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Centro de Educação, Comunicação e Artes Departamento de Educação V Simpósio de Pesquisa e Pós-graduação em Educação XV Semana da Educação: “Da formação à ação docente: impactos na educação escolar”

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Centro de Educação, Comunicação e Artes Departamento de Educação

V Simpósio de Pesquisa e Pós-graduação em Educação

XV Semana da Educação: “Da formação à ação docente: impactos na educação escolar”

Centro de Educação, Comunicação e Artes Departamento de Educação

V Simpósio de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação

XV Semana da Educação:“Da formação à ação docente: impactos na educação

escolar”

1ª ediçãoLondrina - PR

Universidade Estadual de Londrina

Organização:Adriana Medeiros Farias Darcísio Natal MuraroNadia Mara Eidt

Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) S612v Simpósio de Pesquisa e Pós-graduação em Educação (5. : 2013 : Londrina, PR).

V Simpósio de Pesquisa e Pós-graduação em Educação e XV Semana de Educação [livro eletrônico] : da formação à ação docente: impactos na educação escolar, 08 a 10 de maio de 2013, Londrina, PR / organização: Adriana Medeiros Farias, Darcísio Natal Muraro, Nadia Mara Eidt. – Londrina : UEL, 2013. 1 livro digital : il.

Inclui bibliografia. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/semanadaeducacao/anais ISBN 978-85-7846-241-3

1. Educação – Estudo e ensino – Congressos. 2. Didática – Congressos. 3. Psicologia educacional – Congressos. 4. Educação – História – Congressos. 5. Educação – Filosofia – Congressos. I. Farias, Adriana Medeiros. II. Muraro, Darcísio Natal. III. Eidt, Nadia Mara. IV. Semana de Educação (15. : 2013 : Londrina, PR). V. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Educação, Comunicação e Artes. Departamento de Educação. VI. Título.

CDU 37.02

Universidade Estadual de LondrinaReitora: Nádina Aparecida Moreno

Vice-Reitora: Berenice Quinzani Jordão

Comissão Científica:Neusi Aparecida Navas Berbel (Coordenação)

Darcísio Natal MuraroSandra Aparecida Pires Franco

Cleide Vitor Mussini Batista

Capa/ Projeto Gráfico/Editoração: Inovação e Mercado Assessoria de Comunicação

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APRESENTAÇÃO

O V Simpósio de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação e a XV Semana da Educação “Da formação à ação docente: impactos na educação escolar” constituem um único evento de natureza científica, promovido pelo Departamento de Educação, da Universidade Estadual de Londrina, que discutiu temáticas relevantes para a área de Educação. Tradicionalmente, o evento tem proporcionado o aprimoramento das ações pedagógicas na educação escolar e nos diferentes contextos educativos, contemplando os distintos espaços de formação escolar, incentivando, para isso, a pesquisa, a produção e a disseminação de conhecimentos, bem como a troca de experiências entre os profissionais que atuam no âmbito educacional. Em 2013, a discussão do tema central foi balizada em sete grandes eixos, a saber: Anos Iniciais do Ensino Fundamental; Educação Infantil; Didática e Formação de Professores; Filosofia e Educação; História da Educação; Psicologia da Educação; Política e Gestão da Educação.

O evento teve por objetivos gerais: analisar os impactos dos processos de formação e atuação docente na Educação Escolar e objetivos específicos: discutir a formação docente no âmbito da educação escolar, valorizar a pesquisa como princípio formativo e promover a reflexão crítica entre profissionais acerca de sua práxis educativa. Para tanto, a Comissão Organizadora, após consultar seus pares, convidou professores do Departamento de Educação da UEL e de diferentes Instituições de Ensino Superior para apresentaram suas pesquisas em diversos campos, com o propósito de debaterem a respeito do tema central: “Da formação à ação docente: impactos na educação escolar”.

Iniciamos os trabalhos com uma palestra proferida pela Profa. Dra. Marilene Proença Rebello de Souza (USP) com o título: Patologização do fracasso escolar e medicalização do ensino, sob a Coordenação da mesa realizada pela Profa. Dra. Francismara Neves de Oliveira (UEL).

A primeira mesa temática contou com a participação da Profa. Dra. Marli Eliza Dalmazo Afonso de André (PUC/SP) que apresentou suas considerações a respeito dos desafios de formar um professor reflexivo ou pesquisador. O tema foi debatido pela Profa. Dra. Maria Luiza Macedo Abudd (UEL) e as problematizações por ela apresentadas integram o presente livro. A mesa contou com a mediação da Profa. Dra. Silvia Márcia Ferreira Melleti (UEL).

A segunda mesa temática: Do mundo oral para o mundo da cultura escrita:

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concepções, conteúdos e metodologias em debate ficou sob a responsabilidade do Prof. Dr. Dagoberto Buim Arena (UNESP), com a problematização feita pelo Prof. Dr. Rovilson José da Silva (UEL) com a mediação da Profa. Dra. Marta Silene Ferreira Barros (UEL).

Após discussões importantes a sequência aos trabalhos se faz com o tema Apontamentos sobre relações entre formação e ação docentes, exposto pela Profa. Dra. Alda Junqueira Marin (PUC/SP) e problematizado pela Profa. Dra. Maura Maria Morita Vasconcellos (UEL), cujas as falas estão registradas em texto nesta obra. A mediação dos trabalhos foi realizada pela Profa. Dra. Sandra Aparecida Pires Franco (UEL).

A abordagem filosófica do tema central esteve sob responsabilidade da mesa intitulada deformações, proposta pelo Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria (UFRJ), cujo debate foi realizado pela Profa. Dra. Leoni Maria Padilha Henning (UEL) e encontra-se sistematizado sob o título Considerações sobre as “deformações” de Ceppas. A mesa contou com a mediação do Prof. Dr. Darcísio Natal Muraro (UEL). Para o encerramento das atividades formativas, a Profa. Dra. Lisete Regina Gomes Areralo (USP), proferiu palestra a respeito da Educação Básica, Plano Nacional de Educação e a Formação Docente, com a coordenação de mesa realizada pela Profa. Dra. Adriana Medeiros Farias (UEL).

Para que estas discussões pudessem ser socializadas com os participantes do evento e demais interessados é que surgiu a proposta de publicação do livro no formato digital, e-book, contendo o texto oralizado das palestras, bem como as problematizações feitas pelas professoras Dra. Maria Luíza Abbud e pela Dra. Leoni Maria Padilha Henning e Dra. Maura Morita Vasconcelos.

A iniciativa da Comissão Organizadora fundamenta-se na necessidade de ampliar os espaços de memória e registro dos eventos realizados pelo Departamento de Educação, e, na construção de referências bibliográficas para os estudantes do Curso de Pedagogia, bem como para os profissionais da educação e pessoas interessadas no tema.

A proposta metodológica do livro é de manter os traços originais da dialogicidade promovida pela exposição e debate acadêmico. Desse modo, os textos estão marcados por traços da oralidade e por possíveis interlocuções com os participantes do evento.

O formato também permite que a publicação dos textos seja viabilizada, considerando os prazos exíguos para a publicação e a colaboração dos autores/

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palestrantes que gentilmente cederam os direitos autorais e responderam prontamente à proposta de confecção do livro.

O conteúdo do e-book está em consonância com a proposta científica do evento que definiu um tema central a ser debatido por diferentes perspectivas teórico-metodológicas, apresentadas no decorrer do mesmo, confluindo para a leitura crítica do leitor.

Para que os leitores compreendam os antecedentes da organização geral, indicamos um capítulo inicial que retrata a memória do evento, apontando suas possibilidades e limites perpassados pela proposta do trabalho coletivo.

Por fim, que esta iniciativa possa significar mais uma contribuição para a formação docente.

Comissão Organizadora do Livro

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................................5

A MEMÓRIA COLETIVA DO V SIMPÓSIO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E XV SEMANA DA EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA.............................................................................................................................................11Adriana Medeiros Farias, Darcísio Natal Muraro, Karen Ribeiro e Nadia Mara Eidt  

PATOLOGIZAÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR E MEDICALIZAÇÃO DO ENSINO...............23Marilene Proença Rebello de Souza

OS DESAFIOS DE FORMAR UM PROFESSOR PESQUISADOR.........................................47Marli Eliza Dalmazo Afonso de André 

PESQUISA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES..........................................................................61Maria Luiza Macedo Abudd  

DO MUNDO ORAL PARA O MUNDO DA CULTURA ESCRITA: CONCEPÇÕES, CONTEÚDOS E METODOLOGIAS EM DEBATE..........................................................................65Dagoberto Buim Arena

APONTAMENTOS SOBRE RELAÇÕES ENTRE FORMAÇÃO E AÇÕES DOCENTES............................................................................................................................................83Alda Junqueira Marin

APONTAMENTOS SOBRE RELAÇÕES ENTRE FORMAÇÃO E AÇÃO DOCENTES..........................................................................................................................................101Maura Maria Morita Vasconcellos  

DEFORMAÇÕES................................................................................................................................105Filipe Ceppas de Carvalho e Faria

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CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ‘DEFORMAÇÕES’ DE CEPPAS..........................................119Leoni Maria Padilha Henning

ANEXO..................................................................................................................................................131

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A MEMÓRIA COLETIVA DO V SIMPÓSIO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E XV SEMANA DA EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE

LONDRINA1

Adriana Medeiros Farias Darcísio Natal Muraro

Karen RibeiroNadia Mara Eidt

O texto coletivo proposto parte da necessidade de socializarmos2 a memória e o registro do processo de construção do V Simpósio de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação e XV Semana da Educação e seus desdobramentos finais. Objetivamos refletir sobre o que nós construímos, explicitar o como e o porquê de nossas escolhas. Para garantir a unidade textual deste capítulo, experimentamos uma metodologia desafiadora que se constituiu na gravação do diálogo realizado pelos autores, com base num roteiro combinado anteriormente, para recuperar parte da memória da organização do evento. Após a transcrição do diálogo, houve um esforço para garantir, no formato do texto, as características da oralização dos registros em áudio, com os acréscimos de elementos presentes nos registros escritos, produzidos pela comissão organizadora do evento.

Para iniciar, o tema do evento “Da formação à ação docente: impactos na educação escolar” surgiu da necessidade de discutirmos a respeito de um determinado problema no âmbito da educação que é central no campo da Pedagogia. Por isso, organizamos esse evento convidando educadores que pesquisam diferentes aspectos dessa temática para dialogar conosco de forma que possibilitasse a produção de um conhecimento que pudesse ser incorporado pelos participantes. A importância científica desse tema e a escolha das pesquisadoras e dos pesquisadores para debaterem a respeito dos elementos específicos e distintos resultam na reflexão no âmbito acadêmico.

O que este trabalho coletivo expressa? Expressa o esforço de colocar um pesquisador em diálogo com diferentes sujeitos, que é o sujeito da graduação, da pós-graduação, professores da rede pública, pessoas de diferentes escolas e de diferentes espaços e cidades. Expressa também que a problemática da formação 1 - Apoio da Fundação Araucária.2 - Os autores deste capítulo compõem a equipe responsável pela produção do e-book que se disponibilizaram a produzí-lo.

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e da ação docente merece ser analisada e debatida sob o olhar dos convidados internos e externos à Instituição, a Universidade Estadual de Londrina (UEL). E para organizar esse processo formativo nós optamos pela estruturação do evento da seguinte forma: palestra inicial, palestra final e as mesas temáticas, com o cuidado de que as mesas dessem continuidade às discussões a respeito do tema central. Para garantir essa perspectiva, contamos com o papel do problematizador do conteúdo das falas dos palestrantes e a da coordenação de mesa. Essas duas funções foram assumidas por docentes do próprio Departamento de Educação.

1. O significado do evento científico A respeito do significado científico do evento como uma atividade de

impacto na formação inicial docente, há que se ressaltar que ele é uma forma de introduzir os estudantes para começar a participar ativamente da produção do conhecimento científico. Esta é uma atividade complementar e necessária para ampliar o trabalho feito nas disciplinas do currículo de formação do pedagogo e demais atividades como grupos de pesquisa, iniciação científica, projetos de extensão, etc. Para os professores das Instituições de Ensino Superior (IES), esse deveria ser um ponto a ser pensado no planejamento das aulas: como essa aula pode servir para trazer elementos para esse estudante, não apenas produzir em função de questões particulares de uma certa disciplina, mas trazer subsídios para produzir textos para serem discutidos com um público mais amplo de um evento científico. No universo acadêmico, de um modo geral, as pessoas são cobradas para produzir conhecimento. Contudo, o evento é uma oportunidade para os estudantes serem iniciados nesse processo de produção, não como produção compulsória, mas exercício de pensamento, escrita, submissão de suas ideias para a apreciação da comunidade acadêmica.

Já para o professor da Educação Básica, o evento científico faz com que este traga os problemas da prática educativa para o debate junto à comunidade científica. O professor não é um mero técnico que repassa informação para o estudante, mas ele deve estar envolvido com o processo de produção científica. Como se faz isso no espaço acadêmico? O fato do Departamento de Educação criar essa possibilidade, na forma de Semana da Educação e de Simpósio de Pesquisa, é uma boa oportunidade, momento necessário e importante para que isso aconteça. Deveríamos discutir mais essa perspectiva e criar uma consciência maior da nossa parte sobre essa questão.

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2. A escolha da temática e dos convidados A proposta inicial era fazer um trabalho – aqui poderíamos dizer um

trabalho interáreas – por diferentes áreas do conhecimento. Esse é o tipo de temática que puxa mesmo uma abordagem intercampos. A concepção do evento estava focada nessa ideia de diferentes olhares para o mesmo problema, isso porque o professor dentro de sua prática educativa deveria ter essa perspectiva diversificada, sem cair em superficialismos no tratamento dessa questão.

Para tanto, as áreas que compõem o Departamento de Educação da UEL foram consultadas para que elas pudessem indicar pessoas que tivessem afinidade teórica com o tema.

Quem conseguiu acompanhar da primeira até a última fala dos palestrantes pôde perceber as conexões necessárias em cada um dos campos de abordagem do tema. Com bastante felicidade e pertinência, a primeira fala teve início com uma provocação fazendo uso da concepção de conhecimento produzida por Paulo Freire – enquanto a fala de encerramento fazia referência a esse mesmo conhecimento. Em alguns momentos do encontro, a formação do professor estava sendo debatida com dois eixos fundamentais: da competência técnica e do compromisso político. Alguns convidados problematizaram esses aspectos a partir das especificidades da cultura oral, da cultura da leitura, da medicalização, da pesquisa, da formação inicial e continuada dos professores, das políticas públicas. Na perspectiva filosófica, a formação foi debatida sob o problema das deformações. O conhecimento científico, a todo o momento, foi destacado como relevante e desmistificador das questões apontadas.

3. As ComissõesEm outubro de 2012, alguns professores do Departamento começaram a

se reunir quinzenalmente para a organização inicial do evento. Ao término do mês de novembro foram constituídas as Comissões e aprovada a Coordenação Geral do evento. O prazo para a organização era exíguo e as preocupações apareceram. Dividimos as tarefas e decidimos o formato geral do evento.

As comissões destacadas (científica, financeira, cultural, infraestrutura, de apoio aos docentes e discentes, técnica, registro e sistematização) foram responsáveis pela organização geral e específica do evento, e haviam representantes de todas as áreas do Departamento, do Colegiado do curso de Pedagogia, da Chefia do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Educação. A cada reunião

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debatíamos os pontos em comum com base nos princípios gerais estabelecidos. A ideia era de que houvesse esse movimento colaborativo em vários sentidos e de que cada área levasse a discussão do tema para seus membros.

De uma forma geral, boa parte das pessoas que se dispuseram a compor este grupo de fato assumiram tarefas relevantes, essenciais para que o evento chegasse à finalização – sob coordenação da professora Adriana M. Farias, com bastante êxito. Ressaltamos também a responsabilidade financeira do evento, que ficou nas mãos da professora Adriana, e que foi conduzido de forma muito transparente e de acordo com os critérios objetivos do evento.

Éramos poucos numericamente falando, mas, de fato, as pessoas que começaram esse trabalho o finalizaram, com poucas exceções, e com muito compromisso, tentando sempre fazer esse exercício: qual era o critério? O que estava acordado? O que estava registrado? Passe-me a ata para eu ver? Por isso Adriana teve o cuidado de ter uma comissão responsável por esses registros que garantisse de fato a fidedignidade das informações, o acesso a elas e a divulgação.

a. A Comissão CientíficaSob a coordenação eficiente da Professora Neusi Berbel, o trabalho da

Comissão Científica foi muito intenso. Essa comissão é a que, do ponto de vista de quantidade de tempo, teve que dedicar semanas de trabalho a fio para: elaboração das normas para inscrição e avaliação dos trabalhos; convite aos pareceristas externos e internos da Instituição; leitura e resposta aos emails; recepção dos arquivos dos trabalhos científicos; distribuição para os avaliadores; reenvio para outros avaliadores, quando o primeiro não desse retorno no tempo hábil; recepção das avaliações, preparação dos relatórios de cada etapa; divulgação dos resultados; elaboração dos anais, produção do relatório para a listagem de certificados, encaminhamento das normas técnicas dos Anais do evento, etc. Essa comissão fez um exercício contínuo de pensar criteriosamente como trabalhar com as informações e com as demandas das pessoas inscritas no evento, quer seja com os trabalhos ou com pôsteres, buscando um tratamento justo a todos. A comissão científica tem que se preocupar com a clareza da comunicação – o que requer que a mesma informação seja revisada pelos próprios membros da comissão antes de ser divulgada.

O tempo de trabalho dessa comissão com poucos integrantes foi exaustivo, com destaque para a ética e o rigor na manutenção dos critérios de organização e

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análise estabelecidos e divulgados. A contribuição dos 62 pareceristas do Departamento de Educação da UEL

e 17 pareceristas de outras IES, num total de 79 colaboradores, foi essencial para o desempenho do evento em seu rigor científico. Foram inscritos 158 trabalhos e 53 Pôsteres, dos quais 101 trabalhos e 34 pôsteres foram aprovados para publicação nos anais. O que observamos é que teve uma boa quantidade de trabalhos não aceitos, ou seja, 57 trabalhos e 19 pôsteres. Essa é uma dificuldade: como proceder em relação à avaliação dos trabalhos, tanto no sentido de fazer prevalecer os critérios acordados como para levar ao conhecimento dos inscritos os respectivos pareceres de forma que estes possam refletir e rever sua produção?

Há uma grande expectativa quando você encaminha o trabalho para um evento, que é a da aprovação. A aprovação significa dizer, para quem envia o trabalho, que está se produzindo algo dentro de certos critérios mínimos de cientificidade. É importante as pessoas terem esse retorno de seu trabalho, ou seja, que elas estão atendendo aos critérios mínimos. A falta do retorno das razões da não aprovação deixa os autores sem a justificativa necessária e ajuda pouco no processo de aprendizagem. Parece que essa devolutiva não só é coerente, como também necessária.

No que se refere à forma de apresentação dos trabalhos científicos, cabe ressaltar que a socialização das experiências, dos resultados de pesquisa em andamento ou concluídas, foi realizada a partir de duas modalidades: comunicação oral e pôster. A organização do tempo para as apresentações dos trabalhos foi pensada para que fosse o suficiente para cada autor.

A comissão científica teve o cuidado de analisar os trabalhos e estabelecer princípios de coerência na hora de agrupá-los para apresentação em sala. Isso é algo que precisa ser destacado como extremamente positivo. A tentativa foi a de aglutinar um maior número de pessoas interessadas numa temática, já que nem sempre isso acontece em outros eventos. Geralmente as atividades estão disponibilizadas em diferentes espaços e isso pouco favorece o aprofundamento da discussão. A comissão científica teve esse cuidado não só de agrupar pelos eixos – Psicologia, História, Didática e Formação de Professores, Filosofia, Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental –, mas cada área fez o trabalho de reunir os trabalhos em temáticas especificas.

Destacamos ainda o respeito dado aos trabalhos na modalidade pôster, que não ficaram expostos em uma área aberta ao sabor das pessoas

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que passavam. Geralmente as pessoas não gostam dessa forma, pois ficam ali sozinhas. A apresentação em salas de aula demonstra outra forma de receber esse conhecimento que vem nesse formato. Entendemos isso também como uma espécie de acolhida. Desse modo, a estrutura expressa igualmente a concepção que temos do evento, a valorização dos pesquisadores em todo o tempo de sua produção e nas modalidades sugeridas.

Ainda nessa direção, entendemos que uma importante contribuição para a qualidade da apresentação dos trabalhos foi a sugestão do pôster digital, para economizar papel, gasto e impressão – pois sabemos que posteriormente o banner não será utilizado. Nós precisamos abandonar as formas tradicionais de apresentação e a sua finalidade tem que ser revista, porque o objetivo é a comunicação da pesquisa, relato de pesquisa em andamento, e há inúmeras formas de se fazer isso – e não apenas essa. A forma também expressa a finalidade de um evento como esse: socializar os conhecimentos produzidos – e nem sempre essa socialização tem sido garantida nos espaços dos eventos.

Também foi uma escolha nossa a apresentação de trabalho no período noturno, o que também os eventos não têm privilegiado. Essa escolha também nos faz pensar nesses estudantes do período noturno, que ficam fica à margem dos eventos da UEL. Foi uma decisão acertada – que deveria ser um princípio para os próximos eventos.

b. A Comissão Cultural e infraestruturaA respeito da comissão cultural, esta teve a responsabilidade de organizar

a programação de tal modo que as atividades estivessem em consonância com conteúdo do evento. A ideia da comissão era a de valorizar as propostas com finalidade educativa, vinculadas à escola pública, oriundas de projetos promovidos pela UEL. Para tanto, fizemos uma análise cuidadosa dos convidados para compor as atividades culturais. Essa foi uma tarefa bastante difícil e também um dos principais desafios do grupo, porque demandou reuniões especiais e discussões pontuais. Trouxemos contribuições de áreas específicas que ajudaram a pensar um pouco mais em alguns critérios de escolha. Uma das riquezas deste evento é que o tempo todo nos atentarmos para o estabelecimento e o atendimento de critérios estabelecidos.

Do mesmo modo, na infraestrutura, a escolha dos produtos e serviços (entre eles o bloco de papel com a programação do evento, a caneta, entre outros)

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estava relacionada com a finalidade do evento e agregava um valor, uma informação educativa. O bloco de papel reciclado e a caneta com fibra de garrafa pet são alguns dos exemplos dessa proposta. A exposição de livros da editora Expressão Popular, com livros vendidos dentro de valores que atendem parte das condições dos estudantes e professores; a exposição de brinquedos educativos produzidos com qualidade e desafiadores para as crianças, jovens e adultos.

Como princípio, os serviços prestados ao evento foram preferencialmente proporcionados pelo setor público, como no caso do orquidário da UEL – que cedeu a ornamentação do evento e a empresa que serviria o lanche. Gastamos muito tempo para decidir a empresa contratada para servir o lanche. Qual o critério? Quem deveria estar aqui? Que também agregasse um trabalho educativo. Ao final, defendemos a escolha do grupo de estudantes de uma padaria-escola do município de Ibiporã, que foi tão acolhida e proporcionou um serviço importante ao evento. Do mesmo modo, contamos com a produção técnica do professor Renato Macri, do Departamento de Design da UEL, para o material de divulgação (Anexo 1).

Há que se destacar ainda que a organização de um evento requer apoio profissional. Nessa experiência relatada, experimentamos a contribuição da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da UEL, com participação especial da estagiária do curso de Relações Públicas, do setor de eventos da PROEX. Nesse espaço contamos com a parceria pontual do Convention Bureau de Londrina, na apresentação de empresas que atuam no campo de eventos. Dessa forma, pudemos negociar melhores condições de estadia, alimentação e produtos (canetas, blocos e pastas) para os participantes do evento. Paralelamente a essa experiência, muito distante da nossa especificidade, contamos com o apoio da Cooperativa Agroindustrial (Cocamar), da Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), da Livraria Curitiba e da LPR Impressões Digitais.

c. A Comissão de apoio A comissão de apoio foi organizada após a divulgação feita pelas professoras

nas salas de aula. Disponibilizamos na secretaria do Departamento de Educação, por um determinado período de tempo, uma lista de inscrição. Em seguida, realizamos reuniões para apresentação do evento, das tarefas e distribuição das responsabilidades. A equipe contou com duas professoras e cerca de 70 estudantes de graduação, de especialização e de mestrado que cooperaram em diferentes funções como credenciamento, entrega de certificados, informações, instalações

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de equipamentos de informática, coordenação de apresentação de trabalhos, organização das pastas, organização das listas de presença, deslocamento de diversos materiais.

A atuação ocorreu em diferentes espaços – Laboratório de Ensino e Pesquisa em História da Educação (LEPHE), anfiteatro maior do Centro de Letras e Ciências Humanas (CCH), salas de aula do Centro de Comunicação, Educação e Artes (CECA), com distâncias significativas entre eles. Mesmo com a imensa quantidade de trabalho, tudo funcionou dentro de uma lógica interna sem nenhuma intercorrência. Temos convicção de que o trabalho só foi possível graças à escolha voluntária de estudantes responsáveis por cada atribuição. O vínculo das professoras e professores da comissão organizadora com os estudantes, que geralmente eram alunos de alguém da comissão, foi uma referência importante – mas também foi mérito das professoras, que orquestraram esse trabalho de maneira direta, e houve um perceptivo envolvimento dos estudantes.

Também chamou nossa atenção a presença de integrantes que há anos participam da comissão de apoio, mesmo após o curso de graduação, como se estivessem cumprindo uma tradição prazerosa. Essas coisas demonstram que o envolvimento dos estudantes supera a simples certificação de participação.

d. O registro e a sistematização do evento No que se refere ao registro e a sistematização do evento, deixamos

arquivos com os registros do evento na secretaria do Departamento de Educação para consulta. Esse trabalho de socialização do registro é importante porque é o know-how deste evento. A importância do registro, da memória, o como fazer o processo, possibilita que aquelas comissões que vão se montando na semana da educação seguinte tenham acesso a essa trajetória e possam se organizar melhor até para evitar erros que normalmente se cometem. Enfim, porque conhecimento científico precisa de organização sistemática de como fazê-lo.

Ao final do trabalho, registramos todas as atividades no sítio do evento contendo os anais e o e-book, com as palestras e as problematizações feitas pelos mediadores. A forma de organização do e-book e do sítio foi bastante adequada porque possibilita que as futuras semanas da educação, com um pouco mais de facilidade, possam agregar novos dados.

Cabe destacar, com relação ao processo de construção do livro eletrônico, que pudemos contar com a gentileza dos palestrantes externos no cumprimento

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do prazo no envio dos textos. Vários deles mencionaram muito elogiosamente a iniciativa de elaboração do e-book, e o cuidado da empresa que fez o serviço de transcrição, uma vez que tiveram pouco trabalho com a revisão do texto. Foi uma experiência interessante avaliada positivamente também pelos colegas que aqui estiveram.

Por fim, é importante acrescentar os dados quantitativos referentes ao trabalho coletivo da Comissão Organizadora: foram mais de 30 reuniões, 72 horas de trabalho, sem contar com as atividades específicas de cada comissão. Fizemos esse cálculo para dimensionar todo o esforço coletivo.

4. A participação no evento A participação efetiva é o ponto mais crítico. Verificamos que nos

eventos há grande quantidade de inscritos – nesta edição tivemos 1.237, sendo 623 de estudantes de graduação, 174 de estudantes de pós-graduação, 373 de professores da Educação Básica e 67 de professores do Ensino Superior. Encerramos as inscrições com um mês de antecedência diante do esgotamento das vagas. Entretanto, observamos que a presença nos momentos de debates, palestra ou mesmo apresentação de trabalhos ficam um tanto esvaziada. Fica uma indagação: o que leva as pessoas a se inscreverem e, no momento de efetivamente participarem no debate ou de pelo menos estarem presentes — fazendo com que o debate avance e seja um momento de aprendizado mostrando que ele tem impacto na formação —, isso acaba não acontecendo? A dinâmica sugerida pela Comissão Científica foi a de que todos apresentassem e, depois, participassem do momento de discussão, mas muitos participam apenas do momento de sua apresentação – ou alguns inscritos mudam de sala apenas para ouvir apresentações e não ficam para o debate.

Assim, um dos elementos do descenso do evento é a lógica da produção pela produção, que faz com que as pessoas apresentem o seu trabalho e não venham de fato para fazer a interlocução com públicos distintos — apresentar o trabalho, ouvir aquela fala e debater com aqueles que querem ouvir, participar.

Um destaque a ser feito com relação à participação dos estudantes da graduação do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu na organização geral do evento diz respeito à secretaria geral do evento – que esteve sob a responsabilidade da Elizabeth Ferreira, uma bolsista estudante de graduação de Pedagogia que, com empenho ímpar na condução do

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processo, garantiu a percepção do lugar do estudante neste espaço. Nas palavras da estudante:

No início não sabia a dimensão da responsabilidade principalmente porque não tinha experiência em eventos, mas tenho experiência como secretária e força de vontade. Fomos trabalhando, e nos ajustando, aprendendo um pouco mais a cada dia.

Como estudante do curso de pedagogia a experiência foi muito significativa, tive oportunidade de fazer parte da organização de um evento que envolve o meu curso pude conhecer a grandiosidade deste evento anual, do trabalho de cada integrante envolvido e sua complexidade, fui a voz dos estudantes e estive em contato com mais de 100 alunos de turnos e turmas diferentes, trabalhamos juntos e com uma intensidade ímpar porque nos sentimos parte dele. No último dia de evento tive a sensação de dever cumprido, sei que poderei auxiliar novamente, sei por onde começar e os objetivos que me guiarão na realização de qualquer outro evento.

Destacamos também a participação dos professores e estudantes da UEL do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) nas apresentações de trabalho e relatos de experiência, bem como em todo o evento.

5. O espaço físicoPara atender ao número crescente de inscritos, ao final, tivemos que limitar

o prazo de inscrições. A Comissão Organizadora defendeu a utilização do espaço público, ou seja, que o evento fosse realizado na UEL. Tivemos muitos problemas para agendar o espaço, mas insistimos nisso. Avaliamos vários espaços públicos como o anfiteatro do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESA) e o Cinema Com Tour. Ao mesmo tempo, com a possibilidade de espaço inviabilizado na UEL e considerando o número de inscritos, providenciamos vários orçamentos em alguns dos espaços privados da cidade de Londrina. Mas os valores exorbitantes eram desanimadores.

De fato, a manutenção do evento nesta universidade foi muito mais pela defesa do espaço público. Foi uma loucura imaginar que essas pessoas pudessem estar aqui e não teriam onde ficar, tanto é que produzimos a sala de transmissão simultânea – foi um gesto de respeito também com esse número de inscritos. Claro que estávamos desejosos de que eles viessem e, para nós, seria um número expressivo de pessoas em discussão, em situação reflexiva. Contudo, constatamos um descenso e o espaço ocupado foi suficiente para atender os participantes. Estes

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se revezavam ao longo das atividades, o que permitia o cumprimento da capacidade do anfiteatro. As dificuldades da infraestrutura do espaço público representam a precarização da universidade pública para a realização das atividades acadêmicas – um item importante que fere a nossa organização, o trabalho coletivo com qualidade.

Por fim, queremos destacar que, ao término do evento, seguimos com a produção do sítio e do e-book como forma de oferecer um registro do evento. A liberação dos recursos da agência de fomento, o trâmite para contratação da empresa e todos os processos que demandaram a construção do material fizeram com que o tempo de organização e finalização do evento estendesse por mais outros tantos longos meses.

Estamos concluindo uma etapa que quer deixar sua contribuição para a continuidade do trabalho. A memória desta experiência pode alimentar o trabalho coletivo da pesquisa sobre os infindos problemas da educação dos eventos futuros.

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PATOLOGIZAÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR E MEDICALIZAÇÃO DO ENSINO

Marilene Proença Rebello de Souza

O tema que vamos apresentar nessa manhã e que intitulamos “Patologização do fracasso escolar e medicalização do ensino” é bastante provocativo. Esta questão tem nos preocupado, enquanto psicólogos e educadores, sobremaneira, principalmente em função das discussões que temos feito a respeito das dificuldades escolares enfrentadas há décadas no sistema de ensino brasileiro, com especial atenção para crianças e adolescentes das escolas públicas. Atualmente, 85% das matrículas do Ensino Básico encontram-se nas redes públicas de educação do país, correspondendo a mais de 50 milhões de matrículas (Brasil, Censo Escolar, 2010). Portanto, quando se fala do processo de medicalização da educação escolar, estamos falando de milhões de estudantes que não estão se beneficiando da escola, por muitos motivos que têm sido apontados em pesquisas, quer na área da Educação, quer da Psicologia Escolar e Educacional. Nesta palestra, discutiremos como este fenômeno tem comparecido no quadro social e educacional e algumas de suas repercussões bem como teceremos reflexões sobre os motivos que têm levado ao retorno das explicações organicistas ao campo da educação brasileira.

Partimos de algumas constatações. Por que estamos falando desse movimento de medicalização? Como percebemos a presença desse movimento no campo social? Em um primeiro momento verificamos a utilização frequente de medicamentos na nossa vida diária. Todos nós temos um nécessaire cheio de comprimidos, que carregamos para todos os lugares, sejam vitaminas, remédios para o colesterol ou para nos acalmarmos ou relaxarmos. Enfim, a medicação tem comparecido em nossas vidas como uma forma química de resolvermos ou amenizarmos algumas das nossas dores, dos nossos males: É naturalmente utilizada por nós. Temos ingerido alimentos químicos no lugar de alimentos frescos. O uso de medicamentos passou a fazer parte da nossa vida cotidiana.

Não é à toa que a indústria de medicamentos é hoje a segunda maior indústria em faturamento do mundo. A indústria farmacêutica só perde para a indústria das armas, para a indústria bélica. A indústria de medicamentos, no amplo sentido, não só medicamento para doenças, mas as vitaminas, aquilo que está sendo usado como um mercado ligado ao esporte e ao lazer, tem se transformado numa indústria extremamente poderosa.

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Na área de saúde mental verificamos, cada vez mais, um retorno da utilização dos medicamentos em lugar de tratamentos não medicamentosos. No dia-a-dia ouvimos manifestações de pessoas ao nosso redor que dizem: “estou deprimida”, “é uma criança hiperativa”, “estou com distúrbio de sono”, ou seja, os nossos sentimentos diários ou dificuldades enfrentadas, tornam-se presentes por meio de uma linguagem que nos remete às patologias. Vivemos um momento em que todas as nossas questões não estão sendo mais interpretadas e analisadas dentro do contexto da vida, mas sim como se fossem doenças que se instalaram em nós.

Ficar triste, chateado, amuado por algo que estamos vivendo passou a ser denominado com o rótulo da patologia. A depressão é um bom exemplo desse processo de patologização. Trata-se é um termo técnico, de uma patologia grave, que demanda um conjunto de circunstâncias e de considerações para ser diagnosticada. Nós também observamos uma criança, que é peralta, pula, brinca, não para quieta, e não mais denominamos de peralta, de brincalhona, de levada e sim de “hiperativa”. Nós introduzimos o nome de uma patologia grave para uma criança que tem atitudes que consideramos semelhantes a de uma criança hiperativa.

Dessa forma, nós estamos muitas vezes usando termos que denominam patologias para designar formas de vida e, ao mesmo tempo, buscamos medicação para acalmar os sintomas que expressam sentimentos, tensões e ansiedades frutos de um cotidiano em que, cada vez mais, se cobra a velocidade das ações, das respostas, dos resultados.

A interpretação desses fatos e a utilização do medicamento como instrumento têm chamado muito a atenção devido à quantidade de pessoas que vivem essa situação. As pessoas não compreendem mais determinadas ansiedades e medos como algo que faz parte da vida ou que está acontecendo em determinado contexto. Isso gera uma busca por um diagnóstico e esse diagnóstico gera medicação. A pessoa procura encontrar uma resposta que venha do campo da patologia e não da condição de vida, da forma como está vivendo, das situações em que está inserida. Passa a ser algo que eu “tenho” e não algo que “estou vivendo” num determinado contexto social, num certo momento da vida cujas situações podem gerar ansiedades e medos.

O aumento da utilização de medicamentos também está sendo incentivado pela indústria farmacêutica. Essa é outra constatação. Hoje a indústria farmacêutica

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investe mais em marketing do que em pesquisa a respeito do medicamento. Quem denuncia isso é a médica Márcia Angell, Professora Titular do Departamento de Saúde Global e Medicina Social da Escola de Medicina de Harvard que escreveu recentemente o livro intitulado A Verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos (2004). Angell afirma em artigo escrito para o New York Review of Books (2004):

Ao longo das últimas duas décadas, a indústria farmacêutica tem movido muito longe da sua finalidade original de alta descoberta e produção de novas drogas úteis. Agora principalmente uma máquina de marketing para vender medicamentos de benefício duvidoso, essa indústria utiliza a sua riqueza e poder para cooptar cada instituição que possa ficar em seu caminho, incluindo o Congresso dos EUA, a FDA, centros médicos acadêmicos ea própria profissão médica. (A maioria de seus esforços de marketing estão focados em influenciar os médicos, pois eles devem escrever as receitas.) Se medicamentos eram como bens de consumo comuns, tudo isso pode não importar muito. Mas as drogas são diferentes. As pessoas dependem delas para a sua saúde e mesmo suas vidas

No Brasil, por exemplo, o Conselho Federal de Medicina permite que os médicos recebam brindes quando vendem grande quantidade de um medicamento de um determinado laboratório. Em 2010, o conselho havia proibido que os médicos recebessem esse tipo de premiação, considerando que isso mostrava uma forma de comprometimento do médico com o laboratório. Em 2011, o conselho volta atrás dessa decisão e justifica dizendo que essa é uma tendência mundial. O Conselho Federal de Medicina, acompanhando essa tendência mundial, permite que os médicos recebam uma viagem por ano para um congresso, tudo pago por um laboratório, mas sem acompanhante. Há uma regulação do brinde, digamos assim. E isso faz com que evidentemente haja certa indução por parte da indústria farmacêutica para utilização do medicamento que ela fabrica, não só medicamentos, mas próteses também. Muitas marcas estão entrando no mercado com premiações aos profissionais que mais utilizaram seus produtos. Então, vejam que se trata de um fato extremamente delicado. Você toma um remédio porque por trás tem um mercado de venda dessa medicação.

Muitos pesquisadores estão chamando isso de “processo de medicalização da vida e da educação”. Na educação, entende-se esse processo de medicalização como aquilo que transforma artificialmente questões que não são médicas em

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problemas médicos. E, ao mesmo tempo, apresenta problemas de diversas ordens como doenças, como transtornos e distúrbios, o que acaba escondendo outras questões que afligem a vida das pessoas e estão por trás, que são políticas, sociais, culturais e afetivas.

Quando não conseguimos enfrentar uma dificuldade ela precisa ser pensada dentro do contexto em que está acontecendo. Se estamos no plano da educação, temos que pensar: “nossa, eu estou tão estressada para dar minha aula, o que está acontecendo? Porque isso está acontecendo? O que está levando a essa condição, a essa situação? Em que condições de trabalho eu estou vivendo para que isso aconteça na minha vida?”. De maneira geral, essa pergunta não tem sido respondida a partir do entendimento das condições sociais, condições políticas e condições de vida que estão na constituição do trabalho pedagógico, seja na universidade, na rede básica de educação ou na escola técnica.

Como está a nossa condição de trabalho? O que esse estresse significa nessa condição de trabalho? Essa pergunta não é “medicalizante” porque ela me leva a refletir que estou estressado por causa de uma série de situações, de ordem política, social ou cultural do dia a dia. Eu preciso entender essa situação, tentar pensar quais são as causas que estão trazendo esse tipo de sofrimento e refletir coletivamente sobre como enfrentar as causas. Agora, quando eu penso: “eu estou estressada, estou muito nervosa. Acho que estou sem paciência, estou muito intolerante, acho que preciso ir a um psiquiatra para ver se ele receita uma medicação para eu poder aguentar essa pressão”. Bem, então eu trago para o nível pessoal algo que não é pessoal, algo que é gerado num contexto social e que eu assumo como sendo uma responsabilidade individual. Eu passo a ser medicada e uso o medicamento como um instrumento da minha forma de reagir diante da situação. Melhora a situação? Melhora imediatamente porque eu fico menos envolvida com aquela situação, distancio-me um pouco de tudo aquilo mas os motivos que a levaram a acontecer continuam. Então, o que vai acontecer? Vou ficar refém de um medicamento que vai, durante muito tempo, assumir a função de amenizar a dor e o sofrimento?

Assim, esse processo de medicalização tem acontecido em vários campos da nossa vida, tanto com adultos, crianças e adolescentes. No caso das crianças e adolescentes a questão está bastante focada no comportamento, nas atitudes. As crianças estão sendo avaliadas como portadoras de determinados distúrbios e transtornos, baseado naquilo que ela faz, na maneira como se comporta. Não

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entendemos, muitas vezes, os contextos em que esse comportamento acontece: por que essa criança se estressa no interior da sala de aula e da escola?

E qual a diferença entre medicar e medicalizar? Nós não somos contra o remédio, contra a medicação. Precisamos, muitas vezes, de medicações que nos ajudem na nossa vida, para controlar determinados problemas orgânicos. Neste caso, o remédio vai realmente ser um instrumento importante.

Medicar é administrar um tratamento usando fármacos ou outros com o objetivo de tratar uma determinada enfermidade de acordo com a sua origem, baseado em métodos e diagnósticos bem estabelecidos. Eu faço um exame de sangue, tenho uma taxa muito alta de colesterol e o meu médico acha que primeiro eu devo fazer exercícios para não medicar. Eu faço exercícios e essa taxa não abaixa. Preciso, então, tomar um medicamento para controlar essa taxa no meu organismo para evitar uma série de consequências. Neste caso, você tem um balizador, um exame específico, que mede essa taxa no sangue. Tem uma etiologia, uma origem baseada num determinado método de diagnóstico bem estabelecido.

Agora, o que é a medicalizar? Medicalizar é a indicação de fármacos e outros tratamentos para tratar problemas cuja origem não se conhece ou é de ordem psicológica, social. Muitas vezes não se trata sequer de uma enfermidade. Se eu estou em um momento de tristeza, sentindo a perda de alguém ou uma separação, enfim, são situações da vida que têm um peso e são sentidas de formas diferentes por nós. Então, eu não tenho uma doença que medi, avaliei pelo exame de sangue ou por qualquer outro exame. Tenho um sofrimento psicológico, um sofrimento que enfrento naquele momento e que preciso entender por que está sendo vivido daquela forma. À medida que entendo isso, conversando com outras pessoas, pensando alternativas, posso sair dessa situação. Às vezes eu preciso de uma ajuda mais específica e vou em busca dessa ajuda.

No entanto, não há uma etiologia clara, não há uma doença específica para a qual esse medicamento vai fazer efeito. O que ele vai fazer é simplesmente minimizar alguns dos sintomas que você tem, mas a causa continua presente dentro do organismo.

No Brasil, alguns desses medicamentos têm batido todos os recordes de venda, inclusive chamando a atenção de áreas do governo, principalmente do Ministério da Saúde. E um deles, é um medicamento chamado cloridrato de metilfenidato. É uma droga “tarja preta” que atua sobre o sistema nervoso central, tanto de crianças quanto de adolescentes e adultos. Essa droga, chamada

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“droga da obediência”, tem sido usada para diminuir uma sintomatologia tratada como doença genética, que afetaria uma parcela significativa da população com transtorno de déficit de atenção, com ou em hiperatividade. Hoje se considera que esse transtorno de déficit de atenção necessita de medicamento, e o medicamento que tem sido indicado para esse suposto transtorno é o metilfenidato.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos, foram comercializadas 71 mil caixas dessa droga no Brasil em 2000. Esses dados são obtidos a partir das receitas deixadas nas farmácias. No caso de remédios “tarja preta”, cuja venda é acompanhada pelos órgãos governamentais, a farmácia precisa reter a receita. A venda saltou de 71 mil caixas em 2000 para dois milhões de caixas em 2010. Em dez anos houve um aumento de 1.100% na venda desse medicamento no Brasil. O que chama a atenção é que de repente tivemos um “boom” na utilização de um medicamento, extremamente delicado de ser tomado, e que implica numa série de efeitos colaterais para todos os órgãos do organismo.

O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade fez um levantamento no estado de São Paulo, junto aos conselhos estaduais e municipais de saúde a respeito do tema, obtendo respostas de 154 municípios. Nos últimos seis anos, de 2005 a 2011, houve um aumento extraordinário na utilização desse medicamento na rede pública de saúde destes municípios. Os municípios dispensaram 54 mil comprimidos em 2005 passando para um milhão e 500 mil comprimidos, seis anos depois. De repente, as nossas crianças passaram a ser diagnosticadas com uma determinada doença que, pelo visto, afetou toda uma geração nos últimos cinco anos. Temos então hum milhão e meio de comprimidos comprados e receitados para crianças que estão estudando nas escolas desses municípios do estado de São Paulo.

O que esse medicamento faz no organismo? Isso está na bula do remédio, não é alguma coisa desconhecida, que só os médicos têm acesso. Todos nós podemos saber disso. Ele é um medicamento que atua sobre o sistema nervoso central e pode causar uma série de reações adversas: psicose, alucinação, depressão, convulsão, insônia, confusão, sonolência, problema de cognição, tontura e uma sensação que se chama “efeito zumbi-like”, que é a sensação de aprisionamento dentro de si mesmo. Você quer fazer alguma coisa, quer se movimentar, mas não consegue, seu corpo não permite que isso aconteça. Essa é uma das principais sintomatologias do remédio, de conter a criança que se mexe muito. Também causa reações adversas em outras áreas do organismo, como as reações cardiovasculares, podendo levar

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a criança a uma parada cardíaca. Nos Estados Unidos, por exemplo, se vocês pesquisarem no Google a palavra “medicalization”, medicalização em inglês, vão encontrar vários depoimentos de pais. Lá já existem associações de pais cujos filhos morreram por causa da utilização dessa medicação. E por que essas associações de pais estão nos Estados Unidos? Porque em alguns estados americanos os pais são obrigados a medicar, caso o médico receite. O pai não pode deixar de dar, mesmo que a criança tenha uma série de sintomas adversos. Ela vai ao médico, informa o médico, mas não pode deixar de ministrar o medicamento para a criança. Há vários casos de reações violentas a essa medicação, o que tem causado a morte de crianças e adolescentes. Ao ponto de existir uma associação de pais que perderam seus filhos nessas condições.

São efeitos colaterais desse medicamento: problemas gastrointestinais e perda de apetite. Imagine uma criança de sete anos, que está crescendo, se desenvolvendo, tomar uma medicação que tira a vontade de comer, de se alimentar. No Brasil criou-se a merenda escolar, dentro do sistema público de educação, justamente porque nesta fase é importante a criança se alimentar de três em três horas, importante para o processo de desenvolvimento e de crescimento. Esse remédio ataca o apetite e faz com que a criança não tenha vontade de comer. Ele também ataca o sistema endócrino e metabólico da criança, fazendo com que ela, já que não come, também tenha consequências como supressão do crescimento, perda de peso e outras alterações. O componente desse remédio, inclusive, é usado muitas vezes por pessoas que fazem regime, como uma forma de perda de apetite. As anfetaminas, componentes presentes nesses medicamentos, fazem você perder o apetite. O metilfenidato, que é uma anfetamina, atua da mesma maneira na criança, no adolescente e no adulto. Existem outros sintomas como dor de cabeça, tontura, coceira, febre e insônia, ou seja, uma série de efeitos colaterais de um remédio que atua sobre o sistema nervoso central. Ele provoca uma mudança de funcionamento nesse sistema.

A bula do metilfenidato diz que tudo isso pode acontecer, mas tem uma coisa que chama muita atenção: a bula informa que pacientes agitados, tensos ou ansiosos não devem ser tratados com este medicamento. Então nos perguntamos: “mas não é exatamente para isso que o remédio está sendo dado? Para criança agitada? Para criança que é considerada hiperativa?” Então por que esse remédio está sendo dispensado?.

Outra informação da bula do metilfenidato. O produto não deve ser

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utilizado por crianças menores de seis anos de idade, o que não tem acontecido. Sabemos de casos de crianças de três, quatro ou cinco anos que estão tomando esse medicamento, muitas vezes de forma “preventiva”. Ou seja, você ministra uma droga “tarja preta” que tem todas essas consequências em nome de uma prevenção, para inibir um comportamento específico em uma criança em fase de desenvolvimento.

Somos o segundo país que mais prescreve metilfenidato no mundo. O primeiro são os Estados Unidos. Em relação aos antidepressivos somos os primeiros, passamos na frente dos americanos. Ou seja, o país onde existe mais gente deprimida é o Brasil. É muito curioso isso, porque nós somos vistos como um povo alegre, que gosta de cantar, dançar, fazer música, jogar futebol, fazer festa, churrasco no final de semana, encontrar os amigos, passear e viajar. Somos vistos como um país em que não se manifesta esse viés depressivo. Geralmente quando você pensa em um país com um viés depressivo, pensa em povos mais contidos, menos hospitaleiros, lugares com climas frios. Curiosamente o nosso país é o que mais toma antidepressivo no mundo. Isso nos faz pensar por que estamos optando por essa forma de enfrentamento da tristeza, do sofrimento, da dor, da ansiedade ou do estresse. Por que estamos tomando medicação antidepressiva nessa quantidade?

Nos últimos cinco anos, foi constatado no Brasil um aumento de 48% na utilização de medicamentos antidressivos. No entanto, a prescrição desse medicamento não está sendo feita somente pelos psiquiatras, mas por qualquer especialidade da área médica. Depressão é uma doença grave do ponto de vista da nossa saúde mental. É uma doença que impede de encontrar estratégias, de encontrar formas de enfrentamento das dificuldades da vida. Todos nós passamos por dificuldades em certos momentos, maiores ou menores. Os psiquiatras estão preocupados porque o remédio está sendo receitado em nome de um diagnóstico desnecessário e que sequer foi feito. Aquele medicamento que deveria ser dado apenas em alguns casos está sendo usado em larga escala, sem nenhum tipo de diagnóstico. O relato de uma situação da vida, em vários casos, já é suficiente para que um medicamento seja ministrado.

No caso das crianças isso está sendo mais grave porque são difundidas estatísticas que assustam. Por exemplo, a Associação Brasileira de Dislexia diz que de 5% a 17% da população tem dislexia. Geralmente as análises epidemiológicas das doenças que são genéticas, que afetam o organismo, são feitas no sistema

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um para um milhão, um para cem mil e na percentagem. As doenças que são analisadas de um para cem são as que têm um caráter social, como, por exemplo, a verminose e a desnutrição. Então você pode pensar na população de um para cem, mas nas doenças em que há quadro de origem genética não podemos trabalhar com percentuais, pois o quadro de dislexia e de transtorno de déficit de atenção é avaliado pelos especialistas da área.

Outra associação, voltada para o déficit de atenção, menciona estatísticas internacionais que de 3% a 5% das crianças teriam o transtorno. Atualmente, há pelo menos três laboratórios que comercializam o metilfenidato no Brasil. E o que mais chama a atenção é o fato de que uma das associações informa na sua home page que é apoiada por esses três laboratórios. Mostrando, evidentemente, um conflito de interesses. É muito difícil manter isenção quando se é apoiada pelo mesmo laboratório que fabrica o remédio que é indicado para esse transtorno. Então, o que se tem observado é a presença maciça dos laboratórios querendo influenciar a opinião pública para comercializar seus medicamentos.

Agora podemos nos perguntar: nós estamos falando do TDAH, da dislexia, mas como isso é diagnosticado? Como é feito o diagnóstico de transtornos que são da ordem do comportamento, que são manifestados pela via do comportamento? Não há nenhum exame específico, laboratorial, por exemplo. Existem indícios, existem aproximações, mas não há nenhum que comprove. O diagnóstico é basicamente clínico e isso revela restrições e cuidados que precisariam ser ainda maiores. Como os diagnósticos são feitos? Se eles são feitos com base em relatos a respeito da observação de comportamentos de uma criança, adolescente ou adulto.

É importante que se possa conhecer que instrumentos são utilizados para a realização de um diagnóstico clínico do TDAH. O que é um diagnóstico clínico? É feito a partir do relato do paciente. No caso da criança, é baseado no relato dos pais, do professor ou de ambos. Esse relato, esse diagnóstico clínico, tem como fontes de informação perguntas feitas pelo médico, observações e considerações. No Brasil, utiliza-se uma escala cuja origem encontra-se no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – volume IV, conhecido como DSM-IV da Associação Americana de Psiquiatria. Essa escala denominada SNAP- IV é apresentada em duas versões: para crianças e para adultos. Trata-se de um questionário de dezoito perguntas, nove delas voltadas para o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e nove para hiperatividade. Se a criança mostrar seis evidências de déficit de atenção entre as nove perguntas, ela pode receber a medicação, o metilfenidato.

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Se das nove perguntas de hiperatividade ela também corresponder positivamente a seis, pode tomar medicação. No adulto esse número cai para quatro. Embora a avaliação das crianças e adolescentes deva levar em conta a realização de uma anamnese e as comorbidades, o único instrumento relativo ao transtorno é o questionário. No caso dos adultos, a escala denomina-se Adult Self Report Scale, o que quer dizer que o adulto se autoavalia. As questões dessa escala são as seguintes para o transtorno de hiperatividade:

Primeira: Com frequência você fica se mexendo na cadeira ou balança mãos e pés quando precisa ficar sentando por muito tempo?

Segunda: Com que frequência você se levanta da cadeira em reuniões ou outras situações quando deveria ficar sentado?

Terceira: Com que frequência você se sente inquieto ou agitado? Quarta: Com que frequência você tem dificuldade para sossegar e relaxar

quando tem tempo livre para você? Quinta: Com que frequência você se sente ativo demais, necessitando fazer

coisas como se estivesse com o motor ligado? Sexta: Com que frequência você se pega falando demais em situações sociais? Sétima: Quando você está conversando, com que frequência você se pega

terminando as frases antes da outra pessoa terminar de falar? Oitava: Com que frequência você tem dificuldade para esperar nas situações

onde cada um tem a sua vez?Nona: Com que frequência você interrompe os outros quando eles estão

ocupados? Vejam, todas essas perguntas estão fora do contexto da vida. São perguntas

que não solicitam em que contexto tais comportamentos são apresentados. Porque em alguns contextos você vai precisar se portar de determinadas maneiras: a profissão exige, a forma de trabalho exige, as condições de trabalho exigem, o momento da vida exige. Classificar isso como um transtorno genético, neurobiológico, é algo muito grave. E essa é a escala utilizada para avaliação do comportamento e para ministrar medicação. É como se todos os comportamentos fossem idênticos, indepedentemente da idade, das condições culturais e sociais da criança ou do adolescente que o apresentasse.

As questões que avaliam a presença de falta de atenção, no caso do adulto, são as seguintes.

Primeira: Com que frequência você comete erros por falta de atenção

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quando tem que trabalhar em um projeto chato ou difícil?Segunda: Com que frequência você tem dificuldades de manter a atenção

quando você está fazendo um trabalho chato ou repetitivo?Terceira: Com que frequência você tem dificuldade para se concentrar no

que as pessoas dizem, mesmo quando elas estão falando diretamente com você?Quarta: Com que frequência você deixa um projeto pela metade depois de já

ter feito as partes mais difíceis? Quinta: Com que frequência você tem dificuldade para fazer um trabalho

que exige organização? Sexta: Quando você precisa fazer algo que precisa de muita concentração,

com que frequência você evita ou adia o início?Sétima: Com que frequência você coloca as coisas fora do lugar ou tem

dificuldade para encontrar as coisas em casa ou no trabalho? Oitava: Com que frequência você se distrai com atividades ou barulho a sua

volta?Nona: Com que frequência você tem dificuldade para lembrar de

compromissos ou obrigações?Podemos ver que essas situações são todas muito frequentes na

nossa vida. Da maneira que vivemos, dificilmente não teremos um perfil assim. Atualmente, temos que ser polivalentes, nos desdobrar em diferentes habilidades e competências para dar conta das diversas atividades que realizamos. Existem exigências, demandas do dia a dia cada vez mais frequentes e mais complexas. Pode-se questionar o excesso de atividades, mas não se pode dizer, simplesmente, que se trata de uma doença genética neurobiológica. Para você dizer isso, teria que haver muitos outros indícios que justificassem a presença dessa doença. Ou seja, vivemos num contexto que propicia o surgimento de todos esses comportamentos que passam a ser avaliados como transtornos ou doenças.

Enfim, o que essas constatações revelam para nós? O que esse tipo de diagnóstico e de tratamento tem revelado para nós? Tem revelado, no plano da escola, que grande parte das nossas maneiras de olhar as crianças, de trabalhar com as crianças, ainda está centrada no que a gente pode chamar de “teorias e princípios medicalizantes”. Isso porque estamos olhando um produto, comportamento, não o processo que foi construído para que esse comportamento exista. Nós estamos sempre olhando a fotografia, “não para sentado, não fica quieto”.

O adulto tem o papel fundamental de entender o processo de aprendizagem

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das crianças, mas não estamos fazendo isso no nosso trabalho. E os pais dessas crianças também têm uma importância fundamental. O espaço lúdico, de usar a energia, as gerações que nos precederam tiveram muito presente em seu dia a dia. Era comum as crianças brincarem de pular corda, de pega-pega, de duro ou mole, de esconde-esconde, empinar papagaio, brincar de peão, de passa anel, e tantas outras brincadeiras. Usávamos boas horas do dia usando o corpo, subindo na árvore, colhendo frutas, correndo, ou seja, em atividades em que, de alguma forma, integrávamos o nosso desenvolvimento ao desenvolvimento da cultura em que estávamos inseridos. Hoje isso está cada vez mais raro na vida das crianças. Hoje o instrumento que se usa é na mediação com o corpo é basicamente a tecnologia, ela tem sido mais frequente entre as crianças. Há poucos dias um colega contava: “o meu netinho de um ano e oito meses passa o dedinho no celular, encontra o filme que ele gosta, aperta a tela e assiste”. Um ano e oito meses manipulando a tecnologia como forma de entretenimento, de brinquedo! Quem acreditaria nisso há pouco tempo atrás?

Realmente as formas de viver da infância mudaram. Hoje elas são mediadas por outras necessidades e a integração do corpo com a cultura e o lúdico está cada vez mais reduzido. Poucas crianças hoje sabem uma cantiga de roda, uma roda, brincar de roda. Por quê? Estamos vivendo um momento bastante delicado no plano do desenvolvimento da criança e do adolescente. As crianças estão sendo cobradas por atitudes que elas não têm condições e possibilidades de viver e de aprender no plano da cultura, no plano social. Não é necessariamente o plano da escola, mas o plano da vida. A vida está muito diferente para as crianças da geração atual.

Historicamente as teorias que deram sustentação a essas inspirações também buscavam encontrar na criança, na família e na classe social as causas do não aprender, das dificuldades de aprendizagem. O transtorno de déficit de atenção é considerado uma dificuldade de aprendizagem, de quem não presta atenção. Será que é suficiente aprender a ter atenção? Será que se apenas prestarmos atenção em alguma coisa, aprenderemos? E as outras capacidades que temos, elas não precisam ser usadas e estar à disposição da aprendizagem? São perguntas que temos que fazer para nós mesmos como educadores.

Na educação, temos partido de uma pergunta individual. Por que essa criança não aprende? Não temos partido de perguntas que nos insiram como educadores no processo de educação da criança. Precisamos mudar a pergunta de

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maneira a nos inserirmos em uma relação de aprendizagem, de desenvolvimento.A esta pergunta clássica da psicologia e da educação, “por que essa criança

não aprende”, pelo menos quadro modalidades de respostas vem constituindo o ideário educacional brasileiro: essa criança não aprende por que ela é anormal, ou porque apresenta um distúrbio neurobiológico, ou ainda porque é carente culturalmente, uma criança que vem de uma família pobre, não sabe o que é um lápis e um caderno, que nunca teve acesso à leitura e, portanto, tem uma série de defasagens para aprender a ler e escrever na escola ou porque apresenta problemas afetivos que não permitem aprender na escola.

Nessas quatro respostas fica claro que é a criança que traz alguma deficiência, algum problema ou dificuldade para o interior da escola. Essas quatro explicações geraram vários procedimentos diagnósticos, dentre eles, os testes psicológicos e o psicodiagnóstico clínico.

Quais os tratamentos que têm sido oferecidos para essas crianças? A educação especial, a educação compensatória, a estimulação precoce, os medicamentos, as psicoterapias, as ações compensatórias. Todo o foco está voltado para uma criança portadora de deficiência, de distúrbio, de problema emocional ou de carência cultural. Não vemos nenhuma participação da escola nesse processo.

O que acontece a partir dos anos 1980 com relação a essas quatro explicações tradicionais do pensamento educacional brasileiro a respeito das crianças que não aprendem? Vários âmbitos de pesquisa no campo da educação começaram a trazer uma série de questionamentos. A sociologia da educação traz importantes contribuições a respeito da escola que estamos oferecendo para as crianças. As pesquisas no âmbito da antropologia social consideram como aspecto fundamental “olhar para dentro da escola, entender como ela funciona, como se dá o processo de escolarização da criança, como são os currículos, a didática, a prática de ensino, como a vida acontece dentro da escola”. A antropologia vai mostrar, por meio da pesquisa etnográfica, a convivência com o professor, com a escola, a vida na escola, as dificuldades enfrentadas no processo de escolarização. Os referenciais teóricos que aparecem no campo da psicologia trazem outras tendências de explicação dos fenômenos de aprendizagem. A aprendizagem, o desenvolvimento, a interação precisam ser entendidas enquanto processos essenciais, que se constituem nos ambientes culturais, na dimensão histórica e social; portanto, a criança é uma expressão da cultura, da política educacional e das formas de funcionamento da escola. Esses referenciais trazem dimensões

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interpretativas no campo do desenvolvimento humano que não existiam antes. Essas discussões vão implicar em novos conceitos no plano da educação.

Conceitos como “fracasso escolar”, “vida diária escolar”, “queixa escolar” e “processo de escolarização” passam a povoar a Psicologia e a Educação, a partir dos nos anos 1990. Como ocorre a produção desse fracasso? Como se dá a produção de índices de escolarização tão baixos? Nós vamos ver um conceito de vida diária escolar, que vai mostrar como é o dia a dia da escola, o que acontece na escola, o conceito de processo de escolarização. E, em Psicologia, o conceito de queixa escolar, encaminhamento feito pelas escolas para os profissionais da área da psicologia e que expressam o funcionamento institucional e relacional. Tudo isso faz com que seja necessário mudarmos a pergunta para entendermos o que acontece no processo de escolarização das crianças. Evitar a pergunta “por que a criança não aprende”, que foca apenas um segmento do processo de aprendizagem. É um dos pilares importantes do processo, mas não é o único. Precisamos entender que a criança está num contexto de escolarização. Para entender esse contexto precisamos mudar a nossa pergunta. Não podemos continuar perguntando “por que a criança não aprende”. Temos que pensar sobre o que acontece no processo de escolarização que faz com que a criança não se beneficie da escola, não tenha os benefícios, não se alfabetize, não se aproprie do conhecimento, que é a finalidade da escola.

Isso vai fazer com que a gente considere uma série de outros fatores na produção do não aprender. Que fatores são esses: as políticas educacionais, que são implantadas, as relações escolares no interior da sala de aula, as relações institucionais, de gestão, de organização da escola, de relação com a comunidade bem como aspectos pedagógicos. Tudo isso passa a fazer parte de um conjunto de situações sobre as quais os pesquisadores têm, de alguma forma, se debruçado há muitos e muitos anos, desde a década de 1980, principalmente, e que tem trazido elementos importantes.

Essa forma de pensar tem possibilitado a mudança no eixo do entendimento dessa questão e revendo respostas dadas para a pergunta sobre dificuldades do processo de escolarização. Hoje, vários autores têm afirmado que para entender o processo de escolarização é preciso entender o cotidiano escolar, como se expressa, como acontece, partindo primeiro de um compromisso político do professor, do educador. Ou seja, de que escola estamos falando, qual é a finalidade dessa escola, para que sociedade, que homem. Que visão de mundo eu defendo para essa

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escola? Esse compromisso político é o compromisso primeiro, tanto daqueles que estão na prática educativa quanto daqueles que estudam a prática educativa. Há necessidade de se criar referenciais interpretativos que permitam compreender a complexidade da escola.

Agora, será que não conseguir escrever ou ler é um problema clínico? Essa é a pergunta que temos feitos para as escalas a os sistemas de avaliação. Estamos usando um instrumento de avaliação para um problema que tem outras causas, que tem uma natureza complexa. Não é tão simples olhar apenas o comportamento de uma criança. Esse comportamento é constituído em situações que acontecem no interior da escola e que implicam a nós como educadores e pesquisadores na sua constituição. Ao mesmo tempo, precisamos trabalhar a construção de práticas que sejam coerentes com a compreensão do cotidiano escolar, ou seja, como vamos criar condições de trabalho para não se sentir esgotado no final do dia e não precisar tomar um medicamento no meio do dia para aguentar o período da tarde. O que está acontecendo com a nossa prática educacional para precisarmos dessa estratégia? Que outras estratégias podem ser desenvolvidas no espaço educativo? Essas são perguntas importantes que precisamos fazer como pesquisadores e educadores.

O que esses exemplos e questionamentos nos fazem pensar? Fazem pensar, primeiro, que estamos em um momento em que se está tentando criar novamente um conjunto de políticas públicas que empobrecem o problema da escolarização no Brasil. Nós temos muitas propostas ainda a implementar na área da escolarização. Ainda não conseguimos superar marcos de qualidade que são esperados num país cuja economia cresceu da maneira que cresceu. É muito importante pensar nisso, porque já “naturalizamos” a situação de precariedade. Eu brinco com os meus alunos: “quando entramos no banheiro da escola ou da universidade vemos tudo quebrado: trinco caído, torneira que não funciona, e nos acostumamos com isso. Nem reclamamos mais”.

Esse fato expressa as dificuldades estruturais de nossos prédios públicos de ensino. Nós “naturalizamos” a precariedade e estamos numa situação em que convivemos com isso durante tantos anos e parece que é assim que tem que ser. Esses questionamentos são importantes para que não continuemos criando políticas públicas que reforcem a ideia de que “se eu tratar a criança então a educação vai melhorar” e “se eu disser que essa criança tem TDAH e medicar, os índices vão melhorar na escola porque agora ela vai ficar quieta e prestar atenção”.

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Quer dizer, isso é uma simplificação de uma questão complexa. Não é a criança quieta, são as nossas condições de trabalho, as nossas políticas educacionais, as nossas formas de constituir o espaço de educação no Brasil que devemos rever.

Não podemos achar que a criança é a grande causadora dos índices de precariedade da nossa escola. E muitas políticas públicas estão defendendo a ideia de que se eu tratar a criança, a escola melhora, ou se eu apenas formar professores então a escola melhora. Eu preciso formar muitos professores de uma maneira excelente, mas isso não é suficiente. É uma condição importante, mas não é suficiente. Temos que pensar a escola de uma forma mais global. Ficar atentos aos interesses dos laboratórios farmacêuticos. Existe um mercado de venda de medicamentos que funciona no mesmo estilo da venda de qualquer outro produto. Está sendo usada a mesma lógica de marketing e não podemos ficar alheios a essa situação.

As concepções de direitos que estão sendo levadas para o interior da escola estão desconsiderando a própria ideia de direito. Quer dizer, o professor tem direito a tomar um medicamento para trabalhar ou tem direito a ter condições de trabalho para não precisar tomar esse medicamento para aguentar o stress do trabalho? Essa é uma pergunta que temos que responder: “Eu quero continuar tomando uma medicação para me acalmar ou quero que as condições de trabalho melhorem para eu não ficar nesse estado de tensão, que não aguento e que me leva a tomar medicação?” Precisamos fazer essas perguntas para nós mesmos, para a nossa categoria profissional. Não podemos cair na armadilha de acreditar que é um direito tomar remédio que atua sobre o sistema nervoso central e traz uma série de consequências que a gente nem sabe quais são a médio e longo prazo.

A medicina, enquanto área de conhecimento e de prática profissional, desconhece o processo de aquisição de leitura escrita. Muitos desses diagnósticos são feitos por pessoas que nunca pesquisaram o funcionamento de uma escola, não conhecem uma sala de alfabetização, as discussões presentes nos campos da Linguística, por exemplo. Olham apenas o paciente, que é uma criança. Estamos falando de uma criança que não lê, não escreve e não está de fato aproveitando a escola.

Agora, para finalizar essa exposição, temos feito uma articulação em torno de um grupo bastante grande de profissionais que vêm questionando esse estado de coisas denominado Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Convido vocês a conhecer esse movimento, que está presente em vários estados

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brasileiros, em várias cidades, e reúne conselhos e sindicatos tanto da educação quanto da fonoaudiologia, da psicologia e da medicina. São grupos de profissionais de todas essas áreas que trabalham no sentido de esclarecer questões que estão acontecendo no plano da educação e, ao mesmo tempo, da vida. Tentar fazer essa reflexão que estamos fazendo hoje a respeito da invasão do processo de medicalização nas nossas vidas.

Convidamos vocês a olharem o site do Fórum na internet: “www.medicalizacao.org.br”. Vocês encontram no site uma carta de princípios, que chamamos de Manifesto e que relata nossos objetivos, o que estamos nos propondo a fazer nesse trabalho junto aos professores, a escola e os pais para pensarmos de outra maneira sobre o nosso lugar de educadores.

Este ano realizamos o 3º Seminário Internacional, “A Educação Medicalizada: Reconhecer e acolher as diferenças” em que participaram profissionais de outros países que conhecemos nesse percurso da discussão sobre a medicalização, na França, na Espanha, em Portugal, na Argentina. Vários colegas de outros países estão vivendo esse mesmo processo e estão preocupados com a “patologização” da escolarização, com essa maneira de interpretar as dificuldades da escolarização como uma patologia das crianças e dos professores. Lembrando que os professores são tão medicados quanto os alunos, atualmente.

Para terminar, eu quero agradecer a vocês o convite e parabenizar por este importante evento.

Muito obrigada!

Organizadora:Nós temos que agradecer essa oportunidade de sermos convocados a

uma resposta a essas concepções que, genericamente, explicam o processo de escolarização. Sua fala foi muito conveniente.

Eu quero avisar a vocês que a professora está à disposição para perguntas e as monitoras podem passar para recolher aquelas questões que vocês quiserem fazer por escrito e aqueles que quiserem fazer as questões no microfone venham até o ponto central da sala.

Pertunta 1, Eliacir: Bom dia a todos, bom dia professora Marilene. Eu quero pedir para ocupar o espaço para abrir uma discussão, aproveitando que você nos traz. Há uma criança aqui em Londrina que nasceu com 23 semanas, teve todo o tipo de infecção que vocês possam imaginar, passou quatro meses

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na UTI, aprendeu a andar de bicicleta sem rodinha aos três anos de idade, tem uma linguagem fabulosa, você fala pra ele “fala uma palavra difícil e ele fala paralelepípedo ”. Hoje ele está no segundo ano, ele lê s-e se;-m-a ma; n-a na; semana. E a escola tem pressionado, professor Marilene, os pais para que ele tome metilfenidato. Ele é uma criança que conversa muito, que tem personalidade. E aí, essa família, professora, eles estão absolutamente destruídos. “Meu filho é doente, meu filho tem que tomar remédio”. E a escola tem feito reuniões semanais e chegou a um ponto em que a escola disse assim “ou você dá o metilfenidato ou nós vamos denunciar você no conselho tutelar”. Estão essa é uma situação de uma família aqui de Londrina que eles não sabem o que fazer, a criança lê, a criança conversa, a criança tem autonomia, mas eles estão nesse impasse: ou eles dão metilfenidato para a criança ou eles vão ser denunciados. O que a família fez: matriculou em uma sala de reforço, antes do horário e depois do horário regular de aula, e a situação que se pôs para essa família é essa. Então, qual é a minha pergunta direcionada como orientação para a professora Marilene e também para nós que estamos aqui. Como é que nós, da formação de professores, podemos atuar nesse caso, é uma escola privada. Eu tenho interesse pessoal nisso porque eu supervisiono estágio em gestão formal, eu sou da área de políticas e gestão. Então, a tua orientação professora, dentro da tua experiência, o que nós podemos fazer na formação para avaliar esse tipo de situação? Muito obrigada.

Pergunta 2, Nádia: Bom dia professora Marilene, gostaria de agradecer a sua presença aqui hoje, contribuindo de forma bastante importante para discussões que vem sendo feitas nessa universidade a respeito do fracasso escolar, da medicalização do ensino e gostaria de pedir, se for possível, que você explane um pouco mais a ideia no sentido de que não existe consenso no interior da própria ciência, quanto à existência do TDAH.

Professora Marilene: Acho muito importante a questão da Eliacir porque isso tem nos chamado muito a atenção pelo seguinte: desde 1994 com a Declaração de Salamanca, há todo um movimento de inclusão de pessoas com deficiência, num processo de escolarização e considerando como um direito substantivo, subjetivo da sociedade, dos países do mundo, que são consignatários dessa Declaração. Estamos vendo as políticas para a criança com deficiência ou a pessoa com deficiência sendo cada vez mais voltadas para a inserção da dimensão social e da dimensão educativa, retirando barreiras arquitetônicas, que muitas vezes impedem a visibilidade, o envolvimento dessas pessoas pela cidade, pelos

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espaços onde poderíamos estar convivendo e tendo oportunidades, e com todo esse movimento de inclusão, estamos, na contramão desse movimento, patologizando crianças que não tem patologias. As crianças que são peraltas, ativas, de maneira geral apresentam em suas histórias de vida, como é o caso desse menino, situações de superação de dificuldades de maneira fantástica. A escola precisaria olhar sob outra ótica, ver que esse menino tem vida suficiente para superar tantas barreiras que poderiam ter trazido tantas outras sequelas e que não trouxeram por esse processo de superação. Ao invés de considerarmos questões da história da criança e de processo de desenvolvimento e ficamos, simplesmente na fotografia. Não analisamos a criança no seu processo de desenvolvimento e nós como educadores vamos ter que um dia decidir isso, ou a gente entende que o desenvolvimento é um processo que nos temos que trabalhar para que cada vez mais essa criança tenha oportunidade de se desenvolver e de aprender e que a aprendizagem é fundamental para o seu desenvolvimento, determinante para o seu desenvolvimento, ou nós vamos continuar achando que a criança tem que ser comparada com outra criança em que uma aprende mais e a outra aprende menos. Em Psicologia um exemplo clássico desse movimento são os testes psicológicos. Os testes psicológicos são baseados em comparações entre crianças. Eu respondo trinta questões com nove anos, o outro responde dez, o que responde trinta é muito mais inteligente que aquele que responde dez, essa é a lógica. Você não sabe em que contexto essas trinta foram respondidas, em que contexto essas dez foram respondidas, em que circunstâncias essas respostas foram dadas, não importa, o que importa é o número final, que é o que você está trazendo em relação a essa criança, o que importa é se ela lê, escreve igual ao coleguinha do lado, se ela não faz isso precisa de diagnóstico. E como será o diagnóstico, será baseado em um conjunto de perguntas em que esta criança será comparada com um modelo de criança presente nas questões dessa escala. Quer dizer, a lógica comparativa é a mesmas, nenhum dos dois modelos considera a criança do ponto de vista do seu processo de desenvolvimento. Então eu acho que essas questões elas são muito graves, principalmente porque você usa recurso do direito para transformar em uma ameaça. Quando você nos conta a situação em que o Conselho Tutelar vai ser acionado contra os pais, é muito constrangedor, pois o Conselho Tutelar não tem essa finalidade. O Conselho Tutelar tem como finalidade a proteção de direitos da criança e do adolescente e não pode ser utilizado enquanto uma forma de coação da família. Então a escola usa um instrumento de direito de maneira

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contrária ao pátrio poder, a proteção integral da criança que é o princípio básico do Estatuto da Criança e do Adolescente que constitui os Conselhos Tutelares. Esta é uma interpretação judicializante do Estatuto, um instrumento de direito que foi construído socialmente para garantia de direitos.

Essas transformações que nós temos observado no plano social e que não acontece só com essa escola, mas que está acontecendo em muitas outras situações em que você transforma relações de aprendizagem e de desenvolvimento que a escola deveria ter, como relações policiais, relações de controle, relações de denúncia. Esse momento é extremamente delicado e coloca, evidentemente, muitas questões, como você mencionou, para a formação de professores; mas também insere questões de quais são as intervenções possíveis que nós podemos fazer no plano social para contribuir no esclarecimento dessas questões junto aos educadores. Para que essas questões não fiquem do jeito que elas estão, que as situações não aconteçam da forma como acontecem, sem considerar a trajetória do desenvolvimento de uma criança, sem considerar sua história e a maravilha que foi essa criança chegar até aonde ela chegou e quanto ela ainda pode avançar como chegou até aqui.

Esses lugares de discussão e de intervenção são importantes de acontecer junto aos pais para que eles tenham mais clareza e não se sintam ameaçados. Para que eles possam avaliar o quanto estão coagidos por um certo argumento, que é um argumento que se faz presente em uma certa escola onde essa criança estuda. Se nós estamos em um momento em que as crianças com deficiências legítimas, de fato, a criança tem Síndrome de Down, a criança com paralisia cerebral, essas crianças estão sendo acolhidas de uma maneira importantíssima no processo de educação, quanto mais as crianças que passam por histórias de escolarização em que a deficiência de fato não existe.

Eu acho que pegando um pouco carona no que a Profa. Nádia estava trazendo, é importante reforçar: nós não temos nenhum instrumento diagnóstico, de fato, que identifique o que se denomina “transtorno”. Tratam-se, isso sim, de tentativas de interpretação de formas de agir que são construídas socialmente. Quem quiser se aprofundar mais sobre esse tema, há um trabalho muito importante das professoras Maria Aparecida Moysés e Cecília Colares, que se chama “O Lado escuro do TDAH” e que está publicado em um livro intitulado “Medicalização de crianças e adolescentes”, editado pela Casa do Psicólogo. Outra publicação importante foi feita pela editora da Universidade Estadual de Maringá,

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UEM, denominado “A Exclusão dos “incluídos”. Nessas publicações encontramos artigos que demonstram como se deu a construção desse conceito. Quando se está diante de uma determinada doença, como esta, é fundamental compreender como foi constituída, sob que bases e princípios. Porque também entre os médicos não há consenso, entre os psiquiatras não há consenso, entre os neurologistas não há consenso, entre os profissionais de outras áreas da medicina, que trabalham com essas temáticas, não há consenso em relação à tipologia desse transtorno. Deparamo-nos, isso sim, com um pensamento hegemônico, ou seja, aquele que, pelas forças e contextos históricos, está acima dos outros e não aquele que é a verdade sobre um determinado fato, até porque para algumas correntes teóricas a verdade não existe. Nesse momento, esse transtorno tem sido, cada vez mais, articulado com a medicação, com o desenvolvimento da indústria farmacêutica. Não é uma construção neutra, ela é uma construção que prevê uma certa forma de nós pensarmos a sociedade e a educação. Até seria interessante se vocês pudessem pesquisar, analisando o perfil de criança esperada pelos itens do SNAP IV, isto é, uma criança que brinca calmamente, que não se mexe na cadeira, uma criança que não fala porque ela tem que pedir licença para falar, uma criança que não pode fazer nenhuma outra atividade que não seja sob controle. Quer dizer, essa é uma criança possível. Mas é isso que queremos na formação de uma criança? Queremos que as nossas crianças sejam assim: quietas, sentadinhas, sem falar, sem se mexer. Que criança pretendemos formar na sociedade? Quando analisamos um questionário que considera que uma criança que faz essas coisas é doente, tem uma doença neurobiológica genética, não é pouca coisa, você está atribuindo uma patologia à infância; o conceito de infância está sendo transformado. Queremos crianças aprisionadas dentro de sim mesmas? Essa lógica da patologia é uma lógica que está o tempo todo alicerçando a nossa crença em determinado modelo de infância.

Eu queria só fazer um comentário, que eu acho importante também. Nesse processo da educação, de questionamento da psicologização da educação, tendemos a desconsiderar a existência da subjetividade. Isso é uma questão para nós pensarmos, para nós que estamos nessa área de fronteira da psicologia com a educação: com que conhecimentos a psicologia pode contribuir para além da psicologização e que hoje precisariam ser regastados para que se possa entender essa criança no contexto em que ela vive, na sociedade em que ela vive, nos desafios em que ela vive? Muitos dos referenciais interpretativos da psicologia, da sociologia da educação, da antropologia da educação, da filosofia, da história da

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educação fundamental são fundamentais para nos ajudar a compreender o que está ocorrendo na vida diária escolar. Muitas vezes, sabemos muito bem a respeito de currículo, mas com que criança se está trabalhando? Quais os seus interesses? Como posso compreender essa criança levando em conta sua história, levando em conta a cultura, levando em conta a dimensão política, do desenvolvimento infantil? Essas perguntas são fundamentais para estruturar determinada prática docente.

Pergunta 3: Temos uma outra questão, pedindo que você fale um pouco mais se esses estudos a respeito da medicalização que diferenciam escola pública e escola particular. Se existem dados que mostrem uma distinção.

Professora Marilene: Na verdade, os estudos têm sido muito mais pela utilização e dispensação do medicamento, portanto, não se remete à rede pública ou privada, mas sim em que proporção tais medicamentos estão sendo utilizados. No caso do estado de São Paulo, temos dados recentes de compra e dispensação dos medicamentos, atingindo, portanto, crianças usuárias da rede pública de saúde (SUS). Quando apresentamos dados do IDUM, dois milhões de caixas vendidas em 2010, estamos atingindo a rede privada, pois tais medicamentos foram comprados em farmácias. O que se observa, então, é que as crianças estão sendo medicadas por medicamentos adquiridos nas duas redes de saúde, tanto na pública quanto na privada. Há também depoimentos de profissionais que trabalham nas escolas privadas, no estado de São Paulo pelo menos, que nos procuram para contar que há práticas em escolas de encaminhamentos constantes para neurologistas com vistas a atendimento a problemas de comportamento e de aprendizagem na escola. Talvez, até, em função do poder aquisitivo dos pais, os encaminhamentos sejam ainda mais frequentes do que nas escolas da rede pública. Por quê? Como as crianças têm acesso a convênios, acesso a médicos, esses encaminhamentos acabam sendo muito mais rápidos. Algumas escolas, inclusive de elite em São Paulo, têm setores com listas de profissionais para serem encaminhados aos seus alunos. Na rede pública, essa criança também toma, como mostramos nos dados apresentados. Há escolas da rede pública, fato presenciado em estágios de psicologia escolar, que fazem acordos com os pais para que as crianças tomem o metilfenidato na entrada do período escolar, tendo em vista que uma de suas fórmulas tem duração de quatro horas no organismo. O fato de tomar a medicação no início do horário letivo garantiria que o efeito fosse inteiramente aproveitado durante o período escolar. O que é coerente do ponto de vista, da lógica do controle. Porque se eu tenho que controlar o comportamento, porque não ter este controle

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por quatro horas? Pergunta 4: Parece ser a mesma lógica que vem a questão da Eliacir, da

ingerência da família, se trata de uma questão de controle? Precisamos responder a isso?

Professora Marilene: Estamos em um momento difícil. O metilfenidato tem sido utilizado também para realização de provas para concursos, trabalhos escolares etc.; existe um câmbio negro muito grande metilfenidato que pode ser comprado pela internet e entregue em domicílio. Esses dados que foram apresentados não computam esse mercado negro. Também não computam as farmácias de manipulação, ou seja, a utilização desse medicamento é enorme e as consequências são todas essas: sistema nervoso central, muscular, gástrico, endócrino, porque é uma anfetamina.

Pergunta 5: Temos mais uma questão aqui. Você considera que exista, intencionalmente, e aí quem são os mentores intelectuais nesse processo evolutivo da medicalização da sociedade a partir da educação? Algumas considerações, por favor.

Professora Marilene: É uma pergunta importante. Quem está por trás disso, quais são os interesses, quais são as forças que estão, de alguma forma, colaborando para esse processo? Eu diria que tem várias forças importantes que se pode identificar, com certeza, cada vez mais vai encontrando respostas para essa pergunta, porque é uma pergunta que cabe a todos nós.

Por um lado nós estamos em uma sociedade altamente competitiva. Quando uma pessoa, para fazer um concurso precisa tomar um remédio e que ele pode ter uma parada cardíaca, isso não é pouca coisa. Você está jogando todas as fichas em algo, no pressuposto de que você quer ter sucesso na sua vida. Quando uma mãe diz assim “eu prefiro que meu filho tome metilfenidato porque assim eu sei que ele vai entrar na USP, na UEL, na UEM e se ele não tomar ele não vai entrar e eu vou pagar uma escola privada pra ele”, o que está por trás de tudo isso é a questão de que futuro você vislumbra para seu filho em uma sociedade que oferece essas ou aquelas opções. Essa ideia veiculada entre os pais que o remédio vai fazer com que ele foque só no estudo e vá ser um menino bem-sucedido. Nós temos arraigada em nossa sociedade a ideologia da sociedade da meritocracia, da premiação, da competição, em que as estratégias que estão sendo usadas para isso passam por muitos canais e um dos canais é a medicalização. Então esse canal em que você se “estropia”, mas você vence. Então essa é uma das lógicas que

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está presente dentro do imaginário social. Isso vem sendo alimentado de várias formas e a droga vem alimentando essa ideologia, e nós não estamos falando das drogas ilícitas, estamos falando das drogas lícitas, daquela que é receitada, que a receita fica lá na farmácia. Ou seja, a busca contínua dessas drogas demonstra que existe um interesse por efeitos rápidos na vida, que você obtenha rapidamente um resultado e as medicações têm vindo com essa falácia “você está deprimido, tome um antidepressivo e você ficará outra pessoa”. Essa propaganda já existe fora da televisão, talvez, se permita que na televisão tenha uma chamada para antidepressivos. Veja, a gente tem uma sociedade que pede respostas rápidas e nós temos uma indústria de medicamentos extremamente organizada, segunda do mundo, então ela traz para a área da saúde tudo que há de mais avançado no marketing. Tanto que os médicos recebem amostras gratuitamente; os representantes da indústria farmacêutica chegam às cidades de todo o interior do país.

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OS DESAFIOS DE FORMAR UM PROFESSOR PESQUISADOR

Marli Eliza Dalmazo Afonso de André

Formar professores pesquisadores é um grande desafio na formação docente e temos muitas questões em relação a essa formação. Por um lado, parece que já há um consenso, tanto nos eventos quanto na literatura pedagógica e nos debates, em relação à importância de se formar o professor pesquisador. Mas por outro lado, temos muito pouca clareza sobre quais os caminhos mais adequados para se efetivar essa formação, quais são efetivamente seus efeitos no desenvolvimento profissional e na prática dos docentes e o que se almeja com essa proposta. Eu vou tentar falar abordar esses aspectos. Que proposta é essa? Como desenvolvê-la e para quê? Vou tentar discorrer sobre a importância de se formar um professor pesquisador.

Eu começo falando um pouco sobre as principais ideias-chave que surgiram no século XXI em relação à formação de professores. E acho que são essas, em síntese, que estão elencadas: o professor reflexivo, o professor pesquisador e o desenvolvimento profissional docente.

Fala-se muito na formação do professor reflexivo, mas isso não é tão recente, é uma coisa que vem de alguns anos. Formar o professor pesquisador é outra ideia que levou muitos cursos de pedagogia a se estruturarem e a terem como eixo a formação deste pesquisador. Mais recentemente estamos falando muito da questão do desenvolvimento profissional do docente. Essas ideias estão presentes nas nossas discussões, na literatura, nas propostas que encontramos na área de formação dos professores.

Eu vou tratar um pouco desses aspectos e dessas ideias-chave que apareceram mais recentemente e eu vou tratar de cada uma delas: o professor reflexivo, o professor pesquisador e o desenvolvimento profissional.

Começo falando na questão do professor reflexivo. Quais são as questões que surgem quando a gente fala de um professor reflexivo. Primeiro, o próprio Schön, um dos mentores dessa ideia do professor reflexivo, começou trabalhando com arquitetos, falando de outros profissionais, mas depois também se voltou para a área da educação. Uma pergunta que ele faz, um alerta, é: “refletir sobre o quê?” Reflexivos todos somos, nós pensamos, somos reflexivos. Ele chama a nossa atenção para a questão “refletir sobre o o que? Eu acho que falar da formação

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de professores é refletir sobre a ação docente, sobre o trabalho desenvolvido na escola, na sala de aula ou em outros espaços educativos. Refletir sobre a ação docente é realmente estar aqui para criar as melhores condições possíveis para que o aluno aprenda.

Muitas vezes quando se fala em formação de professores há muita atenção ao processo de formação, mas muito frequentemente esquecemos do outro lado da formação, a quem ela se destina, para que ela existe. Queremos sobretudo que os professores estejam bem preparados para propiciar as melhores condições ao aluno, de modo que ele possa se apropriar da cultura da humanidade, dos conhecimentos necessários a uma inserção crítica e criativa na realidade, que se tornem cidadãos livres, com pensamento próprio. È tendo essas referências em mente que se pensa em melhorar a formação dos professores. Por quê? Porque os professores têm um papel fundamental nesse trabalho junto às crianças e jovens que frequentam a escola.

Quando se pensa em um professor reflexivo, a gente pensa em um reflexivo crítico, porque, como eu disse, nós todos somos reflexivos, pensamos sobre o que fazemos. É necessário refletir sobre o nosso trabalho, mas refletir criticamente. O que é refletir criticamente? Essa é uma pergunta que a gente tem que se fazer. Refletir criticamente significa se debruçar sobre o nosso trabalho para poder entender aquilo que a gente faz e para que possamos melhorar o nosso trabalho. Essa reflexão crítica implica, portanto, planejar a nossa ação, registrar nosso trabalho, rever nosso trabalho e mudar aquilo que é necessário mudar. Não é apenas olhar para o nosso trabalho e constatar, mas constatar para que a gente possa fazer as mudanças, os ajustes que são necessários para que a nossa ação seja mais efetiva. E para que nossa ação docente seja efetiva, ela tem que conseguir fazer com que a maioria dos nossos alunos realmente se apropriem dos conhecimentos, das habilidades, das atitudes necessárias para se desenvolverem e para serem cidadãos críticos e criativos.

Então a pergunta que acompanha essa questão do professor reflexivo é o “para quê”. E repito: para melhorar a prática e possibilitar a aprendizagem significativa dos alunos.

E aí eu queria me reportar ao que a Marilene Proença falou pela manhã. Não é apenas em relação ao professor. Ou seja, nós evoluímos no sentido de chegar a uma ideia de que não basta apenas uma reflexão sobre o próprio trabalho individual, mas essa reflexão tem que ser feita por todos que estão na escola, uma

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escola reflexiva. Tem até aquele livro da Isabel Alarcão, que se chama A escola reflexiva, e que acrescenta um pouco a essa ideia de que não é individualmente, cada um sozinho, que vamos desenvolver um trabalho eficiente. É uma responsabilidade e uma tarefa do coletivo escolar. Nós podemos falar em professor reflexivo, sim, mas numa escola reflexiva, em que todos os membros da escola, todos aqueles responsáveis pela ação educativa também participem dessa leitura crítica da prática, da leitura crítica da realidade, para podermos aperfeiçoá-la cada vez mais. Essa ideia do professor reflexivo tem evoluído para pensarmos numa escola reflexiva. Eu vou falar muito dessa questão do coletivo porque acredito muito no coletivo. Acho que a nossa ação precisa ser desenvolvida em termos de um trabalho cada vez mais conjunto para que a gente possa conseguir algumas coisas que consideramos importantes em termos de educação.

Outra ideia chave da atualidade: o professor pesquisador. O professor pesquisador é um pouco essa ideia do professor reflexivo, crítico, e, além disso, queremos que ele seja também um professor pesquisador. As questões que a gente se coloca são essas. O que se busca com essa proposta do professor pesquisador e como nós podemos desenvolver essa proposta? E aí eu vou dizer que vou defender não só uma pesquisa individual, mas uma pesquisa que se chama colaborativa, pesquisa em colaboração. Acho que nos últimos anos também evoluiu a ideia de não mais pensar no professor isoladamente, mas de pensar mais no coletivo, no trabalho interativo, no trabalho de pesquisa em colaboração.

Vamos retomar essas questões: O que se espera dessa proposta de formar o professor pesquisador? Eu a vejo assim: “tornar o sujeito capaz de refletir sobre a sua prática e buscar formas de aperfeiçoar cada vez mais o seu trabalho, participando do processo de emancipação das pessoas”. Acho importante pararmos para pensar o que se busca quando enunciamos essa p´roposta, porque senão se corre o risco de virar apenas uma ideia, um modismo, sem uma reflexão sobre os princípios que estão presentes na ideia de professor reflexivo e pesquisador.

Eu acho que um dos princípios que subjazem a essa ideia-chave são: tornar-se um sujeito autônomo. Ter autonomia significa uma pessoa que tenha pensamentos próprios, que tenha ideias próprias, que escolha entre alternativas, que se decida por um caminho, que implemente ações e que tenha argumentos para defender suas escolhas e suas ações. Com isso vai se sentir cada vez mais livres de amarras e de pressões sociais e econômicas. E vai poder entender e se movimentar dentro desse mundo.

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Para que se busca a autonomia? Não se pode esquecer por que se quer que seja um sujeito autônomo, com ideias próprias, que se desenvolva, que saiba se movimentar diante da realidade, escolhendo caminhos, decidindo: para que esteja melhor preparada para desenvover sua atividade docente, de forma a propiciar uma aprendizagem significativa ao aluno.

No conceito de autonomia também está implícita a perspectiva de um sujeito ativo, com iniciativa, senhor de suas ações e de suas escolhas. Um sujeito que constitui a sua identidade na relação com o outro, nas trocas, na construção coletiva do conhecimento. Portanto, um sujeito que interage, que acolhe ideias alheias, ao mesmo tempo em que controi a suas próprias.

Nesta proposta de formar o professor pesquisador faz-se necessário esclarecer a diferença entre pesquisar e ensinar. Bernard Charlot explicita essa diferença quando diz que ensinar é uma tarefa muito mais difícil do fazer pesquisa porque ensinar envolve valores, envolve o que ele chama de dimensão axiológica. É muito mais complexo porque implica ter um posicionamento diante das coisas, assumir uma postura política. A pesquisa é analítica, na pesquisa você pode se recolher, pode se afastar, pode parar para pensar. No ensino você tem que resolver as coisas de imediato. Não pode dizer, por exemplo, quando duas crianças estão brigando na sala de aula na sua frente: “dá licença que eu vou lá estudar para ver como se resolve esse caso”. Não tem isso. Na pesquisa nós podemos fazer isso, vamos ver qual autor nos ajuda, onde podemos encontrar algumas ideias sobre o assunto. No ensino, na ação docente as coisas devem ser resolvidas na incerteza e na urgência. Realmente é algo muito mais difícil, muito mais complexo.

Tentando explorar um pouco mais o conceito de pesquisa, pode-se dizer que a pesquisa é analítica, usa procedimentos rigorosos e sistemáticos para produzir conhecimento, ou seja, dar inteligibilidade àquilo que é desconhecido na prática social. Como diz Charlot: “eu tenho uma pesquisa quando eu tenho um questão que preciso saber e não sei a resposta, nem eu nem ninguem”. Pesquisar é procurar alguma coisa, como diz o Saviani, que é necessário conhecer e que eu não sei. A pesquisa vai me ajudar a encontrar algo que eu desconheço. É nisso que está a beleza do achado da pesquisa, a descoberta, o conhecimento novo que é produzido pela pesquisa.

Pode-se pesquisar e ensinar ao mesmo tempo. Posso extrair da minha ação docente algumas questões que me intrigam, que é necessário esclarecer e me disponho a pesquisar. Nessa empreitada preciso considerar as conições mínimas

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necessárias ao trabalho de pesquisa: dispor de tempo, espaço, fontes bibliográficas, conhecimentos sobre como formular um problema, como elaborar instrumentos e procedimentos de coleta de dados, como analisar dados, como socializar o conhecimento produzido pela pesquisa.

Se admito a possibilidade de concretizar essa proposta, cabe discutir como formar o professor pesquisador. E eu vou situar essa proposição nos cursos de formação inicial, porque aqui estamos falando com a pedagogia, na Semana da Educação. `Para efetivar essa proposta é preciso, não só repensar a estrutura dos cursos de formação inicial, mas sobretudo as formas ou metodologias de trabalho. Não basta querer formar professores pesquisadores, e continuar fazendo as coisas que costumamos fazer sempre. Temos que pensar numa outra forma porque a maneira como nós trabalhamos é muito mais forte e atinge muito mais do que aquilo que falamos.

Então é importante ter uma metodologia de trabalho que possibilite um envolvimento ativo do aluno. Queremos um sujeito ativo, que se envolva no aprendizado e que faça desse movimento o que Paulo Freire diz em seus livros, que é passar da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica. Aprender a perguntar, aprender a indagar, indagar-se, colocar-se diante da realidade e se perguntar. Se não houver essa possibilidade no trabalho de formação, não vamos conseguir um sujeito autônomo, pesquisador. Para que esse princípio básico se efetive, se torne concreto, temos que mudar a nossa forma de trabalhar, a metodologia de trabalho, de forma que passe a ser uma orientação para que as pessoas que também estão em formação possam trabalhar futuramente com seus alunos na sala de aula.

Outro aspecto que me parece muito importante. Quando a gente fala em professor pesquisador devemos pensar em desenvolver uma atitude investigativa. Eu acho que é isso que a gente precisa, mais do que nunca. Melhor que dizer que vamos fazer uma pesquisa é desenvolver habilidades de pesquisador. Eu considero como habilidades fundamentais, por exemplo, aprender a problematizar. É algo muito difícil, mesmo com os nossos alunos do mestrado ou doutorado. É complicado muitas vezes participar de bancas e ver que não existe um problema na pesquisa Às vezes existe uma pergunta, mas uma pergunta não é um problema. Um problema é algo muito mais inquietante. É uma resposta que eu não tenho, que eu não sei, mas tenho argumentos para convencer que aquilo é realmente uma questão importante para se conhecer. Isso é algo que nós professores formadores temos que ensinar

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nossos alunos a desenvolver: a formular um problema de pesquisa. O que é elaborar um problema de pesquisa? É colocar-se diante da realidade e indagar. Isso faz parte da habilidade de se tornar um professor pesquisador, aprender a problematizar.

Outra habilidade importante dentro dessa atitude investigativa é buscar dados. Nós temos que ensinar nossos alunos a encontrar fontes de consulta, fontes que ajudem a fundamentar o problema de pesquisa. Onde ele vai buscar? Como ele vai buscar? Quais são os bancos de dados? Onde essas fontes existem? Nós temos que ensinar os nossos alunos porque o pesquisador é aquele que vai buscar as informações que dão subsídios para encontrar as suas respostas. Então, deve-se aprender a buscar dados.

Além disso, é preciso construir instrumentar para elucidar a questão. É importante na formação dessa atitude investigativa fazer com que nossos alunos aprendam, por exemplo, a desenvolver instrumentos de pesquisa, a elaborar questionário, um roteiro de entrevista, um roteiro de observação, um roteiro de um grupo de discussão, um instrumental para a coleta de dados ou um referencial para analisar registros. Ninguém nasce sabendo, é preciso aprender a elaborar instrumentos, registros de observação, registros de entrevistas, registros de aulas. Nós temos que ensinar os nossos alunos a fazer registros e, além disso, a expressar os seus achados. Dessa atitude investigativa também faz parte aprender como eu vou comunicar o meu trabalho, os meus achados de pesquisa, como vou expressar. Aprender a escrever um relatório, a escrever um texto para ser apresentado em um evento como esse, por exemplo, faz parte do aprendizado formativo nos cursos de graduação, para que na pós-graduação eles já possam ter uma iniciação. Eles devem aprender as habilidades de formular um problema, encontrar fontes para entender melhor este problema, fundamentar sua escolha, elaborar instrumentos de coleta de dados e, depois, relatar os seus achados, os seus resultados.

Eu acho que um princípio fundamental, além do envolvimento ativo do sujeito nesse processo de aprendizagem, é a questão das interações sociais. Ainda faz parte, eu acho, da formação do sujeito autônomo, com ideias próprias, que aprenda a se tornar um pesquisador da sua prática e aprenda também a conviver em grupo. Aprender a escutar, saber ouvir e se fazer ouvir, expressar ideias e opiniões. Tudo isso é um aprendizado. Quando eu falo que nós temos que mudar a metodologia de trabalho com os alunos, falo em aprender a expressar ideias e opiniões próprias, a acolher pensamentos diferentes daqueles que eles já

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têm, aprender a relatar. Isso tudo é importante na situação do trabalho coletivo, do trabalho de sala de aula, do trabalho de um grupo como um todo. Aprender essas habilidades para que ele possa também se desenvolver melhor no sentido de aprender a observar, a acolher ideias diferentes das suas, a selecionar ideias que melhor atendam as suas necessidades, a sua curiosidade, e assim por diante.

Isso vai supor uma nova organização nos cursos de formação. Eu estou até repetindo um pouco uma ideia do Nóvoa. Quando ele vem ao Brasil, tem falado bastante dessa ideia de a gente rever os espaços de formação. Nesse sentido, eu acho muito importante o aprendizado de outras formas que não sejam as de sala de aula. Por exemplo, trabalhar com grupos de estudo, com grupos de pesquisa, criar espaços para apresentação das pesquisas, para aprender a sintetizar o trabalho, a encontrar uma forma que as outras pessoas entendam. Existe um pesquisador, Beillerot que propõe uma definição de pesquisa. Diante da pergunta “o que é pesquisa?”, ele discute o conceito de pesquisa e afirma: “pesquisar é gerar conhecimento novo, isso é pesquisa”. E diz ainda: “mas como eu vou saber se esse conhecimento é novo ou não?”. Eu sei se um conhecimento é novo ou não quando eu o exponho para pessoas que estejam familiarizadas e interessadas nesse conhecimento. São essas pessoas que vão dizer se o conhecimento é novo ou não. É a comunidade, aquelas pessoas que são os pares, são elas que vão poder dizer realmente: “olha que coisa interessante o que essa pessoa descobriu, ela desenvolveu, etc.”. Para isso eu preciso comunicar minha pesquisa. Em síntese, ele fala de três condições básicas para se poder dizer se existe uma pesquisa: gerar conhecimento novo; comunicar essa pesquisa – ele diz que se não for comunicada você nunca vai saber se realmente aquele foi um trabalho bom, interessante, etc.; e a última coisa que toda pesquisa tem é a sistematização, método sistemático de coleta, de análise das informações. Em qualquer tipo de pesquisa é necessário que se sistematize o conhecimento através de planejamento, de relatórios, de registro, de acompanhamento e assim por diante.

Essas seriam as três condições básicas para você dizer o que é realmente uma pesquisa. Dessa forma, é importante aprender a comunicar a pesquisa. Já aconteceu, principalmente em eventos, as pessoas falarem: “minha pesquisa não foi entendida, eu mandei um trabalho e não foi aceito”. Muitas vezes as pessoas acham que é muito seletivo, “elitizante” como alguns dizem, e por isso os trabalhos não são aceitos. Em alguns momentos não significa que não existe ali uma pesquisa. É porque na comunicação desse trabalho de pesquisa a pessoa não

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conseguiu comunicar devidamente naquelas doze ou treze páginas o seu trabalho de pesquisa. Isso também tem que ser um aprendizado. Existe até um trabalho que a professora Menga Ludke que trabalha comigo, fez uma vez. Ela selecionou alguns textos que foram apresentados em eventos e passou para doze juízes, no Brasil inteiro. Eu fui um dos juízes e a gente tinha que decidir se o texto era pesquisa ou não e por quê.

Eu me lembro de um dos textos que ela nos mandou. Parecia que existia uma pesquisa, mas na apresentação, na forma como a pessoa relatou o trabalho, não ficava claro se aquilo era uma pesquisa ou não. Aprender a relatar, a comunicar, a sintetizar as vezes um trabalho científico que tem um relatório de duzentas páginas em dez, doze, quinze, que seja, é um aprendizado importante, necessário. Aprender a concluir, apresentar as conclusões e os objetivos, tudo isso são habilidades que, se nós queremos formar um professor pesquisador, precisamos desenvolver com eles.

A pesquisa exige também algumas condições. Não é todo mundo que deve ser pesquisador, como se fosse obrigatório, uma palavra de ordem. É preciso, antes de tudo, querer ser pesquisador, ou seja, o desejo é necessário porque isso exige uma série de investimentos, como, por exemplo, ter tempo e disposição para mergulhar de cabeça na bibliografia, além, evidente de ter acesso a uma bibliografia que possa subsidiar e fundamentar o trabalho. Ainda é preciso dispor-se a buscar ajuda, principalmente o pesquisador iniciante, buscar uma assessoria, um apoio técnico para desenvolver essas habilidades que mencionei: formular um problema, justificar as escolhas, desenvolver instrumentos, aprender a coletar dados, registrar e relatar esses dados.

Também é necessário disponibilidade de espaço e de tempo para se fazer pesquisa. Ninguém consegue fazer pesquisa se não tiver condições mínimas. Eu também cito aqui uma pesquisa que a professora Menga Ludke fez. Ela foi em uma escola onde os professores do ensino médio tinham no contrato horas para fazer pesquisa. Era uma escola no Rio de Janeiro. Ela foi fazer a pesquisa junto a esses professores e constatou que, embora eles tivessem essas horas para dedicar à pesquisa, muitos deles não tinham condições para realizá-las. Eles não tinham espaço para trabalhar, não tinham lugar para deixarem o material, não tinham como trabalhar com esse material e muitos deles não podiam fazer pesquisa porque faltava uma série de condições físicas, de espaço, recursos, materiais, bibliografia que possibilitassem o desenvolvimento da pesquisa. E ninguém faz uma pesquisa

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se não há condições para que isso ocorra. E, é necessário ainda e principalmente, disposição para fazer pesquisa, por exemplo, dizer: “olha, eu estou disposta, eu estou querendo, eu desejo mesmo fazer pesquisa”.

A gente precisa acabar com essa ideia de que todo mundo tem que ser professor pesquisador porque senão não é bom. Essa proposta de professor pesquisador acabou voltando para o próprio professor como mais uma culpabilização: “está vendo, eles não sabem, eles não querem”. Mas não é isso, não é todo mundo que deve ser pesquisador. Quem quer ser pesquisador pode ser se se dispuser a um aprendizado de como se tornar pesquisador. Precisa ter condições de assessoria, acesso a bibliografia e recursos para se tornar um professor pesquisador. E é igualmente importante ser um bom professor na sala de aula, mesmo que não desenvolva pesquisa sitematicamente. Ele pode ser muito bom professor, desenvolver o seu trabalho, sem que realize pesquisa. Eu vejo, muitas vezes, cursos que assumiram a pesquisa como eixo.

Tive uma orientanda que fez uma tese com foco na formação do professor pesquisador, tendo como contexto o curso de pedagogia da universidade em que trabalhava. O curso havia assumido a formação do professor pesquisador como eixo do curso. Só que ela verificou que o conceito de pesquisa era completamente difuso entre os professores do curso. Um dos professores entendia que pesquisa seria fazer estágio, outro que pesquisa significava pesquisar informações na internet, outra que pesquisa seria desenvolver um trabalho igual ao de um mestrado. Enfim, uma variedade de conceitos de pesquisa. Conclusão: havia uma expectativa muito alta de se formar um professor pesquisador na graduação, mas entre os próprios professores do curso a questão era muito pouco clara. Ficava algo como se fosse uma palavra de ordem, a única forma de ser um bom professor. Porém, nem as próprias pessoas que orientavam esses alunos sabiam muito bem do que estavam falando.

O aprendizado da pesquisa é longo, a gente aprende a ser pesquisador aos poucos, vai aprendendo algumas habilidades, se desenvolvendo. A pesquisa que a gente faz no trabalho, voltada mais para a prática da sala de aula, para melhorar o próprio trabalho, é diferente da pesquisa que se faz com a exigência de um mestrado, um doutorado, uma pesquisa acadêmica com outra finalidade. Tem diferenças nesse sentido.

E aí a gente pergunta: pesquisar para quê? Para responder essa pergunta precisamos pensar assim: “o que a gente espera do professor da escola básica?”. Eu

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trago uma citação de um trabalho meu: “que eles assumam de forma competente e responsável a sua tarefa de ensinar, de modo que a grande maioria de seus alunos desenvolva uma atividade intelectual significativa e se aproprie de conhecimentos fundamentais para uma inserção ativa e comprometida na sociedade”. Essa seria a minha definição, a minha expectativa em relação ao que acho que deve ser um bom professor.

Eu também espero que um bom professor possa analisar as situações do cotidiano escolar, do seu trabalho, de modo a entendê-las na sua complexidade, na sua totalidade, no seu contexto, ou seja, que ele compreenda o que ele faz, como ele faz e por que ele faz. Que ele pense sobre isso e a partir desse entendimento possa colher elementos para mudar o que for preciso. Isso é o que eu espero de um bom professor.

E nesse sentido, a ideia que eu defendo é que a formação do professor pesquisador não é apenas possível, mas extremamente importante e viável se se considerar que o aprendizado da pesquisa é uma tarefa que se desenvolve ao longo do tempo e atende a alguns princípios, como o ativo envolvimento do sujeito, sua disposição para aprender, exposição a situações que favoreçam a reflexão crítica, conhecimentos e orientações sobre metodologia de pesquisa, e sobretudo, um ambiente de trabalho que possibilite compartilhar saberes. Voltando um pouco àquela ideia inicial em que da defesa de um professor reflexivo se evolui para a defesa de uma escola reflexiva, de uma pesquisa individual se evolui para uma pesquisa em colaboração, defendo aqui o aprendizado da pesquisa como um processo colaborativo.

Hoje temos o projeto Pibid, que tem possibilitado a articulação entre os professores da escola e os da universidade, criando aquilo que os pesquisadores chamam de “comunidades investigativas”, grupos que se desenvolvem em torno de temáticas relativas à escola, à aprendizagem, ao ensino. Com isso, a universidade ganha muito porque ela se aproxima da escola e pode trabalhar muito melhor a articulação da teoria com a prática. Ganha muito o ensino, os professores e os alunos desses professores. Eu acho que a iniciativa do trabalho conjunto deve partir da própria universidade. A universidade fica muito imóvel, acomodada, esperando que os professores venham pedir, que a rede venha pedir. Acho que é uma responsabilidade da universidade se mobilizar para isso.

Minha última pesquisa é sobre análise de programas de inserção do aluno na docência. Um deles é o Pibid, mas não é só o Pibid que existe. Existem outros

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programas que também estão tentando aproximar a universidade da escola. Eu estou vendo o quanto que esse programa, o Pibid, está mobilizando a universidade e mexendo com o ensino na universidade. Tenho feito entrevistas com grupos de professores. Os que não são orientadores do Pibid, mas são professores dos alunos que fazem o Pibid, dizem assim: “agora eu estou tendo que mudar a minha aula porque meus alunos são muito mais inquietos, eles perguntam, querem saber, demandam mais. Eu estou tendo que melhorar o meu ensino por conta das exigências dos alunos que estão participando desse projeto”. E também estou fazendo entrevistas com os professores das escolas que recebem alunos envolvidos com esse projeto. Os professores das escolas falam assim: “como tem sido bom receber a universidade aqui na minha sala de aula. Isso me faz repensar as aulas no dia a dia. A gente fica muito atarefada, com tantas demandas que um professor usualmente tem, mas o fato de ter esses alunos que trazem ideias novas, sugestões, tem sido de extrema importância para o meu trabalho na escola”. Essa parceria entre universidade e escola tem sido uma forma muito interessante. Parece hoje uma das melhores coisas que a gente tem em relação, por exemplo, a repensar o estágio dentro dessa mesma perspectiva. Ou seja, a universidade trabalhar mais conjuntamente com as escolas, um trabalho de parceria e de troca entre as pessoas que atuam tanto nas escolas quanto na universidade.

Agora, um conceito de desenvolvimento profissional. O professor pesquisador está em constante desenvolvimento profissional e isso fala muito sobre essa questão. O Carlos Marcelo tem um livro, que já é antigo, de 1999, em que ele trata do desenvolvimento profissional. Mais recentemente ele disse: “o desenvolvimento profissional é um processo de longo prazo que integra diferentes tipos de oportunidades e de experiências, planejadas sistematicamente, de forma a promover o crescimento e o desenvolvimento profissional do professor”. Tem que ser um processo intencional, com previsão de onde partir e para onde ir. Mesmo que seja uma auto-formação, tem que haver uma intencionalidade quanto ao crescimento, ao desenvolvimento profissional. Carlos Marcelo diz que gosta bastante dessa ideia de desenvolvimento profissional, primeiro porque o desenvolvimento dá uma ideia de movimento, e, depois, dá uma ideia também de continuidade entre a formação inicial e a formação continuada. A gente costumava trabalhar a formação inicial, ou seja, só estudava o curso de pedagogia, antigamente os cursos normais, mas a formação continuada era outra coisa. O que aconteceu? Cristalizou-se uma ideia de que ao terminar a formação inicial a pessoa

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está formada. Mas a concepção que temos hoje é que a formação inicial é apenas uma fase de um processo de desenvolvimento profissional, que se prolonga ao longo de toda a carreira. Quem quer trabalhar na docência tem que entender que vai continuar estudando pelo resto da vida, pois a docência exige um constante aperfeiçoamento para atender as necessidades da educação escolar.

Não só Carlos Marcelo, mas também Francisco Imbernon, outro autor espanhol, fala que: “o desenvolvimento profissional é um plano sistemático para melhorar a prática de trabalho, as crenças e conhecimentos profissionais com o propósito de aumentar a qualidade docente, investigativa e de gestão”. Isso tudo faz parte do desenvolvimento profissional e esses autores falam muito da gestão, da formação do professor, da questão das crenças. O Carlos Marcelo fala bastante disso, sobre o quanto é importante analisar as nossas crenças a respeito do ensino e da aprendizagem para que a gente possa criticar essas crenças que, às vezes, estão tão arraigadas em nós que não nos deixam seguir avante, crescer. Então é importante analisar as nossas representações, as crenças que temos e que às vezes vêm desde o tempo em que fomos alunos na escola, o tempo em que estivemos nos bancos escolares. Naquele momento nós desenvolvemos certas crenças de como deve ser o ensino e a aprendizagem e é importante, nos cursos de formação, que analisemos criticamente essas crenças para que possamos crticá-las e se preciso, reconstruí-las.

O desenvolvimento profissional deve ser também coletivo e isso é uma coisa que o Imbernon defende bastante. Quer dizer, são processos que melhoram a situação de trabalho, o conhecimento profissional, as habilidades e atitudes de todos que estão envolvidos na prática profissional, professores, gestores e pessoal não docente. Desenvolvimento profissional, assim como a escola reflexiva, é um processo que deve incluir todos os envolvidos na tarefa de educar, principalmente na educação escolar. Deve ser um desenvolvimento profissional coletivo, não apenas para o professor, mas que todos tenham a possibilidade de se desenvolver profissionalmente.

Nesse conceito a formação é um elemento, mas apenas um elemento do desenvolvimento profissional. Isso é importante que fique muito claro. Não é só a formação. A Marilene Proença até mencionou rapidamente hoje de manhã, sobre a mídia. Muitas vezes a mídia acha que formar o professor vai resolver o problema da educação brasileira. Vivem repetindo isso, que a formação está errada e por isso a educação não vai para frente. Mas isso é apenas um elemento, um dos

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elementos. É importante, sim, o professor tem um papel importante, mas existem outros elementos que são igualmente importantes. Por exemplo, salário, carreira, organização do trabalho na escola, o clima institucional. As pesquisas cada vez mais têm mostrado que o clima institucional, criado na instituição, tem um peso muito grande no trabalho que você faz na escola.

Eu orientei um aluno que fez doutorado. Ele foi buscar uma escola que tinha IDEB alto e uma escola que tinha IDEB baixo. Ele fez um estudo de caso nestas duas escolas para ver por que elas tinham esse resultado. Também analisou se o Ideb afetava a profissionalidade dos professores que estavam nessas escolas. E ele verificou que alguns professores nem tomavam conhecimento dessa questão do Ideb. Em São Paulo a pesquisa foi realizada em São paulo, em 2011. O que realmente “pegava”, vamos dizer assim, numa escola, era o clima institucional, um clima institucional receptivo. Os professores não tinham rotatividade, trabalhavam em um clima que favorecia o seu trabalho, com um gestor que era envolvido nas questões da escola. Essa escola tinha o Ideb alto. Na outra escola, o clima era desmotivante, havia uma grande rotatividade de professores, ninguém queria ficar na escola, a pessoa entrava e saía, o trabalho se desenvolvia em um clima institucional que não era atrativo, o que resultava também no Ideb baixo.

A pesquisa mostrou que essa questão do clima, da criação de um clima institucional, um ambiente que seja favorável ao desenvolvimento do trabalho profissional, tem sido mais importante do que as avaliações sistêmicas.

Voltando a falar do desenvolvimento profissional. A formação do professor para o desenvolvimento profissional baseia-se na concepção de um professor crítico-reflexivo. Orienta-se para o desenvolvimento de capacidades de processamento da informação, aprender a processar a informação, fazer diagnóstico, analisar criticamente, registrar, avaliar e tomar decisão a partir desta avaliação.

Essas seriam as habilidades básicas para formarmos e dizermos que estamos formando um bom professor. Um professor que seja capaz de olhar para a situação, saber o que está acontecendo, fazer um diagnóstico, problematizar aquela situação, buscar elementos para entender melhor, dar inteligibilidade àquela situação, acompanhar sistematicamente aquele trabalho, avaliar o que está bom, o que precisa melhorar, tomar a decisão de incorporar essas constatações feitas em um trabalho de reestruturação.

A formação para um novo desenvolvimento profissional baseia-se na

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concepção de um professor pesquisador, que vai se orientar para compreender as teorias implícitas na ação, fundamentá-las, revisá-las e reconstruí-las. Isso seria todo um aprendizado de entendimento, de leitura crítica da prática, de análise da prática e de modificação do que for necessário modificar.

A formação para um novo desenvolvimento profissional está associada a alguns conceitos. Por exemplo, a autonomia na colegialidade, em que possamos trabalhar coletivamente para que cada um desenvolva-se cada vez mais com suas ideias, naquele sentido que eu disse anteriormente, de aprender a escutar, a acolher ideias divergentes, a diferenciar e desenvolver suas próprias ideias. Que se possa trocar experiências entre iguais, que se possa aprender com o outro e que isso nos ajude a ter um projeto institucional de mudança. Eu defendo a ideia que isso deve ocorrer num clima institucional, no coletivo, na mudança proposta por todos os agentes envolvidos na área da educação, na ação escolar. Mas é preciso que haja um projeto institucional de desenvolvimento desse trabalho e que, nesse projeto, cada um tenha o seu papel mais ou menos definido para que possamos ter uma mudança no desenvolvimento humano e profissional. Sem esquecer nunca a questão da dimensão humana, tornar-se cada vez mais humano, humanizar-se. Que seja um projeto orientado por princípios e que esses princípios sejam de fazer com que cada um se desenvolva ao máximo nas suas possibilidades e capacidades.

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PESQUISA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Maria Luiza Macedo Abudd

Agradeço o convite da comissão organizadora para estar aqui, em uma oportunidade muito rica e muito interessante com a professora Marli André que os meus alunos já conhecem em “preto e branco” e agora têm a oportunidade de conhecer ao vivo e em cores.

Antes de começar o debate com algumas questões que eu gostaria de levantar com você, eu gostaria de conversar, quero contar-lhe como a gente organizou a questão da Pesquisa no curso de Pedagogia da UEL.

A partir de 2005, incluímos a pesquisa como uma das dimensões do curso, então o curso tem três grandes dimensões: docência e gestão educacional – que são as duas áreas de atuação profissional, e pesquisa com a intenção de que pesquisa pudesse ajudar a articular com duas áreas.

E como a pesquisa se apresenta no nosso curso? A gente tem no 1º e 2º anos disciplinas de pesquisa, uma em cada ano e depois no 3º, 4º e 5º anos o desenvolvimento do trabalho de TCC.

Temos aqui outros colegas que são professores da disciplina e podem ajudar, mas na minha percepção essa é a explicitação da atividade de pesquisa por que também na discussão do curso a gente pode imaginar que a visão de pesquisa esteja presente no interior das disciplinas com os conteúdos que estão sendo trabalhados, resultados de pesquisa, etc...

Mas existem alguns limites, estamos desde 2005 com essa proposta, mas existem alguns limites e possibilidades dessa pesquisa na graduação; algumas críticas que vem sendo feitas no sentido de questionar um pouco a pertinência dessa forma de apresentação da pesquisa.

Gostei muito quando você falou que a pesquisa, para fazer a formação de um professor pesquisador, e isso não está expresso nesses termos na nossa proposta curricular, mas para a formação de um professor pesquisador é preciso que ele tenha alguma autonomia, que ele vá fazendo.

Então na disciplina de pesquisa isso é bem marcante, a disciplina tem uma composição interessante, porque nós não temos professores “especializados em pesquisa”, nós temos professores das diferentes áreas do departamento compondo o grupo que trabalha em conjunto a disciplina de pesquisa.

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Então, essa preocupação que o aluno seja muito ativo na disciplina, aprendendo desde as coisas básicas como o trabalho na universidade até elaborar um projeto de pesquisa que é o percurso dessas duas disciplinas, então essa questão, ela é uma questão assim, ela é A fundamental na formulação da pesquisa.

Mas aí estão algumas dificuldades que a gente está encontrando, são por exemplo, algumas expectativas de colegas ou mesmo dos estudantes a respeito das possibilidades dessa disciplina a na formação. Então, qual é o desafio que se coloca para gente?

A gente recebe um aluno, via de regra vindo do ensino médio, que sempre entendeu pesquisa como o investigar o que já foi produzido fazendo uma síntese, mas aqui a gente vai colocá-lo frente a uma outra demanda de pesquisa.... visando a necessidade da construção do conhecimento a partir da definição de um problema, o que é um problema de pesquisa, como elaborar o problema, coleta dados e aí, esse é o quadro que a gente tem, falando um pouco das dificuldades, não é possível mesmo fazer em dois anos, até ele chegar ao trabalho de TCC, transformar este aluno que chega pra gente em um exímio pesquisador. Então no processo de TCC ele ainda está aprendendo a fazer pesquisa, não é um pesquisador porque passou por dois anos em disciplinas de pesquisa, né?

Como a gente entende a contribuição de ter a pesquisa como uma das dimensões centrais do curso? Além de formarmos o pesquisador supostamente pesquisador, sem isso estar explícito, a gente partiu do pressuposto que podíamos mudar a concepção a respeito de ensino na atuação docente desse professor, ou na atuação não docente do pedagogo, a partir da apreensão de algumas categorias do ser pesquisador, então isso faria um profissional diferente, qualitativamente melhor.

Um outro objetivo que a gente tem com essa proposta é, a partir das categorias da pesquisa, o nosso estudante pode olhar a realidade de outra forma, ele vai olhar de outra forma a realidade e o conhecimento com que ele vai trabalhar na sala de aula, que é produto da ciência, então esses seriam dois grandes objetivos, duas qualidades, ou dois ganhos que teríamos com essa proposta.

Chegamos à constatação que existem diferentes ideias a respeito do que é pesquisa; estamos convivendo no momento, não sei se você vai concordar com isso, a pesquisa parece estar se reduzindo, falando de modo geral, ao produto da pesquisa, deixando um pouco de lado o seu processo, então, se você quer um produto, o processo fica secundarizado, então existe essa perspectiva!

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E ao mesmo tempo convivemos com representações que dizem que é impossível ao aluno fazer uma pesquisa na graduação, conduzir uma pesquisa, levar a cabo uma pesquisa, no processo de graduação; algumas falas ou representações que dizem “é inútil esse esforço” de levar a cabo um projeto de pesquisa durante a graduação. Então gostaria que você comentasse um pouco essas ideias... isso não é uma crítica aos colegas e aos estudantes mas é uma constatação e são desafios que temos que enfrentar ao conduzir as disciplinas de pesquisa, eu sou uma das professoras que compõem esse grupo.

Gostaria de fazer alguns outros destaques da sua fala, que apresentou várias elementos que muito me agradam. Por exemplo, relacionando com a pesquisa e com o curso, a necessidade e a relevância do trabalho coletivo, das parcerias que tem que ser estabelecidas, e acho muito interessante na sua colocação, que coletivo não quer dizer homogêneo, ou morno, ou igual, não! O coletivo é pleno de embates, de lutas por espaços e por concessões, mas é o parceiro também, aquele que discute junto, é aquele que se propõe a enfrentar junto o desafio, o que eu acho um elemento fundamental. Lembrei bastante, também, ao falar da formação de professores e pedagogos da experiência muito gratificante que a gente tem com os alunos participando de projetos e isso remete à ideia de que a sala de aula tinha que ser diferente, porque tinha que ser diferente? Eu posso ser uma exímia pesquisadora, mas eu não consigo ensinar, na verbalização, o que é ser um pesquisador, a não ser que eu coloque meu aluno junto comigo fazendo pesquisa. Então, essa é a experiência gratificante que muitos de nós temos quando nossos alunos participam de projetos em que eles são parceiros, em que eles compartilham as nossas dúvidas, as nossas experiências, eles se colocam, eles acrescentam aquele elemento novo, porque nós, com alguns anos de janela temos alguns vícios de percepção, de encaminhamento, eles são mais ousados, mais inovadores, acrescentam sempre elementos novos, então, essa experiência é muito rica e expressa bem o que é coletivo, mas a gente tem dificuldade para fazer isso em sala de aula,

Um pouco, em sala de aula, somos limitados pelas circunstâncias, com 30 ou 40 pessoas por sala, em um projeto temos 10 ou 12 estudantes, existe então essa dificuldade, mas o que mais será que está faltando, além disso?

Outra coisa bastante interessante, a coisa da novidade, esse é também um dos embates que a gente vive, em que medida o aluno da graduação, ou da pós-graduação, vai ter condições de fazer uma pesquisa NOVA? Isso, um conhecimento

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novo, perfeitamente razoável que a gente acredite que só vai saber que é novo quando for divulgado o que, portanto, não invalida qualquer pesquisa, mas coloca um dilema, as vezes, para algumas perspectivas de avaliação do processo.

O professor pode não ser um pesquisador, mas se ele tiver uma formação pautada pela pesquisa, mesmo que ele não seja um professor pesquisador na atuação concreta dele, por opção ou por qualquer outra circunstância, ele vai ter um olhar diferente, né? Ou não?

Um último aspecto que eu gostaria que você trabalhasse um pouco, que as vezes ajuda um pouco, as vezes atrapalha um pouco diz respeito ao desenvolvimento profissional, porque faz algum tempo que venho pesando nessa questão, quando a gente chega nos cursos de formação de professores, já passamos 8...11.... 14 anos dentro da escola e, de uma maneira ou de outra, vimos o que é ser professor e aprendemos algumas coisas a respeito de ser professor. Como lidamos com essa situação nos cursos de formação? Nós precisamos, sim, trabalhar com essas crenças que cada um de nos traz, e todos nos trazemos, mas... tem alguma pista sobre como fazer isso? Como trabalhar essa questão em sala de aula?

Acredito que esse é mais um dos nossos grandes desafios; trabalhando no curso de pedagogia há alguns anos já, quando vou para as escolas, encontro ex-alunos, alguns deles estão fazendo exatamente tudo aquilo que nós achamos que eles não deveriam fazer, eles estão fazendo...., alguns, não todos, aquilo que os professores deles fizeram provavelmente, ou o que os meus professores fizeram provavelmente; outros, não, outros modificam as formas de agir, apesar da estrutura escolar não ter se modificado tanto.

Então, nesse aspecto, o resultado pode ser considerado casual, diante disso como nós, os formadores, poderíamos interferir mais efetivamente nesse aspecto?

Por enquanto é isso que tenho a perguntar para você, só isso.

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DO MUNDO ORAL PARA O MUNDO DA CULTURA ESCRITA: CONCEPÇÕES, CONTEÚDOS E METODOLOGIAS EM DEBATE

Dagoberto Buim Arena1*

Resultado de transcrição de palestra proferida na Universidade Estadual de Londrina, este trabalho não guarda as características próprias de um artigo de natureza científica, porque preserva as do diálogo com um público acadêmico, e se constitui como texto, pela construção de enunciados com traços de oralidade, pelas conexões lingüísticas reiterativas e pelas retomadas de assunto por meio de expressões típicas da oralidade, necessárias para assegurar a progressão temática. Apesar de a transcrição ter sido revisada, restam muitas dessas marcas, que teimaram em permanecer para indicar que, na origem, há um discurso oral público.

A minha área de pesquisas, de estudos e de reflexões se dirigem para o início da alfabetização, para o início do trabalho com crianças nos primeiros ensaios de leitura e de escrita. Não cuido muito da leitura nos anos posteriores ao ensino fundamental, mas dessas primeiras tentativas da criança em penetrar neste mundo, quase impenetrável para muitos, que eu chamaria de mundo da cultura escrita.

O título “Do mundo oral para o mundo da cultura escrita: concepções, conteúdos e metodologias em debate” merece explicações iniciais. Trata-se de um “debate” porque o que vou dizer aqui se presta ao debate. Apenas especulo, discuto, porque a minha preocupação é a de pensar, a de repensar, a de reformular o modo como vejo essas questões da leitura no início do processo de alfabetização. Não consigo ficar sem pensar e nem acredito que o conhecimento possa permanecer estático durante muito tempo. Por isso, coloco aqui a palavra “debate”.

São tantas as maneiras de abordar a leitura que se torna difícil definir como escolher um das abordagens. Temos que escolhê-la de acordo com o público, o evento e o nosso modo de pensar. Algumas de minhas reflexões têm a ver com leituras que fiz do livro Sur la lecture (2000), entre outros que li recentemente. Trata-se de uma obra de um pesquisador francês, Jaques Fijalkow, conhecido por quem leu artigos sobre leitura difundidos por pesquisadores construtivistas. Fiquei influenciado por algumas das questões que ele debate e juntei as minhas a essas suas preocupações.

1 - *Professor Adjunto do Departamento de Didática e Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP Marília. E-mail: [email protected]

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Vou discutir sobre o mundo oral, o mundo da cultura escrita, porque a minha preocupação mesmo é com a cultura escrita. Não lido com a palavra e com o conceito de letramento. Prefiro sempre usar cultura escrita e mundo da cultura escrita, que tem uma relação com a Antropologia. O título deste trabalho tem a ver com essa visão um pouco antropológica, histórica e cultural da evolução do homem, da sua evolução do mundo oral para o mundo da cultura escrita e como isso acontece atualmente com as crianças.

Entendo que as crianças nascem e começam a dar os primeiros passos no mundo da cultura oral e da cultura escrita. Certamente esse mundo é um mundo também de cultura escrita, mas quando metem o cérebro neste mundo, começam a ser banhadas pela cultura oral, mas, aos poucos, vão interagindo com a cultura escrita e transitam de um mundo a outro, sem que um anule o outro. Há grandes diferenças no modo de pensar entre um e outro, mas há agentes que, de certo modo, propiciam essa transição e, ao mesmo tempo, propiciam a convivência de atos presentes nos dois mundos. A escola é uma dessas instituições. Outra são as famílias, conforme as configurações que apresentam em cada período histórico.

As crianças, de certo modo, recebem influências das instituições que promovem essa convivência e essa transição, ou que as tentam promover, mas não conseguem, ou deveriam fazer, mas não fazem, ou fazem mal, ou, no caso da escola, parece fazer, mas efetivamente não faz. Quero dizer que nós, na escola, ensinamos as crianças pequenas a ler, e depois elas mesmas se reconhecem como incapazes de ler. A mídia também afirma que as crianças não sabem ler e nós, professores, responsáveis pelo ensino, sempre dizemos que as crianças leem, mas não sabem compreender. Aparentemente, a escola fez o papel dela, o de promover a transição da criança do mundo oral para o mundo da escrita, mas, efetivamente, isso não costuma acontecer. As crianças tangenciam o mundo da cultura escrita, mas permanecem no mundo do oral; agem no mundo da oralidade, e, por isso, não usam a escrita em seus atos de vida. Quando digo “usam a escrita”, quero dizer que essa expressão serve tanto para o ato de escrever, quanto para o ato de ler. É com o conceito de ato que trabalho, por isso considero aqui “atos de escrever e de atos de ler”.

Eu já tinha lido há algum tempo atrás, talvez vinte e poucos anos, um autor muito conhecido da área da leitura no Brasil, francês também, chamado Jean Foucambert (1994; 1998). Existem duas traduções de seus livros no Brasil e alguns artigos em revistas. Ele já chamava o ato de leitura como ato. Bakhtin (2010), de

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seu lado, afirma que a vida é constituída por atos, que praticamos e somos por eles responsáveis, mas não em relação à questão moral, mas porque são atos da vida, que não se repetem, uma vez que a cada ato nós somos pessoas diferentes, vivendo momentos diferentes, realizando atividades diferentes. Estabeleci, por essa razão, relação entre esse conceito de ato do Bakhtin com o ato de ler do Foucambert (1994) e criei vínculos, também, com a visão da teoria histórico-cultural de Vigotsky (2001), que entende o homem como um ser cultural. Portanto, penso o ato de ler como um ato cultural.

E como penso em ato cultural, tomo como referência uma vertente da Psicologia, a Histórico-Cultural, para entender os atos como herança que uma geração deve legar para a outra. A sociedade, de um modo geral, lega às gerações que vêm os seus atos culturais criados ao longo da história. Nós estamos sempre criando atos, esquecendo-nos de alguns, isto é, considerando-os em superados, para criar outros. Nós criamos atos culturais, e os legamos às gerações novas, que, por sua vez, também os transformam, alterando-os de acordo com as configurações que a sociedade vai assumindo.

Portanto, eu quero entender o ato de ler também como um ato cultural que nós criamos, reinventamos, modificamos e configuramos frequentemente. Quando eu digo frequentemente, quero dizer em cada período da nossa vida, da nossa história. Nós temos que legar esse ato, ensinar esse ato. Quando a mídia e nós mesmos dizemos que as crianças não sabem ler, ou melhor, leem, mas não sabem compreender, é possível entender que, no fundo, nós não ensinamos bem, como professores que somos de uma das instituições responsáveis por abrir e alargar, para a criança, as portas do mundo da cultura escrita. Não temos ensinado, não temos legado às crianças o ato de ler que reinventamos e que recriamos ao longo da história. Nós não sabemos bem como fazer isso, e as crianças, de certo modo, ficam numa zona de ilusão, como os pais, e como nós, também, iludidos com a idéia de que elas sabem ler, mas na verdade não sabem, porque não fizeram adequadamente a transição do mundo oral para o mundo da cultura escrita. É exatamente isso que eu quero debater.

A referência que eu vou tomar é a da língua escrita com bem cultural e como bem histórico. E por que a considero como bem cultural-histórico? Porque quero fazer uma espécie de distinção do conceito de língua como um instrumento técnico, como um código, apenas, desprovido de história. Se tomo o ato de ler e de escrever como atos culturais que devem ser legados pela herança cultural às

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crianças, tenho que considerar essa língua como um bem cultural, porque esse bem cultural é muito mais amplo e abrangente do que uma questão técnica, como uma língua reduzida a um código. Esse é um aspecto de um bem maior, esse bem cultural.

Em busca da definição do objetoDesejo discutir, por isso, duas questões. O ensino do ato de ler e seu

contraponto que é a aprendizagem desse ato. Nós temos de ensinar e as crianças têm de aprender. O problema maior que quero também discutir é o objeto, ou seja, o que nós realmente ensinamos na escola, porque a nossa preocupação como elaboradores de currículo, como professores que selecionam os assuntos, os temas, é sempre a de recortar para delimitar o conteúdo a ser ensinado às crianças. Um deles, o que nos incomoda mais, é o ensino do ato de ler, a que também chamamos de ensino da leitura.

Estou tentando dizer “ensino do ato de ler” e não “ensino da leitura”, porque a leitura parece ser um objeto abstrato, fora do sujeito. Se ensino a leitura, seleciono um conteúdo, chamado leitura, para ensinar ao aluno o que fazer com ele, mas, em essência, o que eu devo ensinar é o ato, o ato cultural, e nesse processo tenho que selecionar conteúdos, objetivos e modos de operar; preciso selecionar a metodologia, isto é, como vou ensinar esses atos. Ensinar a língua escrita talvez seja até mais simples do que ensinar o ato de ler, porque encaro a língua como um objeto delimitado, com as suas unidades, e as suas relações ambíguas entre grafema e fonema. Do ponto de vista lingüístico, isso é o estudo da língua, mas se é isso o que recorto, o que seleciono, não ensino o ato de ler, esse bem cultural, constituído por condutas intelectuais, sociais, culturais e históricas. É dele que devemos cuidar, mas como temos sempre dificuldades em lidar com condutas intelectuais e culturais, nos apegamos ao que é concreto, às unidades lingüísticas e ao sistema lingüístico, de modo geral.

O nosso problema é o de compreender o que é ensinar a ler. O ensino do ato parece ser o conteúdo que pode destronar os demais que geralmente selecionamos para ensinar as crianças. Se nós ensinamos a língua com base em uma relação muito frágil entre o fonema e o grafema, elas vão aprender essas relações entre unidades, mas nós não podemos depois solicitar que elas pratiquem atos culturais de leitura. Elas não saberão fazer isso, porque não foi isso o que ensinamos. Não há condições dadas para que uma criança aprenda a ler, se nós apenas ensinamos as

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ambíguas relações grafofonéticas.O objetivo da escola, por essa razão, seria o de ensinar esse ato cultural

complexo. O que ensina, todavia, é o ato de estabelecer relações entre grafemas e fonemas. Professores que trabalham com educação infantil, e pais que têm crianças com três, quatro, cinco anos, percebem que a intenção delas é muito mais abrangente do que estabelecer uma relação grafema/fonema. Quando vão para a escola querem entrar no mundo da cultura escrita: “eu vou para a escola para aprender a ler e escrever, é isso que eu quero”. Na educação infantil, como não há pressão muito grande sobre a alfabetização, nós oferecemos para as crianças atos culturais de leitura, mas quando chegam ao primeiro ano do ensino fundamental, já começamos a sistematizar, a ensinar essa relação tradicional, mas inconsistente, entre letra e som. Eliminamos, com isso, todo o sentido, toda a cultura que envolve a aprendizagem da língua escrita, que não é um objeto fora do homem, mas parte de um mundo de relações humanas, que considero como mundo da cultura escrita.

Relações entre família e escolaA criança reage mal, no começo, a esse processo insosso, depois se adapta,

abaixa a cabecinha e se curva às obrigações que a escola a ela impõe. Se ela quiser aprender o ato, em sua essência, vai ter que se virar sozinha, porque a escola não vai ajudar muito. Os atos de ler praticados pelos adultos nas suas relações com as crianças parecem ser as portas de passagem dos atos da cultura oral para o da cultura escrita. E os atos praticados em casa são referências para que possam aprender o que é ler. Eu sei que a preocupação é sempre “mas como eles vão ler se não sabem as relações grafofonéticas?”. Vou apontar um pouco mais à frente que a técnica não precede o ato de cultura. O ato cultural é o ato que coloca a criança no mundo. A sistematização técnica é posterior a ele. Não se pode nunca abrir mão da cultura e do ato encharcado com sentidos.

Todo mundo viu na TV em 2013, o anúncio: “Gente, o Dudu tá lendo!”, e aquela irmãzinha feliz com o Dudu lendo o nome do banco. Na verdade, as crianças nos surpreendem. Qual pai com a criança no carro não gritou a mesma coisa: “nossa, ele leu a placa, ele leu aquilo, o nome da rua também”. As crianças, o Dudu e todas as outras, estão com vontade de mergulhar no mundo da cultura escrita e querem fazer isso, querem descobrir a escrita. Portanto, elas se apropriam desses atos praticados pelos adultos. Quando a irmã diz, admirada, que “o Dudu tá lendo”, quer indagar, “onde, como, com quem e quando ele aprendeu?”, do mesmo modo

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que nós nos perguntamos diante nossos filhos de quatro, cinco anos: “como ele aprendeu isso?” Não lhes foram ensinadas pelos pais as relações grafofonéticas, nem chegou ainda o momento de a escola lhes ensinar isso, mas como sabem ler? Na verdade, a criança aprende primeiramente pelo mergulho no mundo da escrita e depois começa a observar as relações metalinguísticas, vamos dizer assim, a se voltar sobre a língua e pensar sobre ela. Entrar no mundo da escrita precede as condições para a aprendizagem das questões técnicas.

Ensinar a ler, na cultura escolar, é ensinar a sonorizar. Isso é histórico. Parece que não sabemos fazer diferente, que não conseguimos ensinar as crianças a ler se não passarem pela sonorização. Quando a criança aprende esse jogo de colocar sons nas letrinhas, ela sabe, pelo critério escolar dos primeiros anos, ler, mas pouco mais de um ano depois não sabe ler, segundo outros critérios da própria escola, porque não compreendem o texto verbal escrito. Ora, nós ensinamos uma técnica e acreditamos que se aprenderem a técnica, vão aprender o que consideramos o ato de ler, mas se nós não o ensinamos, como vão aprender? Na verdade, pensamos que a criança pode migrar de uma coisa para outra, de um conhecimento para outro, mas nem todas fazem isso bem. Essa é a questão fundamental. As crianças, segundo o pensamento da cultura escolar, têm que aprender esse jogo. Eu diria que elas dominam, em determinado momento esses recursos escolares, mas logo depois são acusadas de não saber ler, de não compreender os problemas de matemática, de não compreender os textos “lidos”, quer dizer “sonorizados” por elas mesmas!! Parece-me que esse é o jogo. A escola ensina, as crianças aprendem. A dificuldade está na definição do objeto a ser ensinado. Se ensinarmos a sonorizar, não ensinamos o ato cultural de ler que criamos e recriamos ao longo da história; ensinamos uma técnica que os homens também elaboraram ao longo da construção da escrita, mas se hoje nós tomarmos a língua portuguesa como referência e compararmos a língua escrita com a oral, os grafemas com os fonemas, percebemos que as crianças são extremamente criativas, porque não aceitam as informações que nós damos, e, mesmo assim, aprendem a escrever e a ler. Nós ensinamos sempre o casamento perfeito de uma letrinha com um som. Bajard (2012) afirma que as letras e os sons não são fiéis uns com os outros. São quatro ou cinco letrinhas no máximo, em português, que são bem casadinhas. O resto é de uma infidelidade total, mas as crianças aprendem tudo isso, essas relações de uma letrinha para cinco ou seis fonemas, do mesmo modo como um som tem relação com várias letrinhas.

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Como as crianças estabelecem essa relação? Na verdade elas não estabelecem. Criança que não tenha passado por um ensino sistemático não tem a consciência fonológica desenvolvida para poder fazer isso. Aprendeu a ler lidando com a própria escrita sem necessidade de consciência fonológica. Ao invés de a escrita buscar a sua referência no oral, ela poderia buscar a referência nela mesma, porque já se distanciou tanto do oral que ganhou vida própria e elementos próprios que a constituem. Por que então a escrita, cuja unidade constitutiva, formalmente reconhecida é o grafema, tem que se submeter, para ser grafada, ao fonema? O surdo não faz isso porque não pode fazer, mas também aprende a escrever a língua do outro, a segunda língua, como a portuguesa. São exemplos que aponto, o do surdo, ou daquele que houve mal, porque eles não ouvem o fonema, mas aprendem a escrever as palavras em sua sintaxe própria. As crianças pequenas, que ainda não estão no primeiro ano, que não passaram pelo ensino sistemático da relação fonema/grafema, sabem ler? Quando eu pergunto se “sabem ler”, quero saber se elas compreendem e sabem dizer o que estão lendo.

A expectativa das crianças não é atendida e a maioria delas continua batendo à porta do mundo da cultura escrita, para que alguém as ajude a entrar. Quem são os responsáveis? Somos nós. Aparentemente elas entram por essa porta, porque conhecem a correspondência entre as unidades, mas na verdade não ultrapassam a soleira. No mundo social e econômico, exige-se o domínio do ato de ler e do ato de escrever, mas é uma cobrança de algo que não foi ensinado a quem pela escola passou.

O problema, como disse há pouco, é o de definir o objeto que deve ser ensinado e aprendido. Nós tomamos apenas um aspecto, a questão técnica, como se fosse o todo, como se fosse o grande objeto, mas na verdade é apenas um aspecto das manifestações ruidosas da língua escrita.

A didática da língua escrita e suas fontesNós podemos olhar para a língua de vários pontos, de vários ângulos.

O problema é que cada ciência olha para a língua do seu canto e acha que pode determinar à Didática os procedimentos de ensinar, mas ela bebe em muitas fontes, entre elas em três das tendências da Psicologia. Cada tendência vê a língua de uma maneira e tenta nos convencer de que aquele é o melhor ponto de vista. A Antropologia e a Filosofia também têm seu olhar. Na Antropologia há um autor inglês que se chama Jack Goody (1988; 2007), que lida com essa questão do mundo

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da escrita e do mundo oral e entende que a escrita é um instrumento poderoso para a transformação da mentalidade humana. Para ele, o homem, historicamente, mudou o modo de pensar por causa da escrita. Na Filosofia da Linguagem temos a contribuição de Bakhtin (2003) que olha para a língua de uma maneira totalmente diferente do olhar da Linguística, que tem uma visão extremamente técnica. A Fonoaudiologia tem a sua visão, como a Neurologia tem a dela, ambas na área das Ciências Biológicas. Como trabalham com a questão técnica e entendem a língua como espelho da oralidade, isto é, a língua escrita em relação subserviente à língua oral, acabam destacando os distúrbios que as crianças apresentam como problemas de aprendizagem. Essas áreas que lidam com a medicina veem o homem como uma máquina fisiológica de processamento de dados.

Há estudiosos que acreditam que os estudos fonoaudiológicos sejam a solução para o ensino da leitura. Nos estudos sobre a fronteira entre a Psicologia e a Neurologia destaca-se um livro editado na França, com tradução brasileira, chamado Les neurones de la lecture (DEHAENE, 2007). O autor diz claramente que não há mais problemas para a Didática e para a Pedagogia. Basta, agora, atender às evidências descobertas pela Neurologia, porque a ressonância magnética mostra em que áreas cerebrais a leitura se dá. Feito isso, o que há mais a fazer, se não trabalhar em cima desses dados? É uma visão do homem como uma máquina biológica de processamento de dados. Reafirmo isso para colocar essa questão: onde se situa aqui cultura humana, o ato cultural de ler? Não há razão alguma para a Didática cumprir incondicionalmente as ordens emanadas de uma determinada área da ciência.

Fijalkow (2000) traça três posições da Psicologia. A funcionalista, a que vê a criança como uma máquina de processamento de dados. As dificuldades que as crianças enfrentariam seriam disfunções, como a dislexia, dislalia, disortografia, déficit de atenção e coisas desse tipo. Então vocês podem perguntar: mas isso acontece com frequência? Sim, nós temos no Brasil cartilhas que elegem esse modo de ensinar como o mais eficiente, como temos as da França (GOIGOUIX; CÉBE, 2006). Há um manual de orientação para os professores, que se chama Apprendre à lire dans d’école (GOIGOUX; CÉBE, 2006) que defende o desenvolvimento da consciência fonológica nas crianças pequenas, de cinco a seis anos, treinadas para isolar o som e depois aprender a letrinha que vai corresponder a ele. Esse trabalho está sendo desenvolvido em boa parte da França.

A língua é higienizada e ensinada como uma questão completamente

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técnica. Quero dizer que o debate não é brasileiro, porque acontece em Portugal, na França, na Espanha e, supostamente, nos demais países do mundo ocidental. Isso tem a ver com a nossa própria língua. Na visão construtivista, segunda vertente da Psicologia, segundo Fijalkow (2000), é a criança que age sobre a escrita, que descobre suas funções, por meio de ações cognitivas, mas é interessante destacar que o construtivismo valoriza muito mais o ato de aprender a escrever do que o de ler. Ferreiro (1985) estuda como a criança aprende a escrever, mas pouco discute sobre o ato de ler ou sobre a compreensão da leitura. É como se a entrada do mundo da escrita não ocorresse pela leitura do material já criado, mas pela reinvenção da escrita, pela reinvenção do sistema. É mais ou menos isso que acontece com a proposta construtivista. As dificuldades de entrada da escrita seriam diferenças de concepções entre aluno e professor.

Nós sabemos que quando as crianças escrevem de acordo com as suas hipóteses, e nós não as entendemos, há um choque de concepções. A criança tem um olhar e o adulto tem outro. O adulto tem a visão do código e a criança tem a visão da língua como um sistema de representação. É mais ou menos assim que vai sendo construído esse choque que causa os problemas de ensino e de aprendizagem.

Por outro lado, o que Fijalkow (2000) chama de tendência socioconstrutivista, a terceira aqui anunciada, seria a Histórico-Cultural. A entrada da escrita é a questão central, o fundamental. A criança tem que aprender a dialogar com o mundo não pelo oral, mas pelo escrito. Se não fizer isso, não vai se desenvolver como um ser humano completo. A escrita, então, se torna um poderoso instrumento de formação da consciência humana, e esse é o grande problema. O que nós somos? Não somos carne, somos espírito, e a escrita é o instrumento para desenvolver o nosso espírito. Privar um ser humano da escrita é relegá-lo a uma condição limitada de evolução, no tempo e lugar em que ele está. É por isso que ensinar a ler e escrever, a compreender o mundo pela escrita, tanto lendo quanto escrevendo, é uma alavanca para o desenvolvimento humano. Privar alguém disso significa privá-lo de uma potente ferramenta de evolução intelectual.

Essa entrada no mundo da escrita obedece a fatores internos e externos, isso está em Vygotsky (2003). Quando me relaciono com os outros, vou me constituir para o ato cultural de ler e de escrever. Eu me relaciono com os outros desde o começo, desde a educação infantil, e ao tentar fazer isso, vou me formar, vou me constituir também pela língua escrita. A criança aprende esse legado cultural nas relações com o meio, com os adultos e com as próprias crianças. É

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a relação com os outros, o diálogo com os outros – eu vou retomar a questão do diálogo um pouco mais à frente – que vai permitir que eu me aproprie do legado cultural que a humanidade criou.

Vou destacar um aspecto, cuja fonte é o Fijalkow (2000). O que é o objeto de estudo para a concepção funcionalista, para a construtivista e a para a socioconstrutivista? Para a primeira é a decodificação. Para a construtivista é a questão da escrita como sistema de representação, como eu disse, e para a socioconstrutivista, que eu quero chamar de histórico-cultural, é a apropriação da cultura escrita. Qual seria o modelo de referência? Não é a máquina de ler, em que a criança é considerada uma máquina de corpo físico. Na concepção construtivista é um sujeito ativo, que constrói e reconstrói conhecimentos e a língua como sistema de representação da linguagem. Na socioconstrutivista é um sujeito ativo também, mas no meio social, apropriando-se da língua escrita em seu fluxo social, pela relação com os outros. Na concepção funcionalista isso se dá âmbito do empirismo, isto é, no trabalho com a experiência e questões estritamente técnicas. A concepção construtivista trabalha com a razão, isto é, a criança elabora e reelabora hipóteses para tentar compreender as funções, as regras e a natureza da escrita. Na concepção socioconstrutivista há destaque para as interações mais efetivas entre as pessoas.

Quais são as dificuldades de aprendizagem? Na funcionalista são disfunções ligadas ao corpo físico e um pouco também à questão mental. Na construtivista, grosso modo, há referências a bloqueios impostos pelas ações do adulto que elabora outra concepção de língua escrita. A histórico-cultural discute questões sociais, por que a criança se encontra nessas relações. As dificuldades se situam, portanto, nessas esferas.

Eu diria que a Didática, a nossa área, recebe contribuições dessas três tendências da Psicologia, da Filosofia da Linguagem, da Antropologia, da Neurologia, da Fonoaudiologia e de outras áreas. Todas as ciências têm seus campos de pesquisa e contribuem para a formação do homem, mas é a Didática que cuida da transmissão da cultura. E aí está o nosso problema. O que a Didática faria com a língua? Ensiná-la-ia como uma questão técnica ou como ato cultural? Ela deveria ter o seu campo específico, o seu campo próprio de estudo e não se submeter às determinações de uma ciência externa. Essas ciências oferecem suas pesquisas, mas é a Didática que vai buscar o que acha fundamental, de acordo, claro, com a concepção de professor, de escola, de uma determinada comunidade. Dependendo dessas opções nós vamos buscar, em cada uma dessas ciências, as

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contribuições para construir o que queremos na sala de aula.Desse modo, a Didática poderia ver a língua como um artefato cultural

(aqui trago a contribuição da Antropologia e um pouco da teoria Histórico-Cultural). O objetivo da escola seria preencher a sala de aula com atos culturais, atos de leitura, com livros, jornais; atos de ler com as crianças e para as crianças, com a intenção de ensinar esse ato.

Referências culturais para a formação do homemPodemos considerar, para o tema em debate, dois estatutos de seres

humanos. A criança, quando está em casa é uma criança; quando está na rua é uma criança, mas quando está na escola é uma aluna; o seu estatuto muda. Ocorre o mesmo com a mãe e o pai em casa. Somos pais, somos mães, mas quando vamos para a escola somos professores; são papéis diferenciados. Cada um contribui para que as crianças possam aprender. Isso pode ser diferente, talvez, com as crianças francesas, porque elas têm acesso a atos de leitura mais frequentemente na família, no bairro, na comunidade. As crianças brasileiras, que vão para as escolas públicas, têm poucos atos de leitura em casa. Vygotsky (2001) afirma que aprendemos com os outros uma forma ideal, que seria a referência cultural em nosso ambiente. Se não houver essa forma ideal de referência, não temos como apreendê-lo e, no caso em pauta, quais são os atos culturais que os homens criaram para atribuir sentidos ao texto verbal escrito?

Uma rápida analogia pode esclarecer o assunto. Se eu nunca vi ninguém comer de garfo e faca como é que eu posso comer de garfo e faca? Jamais. Se eu nunca vi alguém praticar o ato de ler, nas relações comuns da vida, como é que eu sei, como é que eu posso imaginar o que é ler e o que é saber ler? Esses atos estão presentes na vida. Agora, aqui no Brasil e nos países mais pobres, boa parte das crianças não tem acesso a esses atos. A escola deveria oferecê-los, mas não os oferece; ao contrário, ministra o ensino técnico da língua; as crianças não têm acesso a esses atos nem em casa, nem na escola. As que têm a oportunidade de aprender, não como alunos, mas como crianças, na vida, na rua, em casa, quando chegam à escola vão aprender as questões técnicas, mas elas já as dominam, sem que tenham passado por um estudo sistemático. Não vão ter a consciência do que fazem, mas vão aprender na escola, porque já cruzaram, em casa, a soleira da porta do mundo da cultura escrita. A questão técnica vem depois, pois ela sucede essa entrada, em vez de a preceder.

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Tento criar uma imagem: a da criança e a do aluno, dois estatutos na relação com adultos e professores (também dois estatutos), em esferas diferentes da vida. A escola é uma esfera diferente, organizada para ensinar, mas não deixa de fazer parte da própria vida. Tudo isso está banhado pela cultura escrita. No entanto, se não houver diálogo entre esses personagens com o mundo da cultura escrita, não há passagem, não há transição.

Então, quais seriam as situações a serem criadas? Qual é a referência de arte, de leitura e de escrita na escola? O que estou querendo dizer é que nós, professores, somos referência, modelo. Temos que ler com e para as crianças e mostrar como nós fazemos para ler. Se há consenso ou não sobre o tema, devemos aprender pelo menos a nos conhecer melhor para saber como fazer para ensinar as crianças, mas não ensinar o que nós não fazemos. Temos de considerá-las sempre como leitoras e escritoras. Vou usar um chavão antigo já dito várias vezes: do mesmo modo que as mães consideram as crianças pequenas, do berço, como crianças que ouvem e que compreendem o que elas dizem, temos de considerá-las como potencialmente leitoras e escritoras.

Muitas mães leem e contam histórias para os bebês, ainda no ventre, mesmo com a certeza de que a parede do útero não vai permitir que o som chegue a seus ouvidos, mas é como se ela transmitisse o sentimento da leitura para a criança e esta pudesse sentir o que a mãe está lendo. Por que não fazemos isso com as crianças? Uso aqui uma expressão de Fijalkow (2000): por que não mostrar para as crianças o espetáculo do ato de escrever? Nós dizemos como elas devem escrever, damos lições de como devem escrever, ensinamos as palavras, mas não ensinamos o espetáculo do ato. De uns tempos para cá, e não faz muitos anos, começamos a escrever na lousa, escrever com as crianças; essas atitudes desnudam como é difícil escrever, como as palavras brigam umas com as outras para se inscrever nos suportes, como as escolhas são difíceis. Nós começamos há pouco tempo a fazer isso. Mas eu e boa parte de vocês nunca vimos uma professora, em nossa infância, escrever na lousa um texto “on-line”, na hora, ao vivo. No máximo passava na lousa um texto copiado. Ela olhava, copiava o texto, e era só isso. Ela nunca nos mostrou o espetáculo do ato de escrever na sua plenitude, nas suas dificuldades. E por que não fazemos isso atualmente? Um pouco porque talvez não tenhamos aprendido a nos entregar, a expor as nossas dificuldades, ou fragilidades, no domínio do espetáculo do ato de escrever para o outro.

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Por um ensino da língua vivaSe a criança apenas ouvir histórias e não vê-las nos livros, vai permanecer

confinada no mundo oral, apesar de ser banhada pela escrita. Ela tem que ver e buscar pistas visuais nas ilustrações e no texto verbal escrito; pistas para poder compreender o texto com a ajuda do professor. A leitura oral, que transmite ao outro um texto já compreendido, considero como locução verbal do texto. Quando ouvimos uma história lida, um texto verbal escrito que foi transmitido para nós, o que aprendemos? Aprendemos como a escrita se constrói nos livros. Não é a língua oral que está oralizada, mas é um texto sonoro produzido a partir de um texto gráfico. É um texto sonoro que continua tendo as características de um texto escrito, do mesmo modo que no teatro o ator decora a fala, escrita pelo dramaturgo, e faz a produção da fala como estava lá no texto; há respeito pelo texto escrito. É preciso fazer isso? Sim. É assim que as crianças começam a entrar no mundo da cultura escrita, mas elas precisam sair progressivamente da escuta e aprender a ler com autonomia.

Volto a dizer que são esses atos que dão vida à língua. Esses atos formam o mundo da vida. Nós vivemos o mundo, lidamos com ele, dialogamos com ele. Esse mundo é constituído de uma relação dialógica e se trabalhamos com cartilha, as crianças ficam à margem das relações dialógicas, fora das trombadas de valores, das brigas de conceitos, fora disso tudo porque a língua não se manifesta com o que é encontrado nas cartilhas. A língua, como um objeto cultural, vem recheada, encharcada de valores diferentes, com os nossos valores. Sempre que eu falo isso, me lembro de minha mãe. Quando eu chegava a minha casa, falava assim: “mãe, não é desse jeito que fala não! Aprendi na escola hoje que é desse jeito”. E ela respondia: “menino, você vem querer me ensinar!”. Todos nós fizemos isso. Tentávamos levar nossa cultura para a escola. Em vão. Depois levávamos a cultura da escola para casa. Em vão.

Sempre digo que hoje durmo tranquilamente no travesseiro. É gostoso colocar a cabeça no travesseiro, mas quando eu era pequeno eu dormia em ‘trabissero’. Hoje o zíper é comum para fechar as calças, mas quando era moleque não havia zíper, havia poucos, apenas para calças compridas de mulheres. As crianças pequenas usavam calça curta com o “fecho” de botões. Hoje eu sei que isso se chama braguilha, mas naquela época o que eu tinha mesmo na calça era “barguia”. Então vejam essas mudanças, essas brigas de palavras embebidas de cultura. Com isso nós vamos aprendendo a cultura de uma maneira geral e lidando

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com ela, passando de uma para outra, dialogando com o mundo. Se os atos de ler e os de escrever não tiverem esse diálogo com o mundo, para pouca coisa serve. E nós insistimos, teimosamente, em ensinar a criança a fazer isso, a lidar com palavras e enunciados desprovidos de cultura.

Isso tem a ver com o Bakhtin (2003), e é por isso que eu quis trazer a questão da dialogia. Por que eu insisto no diálogo? Porque o universo da cultura é responsivo. A palavra responsivo utilizada por Bakhtin tem um peso enorme para o homem durante o processo de aprender a ler e a escrever. Quando lemos alguma coisa importante, mesmo um trecho curto ou um longo, queremos contar para o outro. No momento em que lemos, dialogamos com o autor e depois queremos dialogar com o outro para contar o que lemos. Essa é a atitude responsiva do leitor diante do texto escrito.

Quando escrevíamos, em nossa infância, uma redação proposta pela professora – eu não vou dizer nada de diferente do que já estamos dizendo há muito tempo – qual era a nossa esperança? Quando escrevíamos, tentávamos escrever a nossa palavra, a nossa cultura, a nossa “historiazinha”. Quando a professora lia, ela não respondia a isso, mas respondia com as correções gramaticais, não é? Essa era resposta e nós nos perguntávamos antes da correção: “o que ela vai pensar disso? O que ela vai falar disso? Será que eu posso escrever isso?” E a resposta era a nossa própria criação corrigida em seus aspectos gramaticais. Nada mais além disso. Portanto, não havia respostas. Não é assim que se aprende a ler e a escrever. Bakhtin (2003) afirma que é por meio do diálogo que a escrita, o sistema da escrita, a língua como cultura, faz a transição entre esferas culturais, em um mundo cultural extremamente responsivo.

Se o ato de escrever e o ato de ler não são atos de respostas, então não são atos de cultura. Quando se fala em diálogo, isso não quer dizer diálogo face a face, uma conversa direta. O mundo é dialógico, nós dialogamos com o mundo e as crianças devem aprender a usar a língua para isso. Não podemos desprezar esse mundo dialógico. Não são questões técnicas as mis importantes; são as questões culturais, fundamentais para o desenvolvimento do estatuto do leitor.

Quero destacar essa guerra de discurso e vozes sociais. Quando lemos ou escrevemos lidamos com palavras, com enunciados que trazem cultura e valores. Os valores e a cultura não são consensuais, porque existem os valores de cada um, os valores familiares, de uma cidade, de um Estado, construídos do diálogo com o livro, com professores, com pessoas. Esses valores brigam, são coisas que se

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agridem. Quando fazemos propostas de escrita ou leitura, essas forças brigam, as crianças trazem valores e palavras, são enunciados que corroem, que mordem por baixo as palavras e os valores que circulam pela escola. Quando dizemos: “tire isso aqui menino! Não escreva isso aqui! Isso aqui não pode escrever! Essa palavra não existe, escreva outra palavra!”, apresentamos uma briga entre palavras de culturas diferentes que se encontram em um mesmo lugar, em uma mesma esfera social. As crianças devem experimentar isso, tanto no ato de ler quanto no de escrever, porque são forças que estão sempre brigando e são elas que nos constroem pela escrita.

Enunciar não é escrever uma frase, é mais do que isso. Enunciar não é escrever uma oração, porque uma oração e uma frase não provocam respostas, mas o enunciado sim (BAKHTIN, 2003). Quando as crianças escrevem, devem aprender a escrever enunciados, porque elas esperam respostas. Escrever orações é escrever uma unidade técnica, maior do que uma palavra, maior do que uma letra; a oração não deixa de ser uma questão técnica, gramatical. Eu diria que as crianças devem aprender a lidar com opiniões, com valores, a replicar, a contestar pela escrita e lidar com os enunciados. Enunciar é escrever a própria palavra em vez de escrever a palavra do outro.

Atualmente, quando estamos na universidade e temos que fazer um trabalho para o professor, ou escrever um Trabalho de Conclusão de Curso, é muito fácil escrever o que cada autor disse. Basta colocar a palavra dele inteira, colocar apenas a introdução “segundo fulano de tal” e parafrasear o que ele disse. Mas quando chega o momento de dizer o que queremos, a nossa própria palavra, temos uma dificuldade brutal para lidar com a escrita. Por quê? Porque nós não nos apropriamos da escrita como um instrumento para manifestar a nossa própria palavra. Aprendemos a escrever a escrita do outro. O ato de escrever, o ato cultural de escrever, significa escrever a nossa própria palavra, a escrita autônoma, do mesmo modo que ler não é ouvir o que o outro lê ou pronuncia o que está no texto. É, de alguma maneira, atribuir sentido àquilo que lemos, de acordo com os valores da cultura que nós desenvolvemos.

Eu repito aqui um pouco as ideias colocadas no início, de que ao invés de dominar as técnicas de escrever é melhor lidar, primeiramente e de modo triunfal, com a cultura escrita. Triunfal, nesse mundo encharcado de atos culturais, indica vencer as fronteiras, compreender o que é ler e somente depois eleger as questões técnicas como alvos da atenção. É necessário tomar a direção inversa; primeiro

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as práticas culturais e depois as questões técnicas, em vez de fazermos o que sempre fizemos com a cartilha, com a letrinha, e com o som, ou seja, primeiro uma questão técnica para depois chegar às práticas culturais. Sabemos que importante contingente da população escolar não chega a essas práticas.

Volto a perguntar. O que é melhor ensinar: a língua escrita como sistema abstrato, em palavras e orações destituídas de sentido, ou a língua em movimento utilizada nos vários suportes, entre eles o jornal e o livro, como nós mostramos aqui? É interessante citar novamente Bakhtin (1992; 2003), quando afirma que somos ladrões de palavras, que roubamos as palavras dos outros. Nós roubamos, depois dizemos que são nossas, e elas viram nossas de verdade.

Conclusão A criança merece, creio, desde o início da entrada na escola, a oportunidade

de aprender a escrita. Melhor não apresentar muita linearidade nesse processo, nada de obviedades técnicas, nada de enganar as crianças em relação a falsos objetos de aprendizagem, nada de confiná-las a um pensamento linear, gradativo, controlado. É preciso ter flexibilidade, elasticidade nos modos de pensar. São os atos sociais, culturais, que constituem o verdadeiro objeto da escola. O problema da Didática é o de encontrar os modos de fazer isso. Acho que há um desafio: como praticar na escola atos culturais. Diria também que temos que alargar as fronteiras do nosso pensamento. Nós criamos fronteiras, mas elas sempre vão sendo empurradas à medida que nós aprendemos mais, pensamos mais. Quando lemos algum autor, quando discutimos com alguém, vamos alargando um pouco mais. Afastamos as fronteiras de um determinado assunto do lugar de onde elas estavam bem postadas.

Se eu fiz um pouco isso aqui, é porque acho que é preciso fazer. Não quero daqui a um ano pensar do mesmo modo; não que eu vá me deslocar para o lado oposto, porque não seria possível. O que nós podemos fazer é avançar um pouco mais, arriscar, especular. Quero entender que temos que encontrar novos modos de ensinar as crianças; temos de inverter a mão de direção; ao invés de partir da técnica para a prática cultural, temos de partir da prática cultural para depois discutir a questão técnica da constituição da língua escrita.

Mas como se faria isso? Eu não sei, porque, se eu prescrever demais, fecho as fronteiras. Se eu disser que deve ser assim ou assim, estabeleço uma relação vertical. Eu não tenho nenhuma preocupação em ditar normas. Bom mesmo é

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colocar o debate e empurrar um pouco as linhas da fronteira do assunto. Assim, quem sabe consigamos encontrar o caminho, porque eu sempre penso no futuro. Daqui a cem anos nós não podemos fazer a mesma escola que fazemos hoje. Temos de pensar hoje a escola dos próximos cinquenta anos. Temos que começar hoje, para que os outros avancem um pouco mais. É assim que homem cria e organiza o conhecimento e, com ele, a escola.

ReferênciasBAJARD, É. Da escuta de textos à leitura. São Paulo: Cortez, 2007. (Coleção questões de nossa época). _________. A descoberta da língua escrita. São Paulo: Cortez, 2012.BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 5.ed. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1992._____________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003._________. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.DEHAENE, S. Les neurones de la lacture. Paris: Odile Jacob, 2007.FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.FOUCAMBERT. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.____________. A criança, o professor e a leitura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.GOIGOUX, R.; CÉBE, S. Apprendre à lire à l’école. Paris: Retz, 2006.Goody. J. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença, 1988._______. Pouvoirs et savoirs de l’écrit. Paris: La Dispute, 2007FIJALKOW, J. Sur la lecture: perspectives sociocognitives dans le champ de la lecture. Issy-les-Molineaux: Elsevier, 2000.

VIGOTSKI, L.S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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APONTAMENTOS SOBRE RELAÇÕES ENTRE FORMAÇÃO E AÇÕES DOCENTES

Alda Junqueira Marin1*

O tema apresentado ao debate – da formação à ação e os impactos que provoca na escola – tem sido bem provocativo nas últimas décadas no campo da educação. Embora essa seja a direção do tema, a minha reflexão pretende trazer alguns dados de pesquisas que temos feito no grupo de pesquisa nos últimos anos. Há muitos anos venho apontando e analisando a realidade da ação docente. Assim, vou usar alguns dados e fazer o caminho inverso. Vou da ação docente para a formação. Tal inversão deve-se a alguns fatores. Ela tem sua razão de ser. Por quê?

As pesquisas dos professores iniciantes, mesmo aqueles que já estão em exercício, há muito tempo vêm apontando as dificuldades que os professores têm quando ingressam na sua profissão, no trabalho dentro da sala de aula e da escola (OLIVEIRA, 2013; FELDENS, OTT e MORAES, 1983; GIOVANNI e GUARNIERI, 2010). Mesmo aqueles que já estão trabalhando e passam a possuir certificação de ensino superior fazendo novos cursos, têm dificuldade de implantar as novas ideias que aprendem nos cursos de formação porque as condições materiais na escola muitas vezes não ajudam. Isso também ocorre por causa da existência de hierarquias internas quando os profissionais das escolas acabam interditando as inovações.

Por que, então, essa inversão acontece aqui? Em primeiro lugar porque ao analisar a formação nós temos dificuldade de prever se de fato aquilo que o aluno recebe na formação, na situação de aprendizado, vai ser efetivado na realidade escolar. Isso ocorre por vários motivos entre os quais os apontados acima, ou seja, nem sempre as situações permitem colocar em prática o que se aprendeu – se é que os saberes fundamentais para a docência foram veiculados no decorrer da formação – até porque as formações andam bastante precárias nos últimos anos. Além disso, a análise da situação do ensino tem a sua relevância, principalmente para nós que queremos entender, queremos pesquisar e conhecer de fato a realidade da situação em sala de aula. É preciso mirar a sala de aula e fazer as investigações para que se possa então focalizar as múltiplas relações e as diferentes dimensões do trabalho *Professora livre docente e pesquisadora do Departamento de Fundamentos da Educação atuando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universi-dade Católica de São Paulo.

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do professor. Também para entender tudo aquilo que interfere no âmago do que é mais central dentro da escola, ou seja, o ensino, o que acontece na situação de sala de aula. Temos defendido a idéia de que é por meio do conhecimento da escola que se compreende a educação.

Desse modo, focalizo alguns dados de pesquisa de dissertação que já foi defendida há alguns anos, mas esses dados de pesquisa são de um projeto coletivo. A obrigação acadêmica de quem orienta os trabalhos partícipes de projeto coletivo, é retomar esses dados. Nem sempre os pesquisadores de iniciação científica, de mestrado ou de doutorado, conseguem explorá-los na sua totalidade, ou não conseguem aprofundar as análises. Assim, há necessidade de se fazer meta-análises, aglutinando dados de pesquisas que possam aprofundar certos focos comuns.

É nesse sentido que vou apresentar alguns dados da pesquisa fazendo essa meta-análise em uma perspectiva crítico-dialética. Temos insistido bastante nos últimos anos com isso. Há que se entender a necessidade de analisar de um modo bastante crítico e mais profundo o que ocorre nas situações de escola para não ficarmos na superficialidade dos fatos. Entender as possíveis relações que precisamos estabelecer da situação de sala de aula com outras dimensões da própria escola, outras dimensões da formação e outras dimensões sociais, incluindo as políticas educacionais e sociais (APPLE e WEIS, 1986)

Os dados da pesquisa estão aqui apresentados segundo dois eixos: o primeiro eixo são as ações para ensinar e, o segundo, são as ações para avaliar. Estas ações são as mais centrais que os professores fazem quando estão dentro da sala de aula e, às vezes, fora dela. Para a pesquisa coletiva são dois eixos muito importantes de serem investigados.

A pesquisa: dados iniciaisNo primeiro exemplo eu vou apresentar ações e avaliações em uma sala de

reforço para crianças de quarta série que não sabiam ler. Ou seja, são crianças de uma escola pública que chegaram à quarta série sem ter o domínio da leitura. Vou apresentar os dados dessa situação, explicar o que é esse projeto de reforço e falar um pouco da pesquisa em si.

Que situação é essa? Estou falando da Grande São Paulo, portanto, uma situação de periferia da cidade, uma população que é constituída por muitos migrantes de outras regiões do país. Não são estrangeiros, são brasileiros de

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uma escola pública de ensino fundamental eu estavam na quarta série, antes da implantação da escola de 9 anos. Dentro dessa escola as crianças têm, na regularidade do seu processo educativo, cinco horas de aula por dia. Isso não é pouco. 200 horas letivas anuais sendo cinco horas por dia, significa muito tempo dentro da escola. Como dizem alguns autores, inclusive Jackson (1996) , depois da família a escola é a única instituição onde as crianças e os adolescentes passam a maior parte do seu tempo. Às vezes mais tempo na escola do que dentro da própria casa, porque também ficam na rua ou em outras instituições.

O que é esse projeto de reforço? Ele advém de uma ação política prevista na própria legislação da Lei de Diretrizes e Bases desde 1996 (SAVIANI, 1997), segundo a qual as escolas precisam cuidar da recuperação dos alunos nas aprendizagens não realizadas durante o curso regular. Os sujeitos da pesquisa dessa turma de reforço são 42 alunos e uma professora, sendo que cinco crianças foram acompanhadas ao longo do ano. Por que só cinco? Esses 42 alunos iniciantes do mês de fevereiro foram se evadindo ao longo do ano, de modo que a turma foi se recompondo, foi se esvaziando no primeiro semestre. No segundo semestre foi organizada nova turma com muitos alunos, mas eram alunos que estavam entrando como se fosse a primeira vez nessa atividade de reforço, portanto não permitia ver a continuidade do trabalho.

No estado de São Paulo existem duas medidas para sanar as defasagens de aprendizagem dos alunos: a turma de reforço e as atividades de recuperação paralela. Em geral, os professores não fazem uma distinção, não sabem muito bem o que é uma e o que é outra. Como ocorreu a composição dessa turma sob análise? Em princípio era uma turma que deveria ser composta por aqueles alunos que não sabiam ler, mas cada escola também tem seus mecanismos próprios de trabalho e então utilizava diferentes critérios para compor essas turmas. Compunha com alunos que não sabiam ler, mas também com aqueles “indisciplinados”. Estes podiam sair um pouco da sala de aula e “passear” em outra turma para dar um sossego ao professor. A alegação era a de que eles não sabiam ler. A coordenadora pedagógica da escola considerava que essas crianças apresentaram dificuldades de aprendizagem desde o começo e continuaram a apresentar as mesmas dificuldades, por isso não teriam aprendido a ler. No entanto, as crianças sabiam fazer muito bem todas as demais atividades. Elas sabiam brincar, sabiam desenvolver as atividades nos recreios, faziam ótimas atividades na aula de educação física, sabiam brigar com os colegas dentro da sala de aula e fora. Eram, portanto, crianças normais.

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Em que consistia essa atividade de reforço? Eles faziam, durante o semestre, três encontros semanais, de cinquenta minutos, das 12h às 12h50min. Essas são as situações sob análise nesses momentos na dissertação da aluna, e também aqui.

O que foi que constatamos? Essa pesquisa surgiu com o interesse de uma mestranda, professora nessa escola, que trouxe a preocupação de que quase todas as escolas estavam trabalhando com essas salas de reforço, constituídas com as crianças que não sabiam ler. Ela ficou muito intrigada com o fato de as crianças chegarem até a quarta série e não estarem lendo. Queria fazer um estudo para entender melhor o que estava acontecendo com as crianças daquela escola.

Decidimos que a primeira coisa seria fazer uma verificação do desempenho das crianças na sala de aula no início do ano. Esse primeiro passo tinha a intenção de verificar se essa situação era efeito, de fato, da sala de aula ou se as crianças tinham algum tipo de dificuldade ou de defasagem cognitiva. Esse dado era importante para poder dizer se a situação era um problema de ensino ou se era fruto de outros fatores apresentados nessa situação e, por isso, as crianças não conseguiam aproveitar as aulas. Foram, então, testadas todas as 256 crianças que estavam nas turmas de quarta série, com algumas provas muito básicas para verificar qual era o desempenho delas em leitura.

A primeira atividade exigia fazer a ligação entre palavra e figura. As provas iniciais são para identificar a condição de leitura de palavras e figuras muito simples para as crianças. As palavras apresentadas inicialmente foram: dedo, cavalo, pena, bola, alfinete, livro, fruta, funil. Elas deveriam ler as palavras e ligá-las a cinco

Tabela 1 – Correspondência de palavras às figuras

TURMASNº de

alunosFizeram 100%

De 1 a 3 erros

Não fez nada

4A 33 27 05 01

4B 34 29 04 01

4C 30 18 11 01

4D 31 27 02 02

4E 33 19 11 03

4F 30 19 10 01

4G 32 27 04 01

4H 33 28 03 02

TOTAL 256 194 50 12

Fonte:Dias, 2008.

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figuras com um traço. É uma prova de correspondência. A Tabela 1 apresenta os resultados da prova onde se podem comparar os resultados das 256 crianças, na primeira página das provas. No total foram 39 palavras e 22 figuras distribuídas em quatro páginas.

Eram oito turmas de quarta série, todas girando ao redor de trinta e poucos alunos. Nós tivemos como resultado final só nessa primeira página: 194 crianças que conseguiram estabelecer a relação entre as cinco figuras e as palavras correspondentes; 50 crianças fizeram de um a três erros e 12 crianças não conseguiram fazer nada. Verifica-se que, de fato, muitas crianças apresentavam problemas de leitura em testes tão simples quanto esses. Esse é apenas um exemplo para as considerações a serem feitas a seguir.

A segunda prova era similar. Eram cinco frases que deveriam ser lidas e também relacionadas a quatro figuras a serem reconhecidas como representativas das frases. Na Tabela 2 estão os dados.

Tabela 2 – Correspondência de frases e desenhos

TURMAS Nº de alunos Fizeram 100%De 1 a 3

errosNão fez nada

4A 33 30 01 024B 34 30 03 014C 30 25 - 054D 31 27 02 024E 33 26 04 034F 30 27 - 034G 32 30 02 -4H 33 28 01 04TOTAL 256 223 13 20

Fonte: Dias,2008

Verifica-se que, embora um maior número de alunos tenha acertado mais correspondências, apresentando menor frequência de um a três erros, houve maior número de crianças que não conseguiram fazer nada. Analisando-se as provas, verificou-se que foram as mesmas crianças que não tiveram desempenho na primeira prova.

Na atividade seguinte, havia uma historinha que a própria pesquisadora fez. As crianças deveriam ler a historinha e responder duas perguntas. A historinha é a seguinte:

“Paulo é um menino peralta. Certo dia, ao voltar da escola, viu um cão policial caminhando na calçada. Paulo resolveu assustá-lo, puxou o

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rabo do cachorro com toda a sua força. Este, acordando de repente, pulou sobre o menino mordendo-lhe o braço até sangrar. Paulo chorou muito” (DIAS, 2008,p. 111).

É uma história bastante próxima da vida dessas crianças que frequentemente se deparam com situações de cachorros pela rua, já que eles vão e voltam da escola e andam por outros lugares. A primeira questão proposta foi: “o que o cão fez a Paulo?” E a segunda pergunta pedia uma resposta justificadora: “por quê?” São as figuras centrais da história, o cachorro e o menino com as ações. Na Tabela 3 podem ser vistos os resultados dessa prova.

Avançou um pouco mais, nessa prova, a dificuldade para as crianças porque elas tinham que ler e compreender para poder responder as perguntas. Queríamos testar a leitura, mas não a leitura mecânica de apenas decodificar as palavras. Queríamos testar até onde iria a compreensão, de fato, porque essa é a meta de formação de um leitor: a leitura das palavras, decodificando-as, mas também compreendendo qual é a mensagem que está sendo transmitida. Apenas 165 crianças, das 256, conseguiram fazer a leitura e responder as perguntas. Outras 72 crianças conseguiram ler com dificuldade e 19 delas não conseguiram ler.

De fato, vai se configurando que um número ao redor de 19 ou 20 crianças têm dificuldades para fazer a leitura bem simples, de palavras ou de um texto

Tabela 3 – Leitura e respostas orais

TURMAS Nº de alunosConseguiram ler

e responderam as questões

Conseguiram ler com dificuldade

Não conseguiram

ler

4A 33 25 05 03

4B 34 20 12 02

4C 30 12 15 03

4D 31 21 08 02

4E 33 23 07 03

4F 30 20 08 02

4G 32 21 09 02

4H 33 23 08 02

TOTAL 256 165 72 19

Fonte: Dias, 2008

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bastante curto. O número de crianças que não compreendia o que lia aumentou, não é apenas a decodificação. Ficou provado, portanto, que o número de crianças que não sabiam ler era menor do que as 42 que passaram a compor a turma do reforço anteriormente citada.

Além disso, nós fizemos um teste para verificar exatamente quais eram as condições que essas crianças apresentavam. Por quê? A análise de desempenho confirmava de alguma forma o diagnóstico da escola de que havia muitas crianças que não sabiam ler e, portanto, precisavam do reforço. Nós confirmamos por outros meios que esse problema não era apenas uma questão de opinião e avaliação da escola.

Precisávamos de outros meios diagnósticos que não fossem aqueles que a escola estava usando e nem esses testes de compreensão de leitura, de decodificação das palavras e relação com figuras. Optamos por utilizar um teste que caiu de moda nos últimos 40, 50 anos, chamado Teste ABC, construído por Lourenço Filho. O Teste ABC foi construído no Brasil e adaptado para as condições da realidade brasileira. Tem uma fundamentação próxima à teoria que orienta os processos de alfabetização no momento do construtivismo, pautado nas teorias, princípios ou dados da tradição piagetiana (LOURENÇO FILHO, 1933).

O professor Lourenço Filho diz, na sua obra, que é preciso testar certas condições básicas das crianças para poder entender o que o processo de alfabetização exige. Exige memorização, atenção, compreensão do que ouve. Ele propôs uma série de provas testadas a partir de seu trabalho com dados da realidade brasileira. Nós usamos as provas como uma das garantias de que as crianças apresentariam as condições de alfabetização por terem tido, ao longo dos anos anteriores da infância, o desenvolvimento dessas capacidades cognitivas.

Utilizamos um primeiro teste em que ele chama a atenção para a necessidade da memorização e da atenção. O teste se chama “o teste das sete palavras”: são sete palavras muito simples, que ainda estão presentes no dia a dia das nossas crianças: árvore, cadeira, cachorro, flor, casa, pedra, peteca. Elas eram ditas pausadamente às crianças que deveriam repeti-las oralmente. E nós temos o resultado do teste na Tabela 4 com os pontos obtidos diante das respostas.

Eram os mesmos 256 alunos. Verifica-se que apenas 80 dessas crianças conseguiram repetir todas as palavras. De quatro a seis palavras, 137 crianças, e de duas a três palavras, apenas 39 crianças. Portanto, as crianças tinham algumas condições de memorização, de atenção, para ouvir e repetir as palavras, embora

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Tabela 4 – Teste ABC – sete palavras - ouvir e repetir

TURMAS Nº de alunos Sete palavras/ 3 Pontos

4 a 6 palavras/ 2 pontos

2 a 3 palavras/ 1 ponto

Uma palavra ou ausência de reprodução ou enumeração de série completamente diversas/ ZERO

4A 33 10 20 03 X

4B 34 08 18 08 X

4C 30 11 14 05 X

4D 31 09 18 04 X

4E 33 10 16 07 X

4F 30 12 18 X X

4G 32 10 17 05 X

4H 33 10 16 07 X

TOTAL 256 80 137 39 X

Fonte: Dias,2008

muitas delas de um modo bastante precário. Ou seja, nenhuma criança deixou de repetir alguma palavra, mas, gradativamente, à medida que a gente foi avaliando, verificamos que o índice de aproveitamento no que diz respeito à memorização e à atenção para essa memorização foi decaindo e o número de pontos diminuindo. Um número grande de crianças não conseguiu responder.

Na outra prova, pedíamos para as crianças prestarem atenção em uma segunda história bastante simples que foi contada para elas. Depois elas deveriam responder a algumas perguntas. A história sofreu certa adaptação de termos porque no pré- teste com outras crianças verificamos que havia algumas palavras não entendidas. No original, a boneca da história é de “louça”, porque quando esse trabalho foi feito pelo professor Lourenço Filho as bonecas eram de louça, principalmente as cabeças. Então as crianças não entendiam o que era “louça”, não entendiam que não se tratava de “louça” de cozinha. Então nós trocamos a palavra “boneca de louça”, por “boneca de vidro”. O texto da história ficou assim:

“Maria comprou uma boneca. Era uma linda boneca de vidro. A boneca tinha os olhos castanhos e um vestido amarelo. Mas, no mesmo dia em que Maria a comprou, a boneca caiu e quebrou-se. Maria chorou muito” (DIAS, 2008, p.113)

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Após o término da história solicitava-se que a criança contasse a história Se ela começasse a hesitar havia perguntas estimuladoras: “o que mais aconteceu na história?”, e assim por diante. E então era feita uma avaliação atribuindo pontos para cada um dos elementos lembrados. Os resultados estão na Tabela 5.

Na Tabela 5 é possível verificar que apenas 100 crianças conseguiram indicar as três ações da história, ou seja: comprou, quebrou e chorou. Ou as três minúcias, que são: boneca de vidro, olhos castanhos e vestido amarelo. Quando a criança conseguia lembrar-se dessas coisas ela ganhava um número maior de pontos, mas quando diminuíam essas minúcias também diminuíam os pontos. Apenas 102 crianças ganharam dois pontos, 41 ganharam só um ponto e 13 não se lembraram de nada ou lembraram-se de apenas uma pequena coisa. Isso nos dá alguns indicadores da realidade.

Tabela 5 – Contar a história após ouví-la

TURMAS Nº de alunos

Se indicou as três ações: comprou, quebrou, chorou e as três minúcias: de vidro, olhos castanhos, vestido amarelo/ 03 pontos

Se tão somente as três ações, e uma minúcia/

02 pontos

Se tão somente as três ações, ou duas ações e minúcias/ 01 ponto

Se duas ações apenas, ou uma ação e minúcias/ zero

4A 33 09 16 05 03

4B 34 14 11 05 04

4C 30 14 10 06 X

4D 31 16 11 01 03

4E 33 10 20 03 X

4F 30 16 09 05 X

4G 32 08 14 10 X

4H 33 13 11 06 03

TOTAL 256 100 102 41 13

Fonte:Dias, 2008

Vemos que as crianças precisariam ter uma série de condições quando entraram na escola, na primeira série, mas elas estavam na quarta série e ainda não as tinham. Ou seja, as crianças não demonstraram condições de atenção e memorização, não conseguiram demonstrar atenção a muitas ações, mas também as demais respostas demonstram outras características, como a dificuldade de identificar as palavras e as figuras nas correspondências, dificuldades de desenvolvimento cognitivo, aspectos fundamentais que elas deveriam possuir para entender o que a professora ensinava para elas na sala de aula. Eram dificuldades que a escola não detectou, evidentemente. Essa é uma situação e um problema

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sérios porque significa que muitas crianças tinham as condições, mas muitas delas não tinham as condições suficientes para o trabalho de aprendizagem na sala de aula, sobretudo nas séries iniciais, nos primeiros momentos em que as crianças têm que ouvir muito e entender também, sobretudo pelo fato de todos os agentes escolares darem ordens, falarem sobre situações e assuntos variados, e elas precisarem compreender e memorizar.

Mediante esses dados iniciais exemplificados, a análise de ações em sala de aula permite verificar o início do trabalho da professora da turma de reforço.

A pesquisa: dados de sala de aulaInicialmente estão apresentados alguns excertos sobre o primeiro eixo, o

das ações de ensino em sala de aula.O trabalho inicial da professora foi feito com a identificação dos nomes dos

alunos. Essa é uma indicação, uma orientação que vem sendo dada para o trabalho com o referencial construtivista. Deve-se começar com os nomes dos alunos. Ela trabalhou durante três semanas com essas atividades dos nomes das crianças, escrevendo numa lousa, mandando as crianças escreverem em uma cartolina com giz de cera, compondo nomes com letras de um pote do alfabeto móvel, fazendo diálogos com esses exercícios, pedindo para as crianças que dissessem que nomes eram aqueles que estavam sendo postos na lousa. As crianças estavam de fato tentando decifrar o que estava sendo apresentado. Elas diziam, por exemplo: “o nome Luciana”, disse o aluno. “É Luciana, mas por que é Luciana? disse a professora. “É porque começa com L e termina com A”, respondeu o aluno. E se trocasse o nome e mantivesse o mesmo L e o mesmo A eles já não saberiam dizer por que lembravam apenas do primeiro nome dentre os que foram veiculados. Enfim, fazendo esse jogo com as crianças, sem explicar nada, apenas perguntando e escutando o que falavam, “mas por que?”, e sempre insistindo com a letra inicial e a final. Durante muitas semanas esse trabalho foi feito, mesmo com o alfabeto acima da lousa para elas identificarem as letras. Elas identificavam assim: “ah, o L estava lá em cima e estava na lousa”.

Em uma das aulas fez um ditado. Descrevo, aqui, apenas um exemplo do ditado, para erificarem o tipo de ação e o que isso significa na compreensão da criança. Primeira palavra ditada foi Luis. Antes de ditar a professor orientou as crianças dizendo: “Eu vou ditar uma palavra e vocês vão escrever no caderno de vocês. A palavra é Luis”. As crianças tiveram uma enorme dificuldade para escrever. Então

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a professora repetiu: “lu-lu-lu-is-is-is”, ou seja, a dificuldade aumentou muitíssimo exatamente porque não existe essa palavra “lu-lu-lu-is-is-is”. E ainda dizia para as crianças: “vocês precisam entender que a chave está em ouvir. Vocês precisam ouvir e repetir dentro de vocês”. A próxima palavra foi Juliano, nome de outro menino da classe. Claro que eles, novamente, não conseguiram escrever, tiveram uma grande dificuldade. Ela dizia assim: “ju-ju-jarra-janela-ja-je-ji-jo-ju”. Todas essas emissões fizeram parte do ditado. “Li-Liiiiiiiiiiiiii”. Depois, outra palavra, Magali: “Ma-ga-li” e, na sequência: “Maaaaaaa,gaaaaaa,liiiiiiii”.Não coloquem qualquer letra, ouçam iiiiiiiiiiii”. Afinal, o que as crianças devem escrever? Bem, é claro que essa professora esteva estudando procedimentos, estudando orientações teóricas. Ela está utilizando silabação, que não é preconizada nesse tipo de orientação teórica; ela até poderia usar, mas que não surte o efeito desejado porque ela alterna inadequadamente, numa ação que não resulta em aprendizagem, não ocorre o efeito que precisa surtir na sala de aula. Não é o ditado em si que é inadequado, como dizem muitos, mas o modo de usá-lo e sem ter a clareza de sua função em cada momento da aula.

Além disso, ela usou músicas. As crianças tinham que cantar e copiar uma música da lousa. A professora usou “O sapo”, “Marcha soldado”, “Pirulito que bate-bate” entre outras. Mas como ela trabalhava com essas músicas? Ela colocava a letra da música na lousa, em letra bastão, mesmo em se tratando de quarta série, quando os alunos já deveriam estar usando letra cursiva. Escrevia a letra da música “O sapo” na lousa e dizia para as crianças: “Enquanto eu estou escrevendo vocês vão fazendo uma leitura silenciosa”. Chamou um aluno para ler e mostrou a palavra lagoa. O menino conseguiu localizar, identificar a palavra lagoa. Quando ele leu “lagoa”, imediatamente as crianças “o sapo na lagoa...”. Começaram a cantar, claro, porque eles tinham memorizado a música desde a educação infantil, que é muito fácil, mas não tinham identificação nenhuma com o que estava escrito. Eles não conseguiam identificar as palavras que ela apontava na lousa. “E essa palavra? E aquela palavra?”. Eles sabiam a música com a letra, mas não sabiam identificar na lousa as palavras que significavam aquelas letras que estavam cantando. E como essa, todas as demais músicas.

As atividades foram muito repetitivas ao longo do semestre. No segundo semestre, com a nova turma que chegou, observou-se que o trabalho começou exatamente do mesmo modo, com os nomes, depois as músicas, depois os ditados, com outra brincadeira e algumas atividades para entreter as crianças na tentativa

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de que elas conseguissem decifrar as letras, as palavras e os nomes que estavam sendo trabalhados,” levantando hipóteses”.

O que podemos dizer desse trabalho? Em primeiro lugar, a análise demonstra que não havia um eixo organizador do trabalho da professora nessas ações. Não havia uma sequência definida de atividades, uma evolução. As ações eram totalmente isoladas, cada dia uma coisa, sem articulação entre elas. As aulas eram improvisadas, sem preparo, e a professora confiava na sua experiência. Espaço para leitura, propriamente dita, praticamente não houve durante o período em que foi feita a observação, pois apenas em duas aulas as crianças pegaram um livro. O trabalho em sala de aula era incompatível com as possibilidades que as crianças apresentavam. Muitas delas tinham algumas condições básicas para serem alfabetizadas, mas aquelas que não tinham também não adquiriram, pois não foram estimuladas, porque não foram testadas. A professora não tinha conhecimento das necessidades que as crianças precisavam como base para poder aprender. Ou seja, ela não tinha noção de que as crianças precisavam ter uma coordenação motora de visão espacial para saber olhar a lousa e ver uma coisa escrita na lousa, e depois olhar o caderno, cuja dimensão espacial é diferente, e elas precisam escrever no caderno. A professora não tinha condição de saber, ou pelo menos não trabalhou com isso durante o período da observação, nem sobre a coordenação auditivo-motora. Ouvir uma ordem ou um nome, como é o caso das histórias e do ditado, e transformar isso numa atividade no caderno. Para isso, ela precisaria saber que essas possibilidades tinham que ter sido muito estimuladas ao longo do processo. Muitas crianças que não foram bem nos testes não frequentaram o reforço. Estão naquele lote que não conseguiu responder as atividades iniciais, mas foram para a sala. Muitas continuaram sem saber ler e muitas deixaram de frequentar a aula de reforço. Elas evadiram-se da turma e não voltaram no segundo semestre.

Do ponto de vista das condições de trabalho, não havia contato dessa professora com as demais professoras das turmas regulares porque as crianças eram de turmas variadas. As professoras, por sua vez, não tentavam contato com ela, não havia nenhum diálogo, nenhum acompanhamento desse trabalho, nem com a coordenadora e nem com a diretora.

Essas crianças eram rotuladas e a expectativa negativa do desempenho é muito presente dentro da escola, não apenas na atividade de reforço. As professoras criticaram muito o uso do teste ABC. “Nossa, que coisa mais antiga, isso não se usa mais”. Mas não havia outra medida no lugar, para identificar as necessidades das

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crianças, a não ser a “testagem”, explicitada a seguir.Na sequência cabem algumas considerações sobre o segundo eixo que é

pautado na avaliação. A professora fez uma avaliação diagnóstica com atividades que normalmente se faz nessa orientação teórica, testando as crianças naquilo que os professores costumam chamar de “testagem” do nível alfabético, silábico, pré-silábico, que vem sendo exigida em muitos lugares deste país. Em São Paulo é essa a orientação dada aos professores. Então, os resultados que a professora tinha, de diagnóstico, são esses expostos no Quadro 1.

Quadro 1 – Avaliação dos alunos no início do 1º semestre de 2007

Nomes Hipótese da avaliação dos alunos no início do 1º semestre de 2007 EMER Pré-silábico FRAN Silábico sem valor sonoro MAG Silábico com valor sonoro MAX Silábico com valor sonoro AL Silábico com valor sonoro DAV Pré-silábico GI Pré-silábico

Nesse quadro estão apenas os dados das crianças que inicialmente estavam sob acompanhamento. Verifica-se que, realmente, até pelos dados da orientação teórica da Secretaria da Educação há defasagem no desenvolvimento da escolarização das crianças.

A professora não corrigia as crianças quando elas falavam errado, não corrigia os textos quando elas faziam o ditado. Apenas perguntava e tornava a repetir verbalmente o que estava sendo feito naquele dia. No final do ano foi feito o mesmo tipo de avaliação já apresentada em que se verificam pouquíssimas mudanças nessa testagem inicial apresentada nesse Quadro 1.

Ao longo do ano a pesquisadora foi repetindo os testes das palavras na mesma direção inicial, avaliando e verificando possíveis alterações, mas não se verificavam mudanças no desempenho das crianças. No final do ano fez novo teste com todas as 42 crianças que haviam começado o ano na turma composta de modo a cotejar os dados com os do início do ano e verificar se havia tido algum tipo de modificação na condição de leitura. Ela deu cinco palavras para as crianças lerem, palavras bastante simples, que deveriam estar no vocabulário das crianças que, nesse momento da escolarização, já deveriam dominar palavras com as dificuldades

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Quadro 2– Resultado de 6 dos 42 alunos que participaram inicialmente do reforço

Série/ nº de alunos

Relação de alunos convocados

Relação de resultados Frequência

4ª A / 40 alunos

KL Leu 4 palavras. Na palavra “telhado” leu “gato”. Confunde “d” com “b”

Frequentou 1º e 2º semestres

EMER Leu com dificuldade. Onde era “camarão” leu “macarrão”

Frequentou 1º e 2º semestres

4ª B / 40 alunos

MAG Não conseguiu ler as palavras. Reconhece letras.

Frequentou 1º e 2º semestres

GI Leu com dificuldade. Reconhece letras. Frequentou 1º e 2º semestres

TA Leu com dificuldade. Reconhece letras. Frequentou 1º e 2º semestres

MAX Não leu. Reconhece letras. Frequentou 1º e 2º semestres

de sílabas complexas: mandioca, camarão, aquário, galinheiro, telhado. Porém, os resultados foram muito pobres. O Quadro 2 apresenta os resultados de seis crianças apenas.

Dessas seis crianças que estão no Quadro 2 representando algumas das 23 que frequentaram o ano todo, três delas estão entre as cinco que foram acompanhadas mais de perto o ano todo: o Emer, a Gi e o Max. Essas três crianças começaram em fevereiro, ficaram o primeiro e o segundo semestre na turma para aprender a ler e escrever tendo boa frequência. Verifica-se que os resultados apresentados revelam baixíssimo aproveitamento na direção de domínio da leitura. As demais crianças frequentaram aulas, mas entravam e saíam com bastante mobilidade, com bastante dificuldade de acompanhar e, portanto, há certa justificativa para elas. Mas, analisando os dados desses três exemplificados, detecta-se um ano de trabalho realizado com essas crianças para um resultado pífio no que diz respeito a resultado de aprendizagem.

O que se pode dizer sobre a formação dessa professora? Passando agora das condições das ações para a formação. Havia critérios de seleção bastante rigorosos para a professora que foi selecionada para assumir essa turma. Ela deveria comprovar ter participado de cursos de formação de professores alfabetizadores a partir de 2003, quando de fato começou a vigência dessa ação política do reforço. Ela deveria ter experiência com projetos de alfabetização. Ela deveria apresentar um projeto de trabalho para ser avaliado pela equipe de gestão da escola, o que foi feito. Ela deveria participar de um HTPC, o Horário de Trabalho Pedagógico

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Coletivo nas escolas, momento que se supõe direcionamento para discussão das práticas de sala de aula. Além disso, ter conhecimento de informática e navegação na web para poder utilizar os recursos da sala de apoio de inclusão. Mas, e o que dizer a partir das ações?

Pode-se aventar que as concepções abordadas na formação específica devem ter sido bastante precárias porque havia ausência de domínio, tanto dos conteúdos relacionados à alfabetização, conteúdos aprofundados, quanto dos aspectos da didática em geral no encaminhamento do ensino. Estereótipos de atividades ou ações bem aquém da proposta e da necessidade dos alunos: uma formação que demonstra desconhecimento da relação entre oralidade, escrita e leitura, mas também a diferença entre esses três aspectos da alfabetização para que o trabalho possa ser feito com compreensão e sucesso. Nem a síntese da decodificação aconteceu para as crianças.

Orientações pedagógicas variadas, misturadas, o que é possível, mas que não ajudaram as crianças. Ausência de domínio que a atividade de reforço requer. Certamente pelos requisitos verifica-se que havia uma ou mais formações misturadas, mas qual estava de fato vigorando? Esse eixo de orientação para o trabalho era bastante precário. Pobreza e repetitividade das atividades, o que significa uma defasagem no campo da didática especificamente sem condição de variação dos procedimentos. Reiteração do que já havia ocorrido nos três anos anteriores. Esse tipo de trabalho mostra total desencontro entre o que está sendo esperado e o que está sendo realizado. Por quê? Porque se passaram três anos nesta mesma orientação e ela não surtiu efeito. Esse era o momento de se buscar outro caminho porque as crianças não são iguais, elas precisam ter um atendimento para essas diferenças, inclusive do ponto de vista da cognição. Além disso, total desencontro entre os agentes no interior da escola que verificaram os requisitos da candidata, porém consideraram-nos suficientes na direção de não se preocuparem com ações de auxílio ou de acompanhamento.

Considerando...Alguns comentários mais críticos na perspectiva do que esses dados

permitem dizer. Quando fazemos essas análises mais profundas temos que focalizar o trabalho de outras perspectivas para entender de um outro modo.

Considerando esses dados, o que é possível apontar? Em primeiro lugar, é possível apontar uma ampliação do atendimento escolar da população, portanto

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pode-se dizer que as ações políticas têm caminhado adequadamente. Entretanto, o que esse atendimento escolar esconde? Negativamente o atendimento escolar, de fato, não atende, não escolariza. Mantém a classificação dessas crianças com relação a sua origem, uma origem na qual a atividade escolar, propriamente dita, não penetrou na vida dessas crianças. Há um lado positivo que é o do cumprimento da exigência da regulamentação, que era ter o reforço, dar uma nova chance ao alunado que não conseguiu alfabetizar-se até a quarta série. Por outro lado, há uma enorme contradição. Por quê? As próprias ações da política educacional interditam que esse reforço seja feito de um modo adequado. Por exemplo, não existe a alternativa para a escola poder alterar os procedimentos de ensino que não sejam os de exigência oficial e utilizar outros procedimentos que, muitas vezes, os professores têm domínio e não usam porque não é o recomendado.

Considerando os dados obtidos pode-se dizer, sobre essas crianças da quarta série, que elas não estão escolarizadas, estão muito distantes do ponto de vista cognitivo das outras que estão escolarizadas. Na verdade, se compararmos crianças estrangeiras que falam, lêem e escrevem em chinês, inglês ou francês, elas estão muito mais próximas das nossas que falam, lêem e escrevem em português e estão escolarizadas; as crianças analisadas estão muito distantes de todo esse grupo porque ainda devem aprender a ler, escrever e falar corretamente em português e não conseguem; estão muito distantes, na comparação, até mesmo de alguns colegas de turma, porque a condição cognitiva é diversa.

Considerando uma pesquisa como essa, temos uma amostra da realidade das nossas instituições e, ao mesmo tempo, a recusa dos profissionais que formaram essas professoras na análise das questões didáticas dos seus cursos. Ao expor essa realidade, a pesquisa mostra o distanciamento em relação aos princípios que as regem, só perceptível pela própria análise da pesquisa. De outro modo, parece que tudo que está acontecendo está bom. Existe uma ausência de preocupação com análises educacionais sobre fatos como esses. Aparentemente é bom porque não causa traumas nas crianças com avaliações.

Considerando a orientação de formação recebida, é para deixar que as crianças aprendam sozinhas e com isso vamos mantendo os princípios, o lado perverso nutrido pela meritocracia, individualismo e protagonismo presentes e veiculados tão constantemente nas últimas décadas ou as condições de origem das crianças – problemas e azar delas se não aprenderem.

Considerando uma pesquisa como essa, sendo feita sob um ponto de

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vista crítico, permite-se identificar internamente quais são as estratégias que acontecem, as estratégias das instituições educativas que constituem o que alguns autores críticos apontam sobre a escola. Nada mais nada menos do que a metáfora do social, nas mínimas atitudes, na miséria das condições e das posições que são adotadas pelos professores e pelos alunos. Com isso, nós estamos chegando à situação atual e crescente, de milhares, milhões de crianças sem condições de desenvolver a leitura, de não leitores, despossuídos de atitudes de leitores, de atitudes de apreciação, de atitudes de percepção, de análise, de condições mínimas para fazer aquilo que a escola exige, mas principalmente o que a vida exige de formação deles após a escolarização não cumprida.

ReferênciasAPPLE, M.; WEIS, L. Vendo a educação de forma relacional. Educação& Realidade, Porto Alegre, v.11,nº 1, p. 19-33, jan/jun1986, p. 19-33.

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SAVIANI, D. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas.Campinas: Autores Associados, 1997.

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APONTAMENTOS SOBRE RELAÇÕES ENTRE FORMAÇÃO E AÇÃO DOCENTES

Maura Maria Morita VasconcellosSerá que a teoria, na prática, é outra? Quando nos propomos a realizar

uma reflexão sobre as contradições vividas por formadores de professores, fica difícil não recorrer a Freud, que, segundo Cifalli (2009, p. 4), teria dito:

Quase parece, contudo, que a análise é a terceira dessas profissões ‘impossíveis’, nas quais se pode ter, de saída, a certeza de um sucesso insuficiente. Os outros dois (ofícios), conhecidos desde muito mais tempo, são educar e governar.

O impossível se refere ao fato de que, em nossa profissão, não temos jamais uma garantia científica que determine cada um de nossos atos e, como bem argumenta Cifali (2009, p. 4), a docência exige revisitar “[...] a relação entre teoria e suas ‘aplicações’, sua colocação em prática e suas armadilhas. [...] Nós oscilamos conforme somos teóricos ou práticos”.

A questão da relação indissociável entre teoria e prática já foi e ainda é muito discutida em educação, mas nosso propósito é evidenciar a complexidade do trabalho docente exercido por aqueles que ensinam “como ensinar” ensinando. Nessa tarefa, não há como negar que corremos riscos que nos obrigam, constantemente, a pensar o trabalho docente como práxis visando coerência entre o discurso e a prática pedagógica.

A atividade teórica, como aponta Vázquez (1968), o que permite o conhecimento da realidade e o estabelecimento de objetivos para sua transformação, mas, produzir esta transformação depende de agir praticamente. Como afirma Pimenta:

Um curso não é a práxis do futuro professor. É a formação teórica (teórico-prática) do professor para a práxis transformadora. Isto é, é pela ação do sujeito professor, enquanto professor, que ele exerce a práxis transformadora (Pimenta, 1997, p. 106, grifo nosso).

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Nossa análise coloca, sob a luz dos holofotes, um curso de formação de professores que tem como pressuposto de que é em um curso como este que se pode aprender a ser professor. O que chama a atenção é a incoerência entre teoria e prática que se revela nas ações, muitas vezes contraditórias ou paradoxais, de alguns docentes como aponta este estudante: “prática incoerente com a teoria [...] ensina uma coisa e o próprio faz outra” (Ped71).

Como podemos não ser bons professores se ensinamos como “ser professor”? O aluno de Pedagogia percebe claramente estas incoerências. No caso da avaliação da aprendizagem, por exemplo, o estudante aponta que há “incoerência entre o que foi ensinado em sala de aula e as provas” (Ped14). Cabe, aqui, relembrar que a teoria e a prática são indissociáveis como práxis e que a atividade teórica

[...] possibilita de modo indissociável o conhecimento da realidade e o estabelecimento de finalidades para sua transformação. Mas para produzir tal transformação não é suficiente a atividade teórica; é preciso atuar praticamente. [...] Para o marxismo é prática social que revela a verdade ou falsidade, isto é, a correspondência ou não de um pensamento com a realidade (PIMENTA, 1997, p. 92).

A pergunta que não quer calar, quando pensamos na incoerência apontada pelos alunos, é: basta ter conhecimentos pedagógicos para atuar didaticamente de forma adequada no exercício do trabalho docente? Que outros elementos estão envolvidos na constituição da identidade docente e que podem inibir que tal conhecimento se transforme em práticas coerentes? (VASCONCELLOS; OLIVEIRA, 2013)

Parece claro que nem sempre o conhecimento é suficiente para transformar ações. Além disto, da constituição da identidade docente fazem parte a história de vida, a formação e a prática pedagógica. Estes elementos representam as duas dimensões que fazem parte do processo de tornar-se professor: a pessoal e a profissional (FARIAS et al., 2009).

Conforme Meirieu (2002), o pedagogo pode ser definido como aquele que trabalha sobre o saber que ensina e é este trabalho que faz toda a diferença:

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Por que, de fato, na universidade, o acesso à teoria e aos diplomas que atestam seu domínio condenam os teóricos a se manterem sempre afastados das práticas de que falam, enquanto suas próprias práticas de teóricos, de professores e de pesquisadores são sistematicamente preservadas de qualquer observação e de qualquer questionamento?(MEIRIEU, 2002, p. 10).

O trabalhar sobre o saber que se ensina significa, segundo Meirieu (2002, p. 91), estar atento à especificidade epistemológica daquilo que se estabeleceu ensinar e, no caso dos professores universitários, possibilitar que seus saberes sejam “[...] questionados, retomados, explicitados e permanentemente reelaborados com os alunos aos quais se destinam”.

A reflexão do autor nos possibilita entender que a distância entre o dizer e o fazer pode ser reduzida à medida que se reconsidera o estatuto pedagógico e se reconhece seu fundamento ético de renúncia das certezas didáticas e pela assunção de uma atitude de autocrítica nas condutas docentes.

Todos os aspectos discutidos nos levam a valorizar a importância da reflexão sobre as práticas. Mergulhados no imediatismo e nas demandas urgentes das questões educacionais, deixamos, muitas vezes, de refletir sobre problemas básicos do trabalho docente. Segundo Zabalza (2004), a qualidade de ensino passa pela revisão das práticas docentes sim, mas sem esquecer que esta qualidade está vinculada a muitos outros problemas vinculados ao contexto social, político, acadêmico e institucional.

Considerações finais

A participação dos alunos neste estudo foi relevante do ponto de vista de dar voz aos nossos parceiros de aprendizado e formação. Considerar suas ponderações possibilitou nos colocar numa trilha de reflexão sobre as preocupações educacionais que nos move a realizar pesquisas na área pedagógica e didática. A investigação também coloca em evidência nossos limites e a complexidade do terreno em que atuamos.

Consideramos importante enfatizar que não pretendemos, com esta

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investigação, realizar um julgamento do trabalho de nenhum colega, mas sim trazê-los como colaboradores efetivos para uma reflexão compartilhada a respeito de formas de envolver a instituição em projetos formativos de nossos docentes, com vistas a uma maior qualidade do ensino que praticamos.

Os problemas levantados servem de base para uma discussão maior: a vulnerabilidade do trabalho docente que, mesmo praticado por docentes da área pedagógica, não está livre de ser considerado inadequado. Isto pode significar que nem sempre o conhecimento pedagógico é traduzido em práticas docentes concernentes constituindo um desafio para todos aqueles que se interessam pela efetivação de uma docência de qualidade.

Com o estudo, foi possível observar o quanto é difícil a tarefa de se fazer valer na prática a teoria que se encontra nos livros. Em se tratando de um curso de formação de professores e especialmente do Curso de Pedagogia, esta contradição se evidenciou ainda mais problemática, visto que, os discursos pedagógicos podem se tornar cada vez mais vazios quando não são acompanhados de práticas correspondentes.

REFERÊNCIAS

CIFALLI, M. Ofício “impossível”? Uma piada inesgotável. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 25, n. 1, p.149-164, abr. 2009.

FARIAS et al. Didática e docência: aprendendo a profissão. Brasília, DF: Liber Livro, 2009.

MEIRIEU, P. A pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar. Porto Alegre: Artmed, 2002.

PIMENTA, S. G. O estágio na formação de professores: unidade teoria e prática? 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

VASCONCELLOS, Maura M. M. ; OLIVEIRA, Cláudia C. Docência no curso de pedagogia: uma relação paradoxal entre a teoria e a prática formativa. Revista Diálogo Educacional. Curitiba, v.13, n.38, jan./abr. 2013, p.117-137.

VÁZQUEZ, A. S. Ética. 16. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

ZABALZA, M. A. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed, 2004.

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DEFORMAÇÕES

Filipe Ceppas de Carvalho e Faria1*

Vou falar sobre deformações. A motivação para falar sobre um assunto tão tétrico, monstruoso, é fazer um contraponto à ideia de formação – um conceito central para a educação e para nós, professores – e considerar alguns aspectos dessa ideia de formação humana, que é o oposto de uma deformação e do informe ou do sem forma.

Não encontramos muito textos que tratem da ideia de deformação no âmbito da educação, excetuando alguns, como aqueles produzidos pelo grupo do Tomaz Tadeu da Silva, da UFRGS, sobre os monstros.2 Mas há poucos textos que façam essa relação entre deformação e a ideia de formação, embora encontremos alguma coisa nesse sentido em textos que tratem do informe nas artes.

Para começar, a questão poderia ser descrita, talvez, como monstruosa. É uma questão grande demais para todos que trabalham nas escolas, como professores. Todos nós nos deparamos com essa angústia perante o informe. Nosso trabalho volta e meia é descrito como um trabalho de “enxugar gelo”, e nós frequentemente nos perguntamos se ele é ou não em vão. Todos nós temos satisfações no nosso trabalho, temos motivações, mas a pergunta diz respeito a um problema maior, que tem a ver com a dimensão civilizatória, política e universal dos processos de escolarização em nossa sociedade. Pergunta monstruosa, que Kant já se fazia, sobre “se o gênero humano progride em direção ao melhor”,3 a qual se relaciona esta, sobre qual o sentido da escolarização, da educação, nas sociedades contemporâneas.

Bem, costumamos sair pela tangente e dizer: “ah, a gente faz o melhor que pode”. Ou podemos defender, com base em alguma teoria, que “nem toda educação é uma aposta para melhorar a sociedade”. Penso que essa é uma forma de não responder ao problema. E esse problema não tem um sentido preciso, ou melhor, ele é performativo. A gente vai construindo o sentido dessa questão na medida em que vai tentando respondê-la. Quando Kant escreve seu texto para tentar

1* Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ.2 Por exemplo: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 20003 KANT, Immanuel. “Si el género humano se halla en progresso constante hacia mejor”, in Filosofia de la história, trad. Eugenio Ímaz, México: Fondo de Cultura Económica, 1987.

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responder a essa questão, se o gênero humano progride em direção ao melhor, ele distingue três perspectivas: uma otimista, uma pessimista e uma indiferente ou “abderentista”.

A otimista seria messiânica, no sentido de “sim, nós temos como assegurar que a espécie humana vai atingir um patamar de civilidade, de paz”. Outra seria pessimista, ou apocalíptica, na qual o ser humano vai sempre de mal a pior e a tendência é que a coisa toda acabe em destruição. E, por fim, a que ele chama de “abderentista” diz que, na verdade, há sempre momentos melhores e piores, e a gente nunca vai sair disso. E podemos pensar numa quarta, mais pós-moderna, desconstrutora, na qual deveríamos antes buscar desconstruir os termos nos quais a questão está formulada.

Parece evidente que, no mundo da educação, as teorias otimistas ou messiânicas são predominantes. E me pergunto se não é porque temos dificuldade de trabalhar com perspectivas distintas, perspectivas mais pessimistas, mais apocalípticas, ou também com perspectivas mais desconstrutoras, no sentido de repensar o modo mesmo como formulamos o problema.

Para começar a tentar lidar com o problema, vou pensar a questão da formação a partir do seu revés, a deformação. O conceito de formação é definido, sobretudo, a partir do termo alemão Bildung, numa concepção humanista, atrelada à ideia de razão, liberdade, sujeito, numa perspectiva messiânica. Mas, ao revisar alguns textos sobre a questão, na história da pedagogia, encontramos algumas exceções que nos fazem perceber a importância de pensarmos a ideia de formação a partir da ideia de deformação.

Então, por exemplo, na abertura do Emílio, o grande tratado clássico sobre a pedagogia da modernidade, no primeiro parágrafo, lemos:

Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem. Ele obriga uma terra a nutrir as produções de outra, uma árvore a dar frutos de outra; mistura e confunde os climas, as estações; mutila seu cão, seu cavalo, seu escravo; transtorna tudo, desfigura tudo; ama a deformidade, os monstros; não quer nada como fez a natureza, nem mesmo o homem; tem de ensiná-lo para si, como um cavalo de picadeiro; tem que moldá-lo ao seu jeito como uma árvore de seu jardim. Sem isso tudo iria de mal a pior e a nossa espécie não deve ser formada pela metade. No estado em que já se encontram as coisas, o homem abandonado a si mesmo, desde o nascimento, seria o mais desfigurado de todos.4

4 Jean-Jacques ROUSSEAU. Emílio ou da educação, trad. Sérgio Milliet, Rio de Janeiro, Bertrand, 1995, p.9.

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Rousseau está dizendo que todo o nosso processo civilizatório é uma monstruosidade. Ele diz também que se a gente quisesse formar, educar alguém fora deste processo, isto também seria uma coisa monstruosa, o que explicita bem o pessimismo de Rousseau com relação a qualquer projeto pedagógico, inclusive o dele mesmo! Há uma anedota segundo a qual, certa vez, um senhor da sociedade encontrou Rousseau e disse, todo empolgado: “Sr. Rousseau, estou educando meu filho de acordo com os preceitos do Emílio”; e Rousseau teria respondido: “tanto pior, meu caro, tanto pior”. Se nossa espécie não dever ser formada pela metade, uma “formação inteira”, no âmbito da civilização, é também, em relação à natureza, uma deformação, uma monstruosidade, pois, por toda parte, o homem “transtorna tudo, desfigura tudo; ama a deformidade, os monstros”.

Essa perspectiva de Rousseau contrasta obviamente com o otimismo intrínseco ao ideal da formação desenvolvido, sobretudo, na Alemanha, no final do século XVIII, início do XIX. Valeria a pena encarar o surgimento desse ideal como uma tentativa de supressão, não tanto de superação, mas de abafamento, de neutralização dessa antinomia Rousseauísta. O ideal da Bildung tem pelo menos duas origens: a ideia da construção da cultura como um diálogo com os antigos e a filosofia kantiana. Vou me deter mais nesta última.

Com relação à cultura, tratava-se, sobretudo, do ideal de uma constituição subjetiva contraposta ao utilitarismo da civilização.5 A palavra Bildung está totalmente associada à ideia de formação cultural do indivíduo, formação individual no sentido do seu cultivo, contraposta às exigências utilitárias que batiam à porta com violência, em função da revolução industrial, dos progressos da civilização.

Podemos pensar que se trata de uma reação aristocrática. O conceito de Bildung nasce da preservação de uma certa ordem. Então, tratava-se de manter vivos os valores essenciais do ocidente, cujas raízes estariam na Grécia e na tradição judaico-cristã. Essa constituição subjetiva da educação do indivíduo dá-se necessariamente em bases modernas, em torno de uma nova noção de sujeito. Neste ponto, Kant é fundamental, porque talvez tenha sido ele quem melhor fundamentou a noção de sujeito moderno. É importante, para nós, revermos essa discussão, porque essas referências conceituais são, digamos, o suporte teórico, conceitual e ideológico dos sistemas educacionais, das universidades e da ideia de escolarização que se forma a partir das revoluções modernas.5 Ver RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins Alemães, São Paulo: Edusp, 2000, READINGS, Bill. The University in ruins, Cambridge: Harvard University Press, 1996 e WEBER, José Fernandes. Formação (Bildung), educação e esperimentação em Nietzsche, Londrina: Eduel, 2011.

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O termo alemão Bildung vem de Bild, que significa imagem, figura, quadro, pintura, gravura, estampa, retrato e, mais tarde, fotografia. No sentido figurado Bildung é também ideia, noção. A expressão “in Bildung” em alemão significa estar informado, estar “ao corrente”. Na época de Kant, o termo Bildung era usado simultaneamente para formação e educação. Kant não faz nenhuma distinção entre os dois sentidos de Bildung e Erziehung, palavra que também é usada para significar educação. Importante notar que o termo Bild aparece, também, num importante conceito kantiano: o da imaginação (Einbildung).

Em Kant, a capacidade da imaginação (Einbildung) é dita Einbildungskraft e tem papel fundamental em sua filosofia.6 A imaginação, seja como capacidade ou faculdade (Vermögen), é tanto reprodutiva quanto produtiva, responsável tanto pela síntese dos múltiplos dados sensíveis da experiência, como por uma ampliação daquilo que é percebido pelo eu.

Temos uma capacidade que Kant chama de imaginação. É ela que faz com que tudo o que a gente perceba pelos sentidos seja sintetizado pelo entendimento para que sejamos capazes de pensar as coisas do mundo, para dizer que uma coisa é uma coisa, que é redonda ou quadrada, enfim, para que possamos predicá-la, pensá-la. Essa seria sua função reprodutora. A imaginação é parte fundamental de nossa capacidade de reproduzir o que percebemos no pensamento, na linguagem. Mas, ao fazê-lo, ela como que percebe também uma série de outras “coisas”, de um modo produtivo. Cito uma passagem do filósofo francês Lyotard, que resume bem essa ideia:

Uma vez liberta das responsabilidades que lhe impõe o conhecimento dos objetos, a imaginação [em Kant] não trabalha apenas de modo reprodutivo, mas produtivo. Ela revela sua aptidão para, no momento de percepção dos fenômenos, apresentar ao espírito formas inesperadas; aptidão a enriquecer e alargar a síntese apreensiva da matéria perceptiva. Digamos que ela ergue uma massa de nuvens que restam a pensar; ela, escreve Kant, «dá muito a pensar»…7

Talvez dê até demais a pensar. Não quero entrar nos detalhes da filosofia kantiana, mas acho importante a gente rever alguns de seus conceitos e problemas para entender o que significa a questão da formação.

6 Para uma extensa apresentação e discussão da capacidade da imaginação em Kant, ver FRIAS, Lin-coln. “A produtividade da capacidade de imaginação em Kant: as relações entre a «Crítica da Faculdade de Juízo Estético» e a «Analítica Transcendental»”. Dissertação de mestrado. Fafich, UFMG, Belo Hori-zonte, 2006.7 LYOTARD, J-F. Pérégrinations, Paris: Galilée, 1990, p.71.

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A capacidade da imaginação nos ajuda a estabelecer uma relação entre a Bildung e o monstruoso. O alargamento da percepção pela imaginação se dá, em sua dimensão estética, através dos sentimentos do belo e do sublime. O sentimento do sublime se refere à experiência do grandioso na natureza. Ao contrário do sentimento do belo, onde a imaginação participa de um livre jogo com a faculdade do entendimento, e onde o sentimento de prazer advém de uma possibilidade, de um “como se” a experiência de prazer frente a um objeto pudesse ser válida universalmente; o sentimento do sublime advém da impossibilidade de síntese perante percepções de fenômenos por demais grandiosos e intensos. Trata-se, no sublime, da percepção do Unform, da ausência de forma, ou da Formlosigkeit, do amorfo ou informe. Nessa percepção, trazida pela vivência de um fenômeno natural grandioso e aterrorizante, está em jogo a possibilidade de uma identificação do ser humano com algo que ultrapassa nosso conhecimento legítimo (porque dado pelos limites de nossa percepção) sobre o mundo. Trata-se da identificação com uma finalidade suprassensível da natureza. Entretanto, como pontua Lyotard, “não é que o objeto seja monstruoso, mas a forma cessa de ser a grande questão em matéria de sentimento estético” (idem, p.81).

Na verdade, haveria que distinguir o informe do disforme, da deformação ou do monstruoso. Kant elimina completamente qualquer referência ao monstruoso no que diz respeito ao sentimento sublime, quando ele o conceitua.8 Ele exclui rigorosamente o monstruoso, assim como, em relação ao belo ou à representação do belo na arte, por exemplo, exclui qualquer referência a uma feiura que nos cause asco, repulsa, desprazer (§189). Porque o sentimento do belo para Kant é exatamente aquele sentimento que causa prazer, a percepção de uma bela forma.

O monstruoso, no que Kant chama de “sublime matemático”, anularia “o fim que constitui o conceito do objeto”. O monstruoso impossibilita, para Kant, que o ser humano se identifique com qualquer finalidade suprassensível. Para Kant, toda essa teorização sobre o belo e o sublime é crucial. Para entendermos por que ela é crucial, devemos nos lembrar da divisão que ele estabelece entre o fenômeno e noumeno, o suprassensível, ou a coisa em si. Basicamente, trata-se da tese de que entendemos o mundo através de nossas percepções e do entendimento. E temos um limite para falar sobre as coisas do mundo, que é, digamos, a negociação entre o entendimento, a razão e os fenômenos. Para além disso, não podemos falar nada

8 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, Trad. Valerio Rohden e António Marques, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, §89-90.

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com certeza, não podemos falar nada sobre como as coisas são em si mesmas; nem muito menos falar nada com certeza sobre “coisas” como Deus ou a imortalidade da alma. Mas se não podemos falar nada sobre elas, podemos, com o simples uso da razão, falar sobre o porquê delas existirem enquanto representações possíveis de “coisas” possíveis —e, tradicionalmente, elas existiriam na medida em que nos ajudariam a entender porque estamos aqui, porque existem árvores, porque a natureza existe, e por aí vai. De todo modo, as “coisas” a que corresponderiam essas ideias (Deus ou a imortalidade da alma), se existem, encontrar-se-iam no terreno do suprassensível (isto é, numa região inacessível ao ser humano enquanto uma experiência possível).

Pois bem, é precisamente o “informe” que possibilita que o ser humano se identifique com essa finalidade que associamos às “coisas” do suprassensível. A impossibilidade da apreensão da forma nos fenômenos naturais, dos mais grandiosos ou violentos, é parte essencial da nossa relação com o suprassensível. Leio uma passagem de Kant, da Crítica da faculdade do juízo:

Tomadas literalmente e consideradas logicamente, idéias não podem ser apresentadas. Mas se ampliamos matemática ou dinâmicamente nossa faculdade empírica de representaçao para a intuição da natureza, então inevitalmente se juntará a ela a razão como faculdade de independência da totalidade absoluta, e produz o esforço de ânimo, conquanto vão, de tornar adequadas a elas a representação dos sentidos. Este esforço e o sentimento da inacessibilidade da idéia à faculdade da imaginação são eles mesmos uma apresentação da conformidade a fins subjetiva de nosso ânimo no uso da faculdade da imaginação para sua destinação supra-sensível e obrigam-nos a pensar subjetivamente a própria natureza em sua totalidade como apresentação de algo supra-sensível, sem poder realizar objetivamente essa apresentação.9

Tento “traduzir” esta passagem. O que Kant está dizendo é que nossas possíveis ideias sobre o que são as coisas ou o que é alguém “em si mesmo”, ou aquilo que faz as coisas serem o que são (a natureza), ou se existe um Deus, se não existe, etc., não podem nunca ser apresentadas a partir do sensível, do mundo, das coisas do mundo. Mas temos a possibilidade de pensar sobre isso, e pensamos sobre isso com mais intensidade quando nos deparamos com fenômenos grandiosos demais para nós, terríveis demais para nós. Então nosso pensamento, via imaginação, se sente inclinado a pensar sobre essa finalidade do mundo.

Somos capazes de “sentir” e pensar a finalidade do mundo, embora não 9 KANT, idem, p.114-115.

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possamos representá-la como um conhecimento legítimo. E isso só acontece quando vemos uma grande tempestade, fenômenos naturais terrivelmente ameaçadores... Mas Kant coloca um critério, uma condição fundamental para que isso aconteça: é que nós estejamos a salvo. Porque, se estamos no meio da tempestade, não pensamos em nada, só pensamos em nos safar, mas se contemplamos esse espetáculo grandioso da natureza com a sensação de estarmos a salvo, somos arremessados pelo sentimento de grandiosidade à possibilidade de pensar uma finalidade por trás desse caos, desse informe. Quer dizer, o sentimento do sublime é um sentimento do lugar do ser humano na natureza, uma destinação da própria natureza que supostamente colocou o ser humano aí para contemplar toda essa grandiosidade. Seria muito estranho que houvesse toda essa grandiosidade, que houvesse o ser humano capaz de pensar nela e daí não se extraísse nenhuma finalidade grandiosa da própria natureza.

A contemplação distanciada de uma tempestade desperta em nós o sentimento de terror e respeito perante a grandiosidade e a força da natureza, possibilitando uma “projeção” da finalidade de nossa capacidade de apreensão da totalidade como realização do suprassensível, o ser humano como ser privilegiado da criação (aquilo que, é bom que se diga, nenhuma ciência, nenhuma observação empírica, mas também nenhuma moral ou religião pode fundamentar). Se a deformação, o monstruoso (em comparação com o que Kant chama de informe), também desperta uma “resistência contra os interesses do sentido”, pondo em questão nosso lugar no cosmos e o reconhecimento de uma finalidade na natureza, ele entretanto, segundo Kant, anula a possível identificação com o fim último do suprassensível ao trazer uma contradição interna. Diante de forças incontroláveis, o ser humano reconhece a potência da natureza e, através do sentimento do sublime, se reconhece nela ou, mais precisamente, como superior a ela. Diante do monstruoso, esse reconhecimento se auto-anularia, uma vez que não figuram aqui forças mecânicas e exteriores com relação às quais o ser humano possa se colocar numa relação de superioridade, mas somos antes confrontados com uma ameaça que atinge a própria formação do corpo humano. O monstruoso é algo que nos ameaça desde dentro (se não me engano, Kant não afirma isso em lugar algum, somos nós que interpretamos assim). Diante desta ameaça, o reconhecimento da impotência não daria lugar à projeção de uma finalidade suprassensível. Ao contrário, ele “anularia o fim que constitui o conceito do objeto”. É um disforme

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sem qualquer finalidade possível.10 Diante desse pequeno e esquemático resumo das ideias de Kant,

fundamental para o debate sobre educação no século XIX, podemos vislumbrar um caminho importante que a cultura alemã posterior tomou para domesticar o monstruoso denunciado por Rousseau, ao relacionar educação e (de)formação. Em quase todos os autores importantes para se pensar a questão da formação nesse contexto, encontramos pistas semelhantes de uma dessublimação, domesticação, neutralização, exclusão do monstruoso. Esses autores não só excluem o monstruoso, mas excluem a referência ao monstruoso como um problema –Kant ao menos manteve o monstruoso como um problema. Nessa exclusão, eles “dessublimizam” a relação com o suprassensível; isto é, eles absorvem o “sentimento do sublime” numa teorização racionalizante sobre a finalidade do ser humano na natureza. Então, para Hegel o absoluto supera toda essa impossibilidade, central na filosofia de Kant, de falar em nome do absoluto. Para Hegel, por exemplo, tudo o que é informe, tudo que não é conhecido, tudo que é perigoso, em algum momento da história vai ser subsumido pela razão absoluta, pelo saber absoluto. Assim, também em Herder, todas as ocorrências de termos relacionados ao monstruoso estão a reboque de sua tentativa de harmonizar entendimento e sensação.11 O idealismo alemão, sobretudo em seus principais representantes, Fichte, Schelling e Hegel, irá subsumir as idéias do caos, do informe e do monstruoso (que em Kant ainda figura como um resto inapreensível e perigoso para o indivíduo) ao processo de autoesclarecimento da razão, como autorrealização de Deus “no homem” ou

10 E é interessante contrastar essas idéias com a aparição dos monstros nas tradições grega e judaico-cristã. Os monstros ocupam, de modo geral, o lugar da perdição, da destruição de qualquer dignidade humana. Mas não apenas isso. A deformação é associada também, tanto no imaginário judaico-cristão como no imaginário grego, à questão da educação. Na tradição grega, o mestre de Aquiles era um mons-tro, um centauro, metade homem, metade cavalo. Diversas figuras de professor, de mestre, na Grécia an-tiga estão associadas com o monstruoso. Eram assassinos, pessoas que foram expulsas de suas cidades. Por exemplo, uma pessoa que cometeu algum crime em Esparta pode ir para Atenas e se tornar profes-sor. E na Bíblia há também uma passagem em que encontramos essa associação, tal como nos lembra Manacorda: “o grupo de hebreus que matou três mil de seus irmãos por terem cultuado o bezerro de ouro foi promovido por Javé a educador do povo, formando assim a carreira dos levitas”. O criminoso, em geral, cai nessa categoria meio fluída do monstruoso, relacionada ao professor em suas origens. 11 “Se um ser humano pode esboçar a base mais profunda, mais individual de seus entusiasmos e sentimentos, de seus sonhos e pensamentos, que novela! No atual estado de coisas, apenas doenças e momentos de paixão podem fazê-lo — e que espécie de monstros e maravilhosos milagres marinhos por vezes assim percebemos”. HERDER. Johann G.v. Philosophical Writings. Cambridge: Cambridge Uni-versity Press. 2002. P.217. Em outra passagem (p.234), por exemplo, Herder usa o termo monstro para caracterizar o gênio. Por outro lado, por diversas vezes, a palavra “monstro” é usada de forma pejorati-va, para se referir à ingenuidade ou a superstição.

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através de suas obras.12

Uma exceção importante é Schiller. Como afirma Gay Shapiro, trata-se de um autor que “foi forçado a complementar sua própria estética do belo (…) com uma consideração sobre o sublime”. Leio um trecho de Schiller, que diz:

O belo sozinho não pode nunca nos ensinar que nosso destino é o de agir como pura inteligência… Na presença do sublime, ao contrário, razão e sensação não estão em harmonia, e é precisamente essa contradição entre as duas que produz o charme do sublime, sua irresistível ação em nosso espírito.13

Schiller vai ser o único autor que, ao falar sobre a formação, vai manter no horizonte essa dimensão do sublime, e que, portanto, nos ajuda a dar conta dessa temática, desse problema que é o monstruoso para nós. Schiller desenvolve uma concepção trágica da arte, concebendo uma formação estética da humanidade como a única via para superação dos erros do passado e dos constrangimentos do presente. A via trágica, como complemento necessário a uma formação estética baseada no sentimento do belo, aposta na identificação distanciada do espectador da tragédia com os personagens e suas vicissitudes, mas também e sobretudo com o lugar do próprio autor. A arte trágica, que anima o sentimento do sublime, toma em Schiller o lugar que Kant havia reservado exclusivamente à natureza e implica o espectador enquanto uma espécie de co-autor (aspecto já presente nas teorizações mais antigas acerca do sublime, como a de Pseudo-Longino).

Então, a despeito da concepção específica de arte trágica em Schiller, pode-se traçar um elo entre a questão do sublime que anima grande parte da produção artística ocidental, a partir de finais do século XIX em diante, na medida em que esta explora a idéia de desarmonia entre razão e sensação, abandonando o discurso do belo não somente em favor de uma crescente experimentação formal, mas também pela aposta de que essa experimentação seria a principal via capaz de ampliar a capacidade em si mesma amplificadora do sublime; isto é, uma via em que

12 O trabalho de Schelling é exemplar a este respeito. Ver SCHELLING. Filosofia da arte, trad. Marcio Suzuki, São Paulo: Edusp, 2001. Cito uma passagem paradigmática, resumida por Zöller: «O processo da realização original de Deus consiste na transmutação auto-induzida e auto-executada da escura ou desarticulada unidade original para uma distinta ou articulada “imagem” (Ein-Bildung) ou um “eidos” (Idéia) de Deus”». ZÖLLER, Günter. “Fichte, Schelling, and Schopenhauer” in The Cambridge Compa-nions to German Idealism, Cambridge University Press, 2006, p. 205. Como demonstra Gay Shapiro (em SHAPIRO. “From the sublime to the political: Some historical notes”, in New Literary History, V.16, nº2, 1985), o caso de Hegel é mais complexo, na medida em que sua estética absorve parte da teoria do sublime de Schiller, que iremos comentar a seguir.13 “Sobre o Sublime”, apud Shapiro, 1985, p.221.

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o ser humano é forçado a reconfigurar a oposição (ou a desarmonia) entre razão e sensação, que é também aquela entre o que seria da ordem do especificamente humano, da sociedade, e o que seria da ordem da natureza, sem as pressuposições metafísicas, presentes em Kant e no idealismo alemão, de um suprassensível a ser aprendido (ou realizado por) um sujeito identificado sobretudo com a razão.

A arte contemporânea irá explorar, de algum modo, essa perspectiva aberta por Schiller, num contexto radical de crítica àqueles pressupostos que formam a base da ideia de formação, de um sujeito universal capaz de dar conta do seu lugar na natureza. Como afirma Foucault, em As palavras e as coisas, a partir do século XIX, com o surgimento das ciências humanas, estamos fadados a nos perder nas infinitas maneiras de dizer a finitude.14 E não é gratuito que, nesse momento, apareça Freud e sua teoria do monstruoso, que ele vai chamar Unheimlich, o inquietante, o estranho; uma teoria toda desenvolvida a partir de referências literárias, centradas nas sensações monstruosas, nas experiências monstruosas (HOFFMAN, EDGAR ALLAN POE, etc).

Alguns autores trabalharam recorrentemente essa questão do sublime e a importância da teoria estética de Kant para repensar a política e a história. No entanto, parece que esse debate não tem muita ressonância na educação e pode haver vários motivos para isso. A educação é um campo tensionado por um discurso científico e talvez, por isso, a demanda por uma formação científica dificulte a percepção da centralidade da arte, da filosofia, na sua constituição, no processo mesmo de construção e fundamentação de uma ideia de educação ocidental. A principal ideia de educação ocidental como fonte do progresso, que ainda anima grande parte das perspectivas messiânicas de trabalho nas escolas, tem duas fontes comum e predominantes, que são a ideia de formação alemã do século XIX e o ideal francês iluminista-republicano de educação. E esses ideais foram invariavelmente subsumidos por preocupações de ordem científica (econômica, sociológica, etc).

Então, se uma concepção idealista e iluminista de formação encontra-se problematizada hoje por todos ao lados, ela continua forte e atuante no discurso e nas práticas educacionais, como por exemplo na retórica da “estética da sensibilidade”, gestada em organizações como o Banco Mundial e a Unesco, e apropriada por governos e órgãos de educação a partir dos anos 90 com a ampliação do processo de globalização da economia. Existe um texto muito importante do professor Celso Favaretto, da USP, que se chama “Arte contemporânea e educação”, publicado na

14 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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Revista Iberoamericana de Educação,15 e que irei comentar rapidamente, como última parte dessa minha fala.

Favaretto sugere que o princípio fundamental da estética da sensibilidade repousa na tese da importância da arte como mecanismo de compensação para o caráter utilitário do mundo do trabalho e da economia. Favaretto nos lembra que a Bildung, devedora da ideia de síntese estética da grandeza humana no ideal iluminista da formação, comparece também em Marx, nos dando uma pista para a percepção da sua ubiquidade. Trata-se de uma batalha em torno de visões messiânicas na formação do ser humano, que pressupõe a possibilidade da referência ao sujeito, identitário e consensual. Escreve Favaretto:

Como se sabe, o debate sobre os limites da razão moderna, sobre as ambiguidades da modernidade artístico-cultural, enfatiza exatamente o esforço de manter, a todo custo, identidades e consenso, na política, no social, na arte e na educação, como uma maneira de se enfrentar a indeterminação e a incidência nos saberes e práticas dos efeitos da perda de unidade da experiência. Tal questionamento tem em vista afirmar uma concepção imanente da educação, em que a ideia de transformação opõe-se à metafísica da formação. Ao contrário, portanto, de a educação significar a condução à forma de um sujeito constituído, trata-se agora da destituição, da deposição desse sujeito [que antes era tido como a] garantia da unidade da experiência. (grifo nosso)

Embora concorde com Favaretto nesse diagnóstico, penso que ele passa rápido demais para a ideia de transformação como substituto da ideia de formação, incapaz de dar conta das condições dessa nossa experiência contemporânea paradoxal, que é a experiência de perda da experiência, isto é, perda do sentido de um sujeito consensual, identitário etc. Penso que essa ideia de transformação não é suficiente para dar conta dos problemas (e que deveríamos questionar, ainda, com Rancière, essa premissa da “perda da experiência” com sendo uma espécie de destruição de um elo comunitário associado a um sujeito consensual e identitário).16 Cito mais uma passagem de Favaretto.

Na arte surgida dessa atitude, patente nas atividades contem- porâneas, as obras, os experimentos, as proposições de toda sorte, funcionam como interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento; funcionam como um descaminho

15 FAVARETTO, Celso. “Arte Contemporâne e Educação”. REVISTA IBEROAMERICANA DE EDUCACIÓN. N.o 53 (2010), pp. 225-235.16 Ver, por exemplo, “Os paradoxos da arte política”, em RANCIÈRE, Jacques, O espectador emancipa-do, Trad. José M. Justo, Lisboa: Portugal, 2010.

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daquilo que é conhecido. Uma espécie de jogo com os acontecimentos, de táticas que exploram ocasiões em que o sentido emerge através de dicções e timbres, nas formas não nos conteúdos; uma viagem pelo conhecimento e pela imaginação: são imagens que procuram captar o tipo de deslocamento da subjetividade promovido pelas obras da arte.

Isso nos forçaria, então, a redefinir a importância da arte para a educação como o exercício de um outro modo de experiência e de saber, livre da metafísica da formação, em uma perspectiva de crítica ao messianismo. Mas devemos pontuar que essa liberação eventualmente não significa uma liberação de concepções correlatas e mistificadoras, como a atribuição de liberdade e criatividade como supostas essências do humano. Sem dúvida que a arte contemporânea, compreendida a partir de referenciais pós-iluministas como Foucault, Lyotard e Deleuze (privilegiados no texto de Favaretto), pode nos ajudar a redefinir os desafios do exercício de liberdade e criatividade na política e na educação. Contudo, é importante lembrar que esses autores dialogam intensa e criticamente com os artistas e pensadores da tradição idealista e iluminista, não exatamente no sentido de deixá-los completamente de lado, mas também numa tentativa de releitura de algumas de suas ideias, numa reformulação inventiva de seus consensos e de suas questões.

Um modo mais pedestres de formular esse “senão” ao texto de Favaretto seria o bordão “não se pode jogar fora o bebê com a a água suja do banho”. “A água suja do banho” é a ideia de que o ser humano se caracteriza essencialmente por uma natureza grandiosa, capaz de desvelar “o sentido da natureza”, etc. Quer dizer, temos motivos suficientes para jogar isso fora. Por exemplo, a antropologia vai nos mostrar seres humanos vivendo em sociedade de um modo radicalmente diferente do nosso. Bem, eles têm uma concepção de mundo, de natureza, de ser, completamente distinta da nossa. Então eles não são humanos? Por outro lado, temos que reconhecer que a interpretação da experiência humana cristalizada e levada ao auge no idealismo alemão faz parte do nosso mundo, que seus valores, seu messianismo, sua crença no progresso está, de certo modo, encarnada na própria dinâmica produtiva das sociedades ocidentais, e o desejo de “aperfeiçoamento” que aí se configura deve ser contínua e criticamente redimensionado. A crença, por exemplo, de que a criatividade e a liberdade é a essência do ser humano é algo que precisa ser contínua e criticamente re-conceitualizado. Vale a pena, ao menos,

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chamar a atenção para o fato de que temos dificuldades e poucos recursos para pensar na premissa oposta (claramente formulada já por Rousseau), no disforme, na monstruosidade de nossa sociedade, e em nós mesmos, na natureza, como marcados pela deformidade. Estamos muito presos a concepções messiânicas da educação e não pensamos naquilo que, precisamente, essas concepções messiânicas pretendem excluir, domesticar, colocar no escaninho da percepção do sublime: o monstruoso. Autores como Foucault (com a questão da anormalidade), Lyotard (em suas releituras do sublime kantiano) ou Deleuze (com os devires, Artaud e o corpo sem órgãos, etc) estão, de alguma forma, resgatando essas discussões sobre o informe e o monstruoso. Não se trata de querer pontificar sobre se autores como Kant estavam “certos” ou “errados”. Trata-se de se debruçar ainda, mais uma vez, sobre os escritos de Kant, Hegel, Schiller, etc. na medida em que eles nos fornecem alguma possibilidade de conceituação do que seja essa monstruosidade, esse informe para os seres humanos. Trata-se de uma provocação para quem trabalha com educação: encarar as contribuições da filosofia e da arte para repensarmos as premissas de onde surgem certos conceitos problemáticos, certas perspectivas problemáticas ainda hoje defendidas no âmbito da educação; certas respostas fáceis, impensadas, ou sequestradas por uma visão cientificista (sociologizante ou economicista), quando somos desafiados a responder se a escolarização de fato contribui para “tornar o mundo melhor”.

Para finalizar, resumiria parte do que foi dito com uma ideia relativamente simples: temos que enfrentar os nossos próprios monstros! Dou um exemplo singelo. Há alguns anos atrás, um texto do Bukowski foi excluído do currículo do ensino médio no Estado de São Paulo porque continha um palavrão. Um texto do Bukowski é um texto do Bukowski! Palavrão é o de menos. E, então, uma mãe, duas mães, três mães reclamaram e o governo retirou o texto do material didático. É isso, excluam o monstruoso! E isso não vai impedir que os alunos continuem praticando suas monstruosidades ao sair da escola, ou mesmo dentro da escola. Não vai impedir. Pelo contrário. Talvez, se o aluno lesse um texto do Bukowski, aquilo seria um caminho para ele pensar o que é e o que não é o “chulo”, o sexo, as misérias do ser humano, a violência, para lidar melhor com a monstruosidade que o habita, que habita cada um de nós. No entanto, o nosso reflexo condicionado é esse: esconde, retira, tapa, não se fala nisso.

Haveria inúmeros exemplos para dar acerca desse mecanismo de neutralização, que esconde os problemas que dizem respeito à percepção do

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monstruoso. Por isso Freud também é importante. Numa coletânea de textos de Adorno sobre educação, que se chama Educação e emancipação, há um texto que se chama “Tabus acerca do magistério”.17 Neste texto, Adorno fala da importância dos professores lerem Freud, de fazerem uma (auto) análise para lidar com esse monstruoso que trazemos em cada um de nós, para pensar melhor o monstruoso que nos habita. Claro, exemplo maior é o campo de concentração, maior fonte de percepção da monstruosidade da humanidade. Então, eu deixo vocês com mais uma provocação: o que Kant diria sobre os campos de concentração, a partir da sua teoria sobre o belo e o sublime?

Obrigado.

17 ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ‘DEFORMAÇÕES’ DE CEPPAS

Leoni Maria Padilha Henning1∗

Inicio agradecendo a oportunidade a mim conferida pela Coordenação do V Simpósio de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação e XV Semana da Educação desta universidade que, ao me convidar a atuar como debatedora nesta Mesa coordenada pelo colega de área, Darcísio Natal Muraro, me permitiu elaborar o presente texto a partir da exposição das ideias do colega, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Filipe Ceppas de Carvalho e Farias, que se articulam em torno das “deformações” como termo antinômico ao usual, mas complexo conceito de “formação”. Agradeço profundamente ao Ceppas pelas provocações que o seu texto me causou, o entendendo como um convite ao debate, à reflexão – o que, confesso, foi acolhido com zelo e consideração, não sei se com a necessária competência tendo em vista a complexidade da problemática por ele apresentada – mas, que o faço com o empenho que a tarefa exige. Ceppas inicia a sua argumentação a partir da realidade profissional dos educadores das sociedades atuais que misturam o seu cotidiano, constituído por intensos planejamentos, enfrentamentos de situações dramáticas nas escolas e execuções de suas tantas tarefas quase sempre costuradas com fios de esperança no aprimoramento humano. A tensão presente na desassossegada vida escolar atual e a angústia que incomoda esses professores exige-lhes uma garantia maior do que simplesmente o empenho de “ensinar”, pois é preciso que acreditem na possibilidade de melhoria do projeto humano e social pelas ações educativas. Assim, assolam em suas mentes várias perguntas tais como: crescemos mesmo ao sermos educados? Aprimoramo-nos verdadeiramente nos ambientes educativos? As intencionalidades educacionais que buscam o crescente aperfeiçoamento do homem e da sociedade são possíveis, viáveis, realizáveis nos dias de hoje?” Adiantamos que, para ele, nem sempre isso acontece. Aliás, pode exatamente ocorrer o radicalmente contrário e uma assustadora situação inesperada. Com efeito, tendo essas agudas questões bem estabelecidas, vemos o palestrante desenvolver o seu raciocínio em torno das ‘deformações’, também possíveis de serem gestadas no nobre seio educacional. Para entendermos o fenômeno, temos que nos movimentarmos no amplo âmbito da educação, movendo-nos ora para 1 Universidade Estadual de Londrina-UEL. Dedico este texto ao meu filho, Frederico, no dia de hoje, data de seu aniversário.

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dentro da escola, ora para as demais instituições educativas que se espalham em nosso ambiente social e que, na verdade, enredam, penetram as relações sociais mais gerais. Contudo, é nas escolas que encontramos mais visivelmente a situação tensa e contraditória que anunciamos, especialmente na pessoa de inúmeros profissionais, “gabaritados” para o trabalho de formação do futuro das nossas sociedades na pessoa dos mais jovens, através de projetos claramente intencionados por planejamentos e atividades diárias. E, perguntamos junto a esses profissionais, “afinal, qual é o sentido da ‘educação’ em nossas sociedades atuais, diante dos fartos recursos tecnológicos de aprendizagem, de divertimentos e de lazer?! Para quê a escola?” É em relação a esta questão que esses educadores se posicionam em sua busca por um necessário conforto existencial, enquanto agentes educativos em suas tarefas cotidianas. Nesta Semana da Educação foi apresentada num dos dias do evento, uma pesquisa que aponta para o sentimento acima descrito como algo próprio aos professores iniciantes, por eles necessitarem de um sentido para o seu trabalho. Mas, vemos aqui, na presente reflexão, um indicativo de que tal sentimento é inerente ao ‘ser professor’, iniciante ou não. Todos querem ter claro para si que seu dia a dia faz sentido para a promoção humana. Embora não tenhamos dados objetivos para essa aferição, sabemos, contudo, que um movimento otimista em relação à educação há muito tempo invadiu o imaginário social, tendo nas escolas a esperança de correção de desvios de conduta, de apreensão de valores e conhecimentos indispensáveis ao exercício da cidadania e para outras necessidades dos indivíduos, de certeza nas valiosas oportunidades e sucesso na vida, e assim por diante. Por mais que alguns escolares se desarmonizem com esses ideais, há uma aposta no papel da escola para recuperá-los e por desenvolvê-los. Contudo, a imprevisibilidade do futuro nos desafia no sentido de que ‘educar’ é projetarmos para algo que somente vislumbramos ou desejamos, é decifrarmos uma situação em construção, apenas esboçada sob a insigne do possível, o que ainda não é. No entanto, o planejamento educativo nos exige algumas certezas e compromisso com nossos objetivos bem traçados. Mas, “como de fato será o futuro?! Estamos preparados para o enfrentamento do imprevisível?” É assim o panorama que mesmo enevoado pela imprevisibilidade e pelo mundo dos possíveis, nos impõe que ‘formemos’ crianças, jovens e adultos até o apagar dos seus desejos por educação, o que aliás, apostamos no sem-fim. Desse modo, professores comprometidos com esses ideais evitam os descaminhos, o

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despreparo, o mal preparo, as deformações – mesmo que tenham observado sinais da deseducação e até da deformação – esta que radicaliza como um total desvio da meta formativa. Ao apresentar as minhas considerações provocadas por Ceppas, o leitor perceberá que, em muitas situações, ofereço um direcionamento diferente daquele explorado pelo palestrante, talvez, uma outra interpretação dos aspectos por ele abordados. Faço isso para tentar enriquecer o debate e, quem sabe, permitir que dessa discussão outras formas interpretativas eclodam. Se isso ocorrer, considero termos atingido um objetivo engrandecedor nesta Semana. Carlos Rodrigues Brandão, em seu pequeno livro Que é educação (1983) se preocupa, dentre outras coisas, com a “fraqueza” das ações educativas, com o mau serviço que educadores mal-avisados podem gerar à sociedade. Portanto, as frustrações que são amargadas por pais e educadores diante de jovens desadaptados e malformados, podem ser grandemente resultante do trabalho dos próprios agentes educativos. E assim adverte: “Mas, na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer [...]” (p. 12, grifos nossos), tornando os indivíduos inúteis ao contexto imediato no qual vivem e de onde extraem as benesses conquistadas pelos seus concidadãos, tornando-se ao invés de colaboradores e partícipes do grupo social, pessoas dispensáveis, inadaptáveis e mesmo marginalizadas, personas non grata, pois completamente inadequadas ao ambiente. Há aqueles que ressaltam ainda que as experiências deseducativas seriam aquelas que impedem o movimento dos homens no mundo da vida, no transitar livre nos espaços-tempos em que frutificam as experiências humanas. Acompanhando os argumentos de Ceppas, pergunto: “Mas, quais seriam essas experiências assim tão perniciosas aos homens e as mulheres?” Contudo, observo que a noção de ‘deformação’ que Ceppas nos apresenta é ainda pior! Pois o autor nos sugere, dentre outras coisas, uma ameaça ao âmago fundamental do que a educação diz ser. De promotora e aprimoradora do homem ou/ incrementadora das suas qualidades fundamentais, aquela que concorre para o seu crescente melhoramento no sentido integral, contrariamente, pode resultar na deformação, na desfiguração, no que se dá como irreconhecível em relação à forma prometida. “Qual a forma prometida? E, como e por que essa desfiguração, a despromessa ocorre?”- pergunto. Muitas questões que enredam o tema da ‘formação’ já apareceram na

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cena educacional e têm sido bem exploradas pelos seus teóricos. Particularmente, encontramos denúncias e críticas sobre as ações mais concernentes ao ‘formatar’, ‘enformar’ (meter os educandos em fôrmas), ‘moldar’, ‘adestrar’, etc., enquanto modelos pedagógicos efetivamente não comprometidos com a ‘formação’. Tal problemática resultou em antinomias consideradas já clássicas no campo educacional, como propostas que, por exemplo, de um lado defendem o controle e a autoridade do professor versus a autonomia do educando; o diretivismo educativo por parte do educador para garantir o enformar, desembocando mesmo numa espécie de autoritarismo versus o não-diretivismo – aquele que desconfia que a “forma” pode ser inadequada, desconfortável – podendo até acarretar no laissez-faire, no excesso de liberdade aos educandos. E, por aí vão se sucedendo modelos pedagógicos antinômicos. Nesse particular, Freire (2011a, p. 60) adverte: “Não resolvemos bem, ainda, entre nós, a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos coloca e confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo, licença com liberdade”. Além disso, para resolver alguns dos impasses daí decorrentes, alguns optam pela defesa no “ensino” enquanto garantia de educação, devendo ser exercido rigorosamente pelo professor que transmite aos alunos o que devem “aprender”, se isto ou aquilo. Outros acreditam que aprendemos uns com os outros, professores e alunos, alunos entre si, já desde o que cada um traz de sua realidade vivenciada fora da escola, cujo desrespeito resultaria em interceptação do crescimento de todos enquanto ‘humanos’ no seu desenvolvimento formativo. Esses aspectos demandariam uma longa e detalhada discussão. Mas, o que até aqui diretamente nos interessa diz respeito ao que a pergunta intenta provocar: “ao tentarmos inserir um indivíduo dentro de um padrão, de um ideal, de um modelo, subtraindo os seus traços característicos, suas diferenças e vontades, poderíamos, se bem sucedidos, desfigurar a sua própria natureza?” Considerando a noção do ‘sublime’ como o sentimento que emerge quando estamos diante de uma tempestade grandiosa, aterrorizadora, mas, de certa forma bela, atraente, impactante - como absorver uma experiência inusitada e trazê-la ao rol das nossas experiências obedientes a um padrão comum? Como administrar aquele sentimento perturbador se não possuirmos os recursos emocionais, quem sabe mesmo materiais, para lidarmos com tamanho impacto? Melhor seria, nesse caso, expulsar tal imagem, colocá-la para ‘debaixo do tapete’, como se diz? Ou, deveríamos antes encaixá-la forçosamente ao padrão comum e, assim, mesmo deformá-la?! Expulsamo-la, imputando a ela o designativo de coisa assustadora

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e informe em relação ao que acreditamos ser o ‘verdadeiramente humano’?! Eis os perigos das ações do enformar, pautado grandemente pelo previsível, pelo já aceito. Penso que podíamos lembrar aqui as questões referentes à ‘patologização na educação’, apresentada numa das sessões deste evento como um problema das escolas contemporâneas. Naquela ocasião, foram denunciadas muitas situações de produção de um problema maior nas crianças tratadas inadequadamente por medicamentos fortes e provocativos de sérias complicações físicas e psicológicas, procedimento causado frequentemente por uma interpretação inadvertida do que seria ‘o esperado, o previsível’ em contraposição ao informe e desencaixado, terminando desse modo, por fazê-lo um deformado! Seguindo o raciocínio aqui desenvolvido, somos levados a pensar radicalmente no revés2 da formação almejada, ou seja, naquilo que pode anular substancialmente o cerne do que entendemos ser a ação do educar, culminando em frustração diante da derrota frente aos resultados do trabalho, num verdadeiro desastre, num infortúnio. Com isso, entendemos que as ações efetivamente deram errado, falharam, sucumbindo os melhores objetivos e intencionalidade. Pretendíamos formar e deformamos. Muitas vezes, tudo isso não estando muito claro, pois, acreditamos que fizemos o melhor, mas algo falhou. Podíamos, como já anunciado, termos nos empenhado a enformar com mais afinco, a carinhosamente moldar fundamentados em nossas boas intenções e em nossas crenças – “moldando a seu jeito [ao jeito humano]”, conforme as impactantes advertências de Rousseau em seu Emílio (1995, p. 07). Ou, como bem se preocupou Carlos Drummond de Andrade quando a educação, ao visar melhorar a natureza do homem, frequentemente, desconsidera a anuência do interessado3, provocando-lhe a revolta ou a resistência. Mas, e quando não demos certo e, ainda, deformamos, retirando qualquer possibilidade de recuperação do que foi vitimizado por ações pretensamente formativas?! Como podemos deduzir do que até aqui foi exposto, o fenômeno da deformação pode se revelar nos contextos mais gerais, informais ou não-formais, contudo, não desconsideramos a escola como um espaço possível para que isso se manifeste. Pois, ao descuidar-se dos elementos que concorrem para os graves desvios pervertedores, as ações dos professores podem desencaminhar-se das suas intencionalidades formativas, estas que são sempre mais explícitas 2 Revés – SUBSTANTIVO – infortúnio, reverso, golpe oblíquo, contrariedade, fatalidade, derrota, perda, adversidade. 3 “A educação visa melhorar a natureza do homem o que nem sempre é aceite pelo interessado”.

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ao educar. E, quando acontece o revés da formação, pode também acontecer a subversão dos valores mais caros para uma dada sociedade, fazendo ruir toda uma estrutura montada para que efetivamente ‘se eduque’ as novas gerações. Ou, há casos de alguns profissionais exercerem o seu ofício com uma postura ingênua, enganando-se em seus propósitos, deixando-se muitas vezes dirigir-se acriticamente por outros, possibilitando assim que se instaure um mau direcionamento surpreendentemente irresponsável, uma vez que fogem dos atributos fundamentais da natureza educativa, a saber, o compromisso com a humanidade. Tais posturas do professor que, descompromissadamente, se orienta essencialmente do pensamento alheio, nem sempre confiável, podem ainda resultar de um excessivo modo autoritário de exercer a sua profissão, tornando-se preconceituoso e assim aniquilando a iniciativa dos educandos, sua participação, criatividade e curiosidade, dentre outros malefícios formativos. É grave ainda quando o professor transgride a eticidade, desviando-se das orientações que se fundam no compromisso com a educação, com sua decência profissional enquanto educador. Agindo assim, diz Freire (2011a, p. 59), “[...] o professor autoritário [...] afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto, tanto quanto o professor licencioso, rompe com a radicalidade do ser humano [...]” uma vez que ambos não obedecem ao princípio da inconclusão própria de seres que estão sendo e que precisam de boas condições para isso. Freire se inflama diante da possibilidade de manifestações preconceituosas por parte de alguns educadores que acorrem a argumentos falaciosos para sustentarem sua discriminação, mas que, segundo ele, esses profissionais constituem-se na verdade em “[...] transgressores da natureza humana” (idem, ibidem). Assim, preocupados com o tema deste evento, a saber, “Da formação à ação docente: impactos na educação escolar” observamos que se trata, nesta Mesa, dos perigos da ‘educação’ e de quão ‘delicadas’ são as tarefas docentes relacionadas à vida escolar. Tudo isso requer vigilância diuturna, permanente, constituindo-se em ações aprumadas por exigências profissionais indispensáveis ao trabalho com indivíduos que - não estão doentes porque precisam aprender - não são ignorantes, no sentido de carecerem de condições cognitivas básicas e fundamentais, nem estão emburrecidos ou embrutecidos, mas que, se não devidamente atendidos, podem tragicamente fenecer em sua humanidade, em sua integralidade, em sua politicidade, em sua sociabilidade, em sua eticidade, em sua curiosidade, em sua inventividade, em sua sensibilidade resultando num futuro deformado, numa

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sociedade regida por infelizes seres desfigurados, mesmo que veladamente. Não há garantias de tratamento intensivo para seres dessa natureza, nem cirurgias plásticas para as deformações resultantes de um processo assim realizado, uma vez que esses traços desconfortantes podem se tornar invisíveis aos olhos, não-localizáveis objetivamente, dificultando a detecção imediata das suas anomalias e o seu diagnóstico, mas cuja intangibilidade pode envenenar os projetos educativos mais amplos e ambiciosos de promoção humana, produzindo exatamente o seu contrário. Foi talvez com essa preocupação em mente que temos em mãos o escrito Educação após Auschwitz de Adorno, pensador que afirma:

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. [...] a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. [...] Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz (ADORNO, p. 2000, p. 119, grifos nossos).

Medo e desconfiança em relação à humanidade. Traços da deformação, do horrendo, do sórdido, ainda são apontados presentes na história humana. “Presentes?” perguntamos, “mesmo com tanta informação, tecnologia, ciência, educação?” Adorno reforça o que, de certa forma, suspeitamos em nossas reflexões. Segundo ele, há ainda uma espécie de manifestação invisível nos dias de hoje como resquícios de um projeto, anteriormente confiado como sendo o verdadeiramente humano, mas que se mostra incompatível ao que seria próprio aos homens e mulheres emancipados, vivendo democraticamente numa sociedade dos dias

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de hoje. Trata-se, pois, em realidade, de algo aterrorizante, mas que uma vez já aconteceu! Num outro texto Educação – para quê? Adorno assevera que educar não é ‘modelar’ pois, “[...] não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior” (2000, p. 141); nem seria educação aquilo que fazemos quando somente transmitimos conhecimentos, coisas mortas, mas, fundamentalmente trata-se da “[...] produção de uma consciência verdadeira” (idem), própria de pessoas emancipadas, aquelas condizentes com a vida em democracia. Para Adorno (2000, p. 142) “As tendências de apresentação de ideais exteriores que não se originam a partir da própria consciência emancipada, ou melhor, que se legitimam frente a essa consciência, permanecem sendo coletivistas-reacionárias”. E tudo isso sinaliza perigo para a humanidade. Para o autor, então:

[...] desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade (ADORNO, 2000, p. 155).

Nessa passagem o autor denuncia o desvio da ideia de ‘formação’ que, segundo ele, deveria comprometer-se com ‘civilização’. Além disso, ele aponta para alguns problemas cruciais, não obstante a época que escreveu, os quais vemos radicalizarem-se em assustadora violência nos dias de hoje. Adorno parte assim para a reivindicação do papel principal da educação, a seu ver, aquela que deve buscar a realização da auto-reflexão crítica, o desenvolvimento do esclarecimento e a busca pela emancipação. Por outra via de discussão, encontramos Paulo Freire buscando delinear o

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que seria próprio a uma educação efetivamente libertadora, e assevera:

É uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razões que explicam este descaso em torno do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender (FREIRE, 2011a, p. 44, grifos nossos).

Freire argumenta em favor do ‘clima formativo geral’ presente em cada canto da escola, a ecologia escolar. Trata-se ainda do ‘conhecimento escolar’ que é diferente de conteúdos objetivamente empacotados para serem transmitidos. Há outros elementos formadores vagueando nos espaços escolares e que tocam os educandos, são absorvidos por eles, sendo igualmente formativos. Assim, o autor denuncia o descaso que ocorre frente a esses aspectos do ensinamento escolar e que são deveras importantes para os educandos, muitas vezes, inseguro, fugidio e tímido dentro da sala de aula, mas que correm e brincam em outros espaços internos da escola. O autor chama a atenção para o ensaio ético e estético da docência, esta que é permeada por significações que são oriundas da ambientação educativa maior, em que sentimentos, emoções, desejos, etc. se entrecruzam em seu cotidiano. É preciso prestar atenção a esse ambiente global de aprendizagens, em que a (de)formação se dá. Seguindo esse raciocínio, observamos que Freire não acredita no exclusivo papel educativo da transmissão de conteúdos como aquela que possa garantir sozinha a culminância da realização humana. Em outra obra, Pedagogia da esperança (2011b), Freire menciona outro aspecto merecedor da atenção em relação ao ‘educar’ as crianças. Conta-nos sobre algumas situações de castigos imputados à elas em algumas das regiões nordestinas.

Os castigos nas demais áreas variavam entre pôr as crianças amarradas em um tronco de árvore, prendê-las durante horas em um quarto, dar-lhes ‘bolos’ com grossas e pesadas palmatórias, pô-las de joelhos sobre caroços de milho, surrá-las com correia de couro. Este último era o castigo preponderante em uma cidade da Zona da mata, famosa por sua fabricação de calçados (FREIRE, 2011b, p. 30).

Continua o autor:

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Por motivos triviais se aplicavam esses castigos e se dizia com frequência [...]: ‘Castigo duro é que faz gente dura, capaz de enfrentar a crueza da vida. Pancada é que faz homem macho.’ Uma de minhas preocupações, na época, tão válida ontem quanto hoje, era com as consequências políticas que um tal tipo de relação pais-filhos, alongando-se depois nas relações professores-alunos, teria com vistas ao processo de aprendizagem de nossa incipiente democracia. Era como se a família e escola, completamente subjugadas ao contexto maior da sociedade global, nada pudessem fazer a não ser reproduzir a ideologia autoritária (idem, p. 31, grifos nossos).

Não podemos ficar indiferentes ao relacionarmos tais descrições com situações de ‘formação’, senão com o seu contrário! São conhecidas as análises de Michel Foucault aproximando as escolas às prisões, hospitais e a outras instituições, pelas semelhanças em suas estruturas, seus regimes, seus procedimentos disciplinares, dentre outras. Quanto aos castigos assim se posiciona:

O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve portanto ser essencialmente corretivo. Ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário (multas, açoite, masmorra), os sistemas disciplinares privilegiam as punições que são da ordem do exercício – aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido [...] (Foucault, 2002, p. 150).

Citando La Salle, Foucault (idem, ibidem) traz exemplos menos dramáticos do que aqueles descritos por Freire. Vejamos:

O castigo escrito é, de todas as penitências, a mais honesta para um mestre, a mais vantajosa e a que mais agrada aos pais: [permite] tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos corrigindo-lhes os defeitos; [àqueles, por exemplo], que não houverem escrito tudo o que deviam escrever, ou não se aplicarem para fazê-lo bem, se poderá dar algum dever para escrever ou para decorar.

Chegamos a um outro ponto na discussão que pode nos levar a situações de constrangimentos, violência, bullying, presentes nas escolas e que concorrem para que os ideais da ‘formação’ não se realizem, mas que, como preocupou-se Freire, podem servir muito bem para reforçar a ideologia autoritária, incompatível com a democracia.

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E, então, pergunto: “Onde encontrar o modelo ideal para ‘formar’ meninos e meninas? Haveria esta FORMA verdadeiramente bem sucedida para o ser humano, Ceppas, contra a qual se assim agíssemos desencadearíamos a deformação?” Encontraríamos tal padrão na Natureza? Assim como pensou Rousseau, mas que na visão do genebrino já fora perdida nos caminhos da Civilização, tão descuidada pelos ‘formadores’?! Ou, teríamos como projetá-la no devir de nossa existência, esquecendo os malfeitos já realizados no processo humanizatório? Há esperança para o humano? Como o título do livro sugere, Freire em sua Pedagogia da esperança (2011b, p. 14), insiste que “[...] a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo em que não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo”. Podemos ainda falar em formação nos termos exigentes que anunciamos em nossa discussão, ou somente nos restaria falar de formação profissional num sentido funcional, articulado ao sistema? Mas, esse “profissional” assim formado somente se incumbiria de formar outros profissionais? É isto que resta ao humano? Educar o homem, eis o desafio. Mas, quantos aspectos devemos levar em conta para, de fato, não o deformarmos, em nome de posturas ardilosas para que o seu desenvolvimento de uma certa forma aconteça. Carlos Drumond de Andrade em publicação no Jornal do Brasil (1974) defende a formação poética desde a infância, pois acredita que:

Alguma coisa que se bolasse nesse sentido, no campo da Educação, valeria como corretivo prévio da aridez com que se costu-ma transcrever os destinos profissionais, murados na especialização, na ignorância do prazer estético, na tristeza de encarar a vida como dever pontilhado de tédio.

E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?

Para finalizar, gostaria de articular o sentido da formação à defesa na plasticidade, na educabilidade do homem realizada de forma coletiva, manifestando-se como um ser moldável, em momentos moldado, moldador, mas isso feito num processo permanente de feitura não definitiva, educando-se sempre e continuamente, correndo os riscos de viver. Talvez, ao evitarmos o que temos por deformações, podemos evitar também a prática da vida, onde o improvável é capaz de acontecer. Às vezes, em nome da busca da formação, insiste-se numa FORMA

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determinada, no seguro, no conceito, no horror à vida. Partindo das reflexões provocadas pelo seu texto, Ceppas, parece-me que há sempre o risco do informe nas ações educativas. Mas, isso deveria ser sempre corrigido com muita diligência e atenção especiais? Tratar-se-ia da aventura de experimentar a humanidade? Seria isto ‘educação’? Confesso que encerro este texto com muita angústia, mas que sossega, mais uma vez com a leve e, ao mesmo tempo, aguda poesia de Carlos Drummond de Andrade (2013), no verso que diz:

O professor disserta sobre ponto difícil do programa.

Um aluno dorme,

Cansado das canseiras desta vida.

O professor vai sacudi-lo?

Vai repreendê-lo?

Não.

O professor baixa a voz,

Com medo de acordá-lo.

Obrigada.

Em: 10/05/13

REFERÊNCIASADORNO, T. W. Educação após Auschwitz; Educação – para quê? IN: Educação e emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.ANDRADE, C. D. Poemas de Carlos Drumond de Andrade. Disponível em: http://casadasfrases.net/categoria/poemas-de-carlos-drummond-de-andrade/2/. Acesso em: 30/09/2013.______. A educação do ser poético. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro – RJ, 20/07/74.BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.DEWEY, J. Democracy and education. New York: The Free Press; London: Collier Macmillan Publishers, 1966.EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Tradução: H. P. de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.FOUCAULT, M. Vigiar e punir – nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.FREIRE, P. Cartas à Cristina. São Paulo: Editora UNESP, 2002.______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2011a.______. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 2011b.ROUSSEAU, J.J. Emílio ou da educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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ANEXO

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