discursive approach 1 , the analysis investigates the micro and macro elements involved in the process of the con- struction of the participants’ identity. Results show that women’s motivations to enter, remain and drop drug trafficking are in great part determined by gen- der, which along with color and class shapes the roles performed and the places occupied by men and wom- en in society. Key words Violence, Gender, Criminality, Drug trafficking, Discourse Mariana Barcinski 1

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1 DepartamentoInterdisciplinar de Rio dasOstras, UniversidadeFederal Fluminense. RuaRecife s/n, Jardim BelaVista. 28890-000 Rio dasOstras [email protected]

Centralidade de gênero no processo de construção da identidadede mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas

Gender centrality in the process of identity constructionof women involved in drug trafficking

Resumo O presente artigo tem como objetivo dis-cutir as especificidades dos crimes cometidos por mu-lheres, em particular a participação feminina na rededo tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Pretende ain-da distinguir a criminalidade feminina da masculi-na. O estudo se baseia em reflexões realizadas a par-tir de entrevistas com oito mulheres com uma histó-ria de envolvimento no tráfico de drogas em favelasdo Rio de Janeiro. A partir de uma abordagem dis-cursiva sistêmica1, a análise trata dos micro e macroelementos envolvidos na construção da identidadedas participantes do estudo. Os resultados demons-tram de que forma a entrada, a permanência e asaída de mulheres do tráfico de drogas podem sercompreendidas à luz de questões de gênero que, jun-tamente com cor e classe, determinam em grandeparte os papéis desempenhados e os lugares ocupadospor homens e mulheres na sociedade mais ampla.Palavras-chave Gênero, Violência, Criminalida-de, Tráfico de drogas, Discurso

Abstract The present article aims to discuss thespecificities of crimes perpetrated by women, espe-cially the female participation in drug trafficking inRio de Janeiro, Brazil. In addition to that, it intendsto distinguish female from male criminality. Thestudy is based on reflections made through inter-views conducted with eight women presenting a his-tory of involvement in drug trafficking in the slumsof Rio de Janeiro. Through a systemic discursiveapproach1, the analysis investigates the micro andmacro elements involved in the process of the con-struction of the participants’ identity. Results showthat women’s motivations to enter, remain and dropdrug trafficking are in great part determined by gen-der, which along with color and class shapes the rolesperformed and the places occupied by men and wom-en in society.Key words Violence, Gender, Criminality, Drugtrafficking, Discourse

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Introdução

Quando decidi investigar a participação de mulhe-res na rede do tráfico de drogas na cidade do Riode Janeiro, minha motivação foi o aumento dessaparticipação, amplamente divulgado na mídia es-crita e televisionada. Uma primeira busca na litera-tura sobre o assunto confirmou o aumento donúmero de mulheres presas no Brasil desde o finalda década de oitenta. Segundo Soares e Ilgenfritz2,o número de mulheres encarceradas no país cres-ceu 132% desde 1988, um aumento bem maior doque o do encarceramento masculino no mesmoperíodo. Importante ressaltar que 65% das mu-lheres sentenciadas em 2000 no Brasil estavam en-volvidas no consumo ou no tráfico de drogas.

Como carioca, moradora da cidade e cidadãde classe média impactada com a violência cotidi-ana imposta pelo tráfico de drogas, tinha algumasteorias supostamente bem informadas sobre o fe-nômeno da participação feminina na atividade.Principalmente por causa da proximidade dos“morros” com o “asfalto”, a classe média cariocacostuma versar com desembaraço acerca dos as-suntos ligados ao tráfico e à violência que, pormotivos diversos, encontra terreno fértil nas fave-las (ou nas “comunidades”) do Rio de Janeiro.

Portanto, imaginava que o aumento do núme-ro de mulheres envolvidas no tráfico de drogaspoderia ser justificado pelos mesmos elementosque comumente explicam o ingresso de meninospobres das periferias na atividade: a falta de opor-tunidades no mercado legal de trabalho, o desejode obter poder e status na comunidade e o cons-tante apelo do tráfico de drogas nas comunidadespopulares3.

Foi com essas suposições que comecei a entre-vistar mulheres com uma história passada de en-volvimento na rede do tráfico de drogas em fave-las do Rio de Janeiro. O risco que representava arealização de entrevistas qualitativas em profundi-dade com mulheres ainda envolvidas na atividadejustificou a escolha por entrevistar mulheres que jáhaviam se desligado da rede do tráfico.

O objetivo da pesquisa era entender quem sãoas mulheres envolvidas em uma atividade reco-nhecidamente masculina. Quais as motivações, oque pensam e o que falam as mulheres que corremos riscos e se expõem à violência característica dotráfico de drogas? Como a violência e o crime nãofazem parte das expectativas acerca do comporta-mento feminino, esperava que o discurso das en-trevistadas fosse marcado por tensões e contradi-ções, na tentativa delas de conciliar seus papéiscomo mulheres e como bandidas. Creio que a per-

gunta central da referida pesquisa era: de que for-ma essas mulheres constroem as suas identidades,negociando a dupla realidade de serem (ex) bandi-das e mulheres (mães, filhas, esposas e parceiras)simultaneamente?

Mulher e criminalidade

De acordo com a literatura em criminologia, a par-ticipação feminina em atividades criminosas é tra-dicionalmente ignorada ou explicada em virtudedo relacionamento de mulheres com parceiros en-volvidos em atividades ilegais. O estudo destasmulheres, incluindo as possíveis razões para seengajarem em atividades criminosas, está comu-mente subordinado ao estudo da criminalidademasculina4,5. Há ainda pouco interesse acadêmicoacerca das especificidades dos crimes cometidospor mulheres.

A ausência de pesquisas sobre mulheres crimi-nosas, ambas na literatura nacional e internacio-nal, é usualmente explicada pela baixa taxa de cri-mes femininos e pela percepção de que os crimesem que mulheres estão envolvidas são de menorgravidade. As poucas teorias que dão visibilidadeàs mulheres tentam explicar o baixo índice de cri-mes femininos, quando comparados aos crimesmasculinos. Essa baixa incidência é normalmenteassociada a traços biológicos, a prescrições acercade papéis sociais e à assimilação, por homens emulheres, de uma ideologia patriarcal6.

Em relação à especificidade dos crimes femini-nos, Steffensmeier e Allan4 apontam para o caráterrelacional desses crimes. Os autores argumentamque a influência dos homens na iniciação de mu-lheres em carreiras criminosas é um resultado con-sistente de pesquisa. Mulheres envolvidas em cri-mes tendem a enfatizar sua função de cuidadora eseu envolvimento ocorre frequentemente na ten-tativa de proteger suas relações pessoais e afetivas.No presente artigo, veremos como as mulheresjustificam sua entrada no tráfico de drogas, oraem função de relações amorosas estabelecidas comhomens criminosos, ora em função das dificulda-des encontradas para sustentar seus filhos.

Em estudo conduzido com mulheres encarce-radas no Havaí, Chesney-Lind e Rodriguez7 cha-mam a atenção para o alto índice de vitimizaçãoem suas histórias de vida. As autoras argumentamque a vitimização em diferentes níveis – do abuso eda negligência à extrema pobreza – resulta em umprocesso de criminalização único das mulheres.

De uma maneira geral, autores concordam queo entendimento da criminalidade feminina deve

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envolver um nível amplo de análise, que inclua ainvestigação do controle e da opressão sofrida pormulheres em diferentes esferas – na família, no tra-balho e nos espaços públicos. Goetting8 sugere ain-da que a falta de atenção à criminalidade femininadeve estar relacionada ao fato dos papéis tradicional-mente prescritos às mulheres as reconhecerem comovítimas, não como perpetradoras de violência.

Em um nível mais amplo, a análise da crimina-lidade feminina deve incluir discussões acerca decor e classe, entendendo que esses são (juntamentecom gênero) elementos indissociáveis na constru-ção da posição social e das identidades das mulhe-res. Ao tratar da realidade específica de mulheresencarceradas nos Estados Unidos, Gregory9 argu-menta que “a maneira pela qual mulheres pobres enegras são tratadas pelo sistema criminal só podeser completamente compreendida em função darealidade material e ideológica de classe e gênero”.Pesquisas naquele país mostram, por exemplo, quea maioria das mulheres encarceradas é jovem, po-bre e pertencente a grupos minoritários10.

O presente artigo tem o objetivo de discutir asespecificidades da criminalidade feminina, chaman-do a atenção para os elementos que distinguem ainserção feminina e masculina na rede do tráfico dedrogas. Pretende discutir de que forma a entrada ea permanência de mulheres na atividade podem sercompreendidas à luz de questões de gênero que de-terminam os papéis desempenhados e os lugaresocupados por homens e mulheres na sociedade.

Método

Participantes

No estudo, foram entrevistadas oito mulherescom uma história de envolvimento na rede do trá-fico de drogas em cinco favelas na cidade do Rio deJaneiro. Suas idades variavam de 21 a 41 anos deidade. Como critério para a inclusão no estudo,elas deveriam ter exercido alguma função na ativi-dade, independente do tempo em que permanece-ram nesta função. A maioria delas trabalhou como“vapor”, pessoas que vendem drogas no varejo,nas bocas de fumo das favelas. Uma das entrevis-tadas foi “gerente” de uma boca de fumo; ela eraresponsável por todos os produtos comercializa-dos e dava ordens a todos os empregados do pon-to de venda.

Na ocasião das entrevistas, todas estavam em-pregadas em atividades legais ou desempregadas.O contato com elas foi proporcionado por umaorganização não governamental (ONG) que tra-

balha com o desenvolvimento de atividades educa-cionais e profissionais como alternativa aos jovensenvolvidos no tráfico de drogas em diversas favelasda cidade. Ainda naquela ocasião, todas as partici-pantes moravam nas favelas onde desempenharamsuas funções na rede do tráfico e declararam nãoter mais nenhuma relação com a atividade.

Instrumento e procedimentos

Foram realizadas duas entrevistas em profun-didade com cada uma das entrevistadas. As entre-vistas duraram cerca de duas horas cada. O focofoi na história de vida das participantes. O objetivoera entender quais os elementos familiares, cultu-rais, sociais e econômicos que influenciaram a deci-são dessas mulheres de ingressar na rede do tráficode drogas. Portanto, perguntas sobre a constitui-ção e a dinâmica familiar, sobre a vida afetiva eamorosa, sobre a trajetória educacional e profissi-onal compuseram as entrevistas. O envolvimentono tráfico de drogas, com uma descrição detalhadados papéis por elas desempenhados na atividade,surgiu naturalmente no depoimento das entrevis-tadas. Seja porque elas sabiam do interesse da en-trevistadora pelas suas histórias como traficantes,seja porque tais histórias, de fato, estão no centrodo processo de construção de suas identidades.

Quatro participantes foram entrevistadas nasede da ONG acima referida, onde uma sala foicolocada à disposição para a pesquisa. As outrasquatro participantes, no entanto, preferiram serentrevistadas em suas próprias residências, em fa-velas distintas daquelas onde a ONG está localiza-da. As participantes foram esclarecidas sobre ocaráter voluntário de sua participação no estudo eassinaram o termo de consentimento livre e escla-recido. Com o objetivo de proteger sua integrida-de e privacidade, os nomes utilizados neste artigo,bem como em qualquer outra publicação envol-vendo essas participantes, são fictícios.

Análise de dados

A partir de uma abordagem discursiva sistê-mica1, a análise proposta considera os macro emicro elementos envolvidos no processo de cons-trução de identidade. Em termos dos macro ele-mentos, o discurso das entrevistadas é analisadodentro do contexto social e econômico no qual suasexperiências ocorrem. Além disso, tal nível de aná-lise examina de que forma essas mulheres repro-duzem e transformam discursos culturais11-15, es-pecialmente discursos acerca de papéis tradicio-nalmente desempenhados por homens e mulheres

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na sociedade. Como a violência e a agressividadenão fazem parte do repertório discursivo utilizadopara descrever comportamentos femininos, é dese esperar que os discursos hegemônicos sejamtransformados na tentativa das entrevistadas deconciliar o possível dilema de terem sido, ao mes-mo tempo, mulheres e criminosas.

Os micro elementos dizem respeito às históri-as pessoais de cada participante e as suas estratégi-as individuais de construção de identidade. Estenível de análise considera o protagonismo, a in-tencionalidade e a criatividade como recursos fun-damentais para a construção da subjetividade.Neste sentido, ao levarmos em consideração ascaracterísticas individuais, constatamos que pes-soas compartilhando contextos sociais e econô-micos similares fazem escolhas absolutamente di-versas em suas trajetórias de vida16, 17.

Neste micro nível de análise, são investigadasas estratégias pessoais utilizadas na apropriação ena transformação de discursos culturais, bemcomo as singularidades encontradas no discurso enas histórias de vida de cada entrevistada.

Em termos da relação entre os dois níveis deanálise acima descritos, é óbvio que todo protago-nismo é limitado pelo contexto mais amplo de exis-tência do sujeito1,18. Desta forma, as escolhas pesso-ais são, em grande parte, determinadas pela reali-dade social e econômica dentro da qual o sujeitotem chances limitadas de transgressão. Portanto, oprotagonismo e as estratégias pessoais podem so-mente ser analisados à luz dos macro elementos quecompõem, em grande parte, as trajetórias pessoais.

De maneira geral, a análise tenta captar as espe-cificidades da participação feminina no tráfico dedrogas, entendendo essa participação simultanea-mente como escolha pessoal e como reflexo dasrelações estabelecidas na sociedade mais ampla en-tre homens e mulheres, pobres e ricos, brancos epobres. Trechos de entrevistas são reproduzidos eanalisados, com o objetivo de mostrar os recursosdiscursivos utilizados pelas participantes. Comoserá visto, tais discursos carregam a marca da posi-ção social ocupada por essas mulheres e o protago-nismo pessoal que determina as suas trajetórias.

Resultados e discussão

Os resultados abaixo discutidos pretendem propi-ciar a reflexão acerca da centralidade de gênero naforma como as participantes descrevem as suasmotivações para a entrada e a saída na rede dotráfico, bem como os papéis desempenhados porelas na atividade.

De formas diversas, ao justificarem a entradano tráfico de drogas, as participantes oscilam entreassumir a responsabilidade pelas suas escolhas eposicionarem-se como vítimas de um sistema soci-al injusto, que não lhes deixa outra opção senão acriminalidade. Em outras palavras, protagonismoe vitimização estão simultaneamente presentes nodiscurso acerca do seu ingresso na atividade.

Ao falarem da motivação para o ingresso notráfico de drogas, as entrevistadas se referem àfalta de opção que leva meninos e meninos a en-trarem para a atividade. A dificuldade de inserçãono mercado formal de trabalho e a necessidade desustentarem seus filhos e suas famílias aparecemcomo elementos determinantes de suas escolhas(ou falta de escolhas). É dessa forma que Flávia,uma das entrevistadas, fala de uma amiga que de-cidiu trabalhar na rede do tráfico de drogas: Eutenho uma amiga minha que ela sustenta os filhos-ela tem quatro filhos. Ela sustenta os quatro à dispo-sição deles [dos traficantes]. Esse é o trabalho dela.Então ela se mantém dali. Se não tiver, não tem. Emuitas das vezes você vê que ela passa necessidade(Flávia, 21 anos).

No trecho acima, Flávia fala do tráfico de dro-gas claramente como uma alternativa de trabalho ede sustento para as mulheres nas favelas. A entre-vistadora pergunta a ela se há mais negros do quebrancos trabalhando na rede do tráfico de drogas.Fazendo referência à situação marginalizada depobres e negros em comunidades populares, elamais uma vez enfatiza a falta de opção dessa popu-lação: Tem mais preto. Por que? Porque já é discrimi-nado na rua, não tem mais nada a perder, “pô, vouformar no morro, vou ser soldado no morro”.

De acordo com Flávia, pela discriminação epreconceitos sofridos, jovens (principalmente ne-gros) de favelas vêem no tráfico de drogas a únicaalternativa de pertencimento a uma rede de traba-lho. Na gíria, “formar no morro” significa se jun-tar a outras pessoas em grupos criminosos e “sersoldado no morro” significa trabalhar na segurançados pontos de venda ou dos chefes do tráfico dedrogas em determinada comunidade.

Flávia é das poucas participantes com uma vi-são crítica acerca da situação dos jovens morado-res de comunidade. Ao menos, ela é a única queproduz depoimentos em que são problematizadasquestões de cor e classe. Em diversos momentosdurante a entrevista, no entanto, ela reproduz osdiscursos sociais e culturais que mantêm os favela-dos em uma posição marginal. É assim que ela serefere ao seu namorado traficante (responsável,segundo ela, pela sua entrada no tráfico de dro-gas): Bonito. Ele era assim branco que nem você e

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tinha os olhos claros. Quem olhava ele na rua, nãodizia que ele era aquilo [um traficante].

Implícito no trecho acima está o argumento deque uma pessoa branca e bonita (como a entrevis-tadora) jamais seria identificada como um trafi-cante. Apesar do dado de realidade, de que há maisnegros que brancos envolvidos no tráfico de dro-gas19, a imagem que Flávia constrói reproduz dis-cursos hegemônicos acerca de homens pobres enegros. Apropriando-se de um discurso racista20,ela legitima a associação comumente feita entre acor e a propensão de homens negros a se envolve-rem em atividades criminosas.

Em termos de uma análise em nível micro, otrecho acima chama a atenção também pela suaeficácia retórica21. Com seu movimento, Fláviaidentifica a entrevistadora como uma pessoa bo-nita e diferente daqueles que se envolvem em ativi-dades criminosas. Além disso, o fato dela ter serelacionado com alguém “como a entrevistadora”tem o potencial de aproximá-las de alguma forma.Em diversos momentos durante as entrevistas, Flá-via tenta se distanciar de outras mulheres da co-munidade, enfatizando a sua singularidade e a in-tegridade moral de sua família. Falar do seu na-morado “branco, lindo e de olhos claros” é maisuma forma de marcar essa distância.

Entender o ingresso de jovens – homens e mu-lheres – no tráfico de drogas como consequência dedificuldades econômicas e como alternativa à in-serção no mercado formal de trabalho parece nãotrazer grandes novidades. Apesar de refletir em partea realidade desses jovens, tal justificativa não deveser adotada sem ressalvas, uma vez que ela podeimplicar um determinismo social problemático.Determinismo que reproduz os discursos segundoos quais a pobreza e a exclusão social levam, invaria-velmente, à criminalidade e à delinquência16.

Apesar de as participantes reconhecerem osobstáculos econômicos e sociais experimentadospor jovens pobres e a consequente inserção na rededo tráfico de drogas, o poder e o status experimen-tados são mais frequentemente mencionadoscomo motivadores para a entrada da atividade.Ao tratar da inserção de jovens no tráfico de dro-gas em comunidades pobres, autores apontampara a invisibilidade social que marca a vida dessesjovens e para o fato de que o tráfico representaalguma possibilidade (muitas vezes, a única possi-bilidade) de pertencimento a uma rede22, 23. Nestecontexto, o valor pessoal – o poder – desses jovensé dado pelo impacto que causam nos outros, pelomedo que suscitam ao portarem armas pesadas eao serem reconhecidos como membros de um gru-po criminoso24. Envolvidas em uma atividade mas-

culina, em que o poder reconhecidamente pertenceaos homens, podemos supor que o poder experi-mentado por essas poucas mulheres traficantesadquira ainda mais relevância. Em outras pala-vras, ser mulher envolvida no tráfico distancia asparticipantes de outras mulheres ao seu redor, fa-zendo com que elas experimentem o poder outro-ra somente experimentado por homens.

Quando perguntada sobre a sua motivaçãopara entrar para o tráfico de drogas, por exemplo,Denise refere-se abertamente ao poder dos trafi-cantes: Eu queria também ter poder, queria ter aspessoas ao meu redor, me bajulando o tempo todo,sabe? (Denise, 30 anos).

Na ocasião, Denise namorava um traficante etestemunhava o poder que ele exercia dentro dafavela. Apesar de ter três filhas, ela não mencionaas suas dificuldades financeiras, embora possamossupor que elas fossem relevantes em sua decisãode entrar para o tráfico de drogas. O que impulsi-ona Denise, no entanto, é seu desejo de se sentirpoderosa, como os homens com os quais se relaci-onava afetivamente.

Quando pensamos na realidade específica dasmulheres traficantes, especialmente daquelas quechegaram a ocupar posições de prestígio na rededo tráfico de drogas, notamos que o poder não éexercido por elas de forma absoluta. Ao referirem-se a ele, essas mulheres o fazem usualmente emcomparação a outras mulheres. É assim que Deni-se fala do seu papel como “gerente” de uma bocade fumo em sua comunidade: Me sentia superior.Todas tinham que ser submissas a mim.

Apesar de exercer autoridade sobre homens emulheres trabalhando sob suas ordens, é em rela-ção às mulheres que Denise se sente superior. Asmulheres na atividade é que eram submissas a elas.O uso das palavras “todas” e “submissas” deixaclaro que ela se refere às mulheres trabalhando emsua boca de fumo.

Vanessa, que trabalhou no tráfico de drogasdurante oito anos, sente-se orgulhosa por ter sidosempre reconhecida pelos homens na atividadecomo mais “um dos rapazes”. Em suas entrevistas,ela conta diversas histórias que atestam a sua co-ragem e “disposição” para tomar parte nos con-frontos com facções rivais ou com a polícia. Comoos homens, ela carregava armas e fugia da políciacorrendo pelas ruas da favela. O poder de Vanessaé experimentado simultaneamente pelo reconheci-mento dos homens e pelo medo e respeito que ins-pirava em outras mulheres. É assim que ela fala dareação de mulheres da comunidade quando elachegava aos bailes: Eu também gostava do respeito,tudo. Era legal assim eu ir no baile aí, caramba, o

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baile cheião, um montão de vagabunda andando eeu lá no meio. Caraca, todo mundo parava pra olhar.Caraca, aí só ouvia cochichando: “caraca, olha aquelagarota” (Vanessa, 26 anos).

Vanessa chegava aos bailes portando um fuzile por isso as pessoas olhavam e comentavam a seurespeito. Mais uma vez, notamos que é sobre asmulheres ao seu redor que ela exercia o seu poder.A escolha do termo “vagabunda” não somente dei-xa claro que o prazer que Vanessa sente é de servista por outras mulheres da comunidade portan-do uma arma, mas serve para diminuir essas mes-mas mulheres. Nos relatos de outras mulheres,notamos também o uso de termos pejorativos(como “vadia”, por exemplo) para referirem-se aoutras mulheres.

É no depoimento de Selma que identificamos areferência mais clara ao caráter extraordinário dopoder exercido por mulheres no tráfico de drogas:O forte pra mim acho que era a arma mesmo, eraaquele poder que eu tinha, sabe, aquela - embora euseje mulher, uma das únicas mulheres que tinha nomeio, eu tinha um certo poder, eu tinha um certorespeito (Selma, 33 anos).

Selma trabalhou como “vapor” no tráfico dedrogas, em uma época em que a participação fe-minina era ainda mais rara que atualmente (nadécada de oitenta). Por essa razão, ela sente-se ain-da mais orgulhosa do seu envolvimento. No tre-cho acima, Selma deixa claro que o poder no tráfi-co de drogas é uma propriedade masculina. Àsmulheres na atividade é reservado somente um “cer-to poder”.

Os depoimentos acima reproduzidos atestampara o papel do poder e do respeito na constituiçãodas identidades das participantes como traficantes.Em suas diversas formas de inserção no tráfico dedrogas, o poder é experimentado pelo porte de ar-mas, pelo reconhecimento e aceitação dos homensna atividade e, especialmente, pelo distanciamentoem relação a outras mulheres ao seu redor.

Um outro motivador para a entrada no tráficode drogas é o envolvimento das participantes comhomens traficantes. Nesse sentido, os depoimentosconfirmam a literatura em criminologia acerca dainfluência dos homens nos crimes cometidos pormulheres25,26. Nesses casos, a criminalidade femini-na seria caracterizada como protetiva dos homense das relações afetivas estabelecidas com eles.

Ao falar da influência dos homens em sua esco-lha (e de outras mulheres) pelo tráfico de drogas, a“mulher de bandido” surge como personagem re-corrente nos depoimentos das participantes. A “mu-lher de bandido” é aquela que se envolve afetiva-mente ou sexualmente com um bandido. Muitas

delas escolhem deliberadamente namorar bandi-dos, buscando o poder social e econômico que re-sulta dessa associação. Algumas, no entanto, des-cobrem posteriormente que seus parceiros estãoenvolvidos em atividades criminosas e, frequente-mente, não têm opção a não ser servir de cúmplicespara seus crimes. A “mulher de bandido”, assimcomo a “fiel” (aquela mulher que deve permanecerfiel ao companheiro encarcerado) são submetidasàs regras informais que regem as relações entrehomens e mulheres no tráfico de drogas.

Sandra perdeu o marido e o filho que traba-lhavam para o tráfico de drogas. Por causa do en-volvimento com esses homens, ela acabou reali-zando diversas tarefas (como dirigir carros du-rante assaltos e esconder armas em sua casa), ape-sar de nunca ter sido formalmente empregada naatividade. Apesar de todo o sofrimento e de todo operigo que Sandra e seus filhos sempre correrampor causa do seu marido criminoso, ela se orgulhados bens materiais e do status adquiridos como“mulher de bandido”. É com orgulho que ela falada ascensão do marido como criminoso: E aí, deladrão de carro meu marido subiu de posto pra se-questrador. Ele tinha uma cabeça muito boa, nãofumava, não cheirava e não bebia. Então ele era olíder do grupo. Tinham mais sete ou oito que eletomava conta. Então, faziam o que ele mandava (San-dra, 41 anos).

Sandra parece experimentar poder através dosêxitos alcançados pelo marido como criminoso.Como em uma empresa formal, ele ascendeu nacarreira criminosa, ocupando postos cada vez maisimportantes. Como as mulheres, de uma maneirageral, Sandra protege esse homem, enfatizando oconforto que ele sempre proporcionou para ela epara seus filhos: Eu morava numa casa muito boni-ta, tipo uma casa de veraneio, sabe? Então, tinha umagaragem e nos fundos tinha um quintal muito grande.A identidade de Sandra como “mulher de bandido”é marcada por sentimentos contraditórios de raivae orgulho. Se por um lado sua vida foi marcada porconstantes fugas e mudanças em função das perse-guições policiais ao seu marido, foi por causa daatividade criminosa dele que Sandra ocupou (e ocu-pa até hoje) uma posição privilegiada em compara-ção a outras mulheres em sua comunidade.

Mesmo aquelas participantes que nunca se en-volveram com bandidos mostram-se empáticascom as meninas e mulheres que escolhem se envol-ver com ladrões e traficantes. De uma maneira ge-ral, os motivos dessas mulheres são facilmente com-preendidos e raramente problematizados. É assimque Selma, por exemplo, justifica o desejo de meni-nas de favelas de se envolverem com traficantes:

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Porque é bom você ficar perto de uma pessoa que tempoder. É bom ficar perto de uma pessoa que você sabeque é alguma coisa, entendeu? Pra mim é bom táfalando com você, que eu sei que você é alguma coisa.

O trecho acima enfatiza o poder dos homensenvolvidos no tráfico de drogas. Ao mesmo tem-po, se pensamos em seu movimento retórico, Sel-ma posiciona a entrevistadora como uma pessoaigualmente poderosa.

O poder, o respeito e o status adquiridos pelaassociação amorosa com um bandido são tão gran-des e tão significativos no contexto de vida dessasmulheres, que a maioria delas tolera a violência, asagressões físicas e a infidelidade constante quemarcam a relação com esses homens.

Além das circunstâncias que caracterizam aentrada de mulheres no tráfico, outra maneira atra-vés da qual podemos discutir as questões de gêne-ro refletidas na criminalidade feminina é pensarnas funções frequentemente desempenhadas pormulheres na atividade. Zaluar5 aponta para o fatodo tráfico de drogas reproduzir o sistema de gêne-ro da sociedade mais ampla. Apesar de o tráficoser indiscutivelmente uma atividade subversiva,uma ideologia tradicional de gênero é reproduzidaem sua dinâmica interna. Tal ideologia pode serobservada nos comportamentos esperados de ho-mens e mulheres submetidos às regras do tráficode drogas, tal como a esperada fidelidade e sub-missão das “mulheres de bandido”.

Grande parte das mulheres envolvidas no trá-fico de drogas percebe o caráter estratégico dessaparticipação. Em outras palavras, elas entendemque mulheres são usadas como “vapor” ou como“mulas” (aquelas que transportam as drogas en-tre favelas ou entre pontos de venda distintos) porchamarem menos a atenção da polícia. Pela baixavisibilidade como traficantes, as mulheres são fre-quentemente empregadas na atividade. É assim queFlávia descreve a forma como os chefes do tráficodispõem das mulheres; no trecho abaixo, ela si-mula as ordens usualmente dadas às mulheres: Vaibuscar não sei aonde, vai lá, pega isso pra mim, faz.Que mulher os policiais não vêem muita mulher.

Dentre as entrevistadas, Denise foi a que únicaque ocupou uma função considerada importantedentro da hierarquia do tráfico de drogas. Ela foi“gerente” de uma boca de fumo em sua comuni-dade. Por essa razão, Denise se coloca como umamulher diferente das outras; ela sabe que o poder eo respeito que adquiriu como traficante são rara-mente experimentados por mulheres.

Quando fala de seu marido encarcerado e dasua ascensão no tráfico de drogas, no entanto,Denise demonstra uma fragilidade e submissão que

contrastam com a assertividade dos seus depoi-mentos. Como qualquer outra mulher envolvidacom um traficante, Denise tem que se manter fiel aesse homem, mesmo que não deseje mais mantera relação com ele. Ela visita o marido semanal-mente, leva comida e tem medo de sofrer algumaretaliação caso decida abandoná-lo definitivamen-te. Ao descrever o caminho que percorreu no tráfi-co de drogas, desde a sua entrada até assumir ocargo de gerente de uma boca de fumo, uma vezmais podemos notar a submissão feminina deDenise. É dessa forma que ela descreve a sua traje-tória como traficante: Primeiro eu comecei fazendocomida, depois eu comecei assim a me envolver maisprofundo, a olhar, comecei a transar com os líder,alguns líder né, do [nome da facção] e por último eufui negociando armas, cocaína pura, alguns quilos.

O envolvimento de Denise no tráfico de drogasé claramente marcado pela sua relação com ho-mens traficantes. Ela não somente entrou na ativi-dade por causa de um namorado traficante, comocomeçou a sua trajetória desempenhando funçõestipicamente femininas: cozinhando, mantendo re-lações sexuais e fazendo pequenos favores para ostraficantes.

Embora as participantes compreendam a for-ma como mulheres são usadas pelo tráfico de dro-gas (pela sua baixa visibilidade como traficantes epela submissão usual aos homens na atividade),de uma maneira geral elas não percebem os papéisque desempenharam como subordinados. Porexemplo, embora Denise tenha começado sua tra-jetória servindo homens em suas necessidades bá-sicas, cozinhar e manter relações sexuais com eles édescrito por Denise como passos naturais na suaascensão como traficante.

Ao tratar do papel tradicional de mulheres emservir homens e crianças, Miller27 argumenta queas mulheres desenvolvem a ideia de que suas vidasdevem ser constantemente guiadas pelos desejos epelas necessidades dos outros. Apropriando-se deum discurso cultural similar, Denise não proble-matiza os papéis que desempenhou inicialmenteno tráfico de drogas, provavelmente porque essessão, no seu entender, adequados às mulheres nessecontexto.

Finalmente, a maneira como as entrevistadasjustificam a decisão de abandonar o tráfico de dro-gas atesta a especificidade da criminalidade femi-nina. Em seus depoimentos, a influência de ho-mens e crianças nesta decisão é frequentementemencionada. Uma vez mais, o papel de cuidadorae de mantenedora de relações afetivas com parcei-ros e com a família ocupa o centro da constituiçãoda identidade dessas mulheres.

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A constatação do abandono e do risco queimpunham a seus filhos e familiares em função daatividade exercida é colocada como principal mo-tivadora para a saída das participantes da rede dotráfico de drogas. Chama a atenção nos depoi-mentos o papel da maternidade e do cuidado comos filhos no processo de saída. De uma maneirageral, enfatizar o papel de mãe zelosa e cuidadora éutilizado como índice de recuperação dessas mu-lheres. Em outras palavras, voltar exercer as fun-ções esperadas de uma mãe é simultaneamenteevidência da mudança de vida dessas mulheres e aexpressão de um plano futuro. É assim que Denisefala do tipo de mãe que era no tempo em que esta-va envolvida no tráfico de drogas: Eu não crieimeus filhos porque eu me envolvi muito cedo, eunão tive um apoio moral pra dar pra eles, tudo euachava que era dinheiro, que eram bem materiais, écordão de ouro, moto, dinheiro, telefone caro. Eununca parei pra analisar o quanto eu estava assimdestruindo a infância dos meus filhos, porque eununca pude ser mãe, sabe?

No trecho acima, encontra-se implícita a su-posição de que um traficante de drogas não podeser um bom pai para seus filhos, pelas circunstân-cias que envolvem o desempenho dessa função. Afrase “porque eu nunca pude ser mãe” sugere quealgo impedira Denise de ser uma boa mãe. Na suadescrição, ela preserva a sua “boa essência”, colo-cando a culpa por ser uma mãe ruim em fatoresexternos, a saber, a sua participação no tráfico dedrogas.

Denise equaciona a sua falta de valores moraisnecessários para ser uma boa mãe com a impor-tância que costumava dar (quando era traficante)a bens materiais. As duas dimensões, moral e ma-terial, são caracterizadas em oposição uma a ou-tra. É pouco clara a compreensão do que constituio “apoio moral” mencionado por Denise, mas elaparece sugerir que ser uma boa mãe vai além daprovisão de bens materiais para seus filhos. Naverdade, o foco em tais bens se contrapõe ao apoiomoral do qual carecem os filhos.

A oposição entre dinheiro e moralidade, esta-belecida por Denise, não é surpreendente e semreferências na literatura. Discursos culturais acer-ca da maternidade posicionam as mães como guar-diãs do desenvolvimento moral de seus filhos28,29.De acordo com tais discursos, a mãe perfeita deveprover a seus filhos uma fundação moral adequa-da, independente de suas possíveis dificuldades eco-nômicas e sociais. A “natural” força moral é o queaproxima todas as mães, independente das reali-dades concretas que possam separá-las em classessociais distintas.

Agora que Denise não trabalha mais na rede dotráfico de drogas, ela é capaz de entender e valori-zar a conexão emocional única que une mães e fi-lhos. Nos trechos a seguir, Denise ilustra o que cha-ma do “amor especial” compartilhado entre ela esuas filhas. A descrição remete ao “amor incondi-cional” comumente caracterizado como o amor dasmães pelos seus filhos: Eu aprendi uma coisa: quemeus verdadeiros amigos são os meus filhos, que eusei que elas tão dispostas a qualquer coisa por mim.

Depois do depoimento acima, Denise chora efala da felicidade de finalmente ser capaz de expres-sar os seus “sentimentos maternos”: O que meemocionou foi saber que eu sou mãe, que eu sou mãe,que eu sou como um cachorro, como uma ave, quequalquer pessoa que se aproxime dos filhos elas que-rem avançar. Eu sei que eu tô disposta a defender osmeus filhos de qualquer pessoa, de qualquer coisaque for acontecer.

De acordo com a imagem acima, ser uma boamãe significa estar pronta para defender seus fi-lhos de qualquer risco. Ao comparar-se a animaisque protegem seus filhotes, Denise se apropria deum discurso cultural acerca de uma disposição bi-ológica das fêmeas para proteger seus filhotes30.Tal discurso é refletido em construções linguísticasassociadas à experiência de ser mãe, tais como o“instinto maternal” e o “sexto sentido das mães”.

Ao estabelecer comparações entre suas identi-dades no passado e no futuro, as participantes deuma maneira geral enfatizam a recente habilidadeadquirida para cuidar dos seus filhos de maneiraapropriada. Em comparação com o passado, quan-do eram ausentes ou exemplos negativos, elas hojeafirmam o amor materno e o desejo de cuidar dosfilhos como evidência de recuperação. Como trafi-cantes recuperadas, as participantes hoje tem osvalores morais adequados às mães; elas sabem dis-tinguir entre o certo e o errado e aprenderam a semanter longe das más influências do passado. Po-dem, portanto, servir de bons exemplos para osseus filhos. Além disso, como boas mães, elas ago-ra têm o tempo e o desejo de passar tempo comseus filhos, valorizam a família e todos os elemen-tos referentes à esfera doméstica (primordialmen-te feminina).

Outro índice de recuperação frequentementeutilizado pelas participantes, e que evidencia a cen-tralidade de gênero na construção de suas identi-dades, é o seu desejo atual de namorar “trabalha-dores”, em oposição aos bandidos com quem cos-tumavam se envolver no passado. O termo “tra-balhador” refere-se aos homens envolvidos/empre-gados em atividades profissionais legais. Como si-nal do seu status atual, essas mulheres não mais se

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sentem atraídas por bandidos. Selma, que passagrande parte da entrevista descrevendo o trabalhode garçom do seu atual namorado, fala da vanta-gem de namorar “trabalhadores”: Eles [bandidos]são mais violentos, porque eles querem tudo, querdinheiro, sabe? E não tem, e daí não tem paciênciacom mulher, sabe?

Não surpreendentemente, as identidades dasparticipantes são atualmente construídas em fun-ção dos homens ao seu redor. Ao teorizar acercada relevância das conexões pessoais no desenvol-vimento das mulheres, Miller27 afirma que a cons-tituição da identidade feminina é organizada aoredor de sua habilidade de estabelecer e manterrelações afetivas. É a partir das relações estabeleci-das com pessoas ao seu redor (nesse caso, comum tipo particular de homem) que as mulheresconstroem suas identidades. De maneira similar, aidentidade das participantes como criminosas eraconstruída através do envolvimento e da atraçãopor bandidos.

A centralidade de gênero: palavras finais

O objetivo do presente trabalho era discutir as es-pecificidades da criminalidade feminina, especifi-camente a centralidade de gênero na construçãoda identidade de mulheres com uma história deenvolvimento na rede do tráfico de drogas no Riode Janeiro. Além dos exemplos descritos, em quequestões de gênero serviram para retoricamenteposicionar as participantes durante as entrevistas,sua centralidade pode ser atestada pela maneiracomo essas mulheres descrevem a motivação paraa entrada na atividade, os papéis nela desempe-nhados e os elementos que caracterizam sua re-cente “recuperação” (a saída do tráfico de drogas).

Ao descreverem as suas trajetórias criminosas,todas as participantes referem-se ao poder experi-mentado como bandidas como o maior motiva-dor para a entrada na rede do tráfico. De umamaneira geral, o poder era vivenciado pela proxi-midade e o alinhamento com os homens, pelo de-sempenho de tarefas reconhecidas como masculi-nas e pelo distanciamento estabelecido em compa-ração a outras mulheres.

Em termos dos papéis usualmente desempe-nhados na rede do tráfico de drogas, o discursodas participantes corrobora, de maneira geral, aimagem das mulheres sendo usadas por homensna atividade. A maior parte delas trabalhou notransporte e na venda de drogas no varejo, tarefasconsideradas secundárias, menos lucrativas, ouenvolvendo maiores riscos. Além disso, a presença

delas em meio a bandidos havia sido diversas ve-zes usada para despistar atividades criminosas.Mesmo aquelas participantes que acabaram de-sempenhando funções mais prestigiosas e lucrati-vas na atividade descrevem a sua ascendência comomarcada pela subordinação e obediência aos ho-mens. Ao contrário de se engajarem em uma aná-lise crítica de sua participação, no entanto, as fun-ções por elas desempenhadas são consideradasadequadas às mulheres. Apropriando-se de dis-cursos culturais acerca da subordinação e margi-nalização femininas31, elas naturalizam a explora-ção experimentada por mulheres (incluindo elasmesmas) na rede do tráfico de drogas.

Em contraste com mulheres que decidem deli-beradamente entrar para o tráfico de drogas, asparticipantes referem-se àquelas que se envolveminvoluntariamente na atividade, em função da re-lação amorosa com homens criminosos. Nessecaso, o comportamento dessas “mulheres de ban-dido” é restringido pela posição subordinada queocupam na relação com bandidos.

Portanto, gênero é central na forma como asparticipantes constroem a participação delas e deoutras mulheres no tráfico de drogas. A opressãoe a submissão aos homens caracterizam o envolvi-mento de mulheres na atividade, independente detal envolvimento ter sido o resultado de uma deci-são deliberada ou a consequência da relação amo-rosa com homens criminosos.

Finalmente, a centralidade de gênero no pro-cesso de construção da identidade das participan-tes pode ser ilustrada pelos elementos por elas apre-sentados como evidência da sua recente recupera-ção (saída da rede do tráfico de drogas). Como“criminosas reformadas”, as participantes agoratêm o desejo de cuidar de seus filhos. Tornar-seuma boa mãe é apresentado como ambos um pla-no futuro e um índice de recuperação. Como paraas mulheres “normais”, a maternidade subitamentetornou-se a principal fonte de satisfação para es-sas mulheres28,29. Sustentando uma “ideologia dadomesticidade”, de acordo com a qual a identida-de de mulheres é construída principalmente emtorno da casa e do cuidado com os filhos32, as par-ticipantes enfatizam a atual apreciação pelo espaçoprivado do lar.

A transformação das participantes em pessoas“de bem” é igualmente atestada pelo atual envolvi-mento delas com “trabalhadores”, em oposição aosbandidos com os quais costumavam se relacionarno passado. Nesse sentido, suas identidades sãoclaramente contingentes ao homem com os quaisse associam. Enquanto o poder experimentado notráfico de drogas foi atingido principalmente pela

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associação com homens criminosos, a atual repu-tação das participantes é evidenciada pelo desejode se relacionarem com homens que nunca estive-ram envolvidos em atividades criminosas.

De maneiras diversas, investigar a criminalida-de feminina fornece elementos para compreender-mos o que significa ser mulher no contexto especí-fico das participantes. Examinar a dinâmica do trá-fico de drogas, focando no papel de gênero empossibilitar e constranger a ação de pessoas em seuinterior, nos informa acerca dos recursos limita-dos disponíveis para as mulheres, em determina-do contexto, construírem as suas identidades.

Como ilustrado no discurso das participantes,ser pobre, negra e favelada restringe as possibilida-des de mulheres dentro e fora da rede do tráfico dedrogas. Apesar do caráter transgressivo da atividade

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na qual as participantes estiveram envolvidas, suasexperiências passadas como criminosas foram mar-cadas por uma constante submissão aos homens naatividade. Apesar das participantes terem se sentidosuperiores a outras mulheres que não tiveram envol-vimento com o tráfico de drogas, o poder afirmadofoi frequentemente experimentado dentro dos limi-tes de gênero que caracterizam as experiências demulheres “normais” na favela. Como claramenteafirmado por uma das participantes, às mulheres épermitido somente um “certo poder” no tráfico dedrogas. As experiências atuais das participantes, como“criminosas recuperadas”, são igualmente marcadaspela escassez de recursos disponíveis. Como ex-trafi-cantes, seu “poder” é agora expresso pelos laços afe-tivos e familiares renovados e pelo retorno à esferaprivada do lar, exemplos típicos do poder feminino.

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Artigo apresentado em 16/07/2009Aprovado em 04/08/2009Versão final apresentada em 21/07/2009

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