CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE … · PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM LETRAS E...

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UNIVERSIDADEFEDERALDEPERNAMBUCOCENTRODEARTESECOMUNICAO

DEPARTAMENTODELETRASPROGRAMADEPSGRADUAOEMLETRASELINGSTICA

AABINNAIMPRENSADIMENSODIALGICADACONSTRUODEUMAIMAGEM

ANAVAZ

RECIFE2009

PPGLAVISOAVISO

O autor o titular dos direitos autorais da obra que voc est acessando.Seu uso deve ser estritamente pessoal e/ou cientfico.Fica proibido qualquer outro tipo de utilizao sem autorizao prvia do titular dos direitos autorais.

ANAVAZ

AABINNAIMPRENSADIMENSODIALGICADACONSTRUODEUMAIMAGEM

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao emLetras e Lingstica da Universidade Federal dePernambuco,paraobtenodograudedoutor.

Orientadora:Profa.Dra.DrisdeArrudaCarneirodaCunha

RECIFE2009

Vaz,AnaA ABIN na imprensa: dimenso dialgica da

construo de uma imagem / Ana Vaz. Recife: OAutor,2009.

2v.:il.,quadros.

Tese (doutorado) Universidade Federal dePernambuco.CAC.Letras,2009.

Incluibibliografiaeanexos.

1. Lingstica. 2. Dialogismo. 3. Anlise dodiscurso. 4. Agncia Brasileira de Inteligncia. 5.Imprensa.6.Jornalismo.I.Ttulo.

801 CDU(2.ed.) UFPE410 CDD(22.ed.) CAC200931

AGRADECIMENTOS

AminhaorientadoraProfDrDrisdeArrudaCarneirodaCunha,pelapacinciaepelaseriedadecomquerealizouaorientaodeminhapesquisa.

CoordenaodeAperfeioamentodePessoaldeNvelSuperior(CAPES),pelaoportunidadequemefoidadaderealizarumdoutoradosanduchenaFrana,oquemepermitiuum aprofundamentotericonocampodasteoriasenunciativasedodiscurso.

AJacquelineAuthierRevuz,peloimportanteapoiorecebidoduranteomeudoutoradosanduchejuntoUniversidadedeParisIII.

AoProfessorLuisAntonioMarcuschi,pelobrilhantismodesuasinesquecveisaulasepelasproveitosas observaesporeletecidasemrelaominhatese.

ProfessoraMariadaPiedadeM.deSporsuaimportante orientaoeaconselhamentoquandodaminhabancadequalificao.

AProfDr GildaLinspeloinestimvelapoiodadoaoinciodestetrabalho.

AtodososprofessoresecolegasdoPGLetras,pelaoportunidadedeumconvvioenriquecedordurantearealizaododoutorado.

AmeusfilhosElisa,FbioeRenata,queeuamotanto.

.

RESUMO

Apresente tese realizaumestudoanalticodematrias veiculadas na imprensaescrita,que

fazem referncia Agncia Brasileira de Inteligncia (Abin) rgo do Poder Executivo

encarregado da produo de conhecimentos de interesse estratgico para a Presidncia da

Repblica.Noacompanhamentodostextosveiculadosna imprensa,observaseaexistncia

de uma espcie de descompasso entre a misso legalmente atribuda quele rgo de

inteligncia e as formas como as suas atividades so representadas na mdia escrita. A

constatao da polmica a fundada, englobando mltiplos dizeres e refletindo

posicionamentosdiversos,evidencioua necessidadedeumaanlisemaisprofundados fios

discursivos enredados nessa complexa teia de opinies e de pontos de vista em confronto,

tomandocomobaseateoriadialgicabakhtinianaeestudoscontemporneosdaenunciaoe

do discurso.A anlise busca elucidar os efeitos de sentidos criados pela multiplicidade de

dizerespresentesnasmatriasdejornaisdiversos,aenglobandoodiscursodoprpriorgo

de imprensa, do jornalista e colaboradores, bem como de representantes legais da Agncia

Brasileira de Inteligncia. Explicita tambm os procedimentos que presidem tal

funcionamentodiscursivo,levandoemcontaasvriasvozesquealiseentrecruzamefundam

umarelaopolmica.Evidenciaqueessesdiscursos,aomesmotempoemquepropiciamo

fortalecimento dos lugares enunciativos ocupados por cada uma das instncias envolvidas,

revelam a existncia de uma interdependncia mtua, de um dialogismo marcado pela

presena da heterogeneidade constitutiva, cujas marcas se exteriorizam em uma

heterogeneidademostrada tanto no campo da interlocuo como no campo interdiscursivo.

Poroutrolado,apolmicainstauradaconstriumaimagemdaAbinedossujeitosenvolvidos

nosdiversosdiscursos,queterminaporlanarindagaesacercadasuarealefetividadeedo

necessrio,mas sempreproblemticoequilbrioentreaopacidadeea transparnciade suas

aes.

Palavraschave:dialogismo,discursojornalsticoeAbin.

RESUME

Cettethsededoctoratfaituneanalysedesarticlesdelapressequotidiennebrsiliennedont

le thme est lABIN (Agncia Brasileira Brasileira de Inteligncia) agence dugouvernement brsilien charge de llaboration des renseignements pour informer le

Prsident de la Rpublique. Dans lenssemble denviron un millier de textes, extraits des

principaux jounaux en circulation auBrsil, on a pu vrifier lexistence dun certain cart

entrelamissionatribueceservicederenseignementetleursformesdereprsentationdans

lapressecrite.Laconstatationdelexistencedunerelation polmiqueauseindecesarticles

tantdanslapluralitdediresquedanslamulticiplitdepointsdevueatlaraisonpar

laquelleonaessaydesaisirlesdiffrentseffetsdesensproduitsparlesdiscoursdelapresse

surlABIN,etdelABIN,tisssdansuncourantdialogiqueininterrompu.Lepointdedpart

decetterechercheestlaconceptiondialogiquedulangagedeMikhailBakhtinetsonCercle,

enrichiepardesrecherchescontemporainessurlnonciationetlediscours.Pourarriverla

comprhensiondessensconstruitsdanslatessituredecesdiffrentsdiscours, onafaitlusage

des articles de presse contenant les voix des journalistes, des journaux et celles des

reprsentants lgaux de lABIN. Ltude realise montre que les discours construits

renforcent des places nonciatives, tout en dvoilant linterdpendence de ces discours

marqus par la prsence dune htrognit constitutive. Dautre part, la polmique

instaureconstruituneimagedelABINdanslapressequi posedesquestionsproposdeson

effectivitetsur lepointdquilibretoujoursnecssaireentrelopacitet latransparencedu

travailquelleralise.

Motscls:dialogisme,discoursdelapressecrite,Abin.

ABSTRACT

This thesis performs an analytic study of newspaper articles published in written press in

regard to theAgnciaBrasileira de Inteligncia (Abin Brazilian IntelligenceAgency), an

ExecutiveBranchbureauinchargeofproducingknowledgethatmayinterestthePresidency

from a strategic point of view. Considering texts published in the press, it is possible to

recognizesomekindofinconsistencywhenthemissionlegallyassignedtotheintelligence

agency is compared to how its activities are actually portrayed in written media. This

controversialfinding,whichcarriesmultiplevoicesandreflectdifferentpositions,madeclear

hownecessarywastocarryoutadeeperanalysisof thediscursivethreadswoven insucha

complexwebofopposingopinionsandpointsofview,basedonBakhtinsdialogismtheory

andcontemporarystudiesonutteranceanddiscourse.Suchanalysisattemptstoclarifyeffects

of meaning produced by the multiple voices within the articles of different newspapers,

includingthediscoursesofthenewsagencyitself,thejournalists,thecollaboratorsaswell

asthediscourseoftheBrazilianIntelligenceAgencylegalrepresentatives.Italsoexplainsthe

proceduresthatguidethisdiscursivemechanismconsideringtheseveraldifferentvoicesthat

intertwine in the text and establish polemic relations. It shows that these discourses,while

strengthening theenunciativepositionsoccupiedbyeachandeveryoneof theparticipants,

reveal the existence of a mutual interdependence, a dialogism, that is, a constitutiveheterogeneity and a enunciative heterogeneity, both in the interlocutional and in theinterdiscursivefields.Ontheotherhand,thiscontroversyformsanimageoftheAbinandthe

subjectsinvolvedinvariousdiscoursesthatputsintoquestiontheagencysrealeffectiveness

andtheimperativebutalwaysintricatebalancebetweenobscurityandtransparencyinits

actions.

Keywords:dialogism,journalisticdiscourse,Abin

LISTADEANEXOS

ANEXOA CORPUSDETRABALHO

1. TEXTOSSELECIONADOS2. QUADRO DO CONJUNTO DE MATRIAS JORNALSTICAS

COLETADAS,NOPERODODE1999A2004,TENDOPORTEMAAAGNCIABRASILEIRADEINTELIGNCIA(ABIN).

LISTADESIGLASEABREVIAES

ABIN AgnciaBrasileiradeInteligncia

ABRAJI AssociaoBrasileiradeJornalismoInvestigativo

AD AnlisedoDiscurso

ADF AnlisedoDiscursoFrancesa

BNDES BancoNacionaldeDesenvolvimentoEconmicoeSocial

CIA CentralIntelligenceAgency(AgnciaCentraldeInteligncia)

DD DiscursoDireto

DI DiscursoIndireto

DIL DiscursoIndiretoLivre

FARCs ForasArmadasRevolucionriasdaColmbia

FBI FederalBureauofInvestigation(EscritrioFederaldeInvestigao)FD FormaoDiscursiva

GSI GabinetedeSeguranaInstitucional

IRE InvestigativeReportersandEditors(ReprtereseEditoresInvestigativos)

MA ModalizaoAutonmica

MI5 SecurityService(ServiodeSeguranaBritnico)

MI6 SecretIntelligenceService(ServiodeIntelignciaBritnico)

PC PauloCsarFarias

PNPC ProgramadeProteoaoConhecimento

PT PartidodosTrabalhadores

SNI ServioNacionaldeInformaes

TER TribunalRegionalEleitoral

UnB UniversidadedeBraslia

Unicamp UniversidadeEstadualdeCampinas

SUMRIOAPRESENTAO........................................................................................................

I BASESTERICAS1. ODIALOGISMOBAKHTINIANO...........................................................2. AANLISEDODISCURSOFRANCESA...............................................3. ALTERIDADEEHETEROGENEIDADEENUNCIATIVAS..................

II MODELOMETODOLGICO1.ACONSTRUODOCORPUS................................................................

1.1CritrioCronolgico..............................................................................1.2TemaseObjetosdeDiscurso.................................................................1.3GnerosDiscursivos...............................................................................1.4rgosdeImprensa................................................................................

2.OCORPUSELABORADO.........................................................................

III AABINEAIMPRENSA1.AATIVIDADEDEINTELIGNCIA..........................................................2.AATIVIDADEJORNALSTICA................................................................3.INTELIGNCIAEJORNALISMO..............................................................

IVAABINNAIMPRENSA1. ODISCURSODAABIN.............................................................................

1.1MonofoniaEnunciativa.........................................................................1.2DimensesDialgicasdoDiscursodaAbin.........................................

2. ODISCURSOSOBREAABIN.................................................................2.1 PlurivocalidadeDiscursiva....................................................................2.2DimensesDialgicasdoDiscursosobreaAbin..................................

3. AORIENTAAODIALGICA DODISCURSO....................................3.1ORIENTAODIALGICAEMDIREOAOOUVINTE

3.1.1 OOUVINTEEFETIVO............................................................3.1.1.1ARefutaoExplcita...................................................3.1.1.2OSilenciamentodoOponente......................................3.1.1.3ARefutaoIrnica......................................................3.1.1.4PosicionamentosAssumidosquantoaoOuvinteEfetivo

3.1.2 OOUVINTEIDEALIZADO....................................................3.1.2.1 OOuvinteAliado..........................................................3.1.2.2 OOuvinteSimpatizante................................................3.1.2.3 OOuvinteTestemunha.................................................3.1.2.4 OOuvinteJuiz..............................................................3.1.2.5Posicionamentos Assumidos quanto ao Ouvinte

Idealizado.....................................................................3.2 ORIENTAO DIALGICA EM DIREO AO OBJETO DE

DISCURSO3.2.1ADisputaDialgicaquantoao ObjetodeDiscurso.................3.2.2DuasPalavrasparaumaMesmaCoisa.....................................

CONSIDERAESFINAIS:ACONSTRUODEUMAIMAGEM..................

REFERNCIASBIBLIOGRFICAS.........................................................................

1

5831

41

474950556773

788593

109109114119119126132132134135141145153154157162169173

179181

181191

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1

APRESENTAO

A tese ora apresentada realiza um estudo analtico de matrias jornalsticas

veiculadas na imprensa escrita, que fazem referncia Agncia Brasileira de Inteligncia

(Abin)rgodoPoderExecutivoencarregadodaproduodeconhecimentosdeinteresse

estratgicoparaaPresidnciadaRepblica.

Uma das motivaes para a realizao desse trabalho de pesquisa prendese ao

fato de que essas matrias, embora relacionadas a eventos especficos ocorridos no meio

social,findamporpromoverumquestionamentoacercadamissoinstitucionaldadaAbin,

lanandoindagaesacercadasuarealefetividadeedonecessrio,massempreproblemtico,

equilbrioentreaopacidadeeatransparnciadesuasaes.

Noacompanhamento que fizdostextosveiculadosna imprensaacercado tema,

pude observar a existncia de uma espcie de descompasso entre a misso legalmente

atribuda quele rgo de inteligncia e a representao de suas atividades no discurso da

mdia. A constatao da polmica a fundada, englobando mltiplos dizeres e refletindo

posicionamentosdiversos,evidenciouanecessidadedeumacompreensomaisprofundados

fios discursivos enredados nessa complexa teia de opinies e de pontos de vista que se

confrontamedialogamentresi.

Busquei, no presente trabalho, elucidar os efeitos de sentidos criados pela

multiplicidadededizerespresentesnasmatriasdejornaisdiversos,aenglobandoodiscurso

do prprio rgo de imprensa (sob a formade editoriais), do jornalista (com suas notcias,

colunas e artigos de opinio), dos leitores (atravs de cartas publicadas nos jornais), assim

comoodiscursodaAbin,pormeiodosseusrepresentanteslegais(ementrevistaseartigosde

autoriaprpria,almdecitaeslocalizadasemmatriasjornalsticasdiversas).Tentei,ento,

2

explicitar os procedimentos que presidem tal funcionamento discursivo, as estratgias

argumentativas desenvolvidas, levando em conta as vrias vozes que se entrecruzam no

espaodaimprensa,serespondemmutuamente,efundamaliumarelaopolmica.

Em seguida, tentei verificar se os discursos veiculados sobre o tema Abin,

abrigando vrias vozes, caracterizariam a presena de uma polifonia discursiva ou

implicariamaexistnciadeumdialogismomarcadopelabivocalidaderetricacujosefeitos

desentidoseriam monovalentes.

A pesquisa assim realizada foi distribuda em quatro captulos, aos quais se

seguemalgumasconsideraesfinaisbemcomorefernciasbibliografiautilizada.

O primeiro dos captulos faz uma explanao dos principais fundamentos

epistemolgicos utilizados emmeu trabalho, partindo de trs vertentes tericas a Teoria

Dialgica do Crculo de Bakhtin, a Anlise do Discurso de Orientao Francesa e a

Heterogeneidade Enunciativa de Jacqueline AuthierRevuz as quais me pareceram, em

algunsdeseuspostulados,complementaresentresi.

Osegundocaptulotratadametodologiaadotadanaconstruodomeucorpusde

trabalhodemodoatornlopassvelde anlise, tomandoporbasenoapenasocritrioda

distribuio cronolgica das matrias coletadas, mas tambm a questo dos temas e dos

gneros discursivos ali presentes, assim como a considerao dos rgos de imprensa nos

quaisessasmatriasforamproduzidaseveiculadas.

Oterceirocaptuloabordaquestesvinculadassprincipaisinstnciasdiscursivas

postas em cena no espao da imprensa escrita, tentando realizar uma anlise comparativa

entreaatividadedeintelignciaeaatividadejornalstica,demodoaevidenciardiferenase

similitudes no que diz respeito aos seus modos de ao e s suas formas de elaborao

discursiva.

3

Finalmente, o quarto captulo faz uma anlise do tema na Abin na imprensa,

buscando explicitar as diversas vozes ali emergentes, bem como as diferentes dimenses

dialgicasinstauradasatravsdaadoodeestratgiasdiscursivasespecficas.Tomandopor

base a noo da dupla orientao dialgica bakhtiniana foi possvel estudar o material

coletadotantonoquedizrespeitoasuaorientaoemdireoaoobjetodediscursoquantono

que diz respeito aos vrios posicionamentos assumidos quando o discurso se dirige a

diferentes tipos de ouvinte, partindo da distino presente na reflexo terica de Mikhail

Bakhtinentreoouvinteefetivoeoouvinteidealizado.

O estudo realizado evidenciou que esses discursos, ao mesmo tempo em que

propiciamo fortalecimento dos lugares enunciativos ocupados por cadaumadas instncias

envolvidas, revelam a existncia de uma interdependncia mtua. Por outro lado, o

dialogismoaliinstaurado,longedeseaterunicamenteaoparadigmadabuscadeumaverdade

absoluta,fundadiferentesnveisdialgicosnointeriordodiscurso,implicando,paraalmdo

campo da interlocuo imediata, um permanente dilogo dos sujeitos envolvidos com os

diversostiposdeouvinteproduzidosnoepelodiscurso.

A hiptese inicialmente formulada de que esses discursos, por seu carter

polmico,tenderiamacriarumacircularidademonossmicadecunhoargumentativo,foi,

no desenvolvimento do trabalho, sendo revista, e abriu espao a novas indagaes que

trouxeramtonaquestesrelacionadasvisopsicanalticadoimaginrioeaofenmenoda

modalizaoautonmica.

Otrabalhodesenvolvidonofornecerespostasdefinitivassquesteslevantadas,

pretendendotosomentecontribuir,namedidadopossvel,paraumamelhorcompreensode

aspectos vinculados ao fenmeno do dialogismo discursivo, voltado para a questo da

criaoerepresentaodeeventosnamdiaescrita.

4

SegundoLciaSantaella(1996,p.212),devemoslutarcontraohbitodesnos

propormosadebaterumaquestoquandojtemosrespostasprontasparaela.Issoserianegar

aessnciamesmadodebateedodilogoqueaindagaoeabusca.Defato,sehouvesse

respostas prontas, transparentes e unvocas para o que aqui investigado, esse trabalho

perderiaasuarazodeexistir.

Espero,assim,queateseoraapresentadapossa,porumlado,contribuirparauma

compreensomaisprecisadaimagempblicaeinstitucionaldaAbindasformaspelaquais

elasedizeditanaimprensabrasileira,criando,porconseguinte,apossibilidadedeuma

reflexosobreoprprioagircomunicativodainstituio,oqualtempapeldeterminanteem

umprocessodelegitimaoquesequeiraefetivo1.

Espero,poroutrolado,queapesquisarealizadapossacontribuircomosestudos

hojerealizadosnocampodateoriadialgicadeMikhailBakhtinedespertealgum interesse

no apenas de lingistas e pesquisadores do tema inteligncia, mas do cidado de uma

maneira geral, enquanto parte legitimamente interessada no fortalecimento das nossas

instituiespblicasedoEstadoDemocrticodeDireito.

1 Usoaquilegitimaonosentidohabermasianodotermo.ParaHabermas(citadoporGNERRE,1985,p.5):Alegitimaooprocessodedaridoneidadeoudignidadeaumaordemdenaturezapoltica,paraquesejareconhecidaeaceita.

5

IBASESTERICAS

O presente trabalho tem comomarco terico fudamental a TeoriaDialgica de

MikhailBakhtin2,comnfasenocarterdialgicodostextosestudados.

Odialogismoconstitui,narealidade,oleitmotivdetodaaobrabakhtiniana,oque

podeserclaramenteobservadonapassagemseguinte:

Arelaodiscursiva[...]divideseemdoismomentos:aenunciao,quedizrespeito ao locutor a compreenso do enunciado pelo ouvinte, a qualcontm, desde j e sempre, elementos de resposta.De fato, em condiesnormais, estamos sempre emacordoou em desacordocom oque dito etrazemos,viaderegra,umarespostaatodoenunciadodonossointerlocutor[...].Podese,pois,afirmarque todacomunicao, toda interaoverbalserealizamsobaformadeumatrocadeenunciados,assumindoadimensodeumdilogo.3(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p.292).

, portanto, fazendo uso dametfora do dilogo que o autor representa, como

afirmaolingistaCarlosAlbertoFaraco(2003,p.57),adinamicidadedouniversodacultura

humana,oqual,intrinsecamenteresponsivo,semovecomosefosseumgrandedilogo.Mas

essedilogo,

[...]devesercompreendidonumsentidoamplo, isto , noapenascomoacomunicao em voz alta de pessoas colocadas face a face, mas todacomunicaoverbal,dequalquertipoqueseja.Olivro,isto,oatodefalaimpresso, constitui igualmente um elemento da comunicao verbal. [...]Assim, o discurso escrito de certa maneira parte integrante de umadiscussoideolgicaemgrandeescala:elerespondeaalgumacoisa,refuta,

2 A referncia aqui feita unicamente ao nome deMikhailBakhtin devese ao fato de que esse autor hojeconsideradooprincipalexpoentedochamadoCrculodeBakhtin,oqualenvolvetambmaproduotericade outros pensadores, tais como Valentin Voloshinov e P. Medvedev.Muitos dos textos consultados so,inclusive,assinadospormaisdeumautor,prticaque findouporgerarumaamplacontrovrsianoquedizrespeitoautoriadoconjuntodeobrasproduzidaspeloCrculo.Opteiporcitartextualmenteosautoresquandome refiro s obras especificamente assinadas por cada um deles, e utilizar unicamente o nome de Bakhtinquandotratodopensamentofilosficolingstico do Crculocomoumtodo.

3TodasascitaesextradasdoensaioLastructuredelnonc(traduzidodiretamentedorussoparaofrancspor Tzvetan Todorov) correspondem a uma traduo por mim realizada do idioma francs para a lnguaportuguesa.Demodosemelhante,livroseartigosconsultadosemlnguaestrangeiratambmforamobjetosdetraduocomoobjetivodeharmonizaralnguautilizadanaapresentaodatese.

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confirma, antecipa as respostas e objees potenciais, procura apoio, etc.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997b,p.123)

Essanoodedialogismo,implicandoapresenaexplcitaounodooutrono

discurso,mostrousevaliosaparaacompreensodosmodospelosquaisarelaopolmica,

presentenostextosemestudo,discursivamenteconstruda.

O ponto nodal que serviu de fundamento a minha pesquisa diz respeito s

diferentes formasdeorientaodialgicadeque falaBakhtin (1988a,p.85), remetendo ao

mesmotempoparaodiscursodeoutrem apartirdoseuobjeto(outema)eparaodiscursode

outrem na resposta antecipada do ouvinte, caso em que o discurso corrente diretamente

determinadopelarespostafuturaalheserdada.

Ateoriadialgicabakhtinianafoitrabalhadaemumainterfacecomasmodernas

tendncias da Anlise do Discurso de linha francesa (ADF), partindo da premissa de que,

muitoemboraodialogismobakhtinianoeaADFsejamvertentestericasdistintas,ambasso

voltadasparaumavisoda linguagemenquantofenmenoeminentementesocialedeclara

conformaoideolgica.

AteoriadosujeitodesenvolvidapelaADFclssica,qualsejaadeumsujeitoque

nosenhorabsolutodoseudizer,masclivado/divididoentreoeueo(s)outro(s)permitiu

enfocar a noo bakhtiniana de dialogismo trazendo, no desenvolvimento do trabalho,

aspectos relacionados noo lacaniana de alteridade, alteridade esta tambm basilar na

produointelectualdeBakhtin,sobretudoemseusestudossobreapoticadoescritorrusso

Fidor Dostoievski. Temse ali evidenciada a multiplicidade das vozes dispersas em um

discurso vozes prprias e vozes alheias, vozes prximas e vozes longnquas que

atravessam os processos enunciativos. O que significa dizer que, de modo similar ao que

ocorre na perspectiva da ADF tambm para Bakhtin o sujeito no onipresente nem

unvocooseudiscurso.

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tambmnessaperspectivaquevoinserirseasreflexesdeJacquelineAuthier

Revuzacercadaheterogeneidadediscursiva,temaqueapesquisadoradesenvolveapartirdas

idiasdeMikhailBakhtinedeJacquesLacan,formulandoaspremissasdanocoincidncia

interlocutiva,danocoincidnciadodiscursoconsigomesmo,danocoincidnciaentre

aspalavraseascoisas,edanocoincidnciadaspalavrasconsigomesmas.

Trabalhandocomaquestododialogismodopontodevistadaalteridadequelhe

constitutiva, Jaqueline AuthierRevuz nos fornece um interessante estudo das formas de

modalizao autonmica, ou seja, dos modos pelos quais o sujeito se representa em seu

prprio discurso enquanto noum, mas aspirando unidade ou criando para si mesmo a

ilusodeumaunidaderedentora.

Em sntese, as principais vertentes tericas utilizadas em minha pesquisa

equivalematrsdiferentesdimensesdiscursivasquemeparecemcomplementaresentresi:

(a)osaspectosdialgicosdodiscurso,combasenasreflexesdeBakhtin(b)as instncias

enunciativasreveladasatravsdoslugaressociaisqueocupamedeumamemriadiscursiva

que se manifesta na interdiscursividade, com base nos postulados bsicos da ADF (c) as

marcas lingsticas da alteridade e da heterogeneidade a partir das concepes de Authier

Revuz.

A essa trilogia vm se somar contribuies de DominiqueMaingueneau, como

uma espcie de bssola quanto metodologia aplicvel, capaz de atender s exigncias

especficasdocorpusdetrabalho.

Os principais fundamentos da teoria dialgica bakhtiniana, bem como aqueles

referentes ADF e heterogeneidade enunciativa, so rapidamente esboados a seguir e

constituemabasedotrabalhoanalticopormimrealizado.Baseestaque,namedidaemquea

prpriaanlisedostextosoexigiu,foiconstantementeretomadaecomplementada,demodoa

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evidenciarasformaspelasquaisasvriasvozespresentesnosdiscursosestudadosseenredam

umasnasoutras,secomplementameseautonomizam,assumindofeiesasmaisdiversasem

sualutaporseremouvidaseacatadas.

1 ODIALOGISMOBAKHTINIANO

O princpio dialgico, como j ressaltado, atravessa toda a produo terica de

Bakhtin e constitui o elementochave para a compreenso dos fenmenos discursivos na

perspectiva desse autor.A primazia ali dada no lngua enquanto sistema abstrato e

normativo,mas linguagemenquantoprticaativadesujeitoscapazesdeoperarmudanas

nesse sistema. A palavra vai mais alm da sua significao dicionarizada e, integrando

processos dinmicos de interao verbal cotidianamente presentes na vida das pessoas,

estabelece,comodizBakhtin,umaespciedeponteentreoeueooutro.

Muito embora a questo da alteridade tenha sido tambm abordada por outros

pesquisadores de peso, podese afirmar que foi o Crculo de Bakhtin o responsvel pela

elaboraodeumateoriaverdadeiramentedialgica,desdobrandoapercepododilogoem

mltiplas dimenses e tomando como elementobase de suas anlises o enunciado e os

processosenunciativosqueaeledoorigem,comosepodeverificarnaspassagensseguintes:

Averdadeirasubstnciadalnguanoconstitudaporumsistemaabstratode formas lingsticas nem pela enunciaomonolgica isolada, nem peloatopsicofisiolgicodesuaproduo,maspelofenmenosocialdainteraoverbal, realizada atravs da enunciao ou das enunciaes. A interaoverbal constitui assim a realidade fundamental da lngua.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997b,p.123).

Oenunciadoconcreto(enoaabstraolingstica)nasce,viveemorrenoprocesso de interao social dos participantes de um enunciado. Suasignificaoesuaformasodeterminadasessencialmentepelaformaepelocarterdesta interao.Se se retirao enunciado desse solo fecundo ebem

9

real,perdeseachavequedacessocompreensodasuaformaedoseusentidoenosetem,entreasmos,senoumenvelopevazio,sejaeleodaabstrao lingstica, seja ele o, to abstrato quanto, esquema depensamento.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p.199).

Essaconcepodialgicadebaseenunciativa,aomigrardoLesteEuropeuparao

Ocidente, foi e permanece sendo responsvel por inmeros desenvolvimentos tericos no

campo dos estudos lingsticos4. Mas essa ampla difuso gerou, por assim dizer, um

movimentoinflacionrioquantoaousofeitodasprincipaisidiasdopensadorrusso,oque,

seporumladopossibilitaoenriquecimentoeaprofundamentodasreflexesalipresentes,por

outro,opera,emalgunscasos,umabanalizaodeseusconceitoschave.

Em muitos dos trabalhos produzidos reina, inclusive, uma forte diversidade

terminolgica (tambm presente, bem verdade, nos prprios escritos bakhtinianos5),

diversidade esta que, no caso, d origemadesdobramentos tericos portadores de sentidos

fortemente diferenciados. assim, por exemplo, que a semioticista Jlia Kristeva, no

ambientedoestruturalismo francsdosanos60, introduzotermo intertextualidadecomo

sinnimodedialogismo,oque,comoafirmaJosLuisFiorin(2003:29),correspondeaum

conceitoredutor,pobree,aomesmotempovagoeimpreciso.Outrosestudiosos,talcomo

Ubaldina Lorda (1997), falam da noo polifnica de Bakhtin como sendo equivalente ao

prprio dialogismoquando possvel ter, na realidade, processos dialgicos semque esses

impliquemnecessariamenteempolifonia.Umoutroexemploquesepodecitardizrespeito

4 Tais desenvolvimentos tornaramse possveis pelo fato de que, muito embora Bakhtin tenha se ocupado,sobretudo,daproduoliterria,muitosdosseustrabalhosdemonstramanecessidadedoexamedeaspectosdoenunciadoverbalquenodizemdiretamenterespeitoobradearte,masaodiscursodavidacotidiana.EmLeDiscoursdanslavieetdanslaposie(1926),porexemplo,Bakhtin/Voloshinovdestacamqueosfundamentoseaspotencialidadesdaformaartsticaulteriorjseencontram,justamente,nessetipodeenunciado.EassimafirmamemLastructuredelnonc(1981,p.301):nosenunciadosmaissimplesquensencontraremosachavedaestruturalinguisticadosenunciadosliterrios.

5Bakhtin(2000b,p397)seautocomenta:Meufracopelavariaoepelavariedadeterminolgicaqueabrangeumnicoemesmofenmeno...Sobreessaquesto,afirmaBethBrait(2003,p.16):Aincompletudeinternado pensamento bakhtiniano, mais do que um arcabouo terico e inacabado, uma postura cientficofilosfica,umaformadeinvestigaoqueapontaparaumatotalidadeabertaemqueodiscurso,formahistricae falante, fazse ouvir atravs de suas inmeras vozes, dirigese a um interlocutor e impe uma atitudedialgica,a fimde que os vrios sentidos, distribudos entreas vozes, possam aflorar.Nessa perspectiva, odiscurso, e seu concerto de incessante produo de efeitos de sentido, no jamais um objeto pacfico epassveldesubmissoaomonologismodeumateoriaacabada.

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aplicabilidade da noo de polifonia no domnio da estrutura lingstica, tal como

desenvolvida por Oswaldo Ducrot (1977). Para esse autor, h polifonia quando possvel

distinguiremumaenunciaodoistiposdepersonagens:osenunciadoreseoslocutores.Em

Bakhtin,entretanto,apresenadeinterlocutoreslongedeindicarumaidentidadediretacomo

fenmenopolifnicopodeapontarsimplesmenteparaapresenadeposiesenunciativasnas

quaisdominaabivocalidade,cadainstnciainterlocutivadefendendooseuprpriopontode

vistaelanando,emdireoaooutro,asuacontrapalavra.

Bakhtin estuda o fenmeno dialgico a partir de diferentes patamares ou

dimenses,indodomaisamploaomaisrestrito,ou,emtermospropriamentebakhtinianos,do

grande ao microdilogo 6. Para ele, no s as pessoas dialogam entre si como tambm

dialogam consigomesmas os textos, os discursos, se respondem uns aos outros o jdito

dialoga com o que ainda no foi dito e o prprio fenmeno lingstico marcado pela

heteroglossia,ouseja,pelapresenadeumplurilingismodialgicoquelheconstitutivo.

Nessesentido,dizoautor (eugrifo):

Asrelaesdialgicassopossveisnoapenasentreenunciaesintegrais(relativamente), mas o enfoque dialgico possvel a qualquer partesignificante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta noseja interpretada como palavra impessoal da lngua, mas como signo daposio semntica de um outro, como representante do enunciado de umoutro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. [...] Por outro lado, asrelaesdialgicassopossveis tambmentreos estilosde linguagem,osdialetossociais, etc.desdeque elessejamentendidos comocertasposiessemnticas,comoumaespciedecosmovisodalinguagem[...].Porltimo,as relaesdialgicas sopossveis tambmcoma suaprpria enunciaocomoum todo, compartes isoladasdesse todo e comumapalavra isoladanele, se de algummodo ns nos separamos dessas relaes, falamos comressalva interna, mantemos distncia face a elas, como que limitamos oudesdobramos a nossa autoridade. Uma abordagem ampla das relaesdialgicasnosmostraqueelassopossveistambmentreoutrosfenmenosconscientizados, desde que estes estejam expressos numa matria sgnica.Por exemplo, as relaes dialgicas so possveis entre imagens de outrasartes, mas estas relaes ultrapassam os limites da metalingstica.(BAKHTIN,1997a,p. 184).

6 Bakhtin (1997a, p. 42) se refere ao grande dilogo como sendo tpico da obra dostoievskiana, na qualcoexistem vrios dilogos que o condensam e iluminam, instaurando o fenmeno da polifonia. J omicrodilogo(1997a,p.223)definidocomoacombinaodevozesnombitodeumaconscincia.

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At mesmo no plano da formao da conscincia, que d origem ao discurso

interior, Bakhtin/Voloshinov vem uma base dialgica ao afirmarem que o prprio

pensamentojencontraapalavrapovoada.Segundoessesautores:

Tudo o queme diz respeito, a comear pormeu nome, e que penetra emminhaconscincia,vemmedomundoexterior,dabocadosoutros(dame,etc.),emedadocomaentonao,comotomemotivodosvaloresdeles.Tomoconscinciademim,originalmente,atravsdosoutros:delesreceboapalavra, a forma e tom que serviro para a formao original darepresentao que terei de mim mesmo. [...] Assim como o corpo que seforma originalmente dentro do seio (do corpo) materno, a conscincia dohomem desperta envolta na conscincia do outro. (BAKHTIN, 2000b, p.378).

Aquelequeapreendeaenunciaodeoutremnoumsermudo,privadodapalavra,mas,aocontrrio,umsercheiodepalavras interiores.Todaasuaatividademental,oquesepodechamarofundoperceptivo,mediatizadopara ele pelo discurso interior e por a que se opera a juno com odiscurso apreendido do exterior.A palavra vai palavra. no quadro dodiscurso interior que se efetua a apreenso da enunciao de outrem, suacompreenso e sua apreciao, isto , a orientao ativa do falante.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997b,p.147148).

Bakhtin/Voloshinov (1997b, p. 63) chamam s unidades do discurso interior

impressesglobaisdeenunciaes,fazendoemprstimodaexpressocunhadaporGompertz

paradesignarumaimpressoaindanoisoladadoobjetototalequeofereceumaimpresso

dotodo,queprecedee lanaos fundamentosdacognioclaradoobjeto.Tais impresses

globaisencontramse,segundoosautores,ligadasumassoutrasesesucedem,nosegundo

as regras da lgica ou da gramtica, mas segundo leis de convergncia apreciativa

(emocional), de concatenao de dilogos, e numa estreita dependncia das condies

histricasdasituaosocial.

VsequeaconcepoqueBakhtin/Voloshinovtmdodilogo interiorforma

emblemtica de microdilogo faz com que os autores se interessem, sobretudo, pelo

movimentoqueelerealizaemdireoaoexterior,ouseja,nautilizaoqueosinterlocutores

fazemdapalavranacomunicaoverbalativa.Podesefalar,portanto,napresenadeduas

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dimenses dialgicas a do discurso interior e a do discurso exterior as quais,

complementandosemutuamente,nopodemserpensadasdeformaisolada:

A orientao da atividademental no interior da alma (a introspeco) nopodeserseparadadarealidadedesuaorientaonumasituaosocialdada.E por essa razo que um aprofundamento da introspeco s possvelquandoconstantementevinculadoaumaprofundamentodacompreensodaorientaosocial.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997b,p. 62).

Vivo nouniverso daspalavrasdo outro.E toda aminha vida consiste emconduzirme nesse universo, em reagir s palavras do outro (as reaespodem variar infinitamente), a comear pela minha assimilao delas [...]paraterminarpelaassimilaodasriquezasdaculturahumana.(BAKHTIN,2000b,p. 383).

Entretanto,comodizBakhtin,aindaqueaspalavrassedividamparacadaumde

nsempalavraspessoaisepalavrasdooutro,asfronteirasentreessascategoriaspodemser

flutuantes,sendojustamentenessasfronteirasquesetravaodurocombatedialgico.

Nesse contexto, possvel afirmar queomoderno conceito de intertextualidade

(como jvisto, introduzidoporKristevanosanos60),bemcomoanfaseatualmentedada

aosmodosdeapropriaodiscursivadapalavradooutro,vinculamsereflexobakhtiniana

acercado dialogismo,muito emborao autor no faa uso desses termos.Os fenmenos da

intertextualidade e da interdiscursividade esto implicitamente presentes no princpio

dialgicodoCrculodeBakhtin,comosepodepercebernapassagemseguinte:

No pode haver enunciado isolado. Um enunciado sempre pressupeenunciados que oprecederam e que lhe sucedero ele nunca oprimeironem oltimo apenaso elo deumacadeia e nopode ser estudado foradessacadeia.Existe entreos enunciadosumarelao impossveldedefinirpor termosdecategoriasmecnicasou lingsticas. (BAKHTIN,2000b,p.375).

Aqui,abroumparnteseparaanalisarumpoucoasemprecontroversadistino

entre interdiscursoe intertextualidade.Muitosestudiososdebruamse sobreaquestosem

chegarem, entretanto, a um denominador comum, provavelmente em razo da prpria

diversidadecomqueasnoesdetextoedediscursoso,porcadaumdeles,trabalhadas.

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possvel citar, como exemplo de tal diversidade conceptual, as idias de Jean Dubois (in

ORLANDI, 1997b, p. 123) para quem a intertextualidade definida em termos de

expresses linguajeiras (seu contedo e sua forma), enquanto que a interdiscursividade

definidanoplanodosentidodas expresses.Numadireodiversa,EniOrlandi (1999,p.

34) fala do interdiscurso como todoo conjunto de formulaes feitas e j esquecidas que

determinamoquedizemosedointertextocomoarelaodeumtextocomoutrostextos.

Maingueneau(1999,p.140),porsuavez,tentaelucidaroproblemasugerindoumadistino

entreintertextoeintertextualidade,oprimeirocompreendendooconjuntodefragmentosque

otextocitaefetivamenteeasegundacorrespondendoaostiposderelaesintertextuaisque

a competncia discursiva define como legtimas, ou seja, como tipos de relaes

intertextuais que uma formao discursiva mantm com outras. A intertextualidade se

dividiria,segundoesseautor,emintertextualidadeinternaondeodiscursosedefineporsua

relaocomdiscursosdomesmocampo,e intertextualidadeexternaemqueodiscurso

defineumacertarelaocomoutroscampos.

O crtico literrio Grard Genette, citado porMaingueneau (1999, p. 154155)

complexifica ainda mais esse quadro conceitual, inserindo, em seus estudos literrios, as

noesdeparatextualidade (relaodeum textocomseuentorno,a compreendidos ttulo,

subttulos, prefcios, epgrafes, ilustraes, comentrios marginais, etc.), metatextualidade

(comentriossobreoutrostextos,semquepassenecessariamentepelacitaodefragmentos

dotextocomentado), arquitextualidade (quecolocao textodentrodeuma taxonomia,uma

tipologia do discurso) e hipertextualidade (mltiplos processos que permitem produzir um

textoapartirdeoutro).

Oenfoquebakhtinianodaquesto,entretanto,pareceindependerdessasdistines

propostas.Narealidade,quandoBakhtintratadodiscursoeleofazsemprelevandoemconta

as formas de dilogo presentes nos textos queo atualizam.Ora, analisar um discurso s

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possvel atravs dos textos (escritos ouorais) que lhe do concretude, e,mutatismutandis,

analisar textos,naperspectivabakhtiniana,significapriorizarosmovimentosdialgicosque

cada um desses textos instaura em relao a outros, ou seja, implicam dar primazia aos

movimentosdialgicosquefundamodiscursonojdito.

ParaBakhtin:

Todapalavra (todo signo) deum texto conduzpara forados limites dessetexto.Acompreenso o cotejo deum texto com osoutros textos. [...]Otextosviveemcontatocomoutrotexto(contexto).Somenteemseupontodecontatoquesurgealuzqueaclaraparatrseparafrente,fazendocomque o texto participe de um dilogo. Salientamos que se trata do contatodialgico entreos textos (entreos enunciados), enodocontatomecnicoopositivo,possvelapenasdentrodas fronteirasdeumtexto (enoentretextoecontextos),entreoselementosabstratosdesse texto(entreossignosdentrodotexto),equeindispensvelsomenteparaumaprimeiraetapadacompreenso(compreensodasignificaoenodosentido).Portrsdessecontato,hocontatodepessoasenodecoisas.(BAKHTIN,2000c,p. 404405).

Anfaseassimdadapeloautoraosaspectosdialgicosquepresidemaproduoe

acirculaodostextosimpeumareflexoacercadatambmpolmicanoodecontexto.

EmBakhtin/Voloshinov(1997b),essanootrabalhadaapartirdoschamados

contexto narrativo e contexto social7.Os autoresvinculamo contexto narrativo aos vrios

textos produzidos sobre um determinado tema e s maneiras pelas quais cada um desses

textos incorpora em sua construo formal o discurso de outrem. O contexto social

relacionadoaosaspectosextraverbaisdoenunciado,quaissejam,asituaoeoauditrio.

Ressaltese,entretanto,queambososcontextoscontextonarrativo(daordemdo

verbal)econtextosocial(daordemdoextraverbal)sefundem,naturalmente,nointeriordas

prticas discursivas. Assim que, para Bakhtin/Voloshinov, o contexto narrativo reflete

necessariamente as tendncias sociais da interao verbal numa poca e num grupo social

dados, ao mesmo tempo em que o contexto social se faz apreensvel no interior de cada

7Refernciasao contextosocialsoencontradasnaspginas71,117e124,daobraacimacitada.Refernciasaocontextonarrativosotambmaliencontradas,sobretudoapartirdapgina144,quandoosautorestratamdosesquemasdetransmissodapalavradeoutremnodiscurso.

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enunciado. Faces de uma mesma realidade enunciativa, o verbal e o extraverbal dialogam

entre si complementandose um ao outro, e a tal ponto que, de modo semelhante

problemtica da distino entre o intertextual e o interdiscursivo, conceber um implica

necessariamentelevaremcontaooutro.

Tratandodocontextonarrativo,osautoreslevamemcontaosaspectosformaisde

elaborao textual, enfatizando, em suas anlises, questes relacionadas estilstica e

sintaxe.Bakhtin (1997a, p. 185) cita como formas estilsticas de representao do discurso

alheioaestilizaoemsentidoestrito,apardiaretricaeoskaz,ressaltandoquetodosesses

fenmenos tm como trao comumumduplo sentido (ou umadupla orientao) voltado

paraoobjetododiscursoeparaumoutrodiscurso,ouseja,paraodiscursodeumoutro.Os

esquemas sintticos de distribuio das palavras de outrem so tratados por

Bakhtin/Voloshinov (1997b, p. 144196) atravs das categorias do discurso direto, do

discurso indireto e do discurso indireto livre, alm dos modelos mistos (praticamente

infinitos)quepermeiamessatradeestabelecida.

A estilizao definida por Bakhtin como a representao literria do estilo

lingstico de outrem constituindo um modo de aclaramento mtuo entre diferentes

linguagens(nosentidodosdialetossociaisqueasconstituem).Naestilizao,estopresentes

duas conscincias lingsticas: a que representa e a que representada (estilizada).

Diferentemente do discurso original do autor, o fragmento, inserido em outro contexto

narrativo,ganhanovaimportnciaesignificao,aindaqueadoteomesmopontodevistado

discursooriginal.Issosignificadizerque,diferentementedaimitao,ondeoimitadorlevaa

sriooqueimita,apropriandosediretamentedodiscursodooutroemumprocessodefuso

devozes,naestilizaoocorreumaconvencionalizaodoestilodoautor,quepassa,assim,a

serviranovosfins.Oimportanteparaoestilizadoroconjuntodeprocedimentosdodiscurso

de outrem como expresso e reforo do seu prprio ponto de vista. Justamente por isso,

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Bakhtinconsideraqueumasombraobjetificadarecai sobreopontodevistaassimformado,

deonderesultatornarseeleconvencional.

Jnapardia,muitoemboraoautorfalealinguagemdooutro,demododiferente

ao que ocorre na estilizao, ele reveste essa linguagem de orientao semntica

diametralmenteopostaorientaoanterior.Odiscursoseconverte,assim,empalcodeluta

entreduasvozesqueestoemoposiohostil.

OskazvistoporBakhtincomoumaformaespecficaderepresentaoque,de

modosimilarestilizaoepardia, tambmrefrataodiscursodeoutrem,paraatendera

novas intenes. O skaz pode adquirir um tom parodstico ou ficar mais prximo da

estilizao.Oseudiferencialemrelaoaessasduasoutrascategoriasseria,deum lado,o

fato de ser ele estruturado como narrao de uma pessoa distanciada do autor (pessoa

concretamentenomeadaousubentendida),e,deoutrolado,asuaorientaoparaodiscurso

falado, com nfase em certas particularidades lingsticas (entoao da fala, construo

sintticadodiscursofalado,lxicocorrespondente,etc.).

Bakhtin ressaltaaindaqueentreaestilizaoeapardia sedistribuemhbridos

determinados por interrelaes as mais variadas das linguagens.O conflito que ocorre no

interior do discurso, o grau de resistncia do discurso parodiado em relao quele que o

parodia,oplurilingismoqueocerca,funcionamcomofundosdialgicosecriamavariedade

deprocedimentosdarepresentaodalnguadeoutrem.

A breve exposio aqui feita mostra o quanto a questo do estilo afastase, no

pensamento do Crculo de Bakhtin, da viso estilstica tradicional (na qual o estilo

concebidoapartirderegularidadesquetipificamotexto,isto,depreceitosestabelecidosdo

ponto de vista da imanncia do sistema lingstico). Em Bakhtin, o estilo, longe de

correspondernormatividadedeformaspadronizadasdedizer,definido,segundopalavras

do autor (1988a, p. 174), por uma relao criativa e substancial do discurso com o seu

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objeto, com o prprio falante e com o discurso de outrem ele tende a fazer com que o

materialsecomuniqueorganicamentecomalinguagemealinguagemcomomaterial.

Bakhtin tece, inclusive, uma crtica explcita estilstica convencional, ao

ressaltar a pouca importncia ali dada relao valorativa que o locutor estabelece com o

enunciado:

A estilstica encerra cada fenmeno estilstico no contextomonolgico deuma dada enunciao autnoma e fechada, como se o aprisionasse numcontexto nico: ela no pode fazer eco a outras enunciaes, no poderealizar seu sentido estilstico em interao com elas, ela obrigada aexaurirsenoseucontextofechado.[...]justamenteocarterplurilnge,enoaunidadedeuma linguagemcomumnormativa,querepresentaabasedoestilo.(BAKHTIN,1988a,p.113e84).

Essecarterplurilngedoestilovai se fazer sentir,dopontodevista sinttico,

nosmodospelosquaisodiscursoseapropriadapalavradeoutremoperandoasuainseroe

adistribuindonointeriordetextos.nessaperspectivaqueBakhtin/Voloshinovintroduzema

noodediscursocitado,sobasformasdodiscursodireto,dodiscursoindiretoedodiscurso

indireto livre, enquantoesquemascomposicionaisbsicoscapazesde realizara transmisso

dasenunciaesdeoutremeintegrlasemumcontextocoerente.Paraosautores(1997b,p.

144),odiscursocitadoodiscursonodiscurso,aenunciaonaenunciao,e,aomesmo

tempo,umdiscursosobreodiscurso,umaenunciaosobreaenunciao.

Odiscursodiretocaracterizasepelapresenademarcaslingsticasclaras,com

estabelecimentodefronteirasdefinidasentreodiscursonarrativoeodiscursocitado.Criando

umestiloqueoautorchamamonumental,odiscursodiretoapresenta,entretanto,variantes

que, na maior parte das vezes, findam por destruir semanticamente essas fronteiras to

claramente definidas. Nesses casos, operase um contgio recproco entre a citao e o

contextoquearecebe.nessecampoqueBakhtin/Voloshinovinseremascategorias:(a)do

discurso direto preparado (caracterizado por uma certa imposio do ponto de vista do

autor, o que significa dizer que os temas bsicos do discurso direto a ser introduzido so

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antecipadamente coloridos pelas entoaes do autor) (b) do discurso direto esvaziado (no

qualoautorseenvolvetofortementecomaquiloquecita,queacitaoaserfeitaassumeas

caractersticasdopontodevistapessoaldoautor)(c)dodiscursocitadoantecipadoeoculto

(no qual a prpria narrativa do autor citante j conduzida a partir do ponto de vista do

discurso citado) e, (d) do discurso direto retrico (no qual pergunta e resposta so

simultaneamente apresentadas e podem ser interpretadas como tendo por fonte o autor da

narrativaouoautordodiscursocitado,oqueindicaumfortegraudesolidariedadeentreos

interlocutores).

O discurso indireto corresponde transmisso analtica do discurso de outrem.

Essa tendncia analtica manifestase, principalmente, pelo fato de que os elementos

emocionaiseafetivosdodiscursonosoliteralmentetranspostosaodiscursoindireto,pois

elesnosoexpressosnocontedo,masnasformasdaenunciao.

Esseesquemaapresenta,segundoBakhtin/Voloshinov,trsvariantesodiscurso

indireto analisador do contedo, o discurso indireto analisador da expresso e a variante

impressionista , cada uma delas dirigindo a ateno para objetos fundamentalmente

diferentes.

Assim, no discurso indireto analisador do contedo, a enunciao de outrem

apreendida como uma tomada de posio com contedo semntico preciso por parte do

falante,ouseja,demaneiraanalticaquetranscritaacomposioobjetivadoquedisseo

falante. A enunciao de outrem apreendida no plano temtico, abrindo espao para a

rplicaeocomentrionocontextonarrativo,umavezquehumantidadistnciaentreas

palavrasdonarradoreaspalavrascitadas.Jnodiscursoindiretoanalisadordaexpresso,as

palavras,asmaneirasdedizerdeoutrem,geralmentecolocadasabertamenteentreaspas,so

introduzidas de tal forma que sua especificidade, sua subjetividade, seu carter tpico so

claramentepercebidos.Aoapropriarsedodiscursodireto,onarradortornaesseentreaspas

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um discurso indireto, dando a ele o seu tom, o que provoca, nas palavras de

Bakhtin/Voloshinov,umaespciedeestranhamentoqueconvmnecessidadedoautor.A

varianteimpressionista,localizadaameiocaminhoentreavarianteanalisadoradocontedoe

avarianteanalisadoradaexpresso,utilizadaparaa transmissododiscurso interior,dos

pensamentosesentimentosdoautordodiscursocitado, tratandoodiscursodeoutremcom

alto grau de liberdade, seja abreviandoo, seja indicando apenas os seus temas ou as

dominantesdessestemas.

O discurso indireto livre caracterizase principalmente por ser desprovido de

marcassintticasclarasemrazodapresenadeumapassagemconstanteentreoshorizontes

apreciativosdosinterlocutoresenvolvidos(aquelequecitadoeaquelequecita).Elepermite

ao locutor aomesmo tempo em que se identifica com as citaes que faz conservar a

distncia em relao a elas. Bakhtin faz observar que no discurso indireto livre a palavra

citadaapreendidamenosporseusentidoconsideradoisoladamenteemaispelasentoaese

acentuaes prprias do discurso reportado, ou seja, graas orientao apreciativa do

discurso. Percebese que os acentos e as entoaes do autor so interrompidos por

julgamentosdevalordeoutrapessoa.

Ressaltando que cada um desses esquemas estudados recria a sua maneira a

enunciao, dandolhe assim uma orientao particular e especfica, Bakhtin/Voloshinov

(1997b, p. 148152) retomam a questo do estilo realizando uma espcie de sntese do

conjunto de processos (estilsticos e sintticos) de apropriao dialgica, ao evidenciar a

existncia de duas grandes linhas de orientao que ditam as caractersticas de um dado

discurso.Aessasduaslinhasorientativas,elesdoosnomesdeestilolineareestilopictrico.

O estilo linear apresentaria uma tendncia conservao da integridade e da

autenticidadedodiscursocitadoemrelaoaodiscursocitante,zelandopelamanutenode

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fronteirasdefinidas,doquepodeserexemploacitaoliteral feitaemdiscursodireto,na

qualapalavradeoutremaparentementepreservada.

Nasegundavertente,adoestilopictrico,diferentementedoestilolinear,ocorre

uma tendncia ao apagamento de fronteiras, fazendo comque a lngua elaboremeiosmais

sutis e mais versteis para permitir ao autor infiltrar suas rplicas e seus comentrios no

discursodeoutrem.

O estilo pictrico, terreno privilegiado dos discursos indireto e indireto livre,

apresentariatambmduasorientaesdiversas,orafazendocomqueosignificadodapalavra

alheiasejasubestimadooquelhedumafeiodeordemdecorativa,oraprovocando

umaespciedediluiodoprpriocontextonarrativonoqualapalavraalheia inserida,o

quefariacomqueessecontextosejapercebidoeatmesmoautoreconhecidocomofala

deoutrapessoa.ocaso,porexemplo,emqueoautorpareceapagarseasiprprioese

transmuda na figura deumnarrador quedialoga,muitas vezes empde igualdade comos

heris,ospersonagens,ouosfatosquecomenta.

Bakhtin/Voloshinovressaltamquenoestilopictrico,

[...] o contexto narrativo esforase por desfazer a estrutura compacta efechadado discurso citado,por absorvlo e apagar as suas fronteiras. [...]Sua tendncia atenuar os contornos exteriores ntidos da palavra deoutrem. Alm disso, o prprio discurso bem mais individualizado. Estatendnciaencerraumavariedadedetipos.Onarradorpodedeliberadamenteapagar as fronteiras do discurso citado, a fim de colorilo com as suasentoaes,oseuhumor,asuaironia,oseudio,comoseuencantamentoouoseudesprezo.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1997b,p. 150).

Acitaoacimamostraclaramenteoquantoocontextonarrativodeumdiscurso

seinsereesemescla,paraBakhtin/Voloshinov,emumamplocontextosocialnopuramente

verbal,masintegradoporoutrasvariveistaiscomoospossveissentimentosdoautorem

relaoaoqueenunciaeasuacontraparteentonacional.

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Quantoimportnciadocontextosocialnaelucidaodeefeitosdesentidos,os

autores a introduzem exemplarmente em sua obra fazendo a narrativa de duas situaes

diversas:noprimeirodosexemplosdados,Bakhtin/Voloshinov(1981,p.188190)sereferem

adois indivduos que se encontramolhandoumapaisagemexterior atravs deuma janela,

quandoumdeles,aoveranevequealicai,dirigeseaooutroeenuncia:Voil8.Nosegundo

exemplo, Bakhtin/Voloshinov (1981, p. 301303) introduzem a figura de um homem que,

sentado em umamesa e tendo um adolescente de p a sua frente, teria dito depois de um

momentodesilncio:Moui!9,oquefazcomqueojovemenrubesaviolentamenteedeixe

orecinto. Indagandosobreoquepoderiasignificaros lacnicosenunciadosVoileM

oui!, os autoresmostramque aindaque se realizasse uma anlise gramatical sob todosos

seus aspectos, ainda que se procurasse nos dicionrios todos os sentidos possveis destas

palavras, ainda assim, seria impossvel compreender tais conversaes, que correspondem,

entretanto,averdadeirosecompletosdilogos.

Adificuldadedasuacompreensoresidiria,justamente,naignornciaemrelao

a tudo o que diz respeito segunda parte (extraverbal) do enunciado, a qual seria

determinanteparaaelucidaodosentidodaprimeiraparte(verbal).

Assimque,osautoresressaltamnocasodosegundoexemplocitado:

Ns ignoramos, antes de mais nada, onde e quando se processa talconversaoemseguida,desconhecemososeuobjeto e, finalmente, nadasabemosdaposiodecadaumdosinterlocutoresemrelaoaesseobjetonem das respectivas avaliaes que incidem sobre tal objeto. Suponhamosqueestestrscomponentesdaparteextraverbaldoenunciadodeixemdenosser desconhecidos ns sabemos que o fato ocorreu durante uma prova ocandidatonorespondeuanenhumadasquestes,aindaquesimples,queoexaminador lhe props este ltimo, instalado em seu bureau, diz Moui!, com um ar de reprovao e uma ponta de compaixo o candidatocompreendequeoexaminadororeprovou,elesentevergonha,eeledeixaasala. [...] Este pequeno Moui! inicialmente vazio e desprovido designificao, ganha sentido. Ele adquire uma significao perfeitamente

8 Atraduomaisprximaparaoportugus,aindaquenointeiramentesatisfatria,seriaolheparaisso!ouvejas!.

9 Equivalente, aproximadamente a pois sim!, poismuito bem! ou simplesmente pois bem!, em lnguaportuguesa.

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determinadapassveldesesedeseja,serdecifradasobaformadeumafrase determinada, clara e completa assim por exemplo, Voc foi mal,muitomalmeucamarada!Eusintomuito,maseunopossolhedaramdianecessria.exatamente assim que o candidato compreende o enunciadoMoui! , e ele est de acordo com o que ele significa. (BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p.302).

Bakhtin/Voloshinov concluem, portanto, ser todo enunciado necessariamente

constitudodeduaspartesumaparteverbaleumaparteextraverbal:

Todoenunciadodavidaquotidianacomporta[...],juntosuaparteexpressaverbalmente, uma parte extraverbal, no expressa, mas subentendida,formadapelasituaoepeloauditrio.Senoselevaemcontaesteltimoelemento, o prprio enunciado no pode ser compreendido. (BAKHTIN,VOLOSHINOV,1981,p.290).

Oselementos integrantesdaparteextraverbaldoenunciado,consideradoscomo

indispensveisnadeterminaodaorientaosocialalipresente,so,portanto,asituaoeo

auditrio.Masesteselementos,Bakhtinnoosconcebecomosimplesmenteexteriores,como

realidades outras que tangenciariam as expresses verbais. Tambm aqui, ao considerar o

verbal(partepercebidaourealizadaempalavras)eoextraverbal(partepresumida)como

realidadesenunciativas,osautoresossubmetemaumaconstanteinterrelaodialgica.

ComoressaltaBethBrait,

Para Bakhtin, alm do posto, existe, no processo de comunicao, e porforadoprocessointeracional,elementospressupostosequefazempartedaconstruo da significao. [...]A situao extraverbal no meramente acausamecnicadoenunciado,masseintegraaoenunciadocomoumaparteconstitutivaessencialestruturadesuasignificao.(BRAIT,inFIORINEBARROS, 2003,p.19).

AsituaodefinidaporBakhtin/Voloshinovcomosendoarealizaoefetiva,

navidaconcreta,deumadeterminadaformao,deumadeterminadavariaodarelaode

comunicaosocial.Paraosautores:

mais do que evidente que o discurso na vida no suficiente por simesmo.Elesurgenointeriordeumasituaovivida,denaturezaextraverbale se conserva em estreita relao com ela. Mais ainda: o discurso

23

complementado pelos elementos do vivido e no pode deste ser separadosemquepercaseusentido.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p. 189).

Bakhtin/Voloshinovpropemqueseleveemcontatrselementosconstitutivosda

situao:(a)oespaoetempo doeventoenunciativo(b)oobjeto ouotemadoenunciado(c)

aposiodosinterlocutoresdiantedofato(aavaliao).

Considerando,poroutrolado,quetodasituaovividasupenecessariamente

na medida em que ela produz um enunciado , a presena de um ou de vrios

atores/locutores, os autores do o nome de auditrio do enunciado, presena necessria

daquelesquefazempartedasituao.

Oauditriocorresponde,porconseguinte,prpriacenaenunciativapresentena

elaboraodiscursiva,distanciandosedaidiadeumsimplespblicoeatingindoummaior

grau de complexidade, ou seja, pressupondo uma relao dialgica que envolve tanto

interlocutores como ouvintes. Dito em outras palavras, o ouvinte/leitor, estando ou no

fisicamente presente, condio de existncia de um discurso, assim como o locutor

tambm, de certa forma, um ouvinte ouvinte das mltiplas vozes que, necessariamente,

atravessam o seu prprio discurso. E mais ainda: um terceiro participante do processo

tambm colocado em cena o heri (na criao literria) ou o referente (na enunciao

cotidiana).

Temse, ento, uma complexa teia interlocutiva tecida por mltiplos fios

dialgicos,quefoge,conseqentemente,davisolinearizantedeumemissoredeumreceptor

comofigurasestanquesaocuparespaoscomunicativospreviamentedeterminados.Atrade

interlocutivaqualBakhtin/Voloshinovserefereminteragecontinuamente,alternaposiese

determinaaorientaosocialdosenunciados.

Ressaltandoqueaorientaosocialrelacionasecomopesohierrquicoesocial

do auditrio (isto , com a classe social qual pertence(m) os interlocutores, sua situao

financeira,suaprofisso,suafuno),osautoresafirmam:

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Aorientaosocialjustamenteumadasforasvivaseconstitutivasque,aomesmo tempo em que organizam ocontexto do enunciado a situao,determinam, tambm, sua forma estilstica e sua estrutura gramatical.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p.299).

A situao e o auditrio so por eles vistos como elementos indispensveis

compreensodosprocessosdecomunicaoconcretaentresujeitosdediscurso:

Ali, ondea anlise lingstica no v senopalavras e relaes recprocasentresituaesabstratas(fonticas,morfolgicas,sintticas,etc.),ali,paraapercepo artstica viva e para a anlise sociolgica concreta, sodescobertas relaes concretas entre os homens. Relaes que sosimplesmente refletidas e fixadas no material verbal. O discurso umesqueleto que se recobre de carne viva ao longo da percepo criativa econseqentemente no curso da comunicao social viva. (BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p.204)

Essas relaes vivas, fundamentalmente dialgicas, existentes entre os homens

atravs dos discursos, ganham coloraes diversas em razo da orientao que rege a sua

materialidadetextual.Temseentoque,comoBakhtinsugere,seodiscursodavidaprtica

estcheiodepalavrasdeoutros,estaspalavrasnosojamaisneutrasdopontodevistado

falantequedelasfazuso:

Comalgumasdelas fundimos inteiramenteanossavoz,esquecendonosdequem so com outras, reforamos as nossas prprias palavras, aceitandoaquelas como autorizadas para ns por ltimo, revestimos terceiras dasnossas prprias intenes, que so estranhas e hostis a elas. (BAKHTIN,1997a,p.195).

Os processos dialgicos instaurados no interior das prticas discursivas

apresentam, portanto, diferentes nveis de recepo e aceitao, o que faz com que eles

apresentemumagradaoquevaidesdeoquesepodeconsiderarumaaparentemonofonia

enunciativaatamultivocalidadeplenaque,abrigandomltiplasvozes,podetransmudarse

empolifonia.Entreumeoutroplosdialgicosdomaismonofnicoaomaisplurivocal,

encontramos toda uma gama de procedimentos, de estratgias lingsticas adotadas pelos

25

interlocutores,atestandoaexistnciadediferentesnveisdeamplitudedialgicaquepodem

estarpresentesnodiscurso.

justamente aqui, mais do que em qualquer outro campo de investigao da

teoria bakhtiniana, que se observa uma variedade terminolgica capaz de induzir a

interpretaesbastantediversasentresi, sobretudonoquediz respeitodistinoexistente

entreosfenmenosdapolifoniaedaplurivocalidadeenunciativas.

Aotratardosestiloslinearepictrico,Bakhtin/Voloshinovobservamqueoestilo

lineartenderiaaumracionalismodogmtico(ouautoritarismoideolgico),enquantoqueno

estilopictricoessedogmatismoautoritrioeracionalistatenderiaadesaparecerdandolugar

aumcerto relativismodasapreciaes sociais, relativismo este favorvelaumaapreenso

positivaeintuitivadetodososmatizeslingsticosindividuaisdopensamentoedasopinies.

O diferencial entre os chamados estilos pictrico e linear estaria, portanto, no

exatamentenaquestodapresenaexplcitadeapenasumavoz(monofonia),deduasvozes

(bivocalidade)oudevriasdelas(plurivocalidade),masnosmodospelosquaisumdiscurso

seapropriadapalavradeoutrem,(a) tornandoaannimamentesuaedelaseservindopara

reforar seu prprio ponto de vista (b) refutandoa de forma silenciosa ou explicitamente

defendendoumpontodevistacontrrioou(c)admitindoaheterogeneidadeconstitutivado

discurso, o carter polissmico de toda e qualquer palavra e com ela estabelecendo um

dilogoplenivalente.

O dialogismo assim concebido como elemento constitutivo de toda e qualquer

prticadiscursiva,tangenciaasearadasrealidadessemnticasquepodemdarorigemauma

monovalnciaouumaplurivalnciadesentidos,deacordocomavaloraodadapalavrade

outrem,aqual,seeqipolente,instauraapolifonia.

Tododialogismopressupeabivocalidade,isto,apresena,nomnimo,deduas

vozes convergentes ou divergentes entre si. Tratase, como afirma Brait (in FIORIN e

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BARROS,2003,p.24),deum fenmenoconstanteeprimrioda comunicaodiscursiva

comumemesmonasdiscussesdetemascientficosenosdebatesideolgicos.

Masessa bivocalidadeassimcomoaprpriaplurivocalidade noconduzem

necessariamente a uma plurivalncia discursiva. Bakhtin ressalta que, sendo as relaes de

acordodesacordo, afirmaocomplemento, perguntaresposta, etc., relaes puramente

dialgicas,emmuitoscasos,

[...] no soumatrito entre duasltimas instncias significativas,masumatritoobjetivadodoenredo(dotema)entreduasposiesrepresentadase inteiramentesubordinadoinstnciasupremaeltimadoautor[locutor].Neste caso, o contexto monolgico no se interrompe nem se debilita.(BAKHTIN,1997a,p. 189)

Asrelaesdialgicaspodem,portanto,apresentarumcartermonolgico,isto,

uma monovalncia de sentidos, independentemente da bivocalidade que lhe imanente.

Nessescasos,processosderestriosemnticodiscursivapretendemacriaodeumefeito

desentidounvocoedominante.

Aesserespeito:

Qualquer discusso entre duas vozes num discurso com o intuito deassenhorarsedele,dedominlo,resolvidaantecipadamente,sendo apenasuma discusso aparente. Cedo ou tarde, todas as elucidaesplenisignificativasdoautorseincorporaroaumcentrododiscursoeaumaconscincia,todososacentos,aumavoz.(BAKHTIN,1997a,p.205).

a partir dessa acepo que Bakhtin contrape a construo discursiva

monolgicaquelaqueabreespaoparaapolifonia.Todasasconsideraesfeitaspeloautor

acercadoromancemonolgicoservemparaexplicaroqueapolifonianonempodeser.A

posioadotadabastanteprodutiva,umavezqueoporapolifoniamonofoniapropriamente

ditanodariacontadaproblemtica ali discutida.Mas talmetodologiautilizadapeloautor

conduz uma boa parte dos estudiosos a considerarem que, se ao monolgico se ope o

polifnico,possveltomaresseltimotermocomosinnimodeplurivocalidadediscursiva.

27

A meu ver, entretanto, polifonia no deve ser confundida com plurivocalidade, como o

prprioautorparecedeixarclaro:

A essncia da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes aqui,permanecem independentes e, como tais, combinamse numa unidade deordemsuperiordahomofonia.Esefalarmosdevontadeindividual,entoprecisamente na polifonia que ocorre a combinao de vrias vontadesindividuais, realizase a sada de princpio para alm dos limites de umavontade. [...] A polifonia pressupe uma multiplicidade de vozesplenivalentes nos limites deuma obra, pois somente sob essa condio sopossveis os princpios polifnicos de construo do todo. (BAKHTIN,1997a,p.21e35).

Destaforma,ofenmenopolifnicocaracterizase,paraBakhtin,noapenaspela

existnciademltiplas vozes,presentificadas nodiscurso,mas, sobretudo,pelo fatodeque

essas vozes se fazem plenivalentes e eqipolentes, sem que uma tenha primazia sobre a

outra10.

Apolifoniainstauraria,conseqentemente,aplurivalnciadesentidos,tendopor

principaiscaractersticas:(a)amultiplicidadedevozesimiscveis(b)anoobjetificaodos

sujeitos de discurso (c) a absoluta igualdade entre os participantes do dilogo e, (d) a

independnciarecprocadosinterlocutoresenvolvidosnoprocessodiscursivo.

InteressanteobservarqueapenasnaanlisedaobradostoievskianaqueBakhtin

faz uso da noo de polifonia. O que me levou a indagar sobre a possibilidade de sua

aplicabilidade na anlise de prticas discursivas cotidianas. Isto porque, trabalhando no

terrenoespecficodeanlisedaproduoliterria,Bakhtinvislumbra,ali,apossibilidadeque

tem o romancista de escalar as profundezas do discurso interior do homem, a alteridade

constitutiva desse discurso, dando forma, atravs do romance, a todas as conscincias que

10 Paulo Bezerra (1997b, p. 4) introduz uma nota na traduo por ele feita de Problemas da Potica deDostoivski, explicando que o termoplenivalente aponta para a presena de vozes plenas de valor, quemantmcomasoutrasvozesdodiscursoumarelaodeabsolutaigualdadecomoparticipantesdograndedilogo,enquantoqueaidiadaeqipolnciaindicaqueasconscinciasqueparticipamdodilogocomasoutrasvozesempdeabsoluta igualdadenoseobjetificam, isto,noperdemoseuSERenquantovozeseconscinciasautnomas.

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habitamsimultaneamenteumanicaconscincia.Ditoemoutraspalavras,amatriaprimada

elaboraoromanescaa idia.Oquesignificadizerquenacriaodoromancepossvel

trabalhardiretamentecomoqueohomempensa,dandolhecorporidadenarrativa,enquanto

quenalinguagemcotidiana,trabalhasecomoqueditoacercadoqueohomempensa.

ComoBakhtinafirma (1997a,p.73),oromancista russorepresentaavidados

personagens no limiardesuascrises e reviravoltas, fazendocomque aspersonagens sejam

internamente inacabadas (pois a autoconscincia no pode ser acabada de dentro). J o

discursocotidiano,tendenteobjetificaodaidia,nopoderiaapresentarsenorasgosde

polifonia (como o caso das marcas de modalizao autonmica a que se refere Authier

Revuz),mas a polifonia no se instaura nunca de formaplena e efetiva. Permanecendona

imagem da metfora polifnica bakhtiniana, possvel afirmar que, na vida cotidiana, a

partitura musical pressupe necessariamente a figura de um regente (o locutor) que,

harmonizandoasvozesdosmltiplosinstrumentos,estabelecendoasalternnciasentreosolo

eocoro,ocantoeocontracanto,fornecesempreotomdamelodiaaserexecutada.

Poroutrolado,seapolifoniaportaemsiaplurivocalidadeeoplurilinguismo,sua

recproca no verdadeira. Um discurso pode abrigar uma multiplicidade de vozes, uma

multiplicidadede lnguas,epermanecermonolgico,ouseja,monovalente.Aesserespeito,

dizBakhtin:

Odebilitamentoouadestruiodocontextomonolgicosocorrequandoconvergem duas enunciaes iguais11 diretamente orientadasparaoobjeto.Dois discursos iguais e diretamente orientados para o objeto no podemencontrarse lado a lado nos limites de um contexto sem se cruzaremdialogicamente, no importa que um confirme o outro ou se completemmutuamente ou, ao contrrio, estejam em contradio ou em quaisqueroutrasrelaesdialgicas[...].Duaspalavrasdeigualpesosobreomesmotema,desdequeestejamjuntas,devemorientarinevitavelmenteumaoutra.Doissentidosmaterializadosnopodemestarladoaladocomodoisobjetos:devem tocarse internamente, ou seja, entrar em relao semntica.(BAKHTIN,1997a,p. 189).

11 Enunciaes iguais aqui entendidas como enunciaes que, embora portadoras de ndices de valor(semntico)diferenciados,socolocadasemummesmonveldepertinnciae/ouvalidade.

29

,pois,noplanodas relaes semnticasqueosdiferentesgrausdedialogismo

ganhamcorporalidade,sejapermitindoaconvivnciadesentidosdiversos,sejaimpondolhes

umahierarquiavalorativaoualimentandoailusodeumsentidonico,autoevidente.Nesse

contexto, parece ser possvel falar de (a) um dialogismo monossmico, no qual a

multiplicidadedevozesconvergeparaalegitimaodeumsentidounvoco,monovalente(b)

um dialogismo bissmico, no qual coexistem dois sentidos contrapostos, que disputam a

prevalncia nacenaenunciativae (c)umdialogismopolissmicoque incorporaativamente

mltiplossentidoseosconfronta,atribuindolhesndicesdevalordiferenciadose,emalguns

casoshierarquicamenteequivalentes,oquetornariapossvelainstauraodeumaverdadeira

polifonia12.

Emqualquer dessas dimenses, o dialogismo, tal como concebido porBakhtin,

fogeaosparadigmasconvencionaisdasteoriascomunicativas, impondoumareconsiderao

dos papis tradicionalmente atribudos a cada um dos agentes envolvidos nos processos

enunciativos.Essesagentespassamaservistos,nomaisnasposiesestanquesdeemissore

de receptor, mas de coparticipantes (ou coenunciadores) nos processos de elaborao

discursiva.

Considerando que a dialogizao do discurso dse, em duas principais linhas

(BAKHTIN,1988a,p.91) arelaodialgicaparacomodiscursodeoutremnoobjetoea

relaodialgicaparacomodiscursodeoutremnarespostaantecipadadoouvinte Bakhtin

enfatizaque:

O ouvinte dotado de uma compreenso passiva, tal como representadocomoparceirodo locutornasfigurasesquemticasdalingsticageral,nocorrespondeaoprotagonistarealdacomunicaoverbal (BAKHTIN,2000d,p.291).

12 Bakhtinfazusodostermosaquipropostos,quandosereferea:(a)umamonossemiavaziaquepodesefazerpresente no interior da polissemia semntica (1988, p. 175) (b) bissemia do discurso bivocal, cujadialogicidade interna a tornariaprenhe de umdilogo (1988, p. 132) e pluriacentuaocomoproblemaestreitamenterelacionadocomoda polissemia.(1997b,p.107).

30

Protagonistaquedesdobrado,peloautor,emvriosoutrospossveis,quandoele

afirmaqueoouvintepodeser:

[...]oparceiroeinterlocutordiretododilogonavidacotidiana,oconjuntodiferenciadodeespecialistasemalgumareaespecializadadacomunicaocultural, o auditrio diferenciado dos contemporneos, dospartidrios, dosadversrios e inimigos, dos subalternos, dos chefes, dos inferiores, dossuperiores, dos prximos, dos estranhos, etc. pode ser, at de modoabsolutamenteindeterminado,o outrono concretizado.(BAKHTIN,2000d,p.320321).

Esse outro no concretizado parece equivaler ao que Bakhtin/Voloshinov

chamamdeouvinteimanenteouidealizado,afirmandoaesserespeito:

Oouvinte[...]entendidoaquicomooouvintequeoprprioautorlevaemconta, aquele a quem a obra orientada e que, por conseqncia,intrinsecamentedeterminaaestruturadaobra.Portanto,demodoalgumnsnosreferimosspessoasreaisquedefatoformamopblicoleitordoautoremquesto.(BAKHTIN/VOLOSHINOV,1981,p.205)

A concepo de um ouvinte que pode ser situado, ao mesmo tempo, em dois

diferentesplanosoudimenses(umplanointerior,naantecipao,peloenunciador,deuma

resposta possvel, e um plano exterior, no porvir que se concretiza atravs da resposta

concretadodestinatrio)significaqueodiscursotrabalha,simultaneamente,emumcampode

interlocuo direta marcado pela exotopia de um ouvinte efetivo e em um campo

dialgicoatravessadopelaquestodaalteridadeconstitutiva,abrindoespaoinstauraode

um ouvinte imaginrio (o ouvinte idealizado) que pode, segundo Bakhtin/Voloshinov,

ocuparposiesdiversasnointeriordoenunciado.

A categoria do ouvinte idealizado inicialmente invocada por

Bakhtin/Voloshinov, em 1926, nas posies de testemunha ou aliado (1981, p. 196).

Posteriormente, em 1929, ao analisar a obra de Doistoivsky (1997a, p. 5355), Bakhtin

defende que a personagem dostoievskiana no uma imagem objetiva, mas um discurso

pleno,umavozpuraqueorafalaparasi,orasedirigeaumaespciedeouvinteinvisvel,a

31

algum juiz. Finalmente, em seu ensaio A estrutura do enunciado, de 1930,

Bakhtin/Voloshinovampliamo lequedasposiesquepodemseratribudasaessesegundo

participante,aoafirmarqueoouvintevirtualpodeassumirospapisdiversosdealiado,de

testemunha,desimpatizanteoudejuiz(1981,p. 296).

Tanto a categoria do ouvinte efetivo quanto os diferentes tipos nos quais se

desdobra o ouvinte idealizado foram utilizados na anlise que fao dos textos coletados,

facilitandoaevidenciaodosdiferentesposicionamentospresentesna relaodialgicaali

instaurada.

2 AANLISEDODISCURSOFRANCESA

Asnoesdeposioedeposicionamentoatravessamgrandepartedaproduo

terica da Anlise de Discurso Francesa (ADF), noes estas que vo sofrer constantes

deslocamentosnointeriordessecampodepesquisas.Se,comoafirmaMaingueneau(2006,p.

14),aposiodaqual falaPcheuxnasprimeiras fasesdaADFse inscrevenoespaoda

lutadeclassesea idiamaisrecentedeposicionamentosedefineno interiordeumcampo

discursivoapartirdochamadopontodevista,parecepossvelassociaraquestodaposio

noo althusseriana do lugartenente (lugar ideologicamente dado e assumido pelo

sujeito), enquanto que a idia de posicionamento abrangeria toda uma multiplicidade de

pontosdevista, implicandoapresenasimultneadeposiesdiversasassumidasnoepelo

discurso.

ApassagemhistoricamenteverificvelnocampodaADFdounoparaomltiplo,

dofechadoparaoaberto,doacabadoparao inacabado,dse,sobretudoatravsdareviso

32

crtica ali realizada no que diz respeito noo foucaultiana de formao discursiva.

CategoriabasilarnaprimeirafasedaADF,aformaodiscursiva(FD)descritaporMichel

Foucault(1987,p.124)comosistemaenunciativogeralaoqualumgrupodeperformances

verbais obedece determina, nos termos dePcheux, tudo o que pode e deve ser dito a

partirdeumaposiodadaemumaconjunturadada.OprprioFoucault,entretanto,chega

paradoxalmenteconclusodequeasFDsnopodemserreduzidasaumsimplesprincpio

deunidade,ouaindaqueesteprincpiodeunidadespodeserexplicadopelaregularidadena

disperso,afirmandoaesserespeitoqueumaformaodiscursivanodesempenhaopapel

deumafiguraquepraotempoeocongelapordcadasousculos:ela[...]colocaoprincpio

de articulao entre uma srie de acontecimentos discursivos e outras sries de

acontecimentos,transformaes,mutaeseprocessos(1987,p.82).

JnocampoespecficodaADF,comoexplicaAuthierRevuz:

reflexocrticadePcheuxsobreaideologia(eodiscursoquearealiza)nopodendodeformaalgumasercompreendidocomoblocohomogneo,idnticoasimesmo,respondeumasriedetrabalhosque,confrontadosaoreal da discursividade, demonstram, na prtica da anlise de discursosespecficos, que a circulaodos enunciadosnoobedece a simples regrasderemissoaumaFD(formaodiscursiva).(AUTHIERREVUZ,1995,p.258).

Asformaesdiscursivaspassamaservistasemumlongoprocessodereviso

crtica, aoqualAuthierRevuz referecomonomais isolveisdoseuexterior,mas soba

dependnciadointerdiscurso,deum ditoemoutrolugarqueatravessaodizereoconstitui:

Ser necessria uma srie de reflexes tericas e de trabalhos descritivospara que o princpio do a parle seja verdadeiramente levado emconsiderao, questionando a homogeneidade das formaes discursivas,herdadadaprimeiraetapa,seguidodeumquestionamentoparaalmdaidiadesuaconsistnciae,finalmente,pondotermoprprianoodeformaodiscursiva,desfeitapelasformasdeumaexterioridadeinternairredutveldeterminao de uma supermquina estrutural interdiscursiva.(AUTHIERREVUZ,1995,p.257).

33

justamenteoreconhecimentodaprimaziadointerdiscursosobreodiscursoque

possibilitaacriaodeumainterfaceentreosestudoscontemporneosnocampodaADFea

teoriadialgicadeBakhtin.

ParaAuthierRevuz:

A progressiva abertura sobre a heterogeneidade discursiva de uma ADfundamentalmente marcada pela exigncia de procedimentos descritivosaplicveis a discursos especficos constitui um ponto de partida para aapreensoconcretadoprincpiodofuncionamentodialgico,talcomopostoporBakhtin.(AUTHIERREVUZ,1995,p. 259).

De fato, como j visto anteriormente (p.12), a interdiscursividade encontrase

implcita na noo bakhtiniana do dialogismo. Para Bakhtin/Voloshinov (1997b, p. 98), a

enunciao sempreumarespostaaalgumacoisa,mesmoque soba forma imobilizadada

escrita. Toda inscrio prolonga aquelas que a precederam, travaumapolmica comelas,

contacomasreaesativasdacompreenso,antecipaas.

Otrabalhosobreodiscursoconsiste,assim,emumtrabalhosobreointerdiscurso,

espaodaconstruodeumamemriadiscursivapartilhada.

O termo memria discursiva se funda na idia de que a memria coletiva

sempreconstrudano(s)epelo(s)discurso(s).Nessesentido,Courtine(citadoporPOSSENTI,

2004) afirma que a noo de memria discursiva diz respeito existncia histrica do

enunciadono interiordeprticasdiscursivas13. Amemriacoletiva,calcadanastensesda

lutasocial, longedeconstituirumespaoacabadoecristalizadodesaberesarmazenadosem

documentoseemmonumentos,capazdepermitiraconstantereconfiguraodessessaberes,

conferindoumadinmicaprpriaquestodoposicionamento.

Aesserespeito,dizMaingueneau:

13 Moirand(1999)explicaqueasnoesdomniosdamemriaememriadiscursivaforamintroduzidasnaADF por Courtine, em 1981, a propsito do discurso poltico, aps uma releitura deArqueologia dosaberdeFoucault.Nessaperspectiva,odomniodamemriaabrigaenunciadosque,nonecessitandomaisseremdefinidosoudiscutidos,estabelecemlaosdefiliao,degnese,detransformao,decontinuidadeededescontinuidadehistrica.

34

Oenunciadodeumposicionamentopodeserlidosobreseuespaoprprioesobreseuanverso:aprimeirafacesignificaasuapertenaaseuprpriodiscursoeasegundafacemarcaadistnciaconstitutivaqueoseparadeumou de inmeros outros discursos. Nessa perspectiva, as polmicasduradouras (durveis)quese estabelecemapartirdosposicionamentosnoveemdoexteriordeformacontingente,masconstituemaatualizaodeumprocesso de delimitao recproca que est na raiz mesma dos discursosconcernentes.Dizerqueainterdiscursividadeconstitutivatambmdizerqueumdiscursononasce,comosepensageralmente,dequalquerretornoaeleprprio,aobomsenso,etc.,masdeumtrabalhosobreoutrosdiscursos(MAINGUENEAU 1999,p.163).

AADF,assimreconfiguradaemdisciplinadeinterpretao,aoproduzirleituras

sistemticas de seqncias discursivas, constri ecos ou efeitos de memria,

materializando como afirma AuthierRevuz (1995, p. 261) a hiptese de um espao

interdiscursivonoqualoprincpiodialgicoganhacorpo,aomesmotempoemquerealiza

umdeslocamentonaquestodosujeito.

Seo fenmenoda interdiscursividadeatestaanaturezaheterogneadodiscurso,

peloqueeleportadeoutrosdizeressejade formaexplcita(comonacitaoemdiscurso

direto),sejaimplicitamente(comonaalusoenosubentendido),essaheterogeneidadetem

sua origem na prpria heterogeneidade do sujeito de discurso. Dito em outras palavras, o

discurso sempre heterogneo, porque heterogneo o prprio sujeito enunciador cindido

entreoeueooutro,entreoconscienteeoinconsciente.Nessesentido,algumasabordagens

contemporneasvmtentandoassociaraquestodaalteridadelacanianavisodaalteridade

bakhtiniana para explicar o sujeito como efeito de linguagem e as formas de constituio

desse sujeito no no interior de uma fala homognea, mas na diversidade de uma fala

heterogneapornatureza.

Talassociao,entretanto,nopontopacficoentretericose/oupesquisadores.

O fatopodeserexemplificadopormeiodasreflexesdeBakhtin/Voloshinov,que teceram,

emO Freudismo (1927), uma vigorosa crtica viso psicanaltica vigente em sua poca.

Ressaltandoqueofreudismo(essapsicologiadosdesclassificadosnaspalavrasdosautores)

35

teria se tornado a corrente ideolgica reconhecida dos mais amplos crculos da burguesia

europia, Bakhtin/Voloshinov (2004, p. 91) vem como motivo ideolgico central dessa

teoriaofatodequeaconscinciadohomemnodeterminadapeloseuserhistrico,mas

peloserbiolgico,cujoaspectocentralasexualidade.

Paraosautores,esseindivduobiolgicoabstrato,entretanto,umafico:

O indivduo humano s se torna historicamente real e culturalmenteprodutivocomopartedotodosocial,naclasseeatravsdaclasse.[...]Sessalocalizaosocialehistricadohomemotornareale lhedeterminaocontedodacriaodavidaedacultura(BAKHTIN/VOLOSHINOV,2004,p.11)[grifodosautores].

A nfase dada correlao entre sujeito e classe social, como explica Paulo

BezerranaintroduodatraduobrasileiradeOFreudismo,seriaconseqnciadodilogo

queBakhtin/Voloshinov travaram com os condicionamentos ideolgicos da poca, dilogo

esse que teria sido desenvolvido a partir de uma perspectiva marxista com nfase na

socializaodoeu.

Aindaassim,vriaspassagenspresentesnoconjuntodaobrabakhtinianaparecem

remeter se no instnciado inconsciente tal comoabordadaporSigmundFreud (1856

1939),aofatodequeosujeitodediscursonosenhorabsolutodoseudizer, isto,no

tem o completo domnio do que enuncia, sendo constantemente atravessado por palavras

alheiassemque,disso,necessariamente,sedconta.Distosoexemplos(grifosmeus):

O homem nunca coincide consigo mesmo. A ele no se pode aplicar aforma de identidade: A idntico a A. No pensamento artstico deDostoievski, a autntica vida do indivduo se realiza como que naconflunciadessadivergnciadohomemconsigomesmo,nopontoemqueeleultrapassaoslimitesdetudooqueelecomosermaterialquepodeserespiado, definido e previsto revelia, a despeito de sua vontade.(BAKHTIN,1997a,p. 59).

Oeuseescondenooutro,nosoutros,querserooutroparaosoutros,entraratofimdomundodosoutroscomooutro,rejeitarofardodoeuniconomundo(oeuparamim).(BAKHTIN,2000b,p.388).

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A bem dizer, na vida, agimos assim, julgandonos do ponto de vista dosoutros,tentandocompreender,levaremcontaoquetranscendentenossaprpria conscincia: assim, levamos em conta o valor conferido ao nossoaspecto em funo da impresso que ele pode causar em outrem [...]. Navida,depoisdevermosansmesmospelosolhosdooutro [...].(BAKHTIN,2000a,p.37).

Nossasituaonafrentedoespelhosempredeturpadapois,naausnciadeummeiodeabordagemdensmesmos,tambmnessecasoidentificamnoscom o outro possvel, indeterminado, com cuja ajuda tentamos encontrarumaposiodevaloresarespeitodensmesmosouseja,apartirdooutroque,maisumavez,tentamosdarnosvidaeforma. (BAKHTIN,2000a,p.52).

Nunca nossa alma, singular e nica, que se encontra expressa noacontecimentocontemplao:sempreseintroduzumsegundoparticipanteo outro fictcio, o autor no fundamentado e no autorizado no estousozinho quando me olho no espelho, estou sob o domnio de outra alma.(BAKHTIN,2000a,p. 53).

Uma obra, poderosa e profunda, sob muitos aspectos, inconsciente eportadoradesentidosmltiplos.(BAKHTIN,2000b,p. 382).

Osexcertosacimatranscritosparecemapresentarpontosdetangenciamentocom

aspectosdopensamentotericodesenvolvidoporJacquesLacan(19011981),sobretudono

quedizrespeitoaoqueoautornomeiaEstdiodoEspelhoeaoseufamosoEsquemaL.

As idias lanadas no ensaio de Lacan intitulado Le Stade du Miroir comme

formateurdelafonctionduJe ,tratandodeumlimiarespecficodoprocessodematurao

dacriana,soapresentadaspelocrticoinglsTerryEagletondeformabastantedidtica:

Se imaginarmos uma criana pequena contemplandose num espelho afasedoespelho,segundoLacanpodemosveromodocomo,dointeriordesse estado de ser imaginrio, comea a se desenvolver um ego, umaautoimagemintegrada.Acriana,queaindanotemcoordenaofsica,vrefletidanoespelhoumaimagemgratificantementeunificadadesimesma,eembora sua relaocomessa imagemainda sejado tipo imaginrioaimagemnoespelhoenoelamesma,umaconfusodesujeitoeobjetoainda prevalece ela inicia o processo de construir um centro do eu. [...]chegamosaosensodeumeuvendoesseeurefletidodevoltaparansmesmos por algum objeto ou pessoa no mundo. Tal objeto , ao mesmotempopartedensmesmosnsnosidentificamoscomeleeaindaassimno parte de ns, continua a nos ser estranho. [...] O imaginrio paraLacan precisamente esse reino das imagens, no qual fazemosidentificaes,masque,noprprioatodefazlas,somoslevadosavermal,eareconhecermalansmesmos.Quandoacrianacrescerelacontinuara

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fazer essas identificaes imaginrias com objetos, e assim que seu egoseredificado.(EAGLETON,2001,p. 227).

NoqueconcerneaoEsquemaL,foieleapresentadonoseminrioLeMoidans

la thorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse (1955) e, em seguida,

reapresentado,deformasimplificada,noSminairesurlalettrevole(1956),comaseguinte

formadiagramtica:

S a

a A

Essediagramapodeserinterpretadodaformaseguinte:

Aslinhasqueunemodiagramaindicam:

S=correspondente ao Eu (Je), quepode ser reduzido,grossomodo, aosujeitoindivduo,nasuasingularidadeexistencial.

a=correspondenteaumoutro(lautre)queaautoimagemdesseEu,ou seja, a imagem que o indivduo tem de si prprio, operando umdeslocamento imaginrio para uma outra espcie de eu, o eu lugartenente althusseriano ou, em termos lacanianos, o jemoi (o eu que meu).

a= correspondente ao outro (lautre) aoqualo indivduo se dirige,masque tambm da ordem do imaginrio. Esse outro se instaura a partir dojemoiecorrespondequelequeimaginamosqueooutrosejaapartirdoquejulgamosquesomos.

A=correspondenteaoOutro(lAutre)concreto,real,efundamentalmenteinacessvelpelaviado imaginrio(oudosimblicoque a linguagem), equeconstituiainstnciadoinconsciente.

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Cotejando algumas das citaes de Bakhtin com os movimentos explicados no

esquemaL,pareceposvelconsiderarqueohomemnuncacoincideconsigomesmoporque

irreversivelmente atravessado por imagens especulares de si prprio e do outro (no

movimentoquevaideaaa)ouaindaqueoeuquequerserooutroparaosoutrosrealizao

movimento em Z do diagrama, em sua tentativa de mover S em direo a A, tentativa

entretantoatravessadatransversalmentepeloeixodoimaginrio(deaaa).

Deve ser lembrado o fato de que Bakhtin/Voloshinov, restritos ao pensamento

freudiano dominante na poca, desconheceram os desdobramentos de tal pensamento

operadosnareflexotericadeLacan.

Ao afirmar que o inconsciente se estrutura como linguagem ou ainda que o

inconscienteoOutro,Lacaninsereainstnciapsquicanocampodosocial,oquemeleva

aconcordarcomoqueEagletonafirma:

Naverdade,reinterpretandoofreudismoemtermosdelinguagem,atividadeeminentemente social, Lacan nos permite explorar as relaes entre oinconsciente e a sociedade humana.Umamaneiradedescrever suaobra dizer que ela nos faz reconhecer que o inconsciente no uma regiopulsante, tumultuada,particular,dentrode ns,masum efeito de nossasrelaescomosoutros.Oinconscienteestantesforadoquedentrodens oumelhor, ele existe entre ns, como existemas nossas relaes.(EAGLETON,2001,p.239).

Assim,ondeTodorov(citadoporDAHLET,1997,p.64)afirmaqueparaBakhtin

nofundodohomemnoestoid,masooutro,possvelcomplementarafirmandoque,

1. a presena de dois movimentos lineares nos eixos horizontais: ummovimentoquevaidosujeitoindivduoaosujeitooutroque ele imaginaser(deSaa)eummovimentoquevaidooutroqueseimaginaexistirparaoOutrodaordemdoinconsciente(deaaA)

2.apresenadeumeixodiagonalunindoaaa(isto,unindoooutroqueeu imaginoseraumoutroque eucreio existente),oqual designadoporLacancomo eixodoimaginrio.

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para Lacan, o id o Outro. Se para Bakhtin/Voloshinov (1997b, p. 52), a palavra

correspondeaofundamentoebasedavidainterior,poisasuaexclusoreduziriaopsiquismo

aquasenada,demodosemelhanteparaLacan(citadoporDOR,1989,p.103),impossvel

dissociar a palavra da atividade psquica: a linguagem condio do inconsciente. [...] O

inconsciente a aplicao lgica da linguagem: com efeito, no h inconsciente sem

linguagem.

Nesse contexto, Louis Althusser (1993, p. 96) considera que, quando Lacan

afirmaque o inconsciente se estrutura comouma linguagem, ele no diz, absolutamente,

queoinconscientesejaalinguagemouumalinguagem.Tratase,segundoAlthusser,deuma