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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA UNICURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO stricto sensu MESTRADO EM DIREITO LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO CURITIBA 2018

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA – UNICURITIBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO stricto sensu – MESTRADO EM DIREITO

LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR

A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E

CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO

CURITIBA

2018

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LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR

A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E

CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO

Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em

Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário

Curitiba – UNICURITIBA como requisito parcial para a

obtenção do Título de Mestre em Direito.

Professor Orientador: Doutor Fábio André Guaragni.

CURITIBA

2018

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LUIS OTÁVIO SALES DA SILVA JUNIOR

A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO: PERTINÊNCIA E

CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em

Direito pelo Centro Universitário Curitiba.

Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

Presidente:

__________________________________________

DR. FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI

__________________________________________

DR. RODRIGO SÁNCHEZ RIOS

__________________________________________

DR. RODRIGO RÉGNIER CHEMIM GUIMARÃES

Curitiba, 4 de junho de 2018.

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..o mundo moderno não consegue conciliar liberdade e

igualdade. Mas isso não é um defeito. Tais contradições são

inerentes a toda cultura humana. Na verdade, são aquilo que

move a cultura, responsáveis pela criatividade e dinamismo da

nossa espécie. Da mesma forma que duas notas musicais

discordantes tocadas ao mesmo tempo colocam em

movimento uma composição musical, a dissonância em nossos

pensamentos, ideias e valores nos compele a pensar, reavaliar

e criticar. A consistência é o parque de diversões das mentes

entorpecidas.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da

humanidade. 29.ed. Porto Alegre: L&PM, 2017. p. 173.

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RESUMO

Busca-se nesta investigação discutir o problema hermenêutico do conflito aparente de normas,

notadamente a consunção, no contexto do direito penal socioeconômico. Em se tratando de um

âmbito repressivo com particularidades político-criminais e dogmáticas, cujo efeito mais

sensível é o aumento aritmético de preceitos incriminadores, acentuam-se desafios de

subsunção jurídica, notadamente os fenômenos do concurso próprio e impróprio. Em um

cenário em que a sobreposição típica é frequente, cabe demarcar as diferenças de ambos os

institutos, aplainando eventuais obstáculos e divergências a fim de tornar menos tortuosa a

tarefa do intérprete. Entre esses desafios, está a questão da unidade ou pluralidade de condutas

típicas como pressuposto do conflito aparente e a noção de unidade delitiva complexa.

Investigam-se, ainda, os fundamentos hermenêuticos e dogmáticos que impelem o intérprete a

reconhecer a unidade de lei, para além de valores de pouca concreção como justiça ou equidade.

Apesar da razoável discricionariedade judicial ínsita ao exame da consunção, de natureza

marcadamente axiológica/valorativa, convém delimitar critérios que tornem mais estável e

previsível a operação de absorção material de uma norma incriminadora por outra. Entre eles,

apontam-se o desvalor da ação e o desvalor do resultado dos injustos em iteração valorativa,

haja vista a inclinação do moderno direito penal a fins político-criminais, sem se prescindir,

porém, da referência a bens jurídicos (adota-se, portanto, o funcionalismo teleológico de

Roxin). Após, apresentam-se as principais regras de resolução de conflito aparente de normas,

suas diferenças e casos práticos no âmbito do direito penal econômico. A regra da consunção,

objeto central desta investigação, é analisada em um capítulo à parte, onde se abordam sua

natureza, pressupostos, divergências dogmáticas e jurisprudenciais e casos clássicos, além de

uma análise mais detida das categorias do desvalor da ação e do desvalor do resultado. Ao fim,

analisam-se casos extraídos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em que se

discutiu a aplicação da consunção entre delitos socioeconômicos, tanto para demonstrar a

permanente divergência de compreensão em âmbito pretoriano, como para testar os critérios

abordados. Estudou-se a interação material entre os seguintes delitos: supressão tributária e

falsidade ideológica, obstrução de regeneração natural de vegetação e construção em solo não

edificável, gestão fraudulenta de instituição financeira e apropriação de ativos, ausência ilegal

de licitação e peculato de prefeito, e, por fim, lavagem e seu correspondente crime antecedente.

Palavras-chave: direito penal econômico, conflito aparente de normas, consunção, desvalor da

ação, desvalor do resultado, bis in idem material.

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ABSTRACT

In this investigation, we seek to discuss the hermeneutic problem of the apparent conflict of

norms, especially consumption, in the context of socioeconomic penal law. In the case of a

repressive scope with political-criminal and dogmatic peculiarities, whose most sensitive effect

is the arithmetical increase of incriminating conducts, challenges of juridical subsumption,

especially the phenomena of the proper and improper contest, are accentuated. In a scenario

where the criminal overlapping is frequent, it is necessary to demarcate the differences of both

institutes, resolving eventual obstacles and divergences in order to make the interpreter's task

less tortuous. Among these challenges is the question of the unity or plurality of criminal

behaviors as a presupposition of apparent conflict and the notion of complex unit of criminal

offenses. It is also investigated the hermeneutic and dogmatic foundations that impels the

interpreter to recognize the unity of law, in addition to values of little concretion like justice or

equity. In spite of the reasonable judicial subjectivity involved in the examination of the

consumption, of a highly axiological/evaluative nature, it is necessary to delimit criteria that

make the operation of material absorption of one incriminating norm by another more stable

and predictable. Among them, we point out the devaluation of the action and the devaluation

of the result of the unjust in value iteration, due to the inclination of the modern criminal law

for political-criminal purposes, without neglecting, however, the reference to juridical assets

(we adopt, therefore, Roxin's teleological functionalism). Afterwards, the main rules for the

resolution of apparent conflict of norms, their differences and practical cases in the field of

economic criminal law are presented. The rule of consumption, the central object of this

investigation, is analyzed in a separate chapter, which discusses its nature, assumptions,

dogmatic and jurisprudential divergences and classic cases, as well as a more detailed analysis

of the categories of the devaluation of the action and the devaluation of the result. Finally, we

analyze cases extracted from the jurisprudence of the Superior Court of Justice in which the

application of the consumption between socioeconomic crimes was discussed, both to

demonstrate the permanent divergence of understanding in praetorian scope, and to test the

criteria. The material interaction between the following crimes was studied: tax suppression

and falsehood, obstruction of natural regeneration of vegetation and not buildable soil

construction, fraudulent financial institution management and ownership, absence of public

competition and illegal embezzlement committed by the Mayor, and, finally, money laundering

and your corresponding antecedent crime.

Keywords: economic criminal law, apparent conflict of norms, consumption, devaluation of

the action, devaluation of the result, material bis in idem.

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ABREVIATURAS

ACR – Apelação Criminal

AgRg – Agravo Regimental

AgRg em REsp – Agravo Regimental em Recurso Especial

AREsp – Agravo em Recurso Especial

art. – artigo

CF – Constituição Federal de 1988

cf. – conforme

CP – Código Penal

DPE – direito penal econômico ou socioeconômico

HC – Habeas Corpus

i.e. – isto é

p.ex. – por exemplo

REsp – Recurso Especial

RExt – Recurso Extraordinário

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

tn – tradução nossa

TRF4 – Tribunal Regional Federal da 4ª Região

v.g. – Verbi gratia

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 10

1 O DIREITO PENAL ECONÔMICO E O CONFLITO APARENTE DE NORMAS ............... 13

1.1 O DPE NO MARCO DE UM DIREITO PENAL NORMATIVIZADO: CONSIDERAÇÕES

PRELIMINARES .............................................................................................................................. 13

1.2 PRINCIPAIS FATORES DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO ................. 15

1.2.1 A proteção penal da atividade econômica: das origens ao Estado de bem-estar social ....... 16

1.2.2 Direito penal do risco: apontamentos sociológicos ............................................................. 19

1.2.3 O bem jurídico: ordem econômica latu sensu como critério identificador do DPE ............ 23

1.3 DIREITO PENAL ECONÔMICO: ENTRE LEGITIMIDADE E SUBVERSÕES ................... 26

1.4 FUNÇÃO PROMOCIONAL DO DPE ....................................................................................... 31

1.5 O CENÁRIO DO DPE COMO REFORÇO DA INCIDÊNCIA DO CONFLITO APARENTE

DE NORMAS ................................................................................................................................... 33

2 O CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS E O CONCURSO DE CRIMES............ 38

2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ...................................................................................... 38

2.2 CONCEITO DE UNIDADE DE AÇÃO PARA A TEORIA DO CONCURSO ........................ 43

2.3 AÇÃO, RESULTADO E FATO PUNÍVEL NA TEORIA DO CONCURSO ........................... 49

2.3.1 Ação punível vs. fato punível .............................................................................................. 51

2.4 CONCURSO DE LEIS E DE CRIMES: DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS ........................... 54

2.4.1 Unidade ou pluralidade de ação como pressuposto do concurso impróprio? ...................... 57

3 OS CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO DO CONFLITO APARENTE DE NORMAS ...................... 62

3.1 FUNDAMENTAÇÃO HERMENÊUTICA E DOGMÁTICA ................................................... 62

3.2 OS CRITÉRIOS EM ESPÉCIE .................................................................................................. 71

3.2.1 Relações lógico-formais: a contribuição de Ulrich Klug .................................................... 76

3.2.2 Especialidade ....................................................................................................................... 80

3.2.3 Subsidiariedade .................................................................................................................... 83

3.2.4 Consunção ........................................................................................................................... 89

4 A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO ........................................................... 90

4.1 CONSUNÇÃO: DELIMITAÇÃO .............................................................................................. 90

4.1.1 Atos típicos acompanhantes e atos posteriores coapenados (ou copunidos) ....................... 97

4.1.2 Desvalor da ação e desvalor do resultado: critérios de aplicação da consunção ............... 101

5 CASUÍSTICA: A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ............ 110

5.1 Sonegação fiscal e falsidade ideológica .................................................................................... 110

5.2 Empreendimento causador de dano à unidade de conservação ambiental mediante a conduta de

impedir regeneração de floresta ...................................................................................................... 115

5.3 Apropriação de valores de instituição financeira e gestão fraudulenta ..................................... 118

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5.4 Ausência ilegal de licitação e peculato de prefeito ................................................................... 126

5.5 Lavagem, exaurimento do crime antecedente e consunção ...................................................... 132

5.6 Corrupção e delitos econômicos ............................................................................................... 139

CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 144

REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 152

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INTRODUÇÃO

Nota-se uma inversão de sinal na atenção dispensada pela sociedade e pelos organismos

de repressão aos crimes ditos de baixa visibilidade. Não apenas em razão das cada vez mais

comuns operações de investigação criminal contra detentores de poder político ou econômico,

mas pela crescente assimilação de demandas punitivas socioeconômicas pelas economias de

mercado ocidentais. Vem perdendo o gume o discurso de resistência contra a expansão do

direito penal em áreas de relacionamento social até então dele apartadas. Cresceu o catálogo de

interesses sob intervenção penal; intensificaram-se as formas de proteção; a reação penal foi

antecipada para estágios prévios à ocorrência efetiva do dano; aumentaram os deveres de

cuidado no exercício de atividades que envolvam o outro, tudo a revelar que o normativismo

segue superando o ontologicismo.

O cenário, enfim, é de expansão do direito penal (ao menos o simbólico, produto de

atividade legislativa – não se percebe compromisso com eventual descriminalização), para o

que contribuem ambas as instâncias de criminalização, primária e secundária. Mas os aspectos

sociais, econômicos e jurídicos que, se bem legitimam a intervenção pública sob a arrojada e

portentosa mecânica do direito penal econômico, afetam sensivelmente as estruturas do sistema

jurídico penal estabelecido. A escalada do direito penal econômico desorganiza o discurso

jurídico-penal tradicional e cobra releitura das categorias dogmáticas clássicas moldadas para

os problemas sociais de ontem.

O reforço de tutela penal imposto pelo direito penal econômico conflui fatalmente para

o aumento aritmético de preceitos incriminadores, facilitando o trânsito de cargas penais

deliberadamente literalistas e, bem por isso, destemperadas, como se o exercício de

interpretação jurídico-penal se resumisse à subsunção mecânica e meramente linguística do fato

à norma. Num cenário de profusão típico-normativa, já não se terá como certa a existência de

uma norma incriminadora específica para cada fato punível concreto; mais provável é a ameaça

de punição por uma variedade de preceitos penais que, se não examinados em conjunto desde

uma relação lógica e/ou valorativa, podem determinar uma reprovação penal repetida e

desproporcional, a despeito de eventual força atrativa que mantêm entre si, a recomendar o

descarte de um pelo outro.

Não obstante o direito penal econômico tenha lugar cativo no rol de opções para o

tratamento normativo dos problemas socioeconômicos atuais, a axiologia constitucional e a

matriz democrática cobram atenção para eventuais excessos e desvios de finalidade no exercício

do poder punitivo. Surge revigorado, então, o problema da teoria do concurso, quer o próprio

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(material, formal e crime continuado), quer o impróprio (conhecido também como unidade de

lei ou conflito aparente), com o que eclode a questão da proporcionalidade e a preocupação com

a criação de mecânicas para atrelar forma a conteúdo.

O problema hermenêutico do conflito aparente de normas penais acaba também

reavivado. Em apertada síntese, trata-se da superposição em tese de tipos penais relativamente

a um mesmo fato punível, sobre o qual deve incidir, ao fim, a norma (ou as normas) que melhor

espelha o desvalor global do episódio delitivo. Isso se obtém com a depuração lógica ou

valorativa dos injustos virtualmente concorrentes. Um sistema normativo que olvida a

possibilidade de as normas incriminadoras se acharem em relação de subordinação,

interferência ou atração valorativa, como se fossem entidades autônomas e isoladas, não poderia

ser qualificado como tal.

Como o conflito aparente e o seu antagonista, o concurso próprio, são uma constante no

âmbito da criminalidade socioeconômica, torna-se premente realçar os traços distintivos de

cada hipótese. Igualmente fundamental é o estudo da consunção, regra de resolução de concurso

impróprio que, por sua índole valorativa/axiológica, apresenta áreas de indeterminação e está

em constante aperfeiçoamento. A agravar o cenário, há sensível divergência na inteligência

jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tratamento de casos similares e à

previsão de pressupostos gerais relativamente à consunção. A sondagem de critérios que

possam tornar razoavelmente previsível a subsunção jurídica material de episódios insertos no

âmbito do direito penal econômico está em harmonia com as balizas de pesquisa

sustentabilidade e cidadania, pois com a discussão da pertinência e aplicação da consunção se

almeja, sobretudo, segurança e controle do poder punitivo na aplicação do DPE, em atenção ao

regime democrático e às liberdades.

A presente investigação prioriza o método lógico-dedutivo, embora os capítulos finais

revelem traços do método indutivo, ante a consideração de precedentes jurisprudenciais para a

construção do conhecimento. Fundamentalmente, questionam-se a identidade dogmática da

categoria da consunção, quanto ela interessa no contexto da expansão do DPE e os possíveis

caminhos para tornar seu reconhecimento mais preciso e estável. O caminho epistemológico

escolhido abrange, num primeiro momento, o exame da consolidação do direito penal

econômico em seu formato atual, a legitimidade de sua expansão sob a égide de um Estado

prestacional e de um sistema econômico de conexões sociais anônimas, bem assim, a

necessidade de atrelar ganho qualitativo a ganho quantitativo no âmbito da delinquência

socioeconômica, restringindo-se a margem de excesso e de abuso na censura penal. Num

segundo momento, abordam-se dificuldades teóricas relativas à identificação do conflito

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aparente de normas, seus pressupostos e diferenças principais com o concurso próprio. Busca-

se, também, aplainar obstáculos e divergências dogmáticas que dificultam a compreensão e a

dimensão prática dessa temática.

Num terceiro momento, a pesquisa se ocupa das razões pelas quais o intérprete estaria

impelido a reconhecer a unidade de lei, em especial a regra da consunção, o que envolve a

investigação dos fundamentos hermenêuticos e dogmáticos últimos para o exame da interação

lógica e valorativa entre os injustos penais em concurso aparente. Enfrenta-se, também, a

questão da discricionariedade judicial diante de mecanismos hermenêuticos de natureza

valorativa/axiológica, que por sua própria natureza trazem consigo certo subjetivismo e

incerteza, como é o caso da consunção. Conclui-se o terceiro capítulo com a apresentação das

principais regras de resolução do conflito aparente de normas, seus fundamentos e

características, além de exemplos práticos no âmbito do DPE.

O quarto capítulo é dedicado ao exame pontual da consunção, objeto central da pesquisa,

e abrangerá sua natureza, definição, pressupostos, pontos controvertidos e os casos clássicos

que conduziram à sua compreensão atual. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

ilustrará as divergências permanentes quanto aos requisitos para se reconhecê-la na prática. Ao

fim, serão esboçados critérios para sistematizar a aplicação da consunção e aumentar sua

operacionalidade como ferramenta hermenêutica de correção de excesso, não, naturalmente,

com a pretensão de se oferecer uma resposta final, mas para pelo menos apontar possíveis saídas

ou caminhos dogmáticos. No capítulo final, a pesquisa será ilustrada com casos práticos

recorrentes de DPE extraídos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, envolvendo

delitos socioeconômicos, a fim de testar os critérios sugeridos e, principalmente, expor as

principais dificuldades e pontos obscuros que ainda pendem de aclaramento pela literatura

especializada.

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1 O DIREITO PENAL ECONÔMICO E O CONFLITO APARENTE DE NORMAS

1.1 O DPE NO MARCO DE UM DIREITO PENAL NORMATIVIZADO:

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O denominado “direito penal econômico” ou “direito socioeconômico” não supõe um

distinto e autônomo ramo do direito penal, mas sim, um subsistema com características

peculiares e formulações próprias em relação ao direito penal nuclear (dedicado à proteção da

vida, liberdade, patrimônio etc.), sem que isso sugira ruptura plena com os fundamentos do

discurso jurídico-penal clássico1. Vale dizer, o DPE é um setor inserto no direito penal tal como

este é conhecido. Apesar, porém, da inexistente autonomia científica, a peculiaridade do objeto

de estudo desse setor do ordenamento jurídico-repressivo (entendido em sentido lato como

delitos socioeconômicos) e seus problemas penais específicos impeliram a doutrina a construir

uma parte geral própria, sistematizando os traços comuns dessa particular família de delitos2.

Silva Sánchez observa que os problemas práticos relacionados ao direito penal

econômico estão por trás das tensões e reformulações das instituições clássicas da teoria do

delito, e renovam a demanda de elaboração de obras doutrinárias de parte geral que deem conta

dos problemas específicos de DPE em vista de soluções mais “justas”3. A reconfiguração

teórica de instituições dogmáticas determinada por situações concretas inéditas é um dos

aspectos que demarcam os caminhos epistemológicos distintos das ciências dogmáticas e das

ciências experimentais ou exatas. Enquanto nestas a presença de uma exceção (“cisne negro”)

revela a falsidade de uma dada teoria, segundo a fórmula: “a exceção refuta a regra”, nas

ciências do espirito admite-se, em linguagem ordinária, “a confirmação da regra pela exceção”,

sem invalidação da teoria ordinária4. O ponto é que o conjunto de casos particulares ao DPE

cobra a releitura de categorias clássicas do direito penal, a partir de agora mais abertas pela via

da “normativização”5.

1 MARTÍNEZ-BUJÁN, Carlos Pérez. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Valencia: Tirant lo

Blanch, 2016. p. 77 (tn). 2 CAVERO, Percy García. Derecho Penal económico: parte general. 3ª ed. Lima: Jurista Editores, 2014.

p. 104. 3 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Fundamentos del Derecho Penal de la Empresa. 2.ed. Madrid:

Edisofer S.L. Montevideo-Buenos Aires: B de F Ltda., 2016. pp. 3-4. 4 SILVA SÁNCHEZ, 2016, pp. 5-6. 5 SILVA SÁNCHEZ, 2016, pp. 7 e 92; MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 75. Com isso se afirma que o direito

penal tem relativizado a exigência de estruturas ontológicas rígidas para a construção do sistema de imputação; a

“normativização” dos conceitos jurídicos penais permite a orientação da intervenção penal a finalidades de política

criminal. Assim, também: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al

Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J.M. Bosch Editor S.A, 1992. p. 64.

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Pelo menos até agora, não prosperaram as propostas político-criminais de Silva Sánchez

e da escola de Frankfurt6 relativamente a um direito sancionador distinto para a gama de crimes

que notabilizam o direito penal contemporâneo. Para o primeiro, razoável seria um direito penal

de distintas “velocidades”: em se tratando de infrações penais a bens jurídicos personalíssimos

a que se comine pena de prisão (direito penal nuclear), devem valer com todo o vigor as regras

clássicas de imputação e os princípios-garantia tradicionais; já quanto às infrações penais

socioeconômicas erigidas sob a noção de ameaças potenciais (gestão de riscos) a interesses não

individualizáveis (direito penal “intervencionista”), admitir-se-ia um sistema de imputação

mais flexível ou menos rigoroso7. Para a segunda corrente de pensamento, em apartada síntese,

o caminho seria a instituição de um “direito da intervenção”, ramo autônomo entre o direito

civil e o público para ilícitos em matéria de drogas, econômicos, ecológicos etc., igualmente

menos pretencioso em relação a garantias materiais e processuais, desde que as sanções por ele

previstas sejam menos intensas; ao direito penal somente caberia proteger condutas contra bens

jurídicos individuais8. De qualquer forma, o que se tem percebido é a efetiva modernização do

direito penal e a revisão de suas categorias clássicas, provocadas, especialmente, pela ampliação

do catálogo de crimes socioeconômicos, antecipação da proteção e pelos novos interesses

colocados sob sua tutela9.

Com a pretensão de apenas apresentar o assunto, pode-se se exemplificar a distensão do

direito penal clássico com a proliferação de crimes comissivos por omissão e de imprudência

(relacionados invariavelmente à infração de deveres), a presença de uma maior densidade

regulatória extrapenal pela difusão de técnicas de reenvio e de tipos penais abertos (leis penais

em branco, elementos normativos de conteúdo jurídico e elementos de valoração global do

fato)10, além da antecipação da proteção penal com dispensa de resultado lesivo concreto,

6 Não se pode olvidar que essa denominação reúne autores diversos “com claras diferenças ideológicas e

metodológicas, talvez com o único acordo comum de rechaçar a normativização das categorias dogmáticas por

parte das propostas funcionalistas”. (CAVERO, 2014, p. 2014 – tn). 7 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión de Derecho penal: aspectos de la política criminal en

las sociedades postindustriales. 2. ed. revisada y ampliada. Madrid: Civitas, 2001. p. 149 et seq. 8 HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do direito penal. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, São Paulo, v. 6, n. 22, p. 27-35., abr./jun. 1998. pp. 33-35. Ainda sobre o modelo de

Hassemer, confiram-se: CAVERO, 2014, pp. 82-83 e MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 83. É preciso pontuar, porém,

que talvez não seja de todo correto concluir pela inviabilidade dessa ideia. Pensem-se nas leis de improbidade

administrativa (Lei nº 8.429/92) e de anticorrupção (Lei nº 12.846/13), que sem prever penas privativas de

liberdade, ainda assim são drasticamente invasivas. 9 MOCCIA, Sergio. De la tutela de bienes a la tutela de funciones: entre ilusiones postmodernas y reflujos

iliberalies. In: SILVA SÁNCHEZ (ed.). Política criminal y nuevo Derecho Penal. Libro Homenaje a Claus

Roxin. Barcelona: J.M. Bosch Editor, 1997. pp. 113-142 (p. 117). Não se olvide, contudo, o cabimento de penas

restritivas de direito e dos benefícios penais da Lei 9.099/95 para uma ampla gama de crimes econômicos, como

os previstos no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). 10 SILVA SÁNCHEZ, 2016, p. 9.

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conjugada com a ampliação da gama de interesses tutelados pelo direito penal, agora gestor de

riscos sociais (o que se designa por “administrativização”11). Tudo porque o ambiente político

criminal de agora não é mais tanto de reprovação de fins (dolo direito de matar, p.ex.), mas de

censura aos meios e aos seus efeitos indesejados, não obstante a legitimidade e aceitação social

dos fins (empreendedorismo). Conforme Martínez-Buján, os bens jurídicos peculiares ao

direito penal econômico têm “natureza conflitual”, que corresponde ao aspecto de as fontes de

risco provirem de atividades lícitas e socialmente necessárias, que o Estado não pode proibir,

apenas controlar12.

Nessa toada, é um lugar-comum a constatação de que a matriz teórica do direito penal

econômico é marcadamente normativista (“funcionalismo normativista”13), não se mostrando

mais funcional o modelo clássico doloso de ação, assentado sobre noções de causalidade

empírica14. As teorias normativas têm mostrado melhor “capacidade de rendimento” na

construção das categorias jurídico-penais para a apreensão dos novos fenômenos de dano social,

em particular aqueles em que inexiste uma conexão “espaço-temporal” perceptível entre

conduta e dano15, por mitigarem a necessidade de referenciais ontológicos. Esse realinhamento

com o neokantismo (aqui tomado como o esmorecimento de exigências físico-causais para a

imputação de crimes e a inclinação ao mundo do dever-ser) não pode ser analisado sem se

abordar alguns dos aspectos jurídicos e sociológicos que explicam a expansão inaudita do DPE.

1.2 PRINCIPAIS FATORES DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO

Antes de se indicarem as particularidades do DPE mais sensíveis ao conflito aparente

de normas (sobretudo quanto à regra resolutiva da consunção), convém tecer breves

comentários sobre as principais razões da expansão do direito penal econômico, bem assim,

acerca da intensificação da intervenção penal em áreas tradicionalmente ignoradas. E, em um

momento posterior, cabe abordar, pelo menos em linhas gerais, a legitimidade da intensificação

da criminalização primária em âmbito socioeconômico. Naturalmente, o enfoque deste trabalho

11 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 121 et seq. 12 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 190 (tn). 13 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciência jurídico-

penal alemana. Anuario de derecho penal y ciencias penales, tomo 49, fasc./mes 1, 1996. pp. 187-218 (p. 206). 14 SILVA SÁNCHEZ, 2016, p. 10. 15 SILVA SÁNCHEZ, 2016, p. 12.

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16

estreita as divisas de investigação, o que permite uma visão apenas panorâmica dos atributos

do direito penal moderno, do qual se recorta particularmente o espectro socioeconômico16.

1.2.1 A proteção penal da atividade econômica: das origens ao Estado de bem-estar social

O formato atual do DPE perpassa a consolidação da economia de mercado como sistema

econômico hegemônico da sociedade globalizada17. A tutela penal da ordem econômica,

estruturada com base na noção de bem jurídico supraindividual, era impensável na lógica

liberal-burguesa do século XIX. O modelo jurídico surgido a partir do contratualismo e do ideal

burguês era predominantemente individualista e patrimonialista, orientado à limitação da

intervenção estatal sobre a esfera individual, não havendo lugar para a elaboração de

construções coletivistas, até pela inexistente vocação promocional do Estado liberal18. É nessa

época que se concebe a “teoria monista-individualista de bem jurídico”19, elemento essencial

de identificação do direito penal clássico ou nuclear.

O arranjo econômico de então é assim sintetizado por Dotti: “o Estado deve se abster da

intervenção nas relações do setor de aquisição, venda, troca e demais contratos, os quais devem

ter suas cláusulas regidas pela lei da oferta e da procura e da livre iniciativa dos indivíduos”20.

Guaragni arremata sobre o Estado liberal-burguês: “Vida, liberdade e patrimônio, nestes

termos, são a tríade em função da qual o estado existe. O dever estatal é preservá-los. No mais,

o Estado não deve intervir na vida privada.”21 Nesse ambiente ideológico de antagonismo

visceral entre indivíduo e Estado não havia espaço para um direito penal econômico estruturado

sobre interesses metaindividuais (i.e, supraindividuais)22. Não que inexistissem normas de

proteção de caráter supraindividual, como a punição das práticas de monopólio ou ofensivas à

propriedade industrial, mas isso se devia à compreensão de que ao Estado não cabia um papel

16 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, pp. 80 e 83. É lugar-comum a referência de que o direito penal moderno é

composto por setores que demandam a revisão das categorias jurídicas clássicas, como o direito penal econômico,

do consumidor, ambiental, do trabalho etc. 17 O que não significa que em regimes socialistas ou de economia planificada o DPE fosse uma

excentricidade; muito pelo contrário, foi utilizado plenamente, mas no formato de direito penal econômico

administrativo, valer dizer, DPE em sentido estrito ou de primeira geração. 18 GUARAGNI, Fábio André. Direito Penal Econômico: antecedentes medievais e sua primeira geração no

contexto da modernidade. In: BUSATO, Paulo César; PLACHA SÁ, Priscilla; Scandelari, Gustavo (coords).

Perspectivas das ciências criminais: coletânea em homenagem aos 55 anos de atuação professional do Prof.

René Ariel Dotti. Rio de Janeiro: LMJ. Mundo Jurídico, 2016. p. 719. 19 SCHÜNEMANN, 1996, p. 192. 20 DOTTI, René Ariel. O Direito Penal Econômico e a proteção do Consumidor. Curitiba: Ghignone,

1982. p. 13. 21 GUARAGNI, 2016, p. 725. 22 GUARAGNI, 2016, p. 726.

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17

ativo na melhora das condições econômicas dos indivíduos, devendo apenas garantir a

preservação das regras de mercado contra os abusos de seus participantes23. De qualquer forma,

na lógica liberal essa tarefa era reservada ao direito administrativo, não ao direito penal.

Com o irrompimento das doutrinas sociais no final do século XIX, em reação à projeção

acentuada da burguesia, cresceu a demanda por igualdade social e sedimentou-se o “discurso

que, no início do século XX, seria meneado como bandeira para a constituição de um estado

forte, interventor, moldado em exato oposto ao estado liberal que o antecedeu.”24 A revolução

de 1917, na Rússia, representou a implantação de um modelo econômico de forte intervenção

estatal que contrapôs a doutrina liberal de igualdade formal, com progressiva influência sobre

a Europa ocidental. Os estados interventores surgidos após a primeira guerra mundial

compartilhavam a mecânica de forte intervenção na vida econômica, “controlando

minuciosamente o ciclo da produção e distribuição de bens e serviços levado a termo na esfera

privada”25. Foram modelos de estado que impuseram suas ordens econômicas, inclusive por

meio do ordenamento jurídico-penal, para garantir o sucesso das atividades interventoras e da

própria preservação do modelo econômico26.

Nesse ambiente surge o direito penal econômico em sua primeira geração, destinado à

tutela do bem jurídico supraindividual ordem econômica, consistente na prerrogativa

interventiva do Estado na economia. Guaragni lembra a respeito que, “conquanto

metaindividual, [essa concepção] deixou patente a pretensão do direito penal econômico de

proteger (...) não os interesses das pessoas integrantes da sociedade, mas sim – e sobretudo –

os interesses do próprio Estado, enquanto gestor da economia.”27 A proteção penal foi acionada

para reforçar a política de administração econômica. O surgimento de um direito penal

econômico para a proteção da prerrogativa estatal de intervenção na economia não apenas

importou na superação do paradigma liberal do século XIX, como se converteu em prima ratio

para assegurar o modelo econômico assumido28.

Embora as experiências totalitárias respondam pela primeira geração do DPE, as

democracias sociais do pós-segunda guerra inauguraram uma segunda geração, alterando o

alcance do bem jurídico supraindividual ordem econômica, então relacionado exclusivamente

23 CAVERO, 2014, p. 51. 24 GUARAGNI, 2016, p. 727. 25 GUARAGNI, 2016, p. 728. 26 CAVERO, 2014, p. 53. 27 GUARAGNI, 2016, p.729. 28 CAVERO, 2014, p. 54.

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à intervenção estatal na economia. Consolidou-se a “economia social de mercado”29, que

reavivou, em alguma medida, os postulados de origem liberal e esmoreceu a intervenção

política típica dos regimes totalitários; isso não significou, porém, a abstenção de intervenção

estatal, apenas uma mudança de papel, doravante relacionada à garantia de prestações sociais

essenciais para justa distribuição de riquezas. O estado de bem-estar, marcadamente

promocional, alterou a compreensão do objeto de tutela desse setor da intervenção penal. A

ordem econômica, no contexto das democracias sociais, voltou-se “muito mais à preservação

dos interesses supraindividuais do que aos interesses do Estado propriamente dito”30. Eis a

síntese de Muñoz Conde:

Atualmente, ninguém discute que o Estado deve intervir na economia, não tanto em

substituição à iniciativa privada, mas controlando-a e corrigindo seus excessos, e, em

todo caso, redistribuindo a riqueza através de uma política fiscal que lhe permita

também adquirir seu próprio patrimônio destinado à realização de atividades

caracterizadas mais por sua rentabilidade social do que econômica (transporte, saúde,

educação etc.). O que originariamente ou pelo menos sob o prisma do liberalismo

econômico capitalista, se considerava como uma anomalia ou uma questão

excepcional, se considera hoje algo absolutamente normal, sem o qual nem sequer a

economia de mercado poderia sobreviver. (tn)31

Uma vez consolidada a lógica do livre mercado sob o modelo de um estado

comprometido com interesses supraindividuais (coletivos), a legislação penal passou a abrangê-

los, experimentando uma notável expansão não apenas quantitativa, mas qualitativa (as

infrações penais assimilaram progressivamente características antes restritas às infrações

administrativas – gestão de riscos)32. Assim, à função original do DPE de assegurar a

intervenção estatal na economia (direito penal econômico em sentido estrito) “se somou de

forma mais nítida a função de sancionar as diversas condutas danosas que pudessem surgir no

ciclo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços”, dando origem à concepção

ampla de direito penal econômico33.

29 CAVERO, 2014, p. 54. 30 GUARAGNI, 2016, p. 730. 31 CONDE MUÑOZ, Francisco. Principios político criminales que inspiran el tratamiento de los delitos

contra el orden socioeconómico en el proyecto de Código Penal (LGL/1940/2) 1994. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, vol. 11/1995, p. 7-20, jul./set. 1995. 32 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 123. 33 CAVERO, 2014, p. 56 (tn).

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19

1.2.2 Direito penal do risco: apontamentos sociológicos

A par dessas modificações políticas, emergiu um fator sociológico decisivo à

modernização do direito penal, associado ao modelo de economia prevalecente nas democracias

ocidentais desde meados do século XX. A sociedade pós-industrial (ou pós-moderna)

identifica-se pela presença de riscos surgidos de decisões humanas; não riscos pontuais,

localizados e delimitados, mas globais, não delimitáveis e frequentemente irreparáveis, segundo

a paradigmática formulação de Ulrich Beck34 – esse aspecto foi abordado pioneiramente pela

doutrina penal alemã, na pessoa de Prittwitz35. Embora presente na sociedade industrial

(designada por Beck de “modernidade simples” ou “primeira modernidade”), na atual

sociedade tecnológica (que ele chama de “modernidade reflexiva” ou “segunda

modernidade”36), o risco atingiu seu paroxismo, tornando-se um predicado insuperável. Uma

fase “na qual os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem, cada vez mais, a

escapar às instituições de monitorização e proteção da sociedade industrial”37. Por isso, na

sociedade de risco, o fenômeno marginal não é o risco, mas sim, sua ausência38.

Entendido sumariamente como “as diversas consequências não desejadas da

modernização radicalizada”39, é a regra, não a exceção, portanto. Os conflitos em torno da

distribuição de bens, típicos da sociedade industrial clássica, foram “sobrepostos com os

conflitos em torno da distribuição dos ‘males’”40. Esses males correspondem às ameaças que

acompanham, notadamente, a produção de bens e riquezas em nível global e derivam da

utilização de tecnologia nuclear, da mudança climática, de colapsos financeiros globais, da

engenharia genética, da nanotecnologia e da exploração massiva do meio ambiente41.

34 BECK, Ulrich. La sociedad del Riesgo Mundial. Trad. Jesus Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de

España Editores, 2002. p. 5. Observe-se que “risco” não se confunde com “perigo”; aquele decorre de decisões

humanas, enquanto este tem procedência natural. 35 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. t. I. p. 61. 36 BECK, 2002, p. 2. Enquanto a primeira modernidade traduz a dinâmica dos Estado-nações, “en las que

las relaciones y redes sociales y las comunidades se entienden esencialmente en un sentido territorial”, a segunda

modernidade é marcada por cinco processos inter-relacionados: a globalização, a individualização, a revolução

dos gêneros, o subemprego e os riscos globais (“como la crisis ecológica y el colapso de los mercados financieros

globales”). 37 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: Política, tradição e estética

na ordem social moderna. Trad. Maria Amélia Augusto. Oeiras: Celta, 2000. p. 5. 38 SILVA SÁNCHEZ, Jesus-maria. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de

Ciências Criminais. vol. 99/2012. p. 327-356. Nov-Dez/2012. 39 BECK, 2002, p. 5 (tn). 40 BECK; GIDDENS; LASH, 2000, p. 6. 41 BECK, 2002, p. 5.

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Silva Sanchez associa o risco estrutural do modelo social dos últimos decênios como

causa direta da expansão do direito penal e motivo fundamental da “criação de novos bens

jurídicos penais, ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização

das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia”42. O

ambiente econômico volátil e dinâmico, a aparição de avanços tecnológicos sem parentesco na

história e o desenvolvimento radical da técnica geram uma efetiva demanda social por mais

proteção e suscitam não apenas a tutela penal de novas realidades sociais valorativas, mas o

incremento de proteção daquilo que tem se tornado escasso, como o meio ambiente equilibrado.

A natureza dos bens protegidos penalmente também muda. Aumentam os bens jurídicos

ditos “coletivos”43, pondo de relevo “a crescente dependência do ser humano de realidades

externas a si”44 e a tarefa do direito penal moderno de lidar com a sensação de insegurança

estrutural, servindo-se progressivamente de tipos de perigo de configuração “cada vez mais

abstrata ou formalista (em termos de perigo presumido)”45. Afinal, se do que se trata é de

garantir a segurança, os tipos delitivos que reclamam resultado de lesão passam a ter serventia

questionável.

É verdade que a razão técnico-instrumental permitiu a emancipação do homem de

contingências naturais e proporcionou sensível melhora em indicativos como expectativa de

vida, saúde, lazer, comunicação, transporte, energia, consumo, apenas para citar alguns

exemplos. Porém, a fé num promissor mundo de conforto para todos e a redução da existência

humana ao racionalismo científico não tardaram a cobrar seu preço. O discurso científico

passou a ser questionado como legatário de um futuro ideal. Os ganhos tecnológicos não se

provaram exatamente igualitários, já que o acesso à técnica requer dinheiro, cuja distribuição é

desigual. E embora as conquistas proporcionadas pela tecnologia se restrinjam a poucos, seus

riscos atingem a todos46. Riscos globalizados “não respeitam divisões entre ricos e pobres ou

entre regiões do mundo”.47 Além disso, se por um lado o desenvolvimento do saber técnico-

científico permitiu o domínio sobre a natureza ou, na expressão de Giddens, a “natureza

42 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 20. 43 Utiliza-se, aqui, o conceito espanhol de “coletivo”, quando um bem, “fática ou juridicamente, é

impossível de ser dividido em partes [...] quando tem um caráter não distributivo”. (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p.

26, nota 23 – tn). 44 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 26 (tn). 45 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 30 (tn). 46 GUARAGNI, Fábio André. A função do direito penal e os “sistemas peritos”. In: CÂMARA, Luiz

Antonio; GUARAGNI, Fábio André (Coords.). Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de Processo e

Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2011. pp. 76 e 77. 47 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991.

p. 112.

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socializada”48, por outro, a exuberância tecnológica e o forte crescimento econômico trouxeram

consigo ameaças que tornaram o futuro altamente incerto, em razão de efeitos secundários

indesejados e subestimados.

Outra perspectiva sociológica complementar à compreensão da feição do direito penal

moderno (também denominado direito penal do risco49) corresponde às relações de confiança

surgidas dos sistemas peritos, segundo a percepção de Giddens. Entendidos, em apartada

síntese, como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam

grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos”50, são os alicerces sobre os

quais repousa a confiança da sociedade de consumo, fundamental para o desenvolvimento

econômico no contexto da economia de mercado. Os instrumentos tecnológicos cotidianos

corporificam os sistemas peritos e materializam o conjunto de conhecimento operado por

homens local e temporalmente desconhecidos. São “mecanismos de desencaixe”, que

reorganizam as “relações sociais através de grandes distâncias tempo-espaciais”51. Não se trata

de fidúcia num homem, mas na confiança em objetos síntese de sistemas peritos52. Sua

utilização prescinde do conhecimento efetivo ou potencial quanto aos processos técnicos nele

envolvidos.

Sem os sistemas peritos, seria impossível o ambiente de economia de mercado. A

produção, distribuição e consumo de bens e serviços, em patamares globalizados, seriam

inviáveis caso demandassem a participação e acompanhamento de cada consumidor em cada

um de seus processos. O consumo massivo tecnológico depende da confiança em tais sistemas,

enquanto “artigo de ‘fé’”53. Aceita-se o risco confiando-se na perícia implementada e na

experiência de que tais objetos funcionem conforme o esperado: “risco e confiança se

entrelaçam”54. É o caso, p.ex., de veículos de transporte (avião, automóvel, metrô), meios de

comunicação (celulares, internet), fontes de energia (nuclear, hidrelétrica), manipulação

industrial de alimentos, roupas, medicamentos etc.55 Em consequência, o gerenciamento dessas

autênticas fontes de risco designadas sistemas peritos torna-se pauta político-criminal,

explicando em boa medida a exasperação dos delitos de comissão por omissão e de

48 GIDDENS, 1991, p. 114. 49 CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto en el ámbito del derecho penal del riesgo. Revista

de Derecho Penal y Criminología, n. 10, 2002, pp. 47-72 (pp. 54-55). 50 GIDDENS, 1991, p. 30. 51 GIDDENS, 1991, p. 51. 52 GUARAGNI, 2011, p. 79. 53 GIDDENS, 1991, p. 31. 54 GIDDENS, 1991, p. 36. 55 GIDDENS, 1991, p. 80.

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imprudência, assim como a diminuição das áreas de risco permitido: enquanto o pensamento

típico da sociedade industrial desenvolvimentista sintetizava-se na máxima “navegar é preciso,

viver não é preciso”, no atual momento histórico, notabiliza-se mesmo a “necessidade de

viver”56.

Nesse cenário de ameaças permanentes e insegurança generalizada, o discurso do dever-

ser jurídico-penal acaba absorvendo as demandas sociais de proteção. Guaragni observa que a

necessidade de que os “sistemas peritos operem dentro dos patamares de risco tolerado –

condição essencial para que sejam merecedores de ‘fé’ [...] converge para atribuir-se ao direito

penal a função de contenção de riscos.”57 É o que se designa, como já dito, direito penal da

sociedade de risco ou, simplesmente, direito penal do risco58. Portanto, e resumidamente, a

sociedade pós-industrial, orientada pela economia de mercado, pela tecnologia corporificada

em sistemas peritos, pela comunicação instantânea e pela atividade econômica global, núcleo

do sistema social moderno para a produção de riqueza59, insufla o risco. A massificação de

riscos de proporções catastróficas gera um drama público insolúvel que suscita novos

paradigmas de responsabilidade e põe em evidência as instâncias de controle social disponíveis,

num esforço para debelar a sensação de insegurança em constante expansão60.

Não surpreende que essa vocação expansiva do direito penal moderno promova tensões

profundas com a tradição clássico-liberal que, comprometida com o garantismo e à restrição da

intervenção penal (cf. os corolários da fragmentariedade e da intervenção mínima), acaba se

tornando inútil para a assimilação das crescentes demandas sociais protetivas e preventivas61.

Nas palavras de Marta Machado:

não se trata, simplesmente, do aumento quantitativo da reação punitiva ou da simples

definição de novos comportamentos penalmente relevantes, mas do desenvolvimento

de uma nova racionalidade de imputação, a partir da utilização de figuras dogmáticas

diferenciadas – algumas vistas como excepcionais no passado – mais flexíveis e

direcionadas muito mais à prevenção em face dos riscos do que à tradicional

manifestação repressiva.62

56 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 44. 57 GUARAGNI, 2011, p. 80. 58 DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”.

Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 33/2001, p. 39-65. Jan-Mar/2001. 59 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas

tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim, 2005. p. 22. 60 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 32 et seq. 61 DIAS, 2001, pp. 39-65. 62 MACHADO, 2005, p. 23.

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Assim, é de se esperar que a assimilação pelo sistema penal do compromisso de

prevenção dos riscos inerentes à sociedade pós-moderna e globalizada, no contexto da

modernidade reflexiva, exponha contradições e coloque em evidência a falta de rendimento dos

postulados jurídico-penais tradicionais, impulsionando a reformulação das categorias clássicas

para incorporação das pressões geradas pelo paradigma da sociedade de risco63. Os

instrumentos mais característicos do direito penal do risco são a ampliação do rol de bens

jurídicos supraindividuais (coletivos64), a antecipação da tutela penal mediante crimes de perigo

abstrato65, o abrandamento das regras de causalidade para imputação do resultado, a crescente

normatização do tipo objetivo (infração de dever), a proliferação de tipos omissivos e culposos

e dos tipos cumulativos, assim como a responsabilização penal da pessoa jurídica66.

1.2.3 O bem jurídico: ordem econômica latu sensu como critério identificador do DPE

Essa nova configuração social importou em contínuas discussões para se definir os

contornos técnicos do direito penal econômico, tendo a literatura proposto diferentes critérios

para a delimitação do campo. Entre as abordagens sociológicas, destacam-se as proposições de

Sutherland, com sua definição de white-collar crime (1939)67, e de Schünemann, que nomeia

criminalidade econômica aquela ocorrida em ambiente corporativo ou empresarial68. Já sob o

parâmetro processual-probatório, evocam-se dificuldades investigativas e probatórias inerentes

à apuração de crimes com conotação econômica como elemento de unidade disciplinar69. Não

obstante, a opção que permite uma sistematização mais precisa e, por isso mesmo, conta com

63 MACHADO, 2005, p. 25. 64 Entre os espanhóis, há quem diferencie bem jurídico “coletivo” de “supraindividual”. Cerezo Mir, p. ex.,

chama de coletivos os bens de caráter instrumental para a proteção de bens jurídicos individuais (segurança no

trânsito e saúde pública, p.ex.) e de supraindividuais os bens transcendentes e autônomos a interesses individuais

(fé pública, meio ambiente e administração da justiça, p.ex.). (CEREZO MIR, 2002, p. 57). 65 ANDRADE, Guilherme Oliveira de. O princípio da intervenção mínima e o direito penal de risco.

Dissertação (mestrado) – Centro Universitário Curitiba, Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania. Curitiba,

2009. pp. 132 e ss. 66 MACHADO, 2005, p. 23-26. 67 SUTHERLAND, Edwin H. El Delito de Cuello Blanco. Trad. por Laura Belloqui. Montevideo/Buenos

Aires, 2009. 68 Com maiores explicações sobre essa abordagem, vide: SCHMIDT, Andrei Zenkner. O bem jurídico

protegido pelo Direito Penal econômico. In: BUSATO, Paulo César; PLACHA SÁ, Priscilla; Scandelari, Gustavo

(coords). Perspectivas das ciências criminais: coletânea em homenagem aos 55 anos de atuação professional

do Prof. René Ariel Dotti. Rio de Janeiro: LMJ. Mundo Jurídico, 2016. p. 53. 69 Essa abordagem tem o inconveniente de que “outros delitos considerados materialmente econômicos

sejam definidos fora desse alcance”, ou de que delitos sem conotação econômica sejam tratados como tais, apenas

por força de seu regime processual (SCHMIDT, 2016, p. 54-55). Para mais detalhes sobre o critério processual-

probatório, confira-se: TIEDEMANN, Klaus. Manual de Derecho Penal Económico. Parte general y especial.

Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 55.

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maior número de adeptos, é a que observa o critério material do bem jurídico, ou seja, a que

estatui como elemento de unidade conceitual o objeto jurídico de tutela do DPE.

A ênfase no bem jurídico (que do ponto de vista estritamente dogmático significa o

interesse social ou o “valor do sistema social concreto” maculado pela conduta contrária ao

direito70) como elemento chave de identidade disciplinar remete a concepções de direito penal

assentadas na teoria do bem jurídico, com a de Roxin, segundo a qual o direito penal se volta à

“proteção subsidiária de bens jurídicos”71. Se o conceito de bem jurídico é fundamental à

compreensão da missão do direito penal (como nas concepções funcionalistas teleológicas), não

surpreende que se tracem distinções entre setores repressivos em vista dele justamente72.

O estudo de Tiedemann entre as décadas de sessenta e setenta é considerado

paradigmático no que diz respeito à delimitação conceitual do direito penal econômico sob a

perspectiva do bem jurídico protegido73. Como já exposto, essa perspectiva vincula o delito

econômico à ofensa a bens jurídicos supraindividuais (coletivos) relacionados à ordem

socioeconômica (p. ex., ordem tributária, sistemas financeiro e previdenciário etc.)74. Há duas

concepções fundamentais relativas à abrangência do objeto material do direito penal econômico

desde a perspectiva do bem jurídico75. A primeira delas (concepção restrita) limita o DPE ao

“direito da direção da economia pelo Estado”76, i.e., às condutas ofensivas às prerrogativas

estatais de intervenção e regulação da economia.

Já a concepção ampla, nas palavras de Rios, propõe alcançar “além destas condutas,

todas aquelas figuras típicas que violam bens coletivos supraindividuais econômicos

relacionados com a regulamentação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e

serviços”77. Sob a visão centrípeta (restrita), portanto, o crime econômico está atrelado a ofensas

que tenham por alvo “interesses supraindividuais relacionados à ordem da economia instituída

70 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; MALARÉE, Hernán H. Lecciones de derecho penal. V. I. Madrid: Trotta,

1997. p. 37. 71 ROXIN, 1997, p. 51. 72 Evita-se, aqui, o incurso no problemático tema da crise do bem jurídico, que renderia um estudo isolado.

Basta consignar que, apesar das críticas, a teoria ainda contribui para a definição de um critério negativo sobre os

interesses passíveis de tutela penal, e fornece diretrizes teleológicas para a “solução de impasses dogmáticos

diversos, como problemas de concurso de normas”. Vide, a respeito: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI,

Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com

as alterações da Lei 12.683/2012. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. pp. 80 e 81. 73 CAVERO, 2014, p. 67. 74 TIEDEMANN, 2010, p. 215. 75 CAVERO, 2014, p. 67. 76 TIEDEMANN, Klaus. El concepto de derecho económico y de delito econômico. Revista chilena de

derecho, vol. 10, n. 1, 1983, p. 59-68. p. 67 (tn). 77 RIOS, Rodrigo Sánchez. Reflexões sobre o delito econômico e a sua delimitação. Revista dos Tribunais,

vol. 775/2000. p. 432-448, maio 2000. p. 436.

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e dirigida pelo Estado”78 (v.g., sistema financeiro, ordem tributária, ordem econômica, sistema

previdenciário etc.), ao passo que sob a orientação centrífuga, basta que a conduta ilícita afete

um bem jurídico coletivo ou supraindividual afeito a atividades econômicas reguladas no

segmento da produção, industrialização e divisão de bens e serviços (v.g., concorrência desleal,

meio ambiente, propriedade industrial etc.)79.

Apesar de vozes autorizadas ainda defenderem a concepção restrita (como Schmidt e

Faria Costa80), apontando a dificuldade da concepção ampla de delimitar satisfatoriamente o

alcance cognitivo dos delitos econômicos, o que aumenta a insegurança jurídica81, a corrente

que reúne mais adeptos é a ampla, à qual se filiam, v.g. Tiedemann, Martínez-Buján e Gárcia

Cavero. Este último, a propósito, justifica a adesão à posição ampla na crise do modelo de

economia planificada e no reconhecimento da economia de mercado como uma estrutura

econômica inexorável, não olvidando, porém, as dificuldades de delimitação do campo surgidas

da concepção alargada82. Refira-se ainda, em complemento, a razoável visão temperada de

Cervini, que, sem ignorar a insuficiência da concepção restrita no tratamento da criminalidade

havida no seio do atual sistema econômico, sustenta que os bens jurídicos do direito penal

socioeconômico devem ser não apenas suficientemente determinados, mas dispor sempre de

referencial antropológico e sentido pré-jurídico83.

A inevitável discussão quanto aos limites conceituais do objeto de tutela do direito penal

econômico se deve à preocupação da doutrina com a abrangência da intervenção penal sob a

rubrica de bens jurídicos supraindividuais relacionados à produção, industrialização e divisão

de bens e serviços. Como a tutela penal nesse âmbito é exercida frequentemente mediante a

categoria de perigo abstrato contra interesses coletivos, o que invariavelmente distende os

princípios substantivos clássicos, especialmente o da lesividade (que particularmente reclama

ofensa ao bem jurídico), e esmorece as funções limitadora e crítica do bem jurídico (tornando

seu conteúdo cada vez mais abstrato e vago84), há quem insista na necessidade de se restringir

conceitualmente o objeto material de tutela do DPE, buscando com isso limitar a abrangência

desse setor repressivo85.

78 SCHMIDT, 2016, pp. 55-56. 79 CAVERO, 2014, p. 68. 80 SCHMIDT, 2016, p. 56. 81 SCHMIDT, 2016, p. 56. 82 CAVERO, 2014, p. 68. 83 CERVINI, Raúl. Derecho penal económico – concepto y bien jurídico. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, vol. 43/2003, p. 81-108, abr.-jun/2003. 84 MOCCIA, 1997, p. 115. 85 É paradigmática a proposta de Martínez-Buján de delimitar o direito penal em sentido amplo a partir das

noções de bem jurídico mediato e imediato. Em uma síntese ousada, somente fariam parte desse setor os delitos

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1.3 DIREITO PENAL ECONÔMICO: ENTRE LEGITIMIDADE E SUBVERSÕES

A irrecusável proliferação de leis penais econômicas orientadas à repressão de delitos

cometidos em âmbito socioeconômico motiva uma maior discussão de sua legitimidade,

especialmente porque isso conduz à adaptação das estruturas de imputação penal e à mitigação

dos princípios e das garantias de tradição liberal86. Receia-se que a ampliação desmedida de

figuras delitivas socioeconômicas “descaracterize” o direito penal em seu conjunto, com

“sacrifício de garantias essenciais do Estado liberal de Direito”87, pois na tensão entre proteção

da sociedade e salvaguarda da liberdade individual, o direito penal moderno tende a priorizar

aquela – essa percepção está por trás da proposta de Silva Sanchéz de desmembramento do

direito penal em distintos setores (“velocidades”), em que a espécie de punição determina o

nível qualitativo das garantias e princípios político-criminais aplicáveis (v.g., legalidade,

proporcionalidade, lesividade etc.”)88.

Não obstante as críticas de determinados setores da doutrina (especialmente da escola

de Frankfurt) dirigidas à política-criminal de expansão dos interesses submetidos a tutela penal,

de fato quase sempre afastados da tríade clássico-liberal de bens pessoais (vida, liberdade e

patrimônio) e, principalmente, divorciados de estruturas ontológicas89, o direito penal

econômico é um caminho sem volta90. A resistência ao abandono da concepção individualista

de bem jurídico (monismo liberal), se bem compatível com os contornos clássicos do direito

penal, perde consistência no contexto das sociedades pós-industriais, em que os contatos sociais

se mostram muito mais complexos e com maior grau de desenvolvimento tecnológico do que

aqueles típicos do século XIX. Agora, os interesses são outros ou já não são mais os mesmos.

Há formas bem mais sofisticadas de danos sociais e de frustração de desenvolvimento humano,

pois o que antes era abundante hoje é mais escasso (v.g. meio ambiente ecologicamente

equilibrado) ou o que antes tinha menor importância hoje é fundamental (realidade

socioeconômica como pressuposto da realização do ser humano em sociedade).

que protegem imediatamente bens jurídicos supraindividuais relativos à ordem econômica (v.gr. delitos fiscais,

delitos contra o sistema financeiro) – direito penal econômico em sentido estrito – e, além deles, os delitos que,

não obstante protejam imediatamente bens jurídicos individuais, revelem como ratio legis a tutela mediata de bens

jurídicos supraindividuais relacionados à ordem econômica (v.gr. delitos contra a propriedade industrial, delitos

de concorrência desleal, delitos societários) – direito penal econômico em sentido amplo. (MARTÍNEZ-BUJÁN,

2016, pp. 124). 86 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, pp. 79-85. 87 RIOS, 2000, pp. 434. 88 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 156. 89 CAVERO, 2014, p. 78. 90 SILVA SANCHÉZ, 2001, p. 150.

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Nas últimas décadas se assiste a um progressivo aumento no interesse de identificação

de bens jurídicos coletivos relacionados à tecnologia, sistema econômico, meio ambiente,

segurança, saúde e outras questões associadas ao bem-estar, acompanhado de um incremento

da própria percepção dos cidadãos em relação a condutas danosas nesses âmbitos91. Além disso,

as formas de manifestação de criminalidade não são mais as mesmas (lesão causal a bem

jurídico de outrem); os modelos atuais de atuação delitiva correspondem ao “sistema econômico

moderno de distribuição e especialização do trabalho”92. Mudaram, portanto, as necessidades e

as vulnerabilidades ao desenvolvimento e realização humana, de modo que a indiferença solene

do direito penal aos novos fenômenos sociais faria dele um adorno jurídico93 – saliente-se, a

propósito, a inclinação paulatina da intervenção penal a orientações de prevenção geral, em

função do objetivo de mitigação de riscos sociais, cf. indica Roxin94.

Um direito penal funcionalizado exclusivamente à proteção de interesses

personalíssimos seria anacrônico perante as novas formas de agressão a referenciais dos quais

as pessoas passaram a depender no arranjo social moderno, moldado segundo o estágio atual

de desenvolvimento tecnológico95. É preciso compatibilizar as vocações antagônicas do Estado

de Direito, a saber: a proteção da sociedade contra riscos ou agressões a bens jurídicos

(prevenção geral) e a garantia de liberdade dos cidadãos frente a reações punitivas

desproporcionais96. E é mesmo difícil justificar a reação enérgica (prisão) contra formas

delitivas dirigidas ao patrimônio individual (v.g. estelionato) e a indiferença perante condutas

portadoras de um dano social não menos grave, como, p.ex., a supressão tributária; ou então, a

intervenção penal por lesões corporais e o desprezo quanto a bens ou produtos hostis à

segurança do consumidor. Anota Martínez-Buján, a propósito, que o objeto de proteção do

direito penal nuclear em matéria patrimonial não deixa de ter uma conotação classista, pois

serve primordialmente à punição de “setores da população sociologicamente mais

desfavorecidos”97.

Se hoje o direito penal se ocupa mais intensamente de riscos, algo inédito sob sua

vertente tradicional, é porque os riscos estruturais atuais representam os sinais dos tempos, não

considerados na concepção clássica de intervenção penal. Diante de novas necessidades sociais

91 MOCCIA, 1997, pp. 117 e 118. 92 CAVERO, 2014, p. 70. 93 CAVERO, 2014, p. 148. 94 ROXIN, Claus. La evolución de la Política criminal, el Derecho penal y el Proceso penal. Valencia:

Tirant lo Blanch, 2000. p. 31. 95 SCHÜNEMANN, 1996, pp. 192-195. 96 ROXIN, 2000, pp. 33 e 44. 97 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 93 (tn).

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vitais, o direito penal deve considerar as afetações mais significativas a elas, a não ser que

deliberadamente se busque a deficiência de tutela – o que é inviável sob a perspectiva da

proibição da proteção deficiente98. Schmidt, valendo-se dos ensinamentos de Faria Costa

relativamente à função do direito penal, recorda o seguinte:

Em sendo considerado o “cuidado” o elemento fundante que faz do homem o ser-

homem em sua relação com o outro, o direito passa a desempenhar a função de

proteger, em alguns casos, o indivíduo e a comunidade, dos “perigos” que possam

advir da oscilação dessa relação de “cuidado”. Sempre que a possível frustração de

um cuidado-de-perigo assuma uma dimensão de relevância capaz de atrair a tutela

jurídica, então este “perigo com” transformar-se-á num bem jurídico passível de

“cuidado” institucional. E, quando sua relevância ganha destaque, esta proteção ainda

pode dar-se pela via do direito penal.99

Nessa ordem de ideias, cabe destacar que uma das características da modernidade é a

multiplicação dos nexos causais nos contatos sociais (interconexões causais), o que dificulta ou

torna mesmo inviável a vinculação estreita entre (uma) causa e o dano para efeito de

imputação100. Não se trata mais de uma sociedade de contatos individualizados em grupos

humanos reduzidos, mas de inter-relações dinâmicas e confluentes, indiferentes a limites

espaciais e temporais. Isso demarca, inclusive, um compromisso com as gerações futuras,

notadamente em relação a condições ambientais adequadas101. A complexidade da rede de

produção e circulação de produtos se revela na substituição de contextos individuais de ação

por contextos de ação coletivos, em que o “contato interpessoal é substituído por uma forma de

comportamento anônima e estandardizada”102.

Schunemann pontua sobre isso que os novos intercâmbios sociais e a proliferação de

cadeias causais na sociedade de massa conduzem a uma nova maneira de o direito penal

proteger bens jurídicos, não apenas com o trânsito do delito de resultado para o de perigo

abstrato, mas com a concepção de que há interesses coletivos autônomos não reconduzíveis à

dimensão individual: “para que o Direito penal possa seguir cumprindo sua missão de proteger

bens jurídicos sob as condições de distribuição do mercado atual, [...] deve averiguar em que

lugar se encontram os pontos de conexão coletivos nos quais deve intervir [...]”103.

98 ROXIN, 2000, p. 31. “[...] um Direito penal moderno deve ter como objetivo a melhor conformação

social possível” (tn). 99 SCHMIDT, 2016, p. 68. 100 CEREZO MIR, 2002, p. 60. 101 A propósito, a paradigmática obra de: JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma

ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. 102 SCHÜNEMANN, 1996, p. 199. 103 SCHÜNEMANN, 1996, pp. 199-201.

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Portanto, em um ambiente de ameaças ao conjunto da sociedade impostas pela dinâmica

complexa da vida moderna, os bens jurídicos tendem a uma conformação difusa ou coletiva

(concepção dualista), obrigando a releitura do postulado iluminista da lesividade, em função da

difusão da técnica do perigo abstrato para assegurar a repressão antes da produção efetiva de

um dano104 – se bem que, como observa Silva Sanchéz, a abreviação do alcance do princípio

da lesividade deve ser compensada com uma intransigência maior em relação à performance

dos primados da fragmentariedade e subsidiariedade105.

A doutrina majoritária segue respaldando a atuação do legislador na tutela penal de bens

jurídicos supraindividuais106 (p.ex., Klaus Tiedemann107, Martínez-Buján108 e Roxin109). A

técnica recorrente de proteção desses interesses coletivos é mediante crimes de perigo abstrato,

em que não se exige a efetiva lesão ou a destruição do bem como requisito típico (como se dá

com a vida em relação ao homicídio)110, “já que nas instituições ou interesses coletivos jurídicos

não se produz nem uma lesão, nem uma concreta colocação em perigo mediante o fato delitivo”,

cf. a posição de Tiedemann111. Em se tratando de bens de natureza supraindividual, o objetivo

passa a ser mais proibir a afetação: “fazendo-se constituir o dano na lesão da confiança social,

não na confiança individual ou em um dano material”112. Tiedemann propõe que não se espere

uma lesão real aos bens jurídicos ditos supraindividuais para autorizar a intervenção penal;

bastaria a “lesão à validade” das instituições da vida econômica113. Desloca-se, portanto, o

sentido de lesão ao bem para o de lesão à confiança em relação à disposição de instrumentos de

realização econômica. Na base da criação de tipos de perigo abstrato está a premissa de que a

conduta incriminada “geralmente põe em perigo o bem jurídico”, independentemente da efetiva

criação de perigo no caso concreto114.

A adaptação do princípio da lesividade às novas formas de proteção penal e a elaboração

de critérios de legitimação dos crimes de perigo abstrato são um foco de debate doutrinário

104 ROXIN, 2000, p. 27. 105 SILVA SÁNCHEZ, 1992, pp. 291-292. 106 Para uma síntese do assunto, vide: KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes

econômicos. Dissertação (mestrado) – Centro Universitário Curitiba, Mestrado em Direito Empresarial e

Cidadania. Curitiba, 2012. pp. 24 e ss. 107 TIEDEMANN, 2010, p. 215. 108 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 22. 109 ROXIN, 2000, p. 91. 110 CEREZO MIR, 2002, pp. 47. A respeito das diferentes estruturas ofensivas dos delitos socioeconômicos

(lesão, perigo concreto e abstrato), vide: MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 208 et seq. 111 TIEDEMANN, 2010, p. 67 (tn): “ya que en las instituciones o intereses colectivos jurídicos no se

produce ni una lesión, ni una concreta puesta en peligro a través del hecho delictivo”. 112 TIEDEMANN, 2010, p. 67 (tn). 113 TIEDEMANN, 2010, p. 67 (tn). 114 CEREZO MIR, 2002, p. 63 (tn).

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profícuo, indicando que o fundamental não está tanto na discussão sobre a necessidade de tutela

de determinados interesses socioeconômicos supraindividuais, mas na qualidade da ofensa115.

A respeito disso, Moccia (mais intransigente em relação à função crítica do bem jurídico116),

sugere que não se confunda razão de tutela (funções) com o bem jurídico propriamente

protegido (objeto de tutela), sob pena de se subverter o primado da lesividade a partir da criação

de objetos fictícios de tutela para punição de condutas muito distantes de uma lesão efetiva

(v.g., correta gestão econômica, ordem estável da economia). Nesse sentido, afirma, em

apartada síntese, que os comportamentos incriminados devem ser revestidos de um sentido

danoso mais claro passível e ter como referencial um objeto de proteção com contornos mais

definidos (i.e., não totalmente desprendido dos referenciais clássicos, como patrimônio e vida),

facilitando a identificação do conteúdo do desvalor do resultado pelo destinatário da norma117.

Independentemente, porém, de propostas pontuais para ajustar a fenomenologia penal

moderna ao tradicional princípio da lesividade, o ponto é que não se trata de abrir mão das

garantias substanciais e processuais no âmbito do DPE, mas sim, de ajustá-las às necessidades

preventivas do sistema econômico atual. Se o esforço for reconduzido à discussão da qualidade

dos ataques proibidos penalmente, estimam-se avanços mais expressivos em termos de

racionalização da intervenção penal118, porque parece mais fácil questionar a legitimidade da

repressão penal quanto a determinados ataques ao meio ambiente, p.ex., do que sustentar a

plena indiferença do direito penal a esse inolvidável bem supraindividual – que tem se mostrado

cada vez mais caro ao desenvolvimento humano. Considere-se, ainda, que bens jurídicos

coletivos não são uma efetiva novidade (pense-se na administração da justiça e na incolumidade

pública); é a expansão do catálogo que é119. Evidentemente, essa abordagem não prejudica a

115 Com isso não se nega a necessidade de se discutir a legitimidade de novos bens jurídicos

supraindividuais. A esse respeito: GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato – uma

introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais,

vol. 49/2004, p. 89-147, jul-ago/2004. 116 MOCCIA, 1997, p. 117. 117 MOCCIA, 1997, pp. 121-139. Moccia propõe que os tipos legais de conduta no âmbito socioeconômico

não se distanciem muito dos modelos de estelionato e fraude, e que o bem supraindividual de referência não se

despregue drasticamente dos valores clássicos de referência, como patrimônio e saúde, p. ex. “Deve-se considerar

de um modo mais realista a causação, segundo os parâmetros normais adotados para os delitos contra o patrimônio,

de um prejuízo tal que suponha um obstáculo ao exercício da função econômica. Este é o conteúdo delitivo de

agressão patrimonial que certamente se pode ver como próprio dos atos de evasão fiscal e da ilícita captação de

subvenções, no momento em que se subtraiam ou se desviem recursos utilizados paras as funções sociais”. (tn). p.

134. 118 Martínez-Buján propõe, por exemplo, aperfeiçoar a discussão da teoria do bem jurídico, dos efeitos do

princípio da proporcionalidade na limitação da liberdade, da repercussão dos princípios da subsidiariedade e da

fragmentariedade e da proporcionalidade das sanções. (MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 92). 119 GRECO, 2004, pp. 104-105.

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discussão da qualidade penal de alguns bens jurídicos supraindividuais quando, p.ex.,

apresentem questionável identidade conceitual ou conteúdo excessivamente retórico120.

1.4 FUNÇÃO PROMOCIONAL DO DPE

Outro aspecto – mais polêmico – que distingue o direito penal econômico (e demonstra

também sua aptidão expansiva) é sua pretensa qualidade promocional. Entre os interesses que

protege há aqueles indispensáveis à consecução das finalidades sociais (justiça social) típicas

de um Estado de bem-estar, razão pela qual os ataques a eles dirigidos encontram uma razão

adicional de tutela, ao afetarem, em última análise, a execução de políticas públicas. Rios

pontua a respeito que “o Direito Penal não tem apenas um caráter limitativo, no sentido de

negativo e proibido, mas também um caráter prospectivo, no sentido de concretizar ou efetivar

os valores ou as normas da Constituição, servindo de instrumento para a sua realização

efetiva”121. Schmidt identifica o caráter promocional dos bens jurídicos supraindividuais

relativos à ordem econômica na aptidão que possuem para “sensibilizar ou mesmo densificar a

consciência ético-social de uma determinada comunidade em relação à necessidade de proteção

jurídica supraindividual de práticas econômicas”122, acrescentando que é possível “reconhecer

uma função positiva para o bem jurídico, legitimadora da criminalização de novas condutas que

historicamente modifiquem os níveis de carência de proteção de relações de cuidado-de-perigo,

ainda que numa dimensão supraindividual”123.

Realmente, da Constituição se extraem as “circunstâncias dadas ou finalidades”124

indispensáveis ao desenvolvimento do indivíduo no marco do sistema social estabelecido, que

justamente por essa razão demandam tutela penal, bem assim, os limites valorativos à

incriminação de condutas, pois nenhum interesse social sob proteção penal pode contrariar a

carga axiológica da CF125. Segundo Schmidt, “a dignidade de um crime econômico tem de se

sujeitar a uma conformidade axiológica qualificada, qual seja, a sua compatibilidade com os

valores socialmente reconhecidos e também consagrados constitucionalmente”126. É a matriz

120 MOCCIA, 1997, pp. 135. Assim também: GRECO, 2004, pp. 111-112. 121 RIOS, 2000, p. 435. 122 SCHMIDT, 2016, p. 75. 123 SCHMIDT, 2016, p. 76. 124 ROXIN, 1997, p. 56. 125 GRECO, 2004, pp. 99-100. 126 SCHMIDT, 2016, p. 64.

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axiológica constitucional, aliás, que garante o dinamismo necessário à atualização dos bens

jurídicos protegidos penalmente em conformidade com o desenvolvimento social127.

O Título VII da CF (Constituição econômica) é taxativo em relação à prerrogativa

intervencionista do Estado brasileiro na economia, em especial, o art. 170, que prevê os

princípios e estabelece os fundamentos regentes da ordem econômica, i.e., as condições

normativas para que o exercício da atividade econômica tenha legitimidade jurídico-

constitucional. Com o Estado assumindo a tarefa de regular e condicionar o exercício da livre

iniciativa com vistas à realização dos objetivos constitucionais (construção de uma sociedade

justa e solidária, erradicação da pobreza etc.), é esperado que a proteção jurídico-penal seja

chamada a prestar seu auxílio para coibir os ataques mais graves à ordem econômica128.

Mas não se pode descurar que o princípio da subsidiariedade preside todo o labor penal,

autorizando somente a tipificação dos ataques mais graves, inclusive e com mais razão ainda,

quanto aos bens jurídicos supraindividuais129. Bem por isso, o discutido atributo promocional

do DPE não significa permissão para sua utilização pródiga. García Cavero, por exemplo, atrela

a legitimidade da intervenção penal na ordem econômica em sentido amplo à salvaguarda da

identidade normativa do sistema jurídico da sociedade de que concretamente se trate: “a única

prestação que realmente pode cumprir o Direito penal económico é manter, apesar da atuação

delitiva concretamente realizada, a identidade normativa essencial da sociedade no sistema

económico”.130 Sustenta então o autor peruano, utilizando como substrato teórico o

funcionalismo de Jakobs (mas sem abrir mão do conceito de bem jurídico)131, que a missão do

direito penal econômico é o reestabelecimento da vigência das expectativas sociais derivadas

da “identidade normativa essencial da sociedade” na economia132, o que tornaria a vocação

promocional do campo bem mais modesta.

Não obstante a sobredita função do DPE de efetivação de valores constitucionais

fundamentais (caráter promocional), a legitimação de criminalização em âmbito

socioeconômico dependerá não apenas da identificação das diretrizes normativas

socioeconômicas essenciais da sociedade (acompanhada da seleção das violações mais graves

a esses bens jurídicos, como manda o princípio da subsidiariedade), mas também do respeito

ao referencial antropológico sobre o qual o direito penal deve estar assentado no Estado

127 ROXIN, 1997, pp. 57-58. 128 RIOS, 2000, p. 436. 129 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 96; CEREZO MIR, 2002, p. 59. 130 CAVERO, 2014, p. 117. 131 CAVERO, 2014, p. 153. 132 CAVERO, 2014, p. 116.

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democrático de direito (enquanto instrumento necessariamente a serviço da realização da

pessoa humana), sob pena de o sistema repressivo se converter em puro instrumento político e

ideológico133.

A esse respeito, García Cavero pontua que não se trata de proteger penalmente a

identidade normativa da sociedade concebida em si mesmo ou a priori, mas apenas naquilo que

possa favorecer a realização das pessoas em sociedade, concluindo, então, que “o bem jurídico

penalmente protegido é a vigência das expectativas normativas de condutas essenciais no

sistema econômico, radicando seu caráter essencial em sua necessidade para garantir o

desenvolvimento pessoal dos agentes econômicos”134. Note-se, contudo, que a referência ao

caráter antropocêntrico do direito penal não equivale a sustentar que bens jurídicos coletivos

somente podem ser reconhecidos na medida em que medeiem interesses individuais, como

concebe a teoria monista135; a admissão da autonomia plena de bens jurídicos supraindividuais

sem se exigir que se refiram instrumentalmente a indivíduos concretos não significa que estão

liberados da função teleológica de garantir o desenvolvimento do indivíduo em sociedade.

Assim, embora possam ser tratados como entidades autônomas, o são na medida em que

cumprem um papel funcional ao desenvolvimento do homem no meio social136.

1.5 O CENÁRIO DO DPE COMO REFORÇO DA INCIDÊNCIA DO CONFLITO

APARENTE DE NORMAS

Agora, todo esse contexto de reforço de tutela penal conflui fatalmente para o aumento

aritmético de preceitos incriminadores, reavivando o fenômeno do conflito aparente de normas

penais (entendido simplesmente, por ora, como a superposição formal de tipos penais

relativamente a um mesmo fato punível). Isso conduz a que para determinada situação fática

eventualmente incida mais de uma norma penal, aumentando as chances do excesso de censura

e de dupla punição pelo mesmo fundamento material. Afinal, num cenário de profusão típico-

normativa, já não se terá como certa a existência de uma única norma incriminadora para cada

fato punível concreto, mas sim, a ameaça de punição por uma variedade de preceitos penais

que, caso não examinados em conjunto (desde uma relação lógica ou valorativa), podem

133 TAVARES, Juarez. Bien Jurídico y Función en Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004. p.

84. 134 CAVERO, 2014, pp. 112 e 153 (tn). 135 GRECO, 2004, p. 103. 136 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 182.

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determinar a reprovação penal cumulada, a despeito da força atrativa mantida entre si, a

recomendar o descarte de um pelo outro. Um sistema normativo que olvida a possibilidade de

as normas incriminadoras se acharem em relação de subordinação e interferência valorativa,

como se fossem entidades autônomas e isoladas, não poderia ser qualificado como tal.

Ademais, deve-se observar que no contexto da delinquência socioeconômica, não é raro

a prática simultânea de várias condutas puníveis ou a colaboração (voluntária ou involuntária)

de outras pessoas no desiderato criminoso, especialmente porque delitos dessa natureza

geralmente são praticados em ambiente empresarial, marcado pela divisão de tarefas137. Disso

igualmente decorre a possibilidade de subsunção do fato punível global em mais de uma norma

penal (concurso real ou ideal de crimes) ou, então, a configuração de concurso apenas aparente

de normas penais.

Quanto a essa questão da superposição de normas, Rios e Laufer chamam a atenção para

a “especial técnica de tipificação voltada aos delitos econômicos, pois, geralmente, estar-se-á

diante de tipos que demandam comportamentos posteriores após a consumação do objeto da

conduta do tipo principal”. E concluem:

esta exigência também é amplamente constatada para os atos prévios, uma vez que os

delitos econômicos percorrem, na sua configuração, a incriminação de atos

preparatórios e, por outro lado, constatam-se os casos em que fatos regulados em uma

norma incriminadora constituem a preparação ou a facilitação da execução do fato

previsto como principal138.

Rememore-se a observação de Schunemann sobre o ambiente econômico atual, em que

a satisfação das necessidades humanas ocorre em “contextos de ação coletivos”, ou seja, onde

o contato interpessoal cede perante comportamentos anônimos e estandardizados. Os cursos

causais se perdem na sociedade de massa e de consumo pela severa e insondável segmentação

de comportamentos individuais na rede de distribuição e de produção de bens. Com isso,

Martínez-Buján legitima a intervenção penal para tutelar a liberdade de disposição de pessoas

não individualizáveis, anotando que a “indeterminação da fronteira do perigo” é o que

“incrementa precisamente o desvalor do injusto e permite justificar a antecipação do castigo ao

momento do perigo abstrato”139.

137 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 135-136: “em termos gerais, a imensa maioria dos delitos econômicos

são, e também os mais importantes, encontram seu marco de atuação no seio da empresa” (tn). 138 RIOS, Rodrigo Sánchez; LAUFER, Daniel. Apontamentos a respeito do concurso de crimes e do conflito

aparente de normas: a regra do antefato e do pós-fato punível coapenado no âmbito dos delitos econômicos. In:

SILVA FRANCO, Alberto; LIRA, Rafael (coords.). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2011. p. 168. 139 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 216.

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Dentre as características do DPE com maior impacto no problema hermenêutico do

concurso impróprio de crimes, destacam-se a ampliação do catálogo de bens jurídicos

supraindividuais (ordinariamente protegidos, como já afirmado, sob a técnica de perigo

abstrato, que dispensa resultado lesivo) e o intenso conteúdo normativo dos tipos penais

socioeconômicos.

Relativamente ao primeiro aspecto, a sensível ampliação dos âmbitos de proteção em

razão da definição de novos bens jurídicos conduz à superposição de áreas de tutela, pois os

contornos já não podem ser tão delimitados, o que aumenta a possibilidade de convergência de

normas incriminadoras para a reprovação do fato (isso reaviva os fenômenos do concurso de

crimes e do conflito aparente de normas, temas cuja análise será desenvolvida nos capítulos

seguintes). Um bom exemplo dessa situação são os setores de segurança alimentar e de proteção

à saúde do consumidor140: de um lado, proíbem-se com normas penais riscos dirigidos à

incolumidade dos alimentos dispostos ao consumo (vide, p.ex., o art. 272, do CP), de outro,

proíbem-se penalmente comportamentos de risco em geral à saúde de consumidor (cf. art. 7º,

IX, da Lei 8.137/90). Esses bens jurídicos supraindividuais reconhecidos no marco da atividade

econômica de produção, distribuição e consumo de produtos141 contêm invariavelmente áreas

de interferência, suscitando a repetição de reprovação jurídico-penal.

Quanto ao segundo aspecto (denso conteúdo normativo dos tipos socioeconômicos),

Rios e Laufer consignam que a maioria dos tipos penais socioeconômicos “possuem em sua

gênese redacional a presença incontestável de elementos normativos ou extrapenais já

existentes em outros delitos (cite-se, por exemplo, a expressão fraude na gestão fraudulenta e

as falsidades documentais e ideológicas inerentes ao delito tributário etc.)”142. Embora esse

apontamento seja preciso, deve-se acrescer que o setor repressivo em questão, mas do que se

valer amplamente de elementos normativos, utiliza com frequência outras técnicas de reenvio

em tipos abertos (leis penais em branco, elementos normativos de conteúdo jurídico e elementos

de valoração global do fato), que também suscitam o problema de convergência típica143.

A admissão e a solução do conflito aparente envolvem a atribuição de significação

jurídico-penal única a comportamentos ajustados a previsões típicas autônomas, que em

conjunto fornecem um sentido de desvalor unitário e acabado (unidade delitiva complexa, como

140 CAVERO, 2014, p. 124. 141 Consigne-se, porém, que não é unânime o tratamento dos delitos contra a saúde pública como delitos

econômicos. Nesse sentido: MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 126. 142 RIOS; LAUFER, 2011, p. 171. 143 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 128.

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se verá no próximo capítulo), notadamente quando houver interferência (lógica ou valorativa)

entre os conteúdos de injusto dos tipos legais. A admissão do conflito aparente implica concluir

que um dos injustos convergentes, embora conserve uma autonomia abstrata e conceitual, é

absorvido pelo injusto penal dominante, que se mostra suficiente para explicar o fato punível

globalmente considerado e aplicar a resposta penal adequada.

Para finalizar, deve-se pontuar que é determinante ao estudo em apreço a concepção de

direito penal que se tenha em mente. Um direito penal funcionalizado com a missão de

assegurar a vigências das normas, que prescinda de todo referencial relativo à objetividade

material (bens jurídicos), parece enfraquecer especialmente o critério da consunção (segundo a

concepção desta pesquisa), a ponto de torná-lo irrelevante ou quase isso – antecipe-se que

Jakobs não vê sentido na adoção de outros critérios adicionais ao da especialidade144. O estudo

da assimilação do desvalor de uma norma por outra, segundo a ofensividade revelada no caso

concreto145, aparenta ter mais força no marco de uma concepção de direito penal que opera com

a exclusiva proteção de bens jurídicos ou, como prefere Roxin, que se oriente à “proteção

subsidiária de bens jurídicos”146.

Mesmo sob concepções funcionalistas sistêmicas de estabilização das expectativas

normativas mais abrandadas, como a de Silva Sanchéz147 e de García Cavero, ambos no sentido

de que a legitimidade das normas penais repousa na identidade normativa essencial da

sociedade148 e no princípio da proporcionalidade, é possível antever dificuldades de assimilação

das categorias aqui expostas sem correspondente adaptação conceitual, pois elas têm, em maior

ou menor grau, arrimo no princípio da lesividade, especialmente a consunção. Por isso, o estudo

a seguir casa melhor com concepções de direito penal que não prescindam do conceito (crítico)

de bem jurídico, como, p.ex., a formulada por Zaffaroni149.

Uma vez analisados os aspectos sociais e jurídicos que, se bem legitimam a intervenção

estatal segundo a mecânica do direito penal econômico, ao mesmo tempo reavivam o conflito

aparente de normas penais, cabe examinar, na sequência, as características desse problema de

hermenêutica, seus pressupostos e critérios de solução, já problemáticos no âmbito do direito

144 A propósito disso, o capitulo 3, item 3.2, deste trabalho. 145 Uma definição sumular e superficial do critério da consunção. 146 ROXIN, 1997, p. 51. Não se ignora, porém, a propalada crise da teoria do bem jurídico, consubstanciada

no fato de que, quando assim deseja o legislador, novos bens jurídicos são criados, de modo que em vez de

funcionar como um mecanismo de contenção do poder punitivo, acaba mesmo o ampliando. 147 SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 113 et seq. 148 SILVA SÁNCHEZ, 2001, pp. 115-116. 149 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Derecho penal. Parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. pp.

53 e 484.

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penal nuclear. Não obstante a legitimidade da pretensão protetiva do DPE, sua compatibilidade

com o Estado de Direito implica em coibir eventuais excessos, para o que se devem buscar

critérios de racionalização do poder punitivo.

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2 O CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS E O CONCURSO DE CRIMES

2.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

A tarefa de enquadrar juridicamente um fato da vida é reconhecida como “um processo

muito complexo, que vai desde a simples subsunção lógica ou subsunção em sentido estrito até

os mais complexos juízos valorativos”150. O problema fundamental relacionado à subsunção

jurídico-penal consiste em selecionar os preceitos normativos abstratos mais adequados ao caso

concreto. A depender da situação fática deparada pelo intérprete, mais de um dispositivo penal

pode concorrer para seu tratamento normativo. E em concorrendo ao menos em tese mais de

uma norma penal para regular o fato, entram em cena as categorias dogmáticas conhecidas

como concurso de crimes e concurso/conflito de leis ou normas151.

A aplicação da lei penal a uma determinada situação fática sobre a qual incide em tese

mais de um preceito incriminador conduz, então, a dois impasses: determinar se a hipótese é

mesmo de pluralidade de delitos152, ocasião em que se estará diante do que a ciência penal

chama de concurso próprio de crimes e, ainda, apurar a relação havida entre essas normas

concorrentes, haja vista a possibilidade de que entre elas se estabeleça apenas um conflito

aparente153.

Adiantando-se o que será exposto melhor adiante, haverá concurso de crimes quando as

normas penais potencialmente incidentes admitirem aplicação simultânea ou conjugada;

haverá, porém, conflito/concurso aparente de normas quando essa incidência concorrente for

apenas virtual, mostrando-se suficiente a aplicação de somente uma única norma para esgotar

a reposta punitiva que o fato concreto merece154.

Note-se que o concurso de leis ou de crimes não se confunde com outro tipo de conflito

a que o julgador está obrigado a analisar, chamado diacrônico, que diz respeito à análise da

sucessão de leis penais no tempo. O denominado conflito sincrônico (i.e., concurso aparente e

150 MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdución al derecho penal. 2. ed. Montevideo/Buenos Aires: B de F,

2001. p. 247 (tn). 151 A controvérsia terminológica relacionada ao conflito aparente será abordada adiante. 152 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de derecho penal. La ley y el delito. 3. ed. Buenos Aires:

Abeledo-Perrot, 1958. p. 527. 153 BACIGALUPO, Enrique. Derecho penal. Parte general. 2ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1999. p. 569. 154 Registre-se, contudo, a possibilidade de em determinado caso concreto haver o reconhecimento de

conflito aparente entre dois tipos penais e o crime remanescente estar ainda em concurso com um terceiro.

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concurso efetivo) depende da vigência simultânea das leis em confronto, o que não ocorre em

caso de novatio legis in melius ou de abolitio criminis155.

Escuchuri Aisa pontua que no concurso de leis se trata de averiguar se no caso concreto

“um só dos preceitos esgota ou contém de maneira exaustiva o desvalor do fato ou se, ao

contrário, cada um deles deixa sem valorar aspectos relevantes para os outros, como o que é

necessária a aplicação de todos estes”156. O concurso de crimes afasta o conflito aparente de

normas e vice-versa, de modo que os institutos se relacionam entre si como verso e anverso em

caso de convergência de normas penais157. Sustenta Busato que o estudo de um fenômeno

concursal remete ao outro, pois “o método de interpretação empregado para a identificação da

unidade/pluralidade de delitos implica necessariamente passar pela identificação dos tipos

aplicáveis aos casos, o que exige a realização da interpretação que, por vezes, passa

necessariamente pela questão do conflito aparente de norma”158. Stratenwerth defende o exame

do concurso impróprio (conflito aparente) como etapa prévia ao do concurso próprio159. Assim

também, Jescheck e Weigend, que tratam o concurso próprio (ideal e real) e o impróprio

(concurso aparente, rebatizado por ambos de “unidade da lei”) em conjunto – embora o primeiro

já adotasse essa denominação quando doutrinava sozinho160. No âmbito do direito penal

econômico, García Cavero também confere às temáticas mesmo tratamento setorial, sob o

título: “o concurso nos delitos econômicos”.161

Contudo, essa não é uma questão pacífica. Jiménez de Asúa, por exemplo, considerava

o conflito aparente de normas tópico pertinente à interpretação de leis e o concurso de delitos

questão pertinente à teoria da aplicação da pena162. Com semelhante posição, Palma Herrera163.

Sebastián Soler, por sua vez, alocava o conflito aparente em tópico autônomo pertinente à

155 ALBERO, Ramón García. 'Non bis in idem' material y concurso de leyes penales. Barcelona: Cedecs

Editorial, 1995. p. 211. Com um estudo detalhado, confira-se, entre nós: CRUZ, Flavio Antônio. O confronto

entre o concurso formal de crimes e o concurso aparente de normais penais no direito brasileiro: revisão

crítica sob os influxos de uma hermenêutica emancipatória. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Paraná,

Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. Curitiba, 2014. p. 704 e ss. 156 ESCUCHURI AISA, Estrella. Unidade de ação e pluralidade delitiva. In: BADARÓ, Gustavo Henrique

(org.). Direito penal e processo penal: parte geral. Doutrinas essenciais. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2015. p. 910. 157 RIOS; LAUFER, 2011, p. 140. 158 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral, v. 1. São Paulo: Atlas, 2017. p. 876. 159 STRATENWERTH, Günter. Derecho penal. Parte General I. El hecho punible. 4.ed. Buenos Aires,

Hammurabi, 2005. pp. 533 e 540. 160 JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 5a. ed.

Granada: Comares, 2002. p. 788 (tn). 161 CAVERO, 2014, p. 709 et seq. (tn). 162 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de derecho penal. La ley y el delito. 3.ed. Buenos Aires:

Abeledo-Perrot, 1958. p. 142. 163 HERRERA, José Manuel Palma. Los actos copenados. Madrid: Dykinson, 2004. p. 46.

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subsunção típica, apartando-o sistematicamente tanto da teoria da interpretação como do

concurso164.

A doutrina nacional majoritária tem tradicionalmente separado as temáticas, como se vê

em Fragoso165, Aníbal Bruno166, Regis Prado167, Mayrink da Costa168, Dotti169, Schmidt170 entre

outros. Basileu Garcia171, Magalhães Noronha172, Frederico Marques173, Cirino dos Santos174 e

Busato175, por sua vez, estudam-nas em conjunto, por considerarem que a possibilidade de

concorrência autêntica de normas penais só se confirmará caso a situação não seja de

concorrência aparente.

Não obstante as divergências, o manuseio prático desses institutos pressupõe

necessariamente o domínio de um para que se decida pelo outro, por haver relação de exclusão

recíproca entre eles, de modo que considerá-los temáticas estranhas ou independentes não ajuda

na solução prática dos problemas surgidos da convergência de normas penais176. Além de

aplicação de lei pressupor invariavelmente interpretação, a identificação da unidade ou

pluralidade delitivas reclama a perspectiva do concurso aparente de normas, convindo estudar

os institutos em conjunto177. Essa também é a posição de Figueiredo Dias que, ao tratar do

conflito aparente de normas (por ele designado “unidade de norma ou de lei”), sublinha ser um

“‘pressuposto’ da indagação material da unidade ou pluralidade de crimes; por isso, uma tal

164 SOLER, Sebastián. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, t. 2, 1992.

p. 204. 165 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito penal (parte geral). Atual. Fernando Fragoso. 17. ed.

Rio de Janeiro: Forense: 2006. p. 455. 166 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte geral: Tomo 1.º. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 260. 167 PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 12. ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 273. 168 COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: volume 1, tomo I – parte geral. 6. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1998. p. 421. 169 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

p. 364. 170 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Concurso aparente de normas penais. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, n. 33, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar. 2001. p. 78. 171 GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. Vol. I, Tomo II. 4.ed. São Paulo: Max Limonad, 1972.

p. 507. 172 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 1. Introdução e parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva,

1978. p. 293. 173 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Vol. II. 1.ed. Campinas: Bookseller, 1997. p.

436. 174 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 417. 175 BUSATO, 2017, p. 876. 176 BACIGALUPO, 1999, p. 572. 177 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal. Parte general. 8ª ed.

Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 463. Assim também: BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. Paulo José

da Coste Jr. e Alberto Silva Franco. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. pp. 291-292. Vide ainda: CRUZ,

2014, p. 719.

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operação deve ser levada a cabo – e igualmente a sua exposição sistemática – antes que se

afronte o problema substancial da unidade e pluralidade do facto punível”178.

Mencione-se, ainda, a ponderação de Rios e Laufer à tendência doutrinária de aglutinar

o conflito aparente de normas e o concurso de crimes dentro de uma só disciplina dogmática

denominada “unidade e pluralidade de delitos”, tal como o fazem, por exemplo, Jescheck e

Weigend. A justificativa é de que há “coincidência de fundamentação lógica”179 entre uma das

modalidades de concurso de crimes (o ideal/formal) e um dos critérios de resolução do conflito

aparente de normas (a subsidiariedade), e também há certa conexão entre o concurso

real/material e a consunção (outro critério de resolução do conflito aparente), “sobretudo

quando por meio de um entendimento valorativo na hipótese de pluralidade de condutas

delitivas se deduzir que um fato delitivo regulado em outra norma, na verdade constitui uma

conduta anterior ou posterior do fato previsto exaustivamente pela outra norma

incriminadora”180. Noutras palavras, Rios e Laufer reconhecem pontos de contato entre

categorias relativas a um dos institutos (concurso próprio) com as de outro (concurso

impróprio), especialmente em caso de pluralidade de condutas puníveis, momento em que se

investiga se na situação concreta cabe aplicar a regra do concurso material ou reconhecer a

consunção para que prevaleça apenas a norma dominante.

A abordagem apartada das temáticas pela literatura técnica é potencializada pelo distinto

tratamento legal de algumas codificações. Há países que não disciplinam em lei o conflito

aparente de normas, fazendo-o apenas quanto ao concurso de crimes (v.g. Brasil, Alemanha e

Portugal), enquanto outros regulamentam ambos os institutos em seus respectivos códigos (v.g.

Espanha – art. 8 e Itália – art. 15). Não obstante a ausência de previsão legal no Código Penal

brasileiro, isso não autoriza a conclusão de que a matéria tem menor relevância; antes o

contrário, conforme a clássica observação de Hungria, seria indesejável que o sistema

normativo apresentasse contrariedades ensejadoras de “perplexidades e intoleráveis soluções

pelo bis in idem”, pois o direito penal deve funcionar como “uma unidade coordenada e

harmônica”181. Zaffaroni e Pierangeli afirmam que o que a lei não prevê são as hipóteses

específicas de concurso aparente de tipos, “coisa que, embora algumas leis estrangeiras o façam,

carece de maior importância, porque ainda que a lei nada diga, a ninguém pode ocorrer a

178 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral

do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra, 2007. p. 992. 179 RIOS; LAUFER, 2011, p. 143. 180 RIOS; LAUFER, 2011, p. 143. 181 HUNGRIA, Nelson; DOTTI, René Ariel. Comentários ao Código Penal: dec.-Lei n. 2.848, de 7 de

dezembro de 1940; Lei n. 7.209, de 11 de junho de 1984. 6. ed. Rio de Janeiro: LMJ, 2014. p. 95.

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existência de uma concorrência – que não seja meramente aparente – entre a tentativa e a

consumação do delito”182. A disciplina do concurso aparente deflui, portanto, da interpretação

racional dos injustos penais, justificando-se em imperativos como segurança jurídica,

racionalidade e proporcionalidade da intervenção penal, e controle democrático do exercício do

poder de punir.

Quanto às terminologias empregadas para referir o conflito aparente (termo recorrente

neste trabalho), há considerável divergência na doutrina nacional e estrangeira, conforme

apontam Cruz183 e Horta184, pelas mais variadas razões. Como exemplo, mencionem-se as

expressões “concorrência de leis”, “concurso de leis”, “concurso aparente de normas”,

“concurso aparente de leis”, “concurso aparente de tipos”, “concurso impróprio” e “unidade de

lei”185. Sem entrar no mérito de por que uma expressão mereça ser descartada em face da outra,

é razoável a orientação de Horta no sentido de que a designação concurso (ou conflito) aparente

de normas faz “jus, por um lado, à constatação inicial de superposição das normas, ou plural

subsunção do fato, ressaltando igualmente a operação posterior, de aplicação exclusiva de uma

delas, obediente ao princípio ‘non bis in idem’”186. Ou seja, a nomenclatura “conflito aparente”

tem o mérito de abranger tanto a questão da incidência potencial de mais de uma norma penal,

como a operação posterior relacionada à escolha de apenas uma delas no momento da aplicação

da pena.

Se bem que as expressões “unidade de lei” e “concurso impróprio”, utilizadas por

Jescheck-Weigend187, Zaffaroni188 e Stratenwerth189 refletem também a ideia de algo que

formalmente ou em teoria é uma coisa, mas substancialmente ou na prática é outra, não havendo

razão para rejeitá-las. De qualquer forma, como se trata de uma questão terminológica e,

portanto, de menor importância, pode-se aceitar e considerar equivalentes as referidas

denominações190 – nesta pesquisa se empregará com frequência “conflito” ou “concurso

aparente”.

182 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro,

volume 1: parte geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. pp. 628-629. 183 CRUZ, 2014, p. 713 e ss. 184 HORTA, Frederico Gomes de Almeida. Do concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2007. pp. 24-31. 185 RIOS; LAUFER, 2011, pp. 142-143. 186 HORTA, 2007, p. 29. 187 JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 763 e 788 (tn). 188 ZAFFARONI, 2002, p. 853 (tn). 189 STRATENWERTH, 2005, p. 540 (tn). 190 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo II: Especiales formas de aparición del delito.

Madrid: Civitas, 2014. p. 998.

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O conflito aparente de normas não é uma temática simples, conforme reconhece a

literatura especializada191. Fragoso abria seu estudo com a advertência de que o tema era um

dos “mais árduos e complexos do direito penal, pela ausência de normas expressas que o

regulem”192. Na visão de Ulysses Bezerra, trata-se de um dos assuntos “mais tormentosos da

dogmática jurídico-penal”, pois, “são infindáveis as controvérsias acerca do conteúdo dos

princípios [de resolução do conflito de normas], bem como os efeitos de sua aplicação em casos

concretos”193. Rios e Laufer anotam que embora exista na doutrina a pretensão de simplificação

dos argumentos para delimitar o concurso de crimes e o conflito aparente de normas, “nem

sempre se consegue desenvolver um raciocínio explicativo que defina a incidência e o alcance

de cada um deles justamente pelas dificuldades não sanadas na doutrina, as quais repercutem

na seara jurisprudencial”194.

Não obstante, as dificuldades ínsitas ao assunto não devem, naturalmente, diminuir o

interesse por ele; muito pelo contrário, por se tratar de matéria relacionada à aplicação da lei

penal e, portanto, à medida da punição que o autor do fato punível deverá suportar, é preciso

reservar ao tema a importância que ele merece, sobretudo no âmbito do direito penal

econômico, onde surge intensificado.

Antes de se examinar mais detidamente as diferenças entre o conflito aparente e o

concurso de crimes, convém analisar previamente os conceitos de ação, resultado e fato punível

no âmbito da teoria do concurso, porque além de serem expressões recorrentes no âmbito do

concurso em sentido amplo pelas legislações e pela doutrina, são elementos-chave para

distinguir os institutos e para melhor compreendê-los.

2.2 CONCEITO DE UNIDADE DE AÇÃO PARA A TEORIA DO CONCURSO

A determinação da unidade e pluralidade de ações e de delitos, indispensável ao

enfrentamento da temática do concurso próprio de crimes195, interessa igualmente à

compreensão do concurso impróprio, porque não necessariamente uma pluralidade de ações

puníveis conduz ao reconhecimento da pluralidade de crimes. Nada impede que diferentes

191 HERRERA, 2004, p. 20. 192 FRAGOSO, 2006, p. 457. 193 BEZERRA, Ulysses Gomes. Princípios da Consunção: fundamentos e critérios de aplicação. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, n. 87. São Paulo: RT, nov-dez, 2010. 194 RIOS; LAUFER, 2011, p. 141. 195 ROXIN, 2014, p. 943. No mesmo sentido: ESCUCHURI AISA, 2015, p. 915.

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ações se submetam a uma só norma penal dentre as formalmente convergentes na dinâmica do

caso concreto196.

O desafio hermenêutico do concurso em sentido amplo (próprio e impróprio, portanto)

é incrementado pela constatação de que fatos penalmente relevantes abrangem, não raro, várias

ações (principalmente no âmbito do direito penal econômico), o que conduz à necessidade de

se conceituar, antes, unidade de ação na perspectiva da teoria do concurso.

Observe-se, com Roxin, que o conceito de ação para efeito da disciplina do concurso

não se identifica com o conceito de ação da teoria do delito (o fato como ação típica, antijurídica

e culpável)197. O autor alemão esclarece que o conceito sistemático de ação é “pré-típico”

(abarca tanto comportamentos típicos quanto atípicos), ao passo que o conceito de ação da

teoria do concurso só descreve comportamentos típicos “e em determinadas circunstâncias pode

incluir dentro de si numerosas ações típicas”.198 Jescheck e Weigend, por sua vez, sustentam a

irrelevância do conceito jurídico-penal de ação à teoria do concurso com o argumento de que

aquele se presta a determinar as exigências mínimas para que um comportamento humano seja

“acessível à valoração penal”199, sem considerar a hipótese de concorrência de violações e suas

consequências200.

Com uma apresentação preliminar do que se entende por unidade jurídica de ação,

Politoff L., Matus A. e Ramirez G. afirmam que um único delito se comete quando se realiza

apenas uma vez a descrição típica legal, independentemente do “número de ações em sentido

natural realizadas pelo autor (movimentos corporais dirigidos pela vontade)”201. Jiménez de

Asúa exemplificava a unidade normativa de ação punível em meio à pluralidade de movimentos

naturais do agente, com este exemplo: “matar com dez punhaladas (dez golpes com uma faca)

é apenas um ato ou ação”202. Portanto, percebe-se que para o direito “carece de utilidade a

decomposição do comportamento humano em frações minúsculas conforme um critério

médico”203, nas palavras de Jescheck e Weigend, que afirmam ser decisivo para a delimitação

196 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 493. 197 ROXIN, 2014, p. 944. 198 ROXIN, 2014, p. 944 (tn). Observe-se, porém, que há modelos de teoria da conduta em que essa

afirmação é inválida, por simplesmente não adotarem conceitos pré-típicos de ação (como a concepção

significativa de ação). 199 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 765 (tn). 200 Sob uma visão mais temperada, levando em conta a estrutura finalista da ação humana, confira-se a

abordagem de: ESCUCHURI AISA, 2015, p. 945. 201 POLITOFF L., Sergio; MATUS A., Jean Pierre; RAMIREZ G., Maria Cecilia. Lecciones de derecho

penal chileno. Parte general. 2. ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2004. p. 445 (tn). 202 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 531 (tn). 203 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 764 (tn).

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da unidade de ação o sentido dos tipos legais infringidos, deduzido por via interpretativa204.

Bettiol também enfatizava que ação é um “conceito de valor”, não “naturalístico-

mecanicista”205.

Zaffaroni e Pierangeli anotam que não seria razoável, tampouco lógico, que o conceito

jurídico de conduta equivalesse ao de ação fisiológica (como um movimento muscular, por

exemplo). A maioria dos tipos penais requer, quando não uma pluralidade, pelo menos alguns

movimentos corporais para configuração de uma conduta juridicamente punível (como nos

casos do roubo e da conjunção carnal), independentemente da possibilidade de se incorrer em

crime com apenas um único movimento corporal (v.g. arremesso de uma bomba que mata

alguém)206. Explicam os autores que os vários movimentos exteriores (naturais ou fisiológicos)

podem ser considerados uma conduta (juridicamente) única quando se constata um plano

comum do autor, ou seja, uma unidade de resolução (“fator final”207) complementada, porém,

por um fator normativo “que a converta em uma unidade de desvalor”208 – trata-se de uma

concepção marcadamente finalista, herdada de Welzel209. O plano comum do autor deve se

correlacionar, portanto, com uma unidade de sentido normativa, “um sentido unitário para a

proibição”210, que contenha em si uma unidade de desvalor. Muñoz Conde, com mesmo

enfoque finalista, fixa igualmente o significado de unidade jurídica de ação a partir dos fatores

final e normativo211.

É comum a menção ao critério da “concepção natural de vida” para determinação da

unidade de ação punível. Sob esse conceito, os vários movimentos corporais correspondem a

uma só ação quando assim for possível conceber a partir dos usos e costumes da sociedade,

auxiliados pelos dados de unidade de propósito e de conexão espaço-temporal212. Não obstante,

o critério mais aceito pela literatura especializada é mesmo o normativo, extraído do “sentido

do tipo correspondente”213. A partir dele, a ação punível unitária corresponde à prática dos

204 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 766. 205 BETTIOL, 1971, p. 292. 206 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007. p. 617. 207 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 617. 208 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 617. 209 WELZEL, Hans. Derecho penal. Parte general. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956. pp.

215/217. 210 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 618. Esta orientação consta também em: ZAFFARONI, 2002, p.

859. 211 MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 464. 212 ESCUCHURI AISA, 2015, p. 920. Entre nós, veja-se o trabalho de: CRUZ, 2014, p. 461. 213 MIR PUIG, Santiago. Derecho penal. Parte general. 9. ed. Montevideo/Buenos Aires: B de F, 2015. p.

649 (tn).

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vários atos que compõem o objeto único de valoração dado pelo injusto penal214, não

importando a possibilidade de fracionamento naturalístico. Segundo Horta, “as parcelas do

comportamento humano que interessam ao aplicador da norma penal só podem ser aquelas

recortadas pelo tipo que as descreve”, enquanto “modelo legal de conduta incriminada”215; a

consideração exclusiva de “critérios pré-jurídicos, a outra coisa não conduz senão ao arbítrio e

à insegurança na aplicação do direito”216.

Posição similar é a de Tavares, que entende a unidade de ação mais sob uma perspectiva

comunicativa, i.e., o sentido normativo expressado pela ação (ou ações) a partir de parâmetros

ou referenciais dados pela norma, especialmente o bem jurídico tutelado, não importando o

número de processos causais acionados pelo agente, desde que todos congreguem um mesmo

sentido. Destaca-se: “esse complexo de relações entre a atividade causal e a lesão ou o perigo

de lesão ao bem jurídico é que deve ser tomado como base para a determinação da unidade ou

pluralidade de ações”217. Assim, o sujeito que durante o furto de uma residência resolve

arrombar um cofre e o danifica, comete uma única ação e um único delito de furto, pois “a

orientação da atividade seguiu o mesmo sentido de lesão de bem jurídico, ou seja, o sentido de

subtrair objetos situados naquela residência”218.

Para ilustrar, vejam-se ainda estes exemplos de unidade jurídica de conduta

apresentados por Zaffaroni e Pierangeli: a) quando o tipo, por sua complexidade imanente

(delito complexo), requer expressamente uma pluralidade de movimentos (v.g. extorsão e

estelionato); b) quando o tipo admite uma eventual pluralidade de movimentos (v.g. homicídio

executado em etapas); c) quando um determinado crime é mero exaurimento de um anterior

(v.g. falsificação e uso de documento falso)219; d) nos delitos permanentes, onde os movimentos

em cadeia se prestam a manter o estado consumado; e) o chamado “verdadeiro delito

continuado”220 – este, aliás, um exemplo emblemático da complexidade do assunto.

No delito continuado chamado “verdadeiro” que, segundo Zaffaroni e Pierangeli, não

se confunde com a figura prevista no art. 71, do CP, denominada por ambos de “falso delito

continuado” ou “concurso material atenuado”221 (cujas razões não serão aqui abordadas), existe

uma repetição de condutas típicas, separadas no tempo e no espaço, que não desnatura a unidade

214 BACIGALUPO, 1999, p. 583. 215 HORTA, 2007, p. 44. 216 HORTA, 2007, p. 43. 217 TAVARES, 2009, pp. 496 e 497. 218 TAVARES, 2009, p. 497. 219 Caso clássico de conflito aparente de normas, dirimível pelo critério da consunção. 220 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 619. 221 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 625.

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jurídica de conduta, mas apenas aumenta seu conteúdo de injusto222. Nesse sentido, caso a

afetação ao bem jurídico admita gradação, uma interpretação racional da norma penal admite

que se conceba a repetição típica como uma mera progressão na realização de um único injusto

penal.

Assim por exemplo, quem comete pequenos furtos durante meses contra uma mesma

pessoa visando à subtração de uma quantia considerável para não ser descoberto, não comete

tantos furtos quanto forem suas subtrações isoladas; tampouco quem passa horas falsificando

papel-moeda não comete tantas falsificações quanto forem as horas dedicadas ao crime. Não há

vários crimes, mas um único, mais grave223. Zaffaroni e Pierangeli concluem, então: “no crime

continuado, a realidade da continuidade se traduz numa única ação típica, e os atos sucessivos

do autor são tão-somente graus progressivos da realização do conteúdo injusto do crime”224.

Contudo, é bastante polêmica a aceitação da unidade de ação punível em casos tais225. A esse

tema se retornará no último capítulo, ao se analisar a consunção no âmbito do crime de

sonegação fiscal (Lei 8.137/90, art. 1°).

Como já dito, também se considera conduta jurídica única o crime complexo (CP, art.

101), que se entende pela reunião em uma única norma penal de atos delitivos que isoladamente

considerados constituem uma figura típica autônoma226. Assim também, os chamados tipos

mistos alternativos, que, segundo Dotti, descrevem “não uma, mas várias hipóteses de

realização do mesmo fato delituoso. A característica destes tipos é que as várias modalidades

são fungíveis e a realização de mais de uma não altera a unidade do delito”227 – pontue-se,

contudo, que as diferentes modalidades de conduta devem recair sobre o mesmo objeto material

para que se cogite de tipo misto alternativo. Portanto, trata-se de figuras penais que mesmo

prevendo variadas maneiras de o agente praticar o crime, mantêm-se normativamente como

delito único, ainda que o agente nelas incorra simultaneamente, a exemplo do crime de tráfico

de entorpecentes, previsto no art. 33, da Lei 11.343/06228. Cite-se, por fim, a categoria dos

crimes plurissubsistentes, cujo “processo executivo se compõe de vários atos ou etapas, de

222 JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 767-770. 223 Jiménez de Asúa enfatiza que o crime continuado não é um caso de concurso de crimes, senão de delito

único, uma unidade real: JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 529. 224 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 621. 225 ROXIN, 2014, p. 949 et seq. 226 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense.

2009. p. 273. 227 DOTTI, 2010, p. 367. Assim também: BETTIOL, 1971, p. 296. 228 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1391929/RJ. Rel. Min. Ribeiro Dantas. 5ª Turma. Julgado

em 08/11/2016. DJe 14/11/2016.

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maneira a caracterizar um iter criminis. É o oposto do crime unissubsistente, ou seja,

caracterizável em um único ato, assim como ocorre com a injúria verbal”.229

Agora, embora o sentido normativo extraído do tipo legal de crime e do bem jurídico

tutelado sejam referenciais fundamentais para a determinação da unidade de ação punível, isso

não significa que haverá tantas ações puníveis quanto forem os modelos legais de crime

formalmente preenchidos, ou melhor, tantos crimes quanto forem as normas incriminadoras

aplicáveis em tese ao fato230. Primeiro, porque a própria lei reconhece a hipótese de violação

de mais de uma norma penal mediante uma única conduta (CP, art. 70): no concurso

ideal/formal, há pluralidade de infrações à lei penal com a prática de uma só conduta, sem que

isso determine a artificial multiplicação do número de ações. Noutras palavras, se o direito pode

desvalorar uma mesma conduta sob mais de uma forma, ou ainda, atribuir significação

normativa unitária a um conjunto ordenado de movimentos corporais, a isso não corresponde a

que o direito possa criar condutas231. Segundo, porque ainda que os movimentos corporais se

enquadrem em mais de um tipo legal, o decisivo ao reconhecimento da unidade jurídico-

normativa, pelo menos para a doutrina majoritária, será o fator final (resolução única) e a

unidade de desvalor (desvalor jurídico unitário) extraída do confronto entre os tipos, a

revelarem um só conteúdo de injusto.

É por isso que comete apenas uma ação punível de roubo (CP, art. 157) quem constrange

para subtrair (fator final), não obstante as previsões típicas autônomas de constrangimento

ilegal (CP, art. 146) e furto (CP, art. 155). Por haver uma previsão delitiva que esgota a

significação fático-normativa concreta (roubo), não se pode sustentar a existência de ações

puníveis autônomas, uma de constranger e outra de subtrair, mesmo havendo correspondência

típica para cada uma delas232. Escuchuri Aisa refere, por essa razão, a importância do caso

concreto como referencial para delimitação da unidade normativa de ação233.

Os exemplos acima servem para ilustrar que na verificação da unidade e pluralidade

delitivas não se podem olvidar o sentido normativo dos atos e a compreensão de que o direito

dá à realidade o sentido que pretende, não tendo importância eventual sentido ontológico ou

pré-jurídico de ação para o exame de sua unidade jurídica, como salienta Mir Puig234. A

229 DOTTI, 2010, p. 464. 230 ESCUCHURI AISA, 2015, p. 916. 231 Sublinhe-se, porém, que sob a concepção de um direito penal mais orientado ao mundo do dever ser,

como se dá com a teoria social da ação, é possível a criação de condutas normativamente. 232 ZAFFARONI, 2002, p. 859. 233 ESCUCHURI AISA, 2015, p. 947. 234 MIR PUIG, 2015, p. 649.

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intenção do autor torna-se relevante quando investida de sentido social, ou seja, quando

analisada segundo os “significados compartilhados socialmente”235. Em resumo, a ação punível

será única conforme o seu fator final e o sentido normativo extraído dos tipos legais de crime

(especialmente o bem jurídico), que em conjunto venham exprimir apenas um conteúdo de

desvalor jurídico-penal (conteúdo de injusto). Não é ociosa a discussão sobre unidade ou

pluralidade de ações puníveis, como se verá na ocasião do exame dos pressupostos ao

reconhecimento do conflito aparente de normas.

2.3 AÇÃO, RESULTADO E FATO PUNÍVEL NA TEORIA DO CONCURSO

Outra discussão teórica preliminar consiste em aclarar o significado das referências à

“ação” e “fato”, comuns no âmbito da teoria do concurso. Há variações terminológicas nas

legislações e na doutrina, que ora utilizam o termo “unidade de fato”, ora a expressão “unidade

de ação” para disciplinar o concurso ideal de crimes e/ou o conflito de normas.

O Código Penal brasileiro diferencia o concurso material (art. 69) do formal (art. 70)

conforme o número de ações praticadas; nada diz sobre o conflito aparente. Nélson Hungria,

responsável pela elaboração do Anteprojeto do Código Penal de 1963, pretendeu disciplinar em

lei o conflito aparente de normas nestes termos:

Art. 5º Quando a um mesmo fato podem ser aplicadas duas ou mais normas penais,

atende-se ao seguinte, a fim de que só uma pena seja imposta: a) a norma especial

exclui a geral; b) a norma relativa a crime que passa a ser elemento constitutivo ou

qualificativo de outro é excluída pela norma atinente a este; c) a norma incriminadora

de um fato que é meio necessário ou normal, fase de preparação ou execução de outro

crime, é excluída pela norma a este relativa. Parágrafo único. A norma penal que prevê

vários fatos, alternativamente, como modalidades, de um mesmo crime, só é aplicável

uma vez, ainda quando os ditos fatos são praticados, pelo mesmo agente,

sucessivamente236.

Embora sua proposta ainda hoje encontre adeptos237, ela foi rejeitada por Fragoso na

ocasião, sob o argumento de que seria necessário recorrer-se a “normas demasiadamente vagas,

235 CRUZ, 2014, p. 209. Embora se analise, aqui, o conceito de unidade de ação para a disciplina do

concurso, Flavio Cruz defende uma compreensão eclética de ação para a teoria do delito. 236 PRADO, 2013, p. 274. 237 CARVALHO FILHO, José Cândido. Concurso aparente de normas penais. Rio de Janeiro: Revan,

2009. pp. 9-10 e 48. Este autor é peremptório: “O silêncio da lei tem servido apenas para aguçar a gravidade do

castigo. Só o código tem a capacidade de divulgar e exigir a aplicação das normas de direito. A jurisprudência não

tem força para obrigar, de modo incontestável, a aplicação de suas decisões”. Observe-se, a propósito, que o

Projeto de Código Penal em discussão no Congresso é uma nova tentativa de se regulamentar em lei a matéria

(PLS 236/2012, art. 12).

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que nem sempre encontrariam neste imenso país, juízes bastante esclarecidos para aplica-las”,

ao que complementou: “não é preciso lei para resolver os casos em que duas ou mais normas

se excluem por necessidade lógica ou de valoração jurídica do fato”238.

Defendendo a inconveniência de se disciplinar em lei a matéria, Jescheck e Weigend

afirmam: “por serem inabarcáveis as possibilidades que se derivam, o legislador, com acerto,

renunciou fixar exteriormente por meio de regras gerais as distintas relações de

concorrência”239. Zaffaroni e Pierangeli sustentam que é função da doutrina e da jurisprudência

a interpretação lógica dos tipos penais, sendo que a lei, em caso de “preciosismo extremado”,

somente poderia enunciar os princípios gerais do conflito aparente, “sob o risco de limitar a

elaboração lógica dos textos, por falta de previsão de hipóteses ainda não estuadas na ciência

jurídica”240. Essa também é a posição de Flavio Cruz241, Figueiredo Dias242 e de Roxin243.

Os Códigos Penais alemão, português e chileno também disciplinam apenas o concurso

de crimes. O Código Penal alemão, em seu §52, utiliza os termos “fato” e “ação” para

disciplinar o concurso ideal/formal, prevendo sob a rubrica “unidade de fato” a punição em

concurso de quem com “uma mesma ação” punível infringe mais de uma lei penal ou a mesma

lei várias vezes. O concurso real/material, previsto no §53, contempla a expressão “fatos

puníveis”.244 O Código Penal português, por sua vez, não distingue concurso formal de

concurso material (art. 30.º-1): ou haverá concurso efetivo de crimes, simplesmente,

determinado pelo “número de tipos de crime efetivamente cometidos”, ou unidade de fato

punível245. Por fim, o Código Penal chileno utiliza a expressão fato em relação ao concurso

ideal (art. 75): “quando um mesmo fato constitui dois ou mais delitos” (tn); já quanto ao

concurso material, a previsão legal é: “ao culpável por dois ou mais delitos” (tn)246. Os três

códigos não regulam o conflito aparente de normas, a não ser em relação aos casos de

subsidiariedade expressa (ou seja, quando determinado tipo legal ressalva sua aplicação à

prática de um crime principal mais grave).

Um detalhe interessante em relação à legislação alemã é que nela o concurso formal

segue a regra da absorção (§52, II), ou seja, como regra geral, o crime de pena mais grave

238 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 208. 239 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 789 (tn). 240 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 628. 241 CRUZ, 2014, p. 810. 242 DIAS, 2007, p. 1002. 243 ROXIN, 2014, p. 997. 244 HORTA, 2007, p. 36; ROXIN, 2014, pp. 981. 245 DIAS, 2007, p. 981. Como anota Escuchuri Aisa, a legislação penal da Áustria, Suíça e França também

preveem uma única consequência jurídica para o concurso de crimes: ESCUCHURI AISA, 2015, p. 910. 246 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, p. 446.

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absorve o que contempla pena mais branda, o que poderia conduzir à afoita conclusão de que

não teria relevância prática distinguir o concurso ideal do conflito aparente de normas. Contudo,

como observa Roxin, o princípio da absorção se complementa com as previsões do §52 II, III

e IV, que preveem, respectivamente: a) o denominado “efeito de bloqueio das leis penais mais

benignas”, consistente na proibição de que a pena concreta resultante do delito mais grave seja

inferior à que as outras leis aplicáveis permitiriam (na legislação penal alemã não há previsão

de pena mínima, apenas a máxima); b) a previsão de aplicação de penas acessórias e multa

cumulativamente; c) a obrigação de o juiz a referir expressamente, na sentença, as normas penas

infringidas na declaração de culpabilidade, como uma reprovação simbólica adicional do

agente247.

O Código Penal italiano descreve o concurso formal (art. 81) a partir da unidade de ação:

“quem com uma só ação ou omissão...” (tn); já o concurso material (art. 72 e ss.) é expresso na

fórmula: “ao culpável de mais de um delito...” (tn), sem utilizar os termos ação e fato, e o

conflito de normas, previsto no art. 15, também não alude a fato ou ação, mas à regulação de

uma “mesma matéria” (tn) por mais de uma lei ou disposição legal. Na Espanha, a expressão

utilizada é “fato” tanto para o concurso formal (art. 77): “um só fato constitua dois ou mais

delitos...” (tn), como para o conflito aparente (art. 8): “os fatos suscetíveis de ser qualificados...”

(tn); o concurso real (art. 73) é expresso nesta fórmula: “ao responsável por dois ou mais

delitos...” (tn). Na doutrina, é também comum encontrar os termos ação e fato no tratamento do

conflito aparente, notadamente quando se apresentam os pressupostos do instituto. A fórmula

geralmente é a seguinte: “quando em relação à uma ação (ou fato) punível aparentemente incidir

mais de uma norma penal, aplica-se...”

2.3.1 Ação punível vs. fato punível

Horta, com base em Bettiol e Jakobs, afirma que ação punível corresponde ao

comportamento delitivo em si mesmo e fato significa a ação acompanhada de seu resultado

lesivo. Fato delitivo, segundo o autor, seria algo mais amplo que ação ou omissão, portanto:

“enquanto estas se referem apenas ao processo executivo, ao comportamento lesivo, aquele

abarca também a própria ofensa – resultado – causada pelo comportamento”248. Segue daí que,

247 ROXIN, 2014, pp. 979-980 e 997 (tn). 248 HORTA, 2007, pp. 65-68. Realmente, Bettiol entende que se uma única conduta produz mais de um

evento lesivo, não haverá unidade de fato punível, mas pluralidade de fatos: “Dada a pluralidade dos eventos, os

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no concurso formal, há uma única ação com necessária pluralidade de fatos puníveis (estes,

determinados pelo número de infrações à lei penal mediante uma só ação); ao passo que no

conflito aparente, uma pluralidade de ações puníveis pode ser considerada ainda assim um único

fato (infração a uma só norma), caso a aplicação de apenas uma norma se mostre suficiente no

caso concreto. Em conclusão, o pressuposto do conflito aparente, segundo Horta, seria, em

verdade, a unidade de fato (infração única à lei), não a unidade de ação punível (que, aliás, pode

determinar mais de uma violação à lei e, consequentemente, caracterizar mais de um fato

punível). Nas palavras de Horta:

a unidade ou pluralidade de fatos nem sempre corresponde à unidade ou pluralidade

de ações, já que uma única ação pode ser determinante de uma pluralidade de fatos,

como ocorre no concurso formal de delitos, assim como pode um mesmo fato, isto é,

um mesmo conteúdo de injusto ser determinado por uma pluralidade de ações,

suportantes de tipos de delito diversos, aparentemente concorrentes, como são os

anteriores e posteriores impunes ou coapenados.249

Ao compreender a unidade de fato como um elemento conceitual do concurso ideal,

Roxin também parte da premissa de que fato punível é ação mais seu resultado (uma unidade

de fato pressupõe a realização de um resultado através de uma ação), mas, ao contrário de Horta,

consigna que “à unidade de ação se devem adicionar várias infrações da lei para que surja uma

unidade de fato”250. Assim, segundo Roxin, o fato punível ainda permaneceria único quando a

prática de uma ação traz consigo a realização de mais de um tipo251. Esclarece o autor alemão

que a discussão sobre se haveria um único fato punível (teoria da unidade) ou vários (teoria da

pluralidade) diante de diferentes infrações à lei (resultados) “não tem significação prática e por

isso é improdutiva”. Conclui, então, que o importante é considerar a “pluralidade de valoração

baseada na unidade de ação”252, com o que se torna irrelevante discutir se o concurso ideal se

caracteriza pela prática de mais de um fato punível mediante uma só ação.

Acolhendo também a teria da unidade (ou unitária), segundo a qual o número de

resultados não altera o número de ações puníveis, Zaffaroni enfatiza que mesmo se uma ação

produzir mais de um resultado lesivo, ainda haverá fato punível unitário: “quando se trata de

saber se há penalmente uma ou várias condutas, para nada servem o número de tipos que

fatos também, no concurso ideal, são plúrimos, porque qualquer evento constitui elemento constitutivo do fato em

cuja economia êle entra.” (BETTIOL, 1971, p. 300). 249 HORTA, 2007, p. 85. 250 ROXIN, 2014. p. 944 (tn). 251 ROXIN, 2014. p. 963 (tn). 252 ROXIN, 2014. p. 963 (tn).

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concorrem, o número de resultados e o número de movimentos realizados pelo sujeito”253.

Afirma o professor argentino, em complemento, que quando a legislação utiliza a palavra fato,

o faz em um sentido genérico, deixando sua determinação à doutrina e à jurisprudência254.

Bacigalupo igualmente rechaça a concepção segundo a qual o número de resultados

altera o número de ações ou de fatos puníveis, referindo sobre isso julgados do Supremo

Tribunal espanhol255. Muñoz Conde também compreende que uma única conduta, embora

eventualmente possa determinar mais de uma infração à lei penal e, portanto, mais de um crime,

ainda representa um único fato punível256. Na doutrina nacional, Fortes Barbosa era um dos que

defendiam a equivalência entre os termos257. Como representante estrangeiro da corrente para

a qual o número de resultados materiais causados por uma única ação altera a quantidade de

fatos puníveis (teoria pluralista), cite-se Mir Puig258.

Uma vez exposta parte das compreensões doutrinárias sobre os conceitos de ação e de

fato na teoria do concurso, chegam-se às seguintes conclusões (adotando-se, aqui, a teoria

unitária): a) uma só ação pode produzir mais de uma infração à lei penal, sem que isso desnature

a unidade do fato (concurso formal); b) várias ações puníveis tomadas em conjunto podem

representar, ainda assim, um único fato punível em sentido amplo (unidade delitiva)259, com só

um conteúdo de injusto (é o caso da consunção, o critério de resolução do conflito aparente

especialmente analisado neste trabalho). Neste último caso, a “unidade normativa do fato” é a

“síntese da superposição valorativa das normas incidentes, determinantes da exclusão de uma

pela aplicação de outra”260. Silva Franco e Rui Stoco referem a unidade de fato como

pressuposto do conflito aparente, mas esclarecem que “o fato pode ser constituído de uma só

ou mais de uma conduta”261. Portanto, uma pluralidade de condutas puníveis pode ser

reconhecida como um fato unitário global quando somente uma normal penal subsistir na

valoração do caso concreto, sem importar, aqui, o número de resultados/lesões formais

identificados (é o caso clássico da absorção do uso de documento falso pelo estelionato).

253 ZAFFARONI, 2002, p. 857 (tn). 254 ZAFFARONI, 2002, p. 856. 255 BACIGALUPO, 1999, p. 576. 256 MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, pp. 466-467. 257 BARBOSA, Marcelo Fortes. Concurso de normas penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. pp.

143-146. 258 MIR PUIG, 2015, p. 651. Com uma análise mais detalhada sobre as razões pelas quais um setor da

doutrina entende que o número de resultado altera o de ações, vide: ESCUCHURI AISA, 2015, pp. 939-944. 259 ROSA, Fábio Bittencourt da. Lei 7.492/86 e o concurso aparente de leis. Revista dos Tribunais, vol.

835/2005, p. 467-472, maio/2005. 260 HORTA, 2007, p. 83. 261 FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coords.). Código Penal e sua Interpretação: doutrina e

jurisprudência. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 386.

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54

Não obstante a constatação de que a menção ao termo “fato” tem o mérito de abranger

mais de uma ação punível sob um mesmo sentido normativo, parece melhor a referência singela

à unidade delitiva (complexa) como condição ao reconhecimento do conflito aparente de

normas (como se adotará daqui em diante), por ser não apenas mais generosa como mais

precisa, pois evita a discussão de se ação e fato punível são conceitos equivalentes e,

principalmente, não exclui de plano as hipóteses de pluralidade de comportamentos delitivos

dos casos de concurso impróprio ou aparente, do que são exemplos os grupos de casos

denominados antefato e pós-fato coapenados ou impuníveis, albergados na regra da consunção.

2.4 CONCURSO DE LEIS E DE CRIMES: DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS

Ante o que já se expôs, é possível estabelecer o seguinte panorama em relação à unidade

e pluralidade de delitos: a) uma única ação do autor (unidade de ação punível) pode ensejar a

aplicação de mais de uma norma penal se houver infrações à lei/resultados lesivos

independentes entre si (concurso formal/ideal); b) mais de uma ação (pluralidade de ações

puníveis) pode determinar a aplicação de mais de uma norma penal (concurso material/ real ou

crime continuado); c) uma só ação punível ou mais de uma pode atrair a superposição de normas

penais262, sendo que da relação formal (lógica) ou material (teleológica ou valorativa) havida

entre elas será possível aplicar apenas uma, com exclusão das demais263. Com isso, é chegada

a hora de esmiuçar as diferenças entre concurso de próprio e concurso impróprio.

Conforme Mayrink da Costa, o conflito aparente de normas ocorre quando “duas ou

mais disposições coexistentes parecem adaptar-se ao mesmo caso, porém, só uma é na realidade

aplicável”.264 Não necessariamente todas as normas incidirão no contexto delitivo, mas apenas

aquela que melhor se adaptar a ele: “as várias disposições violadas pela mesma conduta são

apresentadas ao jurista para que seja eligida uma delas e para que a aplique”265. Na síntese de

Cruz, o fenômeno em questão se refere aos casos “em que, em um exame prima facie, distintas

normas penais vigentes parecem aplicáveis ao caso, mas – depois do trabalho hermenêutico –

se reconhece a incidência de apenas um tipo incriminador”266. Welzel ensinava que no conflito

de normas não existe concurso, pois só formalmente os vários tipos são aplicáveis à ação, já

262 RIOS; LAUFER, 2011, p. 150. 263 HORTA, 2007, p.1. 264 COSTA, 1998, p. 422 (itálico do original). 265 COSTA, 1998, p. 423 (itálico do original). 266 CRUZ, 2014, pp. 712 e 715.

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que uma análise mais atenta revela que “o conteúdo delitivo é determinado de forma exaustiva

por apenas um desses tipos”267.

Bacigalupo esclarece que no concurso aparente de leis se leva em consideração a

“relação dos tipos penais entre si”268, a exemplo do estelionato (CP, art. 171) conjugado com o

uso de documento falso (CP, art. 304), que remete à questão de se saber se aquele absorve este.

Explica Dotti que a precedência (ou absorção) de uma norma penal em relação a outra atende a

“critérios lógicos e de valoração jurídica do fato”269. Mir Puig justifica a impossibilidade de

aplicação conjunto dos tipos penais virtualmente concorrentes no princípio geral do Estado de

Direito do ne bis in idem, salientando que essa relação de prevalência ocorrerá “sempre que um

dos preceitos bastar por si só para apreender todo o desvalor do fato ou fatos concorrentes”270.

Como se nota, no conflito aparente opera uma força atrativa entre os tipos penais

superpostos, obrigando a que se examine a relação lógica ou valorativa em que se encontram;

no concurso de crimes, ao contrário, há “neutralidade” ou “perfeita indiferença” (cf. as

expressões de Soler271) entre as figuras penais convergentes, o que afasta a hipótese de

preponderância ou subordinação de alguma delas e, portanto, viabiliza o reconhecimento do

concurso efetivo/próprio. Portanto, a reação punitiva adequada ao episódio delitivo dependerá

da relação mantida entre as normas convergentes, só se podendo cogitar de conflito aparente

quando não houver “neutralidade” entre elas ou, dito de modo inverso, quando entre elas houver

“incompatibilidade” ou “excesso de atração”272.

Rios e Laufer diferenciam o concurso de crimes e o conflito de normas, assim:

haverá concurso aparente de normas quando possam ser aplicados a uma ação pelo

menos dois tipos penais, mas em vista da relação de subordinação entre os preceitos

concorrentes entre si resultará que apenas um deles possa ser aplicado.

Contrariamente poderá ocorrer que todos os tipos reclamem sua aplicação e neste caso

incidirá a categoria do concurso de delitos.273

Não obstante a menção pontual à unidade de ação, ambos os autores ressalvam, em

momento posterior, a possibilidade de que o conflito aparente ocorra também em caso de mais

de uma ação274. Na verdade, o apego aqui demonstrado à questão do número de ações praticadas

267 WELZEL, 1956, p. 228 (tn). 268 BACIGALUPO, 1999, pp. 569-570 (tn). 269 DOTTI, 2010, p. 364. 270 MIR PUIG, 2015, p. 662 (tn). 271 SOLER, 1992, p. 210 (tn). 272 SOLER, 1992, p. 210. 273 RIOS; LAUFER, 2011, p. 140. 274 RIOS; LAUFER, 2011, p. 149.

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decorre da orientação da doutrina tradicional, que estipulava como requisito do conflito

aparente a unidade de ação delitiva (ação única). Ver-se-á a seguir, porém, que não tem

relevância o número de ações praticadas, e sim, o significado normativo que em conjunto

revelam.

Já o concurso próprio de crimes, como adiantado, consiste em examinar se uma única

conduta se subsome ao mesmo tempo a mais de um tipo penal (concurso ideal/formal) ou se o

autor, tendo realizado duas ou mais ações, deverá responder também por dois ou mais crimes

(concurso real/material ou crime continuado). Nos termos da legislação repressiva nacional, o

concurso formal observa a regra da exasperação, ou seja, aplica-se a pena mais graves das

cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada em qualquer caso de um sexto até

metade (CP, art. 70). O concurso material, por sua vez, observa a regra da cumulação, ou seja,

as penas dos crimes são somadas aritmeticamente (CP, art. 69)275.

A justificativa político-criminal do tratamento penal mais brando reservado ao concurso

formal é de que um único fato, ainda quando infrinja diferentes normas penais (concurso

heterogêneo) ou a mesma diversas vezes (concurso homogêneo), deve ser valorado com um

conteúdo de culpabilidade inferior ao de uma pluralidade de fatos, pois, afinal, há uma única

conduta contrária ao Direito, e não várias separadas no tempo e no espaço276. Em paralelo, o

concurso formal abrange mais de um desvalor do resultado a partir de um só desvalor de ação,

pesando menos, portanto, que o concurso material, que conta com mais de um desvalor de

resultado e também mais de um desvalor de ação.

A legislação nacional prevê ainda duas espécies de concurso formal: o próprio (ou

perfeito), quando o agente deseja realizar apenas um crime, mas comete mais de um; e o

impróprio (ou imperfeito) quando, embora com uma única conduta, o agente deseja cometer

mais de um crime com consciência e vontade em relação a cada um deles (desígnios

autônomos). Neste último caso, excepcionalmente o concurso formal passa a ser regulado pelo

sistema do cumula material, ou seja, é tratado como se concurso material fosse (CP, art. 70,

§2º), pois “os vários eventos, nesse caso, não são apenas um, perante a consciência e a vontade,

embora sejam objeto de uma única ação”277. Com efeito, o pressuposto do concurso formal é a

275 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 20.ed. São Paulo: Saraiva,

2014. p. 791. Assim também: HORTA, 2007, p. 52. 276 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 774 (tn). Sem embargo, deve-se reconhecer a razoável crítica de um

setor da doutrina no sentido de que a censura penal mais branda do concurso formal acaba favorecendo “o agente

mais escrupuloso”, que logra vulnerar mais bens jurídicos por um esforço maior de planejamento, cf. CRUZ, 2014,

p. 542. 277 BITENCOURT, 2014, pp. 791-792.

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unidade de conduta, mas o tratamento penal mais brando (exasperação) somente terá lugar caso,

além dela, haja também unidade de vontade (elemento subjetivo único)278.

Quanto ao crime continuado, não cabe aqui aprofundá-lo (com o exame, por exemplo,

das divergências entre as teorias objetiva e subjetiva). Porém, para se evitar lacunas, cabe referir

que se trata de uma pluralidade de ações puníveis de igual espécie, reconhecidas como uma

unidade delitiva por questão de política criminal279, porquanto, as ações isoladas acham-se de

tal forma concatenadas no tempo, no espaço e na forma de execução que uma pode ser entendida

como continuação da outra, compondo todas uma unidade delitiva de gravidade especial, daí

porque, o princípio regente é o da exasperação da pena (CP, art. 71)280.

Em termos práticos e de acordo com o ordenamento jurídico nacional, o concurso

efetivo ou próprio enseja sempre uma punição maior ao autor (princípio da exasperação ou da

cumulação, a depender da modalidade de concurso) comparativamente ao concurso aparente.

Enquanto naquele consideram-se aplicáveis ao mesmo tempo as diversas normas penais

incidentes ou uma mesma mais de uma vez (o que necessariamente incrementa a carga penal),

neste somente a norma prevalente é tida como infringida, sendo sua sanção considerada

suficiente para dar a resposta jurídica adequada e suficiente ao caso concreto. E nisto reside a

importância fundamental da distinção entre o concurso de crimes e o conflito aparente: o rigor

da punição.

Para finalizar o exame das premissas conceituais do conflito aparente, cumpre analisar

a questão sobre se esse fenômeno tem lugar em caso apenas de unidade de conduta punível ou

também de pluralidade de ações. Ou seja, se é pressuposto do conflito aparente a unidade de

ação punível.

2.4.1 Unidade ou pluralidade de ação como pressuposto do concurso impróprio?

Tem se mostrado imprecisa e insuficiente a posição da doutrina tradicional de que o

conflito aparente de normas se resume a uma exceção ao concurso ideal/formal de crimes. Para

ela, a unidade de ação punível é pressuposto indispensável do conflito aparente. Como

representantes estrangeiros dessa corrente, confiram-se as lições clássicas de Mezger281 –

278 CARVALHO FILHO, 2009, pp. 21-22. 279 REALE JÚNIOR, 2009, p. 436; CARVALHO FILHO, 2009, p. 22. 280 SANTOS, 2006, p. 415. 281 MEZGER, Edmund. Derecho penal. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliografica Argentina,

1958. pp. 345 e 346.

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embora com uma compreensão muito mais generosa do que seja fato punível unitário,

admitindo essa hipótese mesmo em caso de incurso pelo agente em mais de um tipo legal, desde

que ao menos parte das ações praticadas coincidam na formação de ambos os delitos282 –, de

Welzel283 – para quem a unidade de ação é constituída da conjugação do fator final com o fator

normativo284 – e de Bettiol – este também com uma compreensão ampla de unidade de conduta

punível, ao preconizar que a ação (complexa), “embora cindível nos vários atos que se realizam

sucessivamente”, cada um dos quais adstritos a “uma disposição de lei penal”, pode ser

considerada “única desde que julgada em seu complexo”285. Sem embargo, os três autores

referem os atos anteriores e posteriores impunes (que necessariamente envolvem mais de uma

conduta punível) como grupo de casos de resolução de conflito aparente de normas, não a ponto,

contudo, de reconsiderar o pressuposto da unidade de ação. Bettiol, aliás, agrega ao termo “ação

unitária” o predicado “complexa” justamente para explicar a consideração de condutas

ajustadas a mais de um tipo penal como uma só286.

Entre os clássicos brasileiros, aquela premissa (unidade de ação ou de fato) é encontrada,

por exemplo, nas lições de Stevenson287, Aníbal Bruno288, Fortes Barbosa289, Frederico

Marques290 e Mayrink da Costa291. Por sua vez, Magalhães Noronha292, Regis Prado293 e

Bitencourt294 utilizam as expressões “unidade de ação” para tratar do concurso formal e

“unidade de fato” para se referir ao concurso aparente de normas, sem indicar, contudo, as

razões pela opção de uma e outra. Hungria, de sua parte, utiliza a expressão “fato”295 no singular

ao conceituar o conflito aparente, mas ao explicar o critério da consunção, ressalva a hipótese

de exclusão de uma norma por outra, mesmo quando “não haja unidade de fato ou um só

contexto de ação”296. Esse é um tópico cujo enfrentamento direto parece ser evitado, carecendo

de resposta explícita sobre como se daria o ajuste do critério da consunção com o pressuposto

282 MEZGER, 1958, pp. 337-339. 283 WELZEL,1956, p. 228. 284 WELZEL, 1956, pp. 216-217. 285 BETTIOL, 1971, p. 329. 286 BETTIOL, 1971, p. 330. 287 STEVENSON, Oscar. Concurso aparente de normas penais. Estudos de Direito e Processo Penal em

homenagem a Nélson Hungria. Rio/São Paulo: Forense, 1962. p. 31. 288 BRUNO, 1967, p. 260. 289 BARBOSA, 1976, pp. 13/15. 290 MARQUES, 1997, p. 437. 291 COSTA, 1998, p. 422. 292 NORONHA, 1978, pp. 285 e 293. 293 PRADO, 2013, pp. 273 e 591. 294 BITENCOURT, 2014, p. 254. 295 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 95. 296 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97.

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da unidade de ação (cf. se verá adiante, a consunção resolve o conflito aparente de normas nos

casos de pluralidade de condutas puníveis).

Dotti opta por não restringir o conflito aparente à hipótese de uma única ação ou fato

punível, centrando-se mais na fenomenologia do instituto do que em seus pressupostos, assim:

“quando algumas normas estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido

precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a

possibilidade de eficácia cumulativa de outras”297. Essa é também a forma de abordar o tema

de Assis Toledo298 e Cirino dos Santos299. Este, aliás, formula a problemática nestes termos: “o

conteúdo de injusto de um tipo legal compreende o conteúdo de injusto de outro tipo legal e,

assim, o tipo legal primário exclui o tipo legal secundário, que não contribui para o injusto

típico, nem para a aplicação da pena”300. Fragoso, por sua vez, embora indique como

pressuposto a unidade de ação, reconhece que o critério da consunção regula o conflito aparente

em caso de “pluralidade de fatos”301.

Sem olvidar que o original e principal esforço da doutrina (notadamente a alemã) foi

distinguir o concurso ideal do conflito aparente, conforme anotam Zaffaroni302, Jiménez de

Asúa303 e Horta304, ao aludirem ao tratamento teórico dispensado por Merkel, Mezger, Binding

e Beling (este último, por exemplo, dizia que o conflito aparente é de prévia resolução ao

concurso ideal), modernamente tem-se entendido que o conflito aparente incide tanto em caso

de unidade como de pluralidade de condutas puníveis, de modo que ambas as hipóteses podem

levar ao reconhecimento da unidade delitiva para efeito de enquadramento típico, com

aplicação de apenas uma das normas penais em tensão305.

Segundo Schmidt, o “concurso ilusório” (i.e., conflito aparente de normas) pode ocorrer

tanto em caso de conduta única, quando se perceber não ser o caso de um concurso formal,

como em caso de pluralidade de condutas, caso não se justifique o concurso material: “pode-se

297 DOTTI, 2010, pp. 363 e 364. 298 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994. pp.

50/54. 299 SANTOS, 2006, p. 417. 300 Itálicos do original. 301 FRAGOSO, 2006, 455 e 458. 302 ZAFFARONI, 2002, p. 868. 303 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 142. 304 HORTA, 2007, pp. 33-34. 305 Defendendo a incidência do concurso aparente inclusive em caso de pluralidade de ações puníveis:

JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 789-790; ROXIN, 2014, p. 997; MIR PUIG, 2015, p. 662; ZAFFARONI,

2002, p. 868; HORTA, 2007, p. 34. Paradigmaticamente: CRUZ, 2014, passim (pp. 712, 737, 801).

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chegar à conclusão, pois, que a unidade ou pluralidade de condutas são comuns, tanto no

concurso ilusório como no real”306.

Tavares, por sua vez, refere como pressuposto do “concurso de leis” a unidade delitiva,

classificando, na sequência, o conflito aparente em duas espécies a partir de “como se

manifesta” essa unidade de delitos: se formal ou material307. Nas palavras do autor: “há

concurso formal de leis quando uma só lei deva ser aplicada a uma manifestação de unidade de

delito. Haverá concurso material de leis quando uma só lei deva ser aplicada à pluralidade de

manifestações de unidade de delito, como ocorre nos antefatos e pós-fatos impuníveis”308.

Entre as regras mais comuns de resolução do conflito aparente de normas, uma delas

tem lugar sempre em caso de unidade de ação punível (especialidade), enquanto outra é

recorrente em casos de pluralidade de ações delitivas (consunção). Segue-se, portanto, que pela

consunção se reconhece o conflito aparente de normas em casos que, de outro modo, caberia

aplicar o concurso material de crimes. Portanto, sob a perspectiva dos pressupostos do conflito

aparente, não se mostra bizantina a discussão conceitual de ação, resultado e fato punível na

teoria do concurso.

Insista-se que as legislações e a doutrina empregam tais expressões, o que obriga a

literatura a responder se esses termos se equivalem e sobretudo a esclarecer qual o efeito disso

sobre a disciplina do conflito aparente. O Código Penal espanhol (1995), vale repetir, prevê em

seu art. 8, o conflito aparente de normas a “fatos suscetíveis de ser qualificados” (tn) em dois

ou mais preceitos. Como se trata de uma legislação recente, pode-se afirmar que ela endossou

a tendência doutrinária de admitir o concurso de leis a casos de pluralidade de fatos ou ações

típicas309.

Portanto, como pela consunção o intérprete aplica apenas uma única norma penal,

apesar da pluralidade de condutas (ou fatos) puníveis310, com o que se reconhece o episódio

como um conteúdo de injusto unitário para efeito de reprovação311, obtêm-se, então, um útil

critério de distinção entre o concurso material e a consunção: nesta, uma única norma penal é

aplicada a mais de uma ação punível porque, afinal, considera-se o conjunto de ação puníveis

306 SCHMIDT, 2001, p. 76 307 TAVARES, 2009, p. 510. 308 TAVARES, 2009, p. 510. 309 RIOS; LAUFER, 2011, p. 166. Os autores pontuam que pela ancoragem do concurso de normas (em

sentido amplo) em uma “concepção valorativa”, a sistemática do conflito aparente é perfeitamente aplicável aos

casos de pluralidade de condutas. 310 Acolhe-se, aqui, a orientação que considera essas expressões equivalentes (teoria unitária). 311 HERRERA, 2004, pp. 128-129.

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como uma unidade delitiva (complexa)312 para efeito de reprovação penal; naquele, as diversas

ações puníveis não permitem leitura outra que não seja a pluralidade real de fatos puníveis,

obrigando, assim, o tratamento punitivo mais severo.

Essa distinção se justificará ainda mais quando se analisarem os parâmetros ao

reconhecimento da consunção, regra de resolução de conflito aparente de que se ocupa esta

pesquisa primordialmente, quando, então, a noção de substrato fático unitário em meio à

pluralidade de ações (unidade delitiva com conteúdo de injusto único) fará mais sentido e

justificará a racionalidade jurídica da incidência isolada da norma penal prevalente.

312 CARVALHO FILHO, 2009, pp. 29, 89 e 92.

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3 OS CRITÉRIOS DE SOLUÇÃO DO CONFLITO APARENTE DE NORMAS

3.1 FUNDAMENTAÇÃO HERMENÊUTICA E DOGMÁTICA

O fenômeno de conflito de tipificação penal (unidade de lei) e o consequente receio do

exercício abusivo do poder punitivo (judicial) impeliram a literatura a sistematizar as hipóteses

de identificação e de resolução desse desafio hermenêutico. É lugar-comum entre os clássicos

a menção às ideias de equidade e de justiça como determinantes do exame do conflito aparente

previamente à adoção da disciplina do concurso próprio.

Magalhães Noronha pontuava, por exemplo, que o fundamento central corresponde à

equidade: “não porque isto seja imposto por um rígido conjunto de lógica, mas porque a

aplicação de tôdas as normas concorrentes chocar-se-ia com a necessidade prática de avaliação

do fato. E encontrar-nos-íamos em colisão com as mais elementares exigências de justiça”.313

Carvalho Filho, em obra recente, enfatiza a imperatividade da unidade de lei “como medida de

justiça e equidade”, apoiando-o no “princípio da justa aplicação da lei repressiva”314. A doutrina

tradicional alude ainda à necessidade de que a ordem jurídica mantenha coerência e unidade,

com o que não se aceita a aplicação de sanções duplicadas, segundo as lições de Aníbal Bruno315

e Hungria316. Zaffaroni assinala que a precedência do conflito aparente relaciona-se com o

princípio da legalidade, com o princípio do ne bis in idem e inclusive com problemas de

extradição; conclui, então, que se trata de uma questão central, cujo descuido leva ao risco de

“fazer naufragar várias garantias constitucionais e internacionais, e de permitir um exercício

completamente irracional do poder punitivo”317.

É recorrente, portanto, a referência de que a obrigação de se examinar o conflito aparente

deriva, em última análise, do ideal de justiça, sob a premissa de que colidiria com o Estado de

direito a possibilidade de punição desproporcional ou em duplicidade.

Embora não sejam incorretos tais raciocínios, parece necessário justificar a temática em

estudo em algo mais concreto, pelo alto grau de abstração e até a inegável ambivalência do

conceito de justiça. Do mesmo modo que signos como equidade e justiça podem obrigar o

exame do conflito aparente com base nas relações lógica e axiológica entre os tipos, poderiam

313 NORONHA, 1978, p. 349. 314 CARVALHO FILHO, 2009, pp. 37-38. 315 BRUNO, 1967, p. 260. 316 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p 95. 317 ZAFFARONI, 2002, pp. 856-857 (tn).

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servir também para justificar a preferência pelo concurso próprio, já que não se pode negar a

incidência formal cumulada dos preceitos. Ou seja, enquanto justiça, para alguns, corresponde

à intransigente e criteriosa observância às regras do ne bis in idem e da proporcionalidade, para

outros, melhor consiste na concreção do postulado tot poena quot delicta (vedação da punição

insuficiente)318. Portanto, a exigência de depuração da concorrência típica requer ancoragem

em fundamentos menos etéreos.

O princípio da lesividade (ofensividade) confere ao direito penal uma coloração liberal-

democrática, pois impede a punição com base em mera desobediência ou infidelidade à ordem

jurídica. O comportamento passível de reprovação é somente aquele portador de certa

danosidade social; a constatação burocrática de infração literal à norma não determina por si só

a punição. Nesse sentido, a lesividade é o mecanismo que vincula o direito penal à proteção dos

“instrumentos” (bens jurídicos) necessários à “livre autorrealização” do ser humano na

sociedade319, razão pela qual reclama o exame da magnitude da ofensa ao bem jurídico para a

operação de subsunção da norma penal320. Como acentua Batista, o “bem jurídico põe-se como

sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, ‘revelando’ e demarcando

a ofensa. Essa materialização da ofensa, de um lado, contribui para a limitação legal da

intervenção penal, e de outro a legitima”321.

Assim sendo, o resultado lesivo (desvalor do resultado) é sempre necessário à

configuração do injusto sob um direito penal assentado no princípio da lesividade, não se

podendo confundir resultado normativo (sempre necessário) com resultado empírico ou

sensível (inerente aos chamados crimes de resultado material). Vale dizer, a lesão ou perigo a

bem jurídico é requisito de todos os injustos penais (inclusive dos tipos de mera atividade)322.

E é em razão da dimensão material dos tipos penais que o silogismo jurídico não se contenta

com a constatação simbólica ou in thesi da correspondência literal entre o comportamento e o

318 CRUZ, 2014, pp. 305-306. Como observa Flavio Cruz, no âmbito do direito penal, o princípio da vedação

da proteção insuficiente tem amplitude mitigada, diante da proeminência do postulado da ultima ratio: “Pode-se

até conceber que o Estado tenha deveres especiais de tutela - a proteção da vida de crianças, por exemplo -, mas

disso não decorre que deva necessariamente socorrer-se da repressão criminal, sobremodo quando presentes

eventuais outros mecanismos, de menor violência e maior efetividade (o que ganha significativo relevo quando se

tem em conta o caráter criminógeno da própria repressão criminal, dado o efeito iatrogênico da pena).” 319 SILVA SÁNCHEZ, 1992, pp. 291-292 (tn). 320 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción al Derecho Penal. 2.ed. Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis

S.A., 1994. p. 29. 321 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.

95. 322 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, pp. 273-274.

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preceito penal323. Disso resulta que no processo de subsunção jurídica há sempre um imperativo

axiológico relacionado à lesividade social do comportamento (associada, por sua vez, à lesão

ou ao perigo de lesão ao bem jurídico), que obrigatoriamente conduz à ponderação entre as

normas punitivas convergentes para determinar se todas ou apenas uma ou algumas delas serão

aplicadas ao fato. Com efeito, na configuração do injusto penal haverá sempre um resultado

para compor com a ação324. Essa realidade hermenêutica ajuda a ilustrar a complexidade do

processo de subsunção, que envolve juízos valorativos e lógicos, e em tudo se distingue de

automatismos. Soler é enfático:

A subordinação de um fato a determinada figura delitiva não é sempre uma operação

simples que resulta do exame sumário e mecânico da lei, porque as figuras e os tipos

não são nem valores numéricos nem puros conceitos lógicos, senão normas dotadas

de um conteúdo que cria um complexo sistema de relações entre um tipo e outro. Para

se chegar ao enquadramento correto, sempre é necessário saber que tipo escolheremos

dentre os vários que às vezes reclamam aplicação sobre um fato. (tn)325

Essa dimensão material do injusto se justifica ainda mais em razão da inclinação da

dogmática a diretivas político-criminais (com esteio na teia axiológica constitucional),

conforme vem argumentado Roxin desde a década de 70 sob o modelo teleológico-racionalista

(neo-neokantismo)326. Se a formulação do sistema jurídico-penal deve observar finalidades

valorativas – o que na atualidade poucos teóricos parecem dispostos a rechaçar327 – e se, dentre

essas finalidades, está a proteção subsidiária de bens jurídicos contra especiais formas de ataque

(as mais graves, seja mediante ações planificadas ou mediante infrações ao cuidado devido), a

produção do resultado proibido (lesão ao bem jurídico) passa a ser um referencial de

configuração do injusto inegociável328.

Também com base no modelo dogmático de Roxin, outro critério político-criminal que

justificaria o dever de se examinar a dimensão material do injusto poderia corresponder ao

323 GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: Um estudo da conduta humana do

pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. pp. 235-236 e 244. 324 Se bem que no âmbito do direito penal socioeconômico, não raro se encontram tipos de perigo abstrato

“puramente formais”, ou seja, delitos de “pura desobediência”, destituídos de toda restrição típica material. Como

anota Martínez-Buján, trata-se de “autênticos ilícitos administrativos cuja elevação à categoria de infração penal

é criticável”: MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 209 (tn). 325 SOLER, 1992, p. 204. 326 ROXIN, 1997, p. 203. 327 SILVA SÁNCHEZ, José Maria. Política criminal y nuevo Derecho Penal. Libro Homenaje a Claus

Roxin. Barcelona: JMB, 1997. p. 18. Não obstante o modelo funcional de Roxin seja paradigmático, cabe pontuar

que há vários outros propostos. 328 ROXIN, 1997, p. 324. “A ação típica, enquanto unidade de fatores internos e externos (incluindo o

resultado), é o objeto da norma de determinação e de valoração em que se baseia o injusto” – tn. O resultado é um

referencial indispensável do injusto, pois dita o grau de perturbação determinado pela conduta punível; é ele, afinal,

que manifesta o desvalor da ação em todo seu sentido (ROXIN, 1997, p. 325).

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“juízo abstrato de necessidade de pena”, que “se vê substancialmente influído pela produção ou

não produção do resultado”329. Segundo o autor alemão, a necessidade preventiva da punição

depende essencialmente do resultado, pois diante da ausência de “perturbação da paz jurídica”,

se poderia renunciar à reação jurídico-penal – tome-se como exemplo o princípio da

insignificância, embora a exclusão da responsabilidade, na jurisprudência nacional, se dê por

atipicidade, e não por desnecessidade de pena330. De qualquer forma, esta última perspectiva

(necessidade de pena) pode ser levada em conta por meio do princípio da proporcionalidade,

um critério relativo mais ao juízo de reprovação do que ao objeto de reprovação.

Portanto, sob um sistema pautado em valores e atento a demandas político-criminais

(especialmente o concebido por Roxin, que aceita limites externos ontológicos à construção

normativista331), impõem-se ainda com mais razão a conjugação dos conceitos-chave de

desvalor de ação e de resultado para efeito de configuração do injusto – que, como se verá no

próximo capítulo, são referenciais dogmáticos essenciais à consunção, critério mediante o qual

se reconhece que em determinadas situações de fato o conteúdo de desvalor de um tipo penal

está contido em outro de maior alcance.

Rememore-se com Figueiredo Dias que a “unidade da norma ou de lei” reclama o estudo

das relações entre as normas incriminadoras, com o que se chega à conclusão de que “à luz

da(s) norma(s) prevalecente(s) se pode já avaliar de forma esgotante o conteúdo de ilícito (e de

culpa) do comportamento global”332. Com efeito, a aptidão da norma prevalecente de apreender

o conteúdo do ilícito (diríamos injusto) e da culpabilidade do “comportamento global” está na

base da relação consuntiva, e isso requer, naturalmente, referenciais dogmáticos para viabilizar

esse exame valorativo, como, por exemplo, o desvalor da ação e do resultado.

A partir disso, a “coerência interna” do sistema como justificativa para o

reconhecimento da unidade de lei, na esteira das lições de Aníbal Bruno333 e Hungria334, ganha

em sentido. Destaque-se, também, a lição de Palma Herrera:

Desde um ponto de vista valorativo, na medida em que um único preceito seja capaz

de valorar jurídico penalmente o comportamento em questão, a aplicação de um novo

preceito com sua correspondente sanção implicaria, em primeiro lugar, uma

incoerência inadmissível do ordenamento jurídico-penal, que deve mostrar-se como

um todo consistente, isento de contradições, e no que um princípio de economia evita

a reduplicação de comportamentos tipificados. Mas implicaria, além disso, uma

329 ROXIN, 1997, p. 326 (tn). 330 ROXIN, 1997, p. 226. 331 SILVA SÁNCHEZ, 1997, p. 25. 332 DIAS, 2007, p. 992. 333 BRUNO, 1967, p. 260. 334 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p 95.

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infração do ne bis in idem que proíbe desvalorar e, em consequência, castigar duas

vezes os mesmos fatos335.

O princípio da proporcionalidade é outro elemento essencial à verificação da unidade

de lei/concurso impróprio336 – se bem que a proporcionalidade é mais um corretivo de

reprovação do que de definição do injusto penal; vale dizer, o exame de adequação e

necessidade parece ter mais a ver com a mensuração da censura justa do que com a delimitação

do objeto de reprovação. Referido princípio evoca a regra do non bis in idem337 que,

sinteticamente, proíbe a atribuição de “responsabilidade várias vezes a uma pessoa pela mesma

reprovação”, conforme Roxin338. Adiante-se: o bis in idem de que se trata aqui é o material, não

o processual, relativo à coisa julgada. É mesmo comum a referência ao cânon do non bis in

idem339 (material) para legitimar a consunção como regra autônoma de resolução do concurso

de leis. Se pelo princípio da proporcionalidade a pena deve ter correspondência valorativa com

o fato punível “contemplado na globalidade de seus aspectos”; ou seja, como por esse vetor

interpretativo se proíbe a imposição de pena superior à gravidade do delito, relacionada ao grau

de dano social causado340, a punição de um mesmo fato mais de uma vez pelo mesmo

fundamento jurídico ou conteúdo de desvalor (bis in idem) não se ajustaria a esse princípio.

A ideia reitora da regra do non bis in idem341 é a impossibilidade de se considerar um

mesmo motivo de reprovação penal ou aspecto de conteúdo de injusto para se castigar mais de

uma vez. Ou, noutras palavras, a impossibilidade de se reprovar em duplicidade alguém pelo

mesmo aspecto de desvalor de uma entidade jurídica. Na síntese de Figueiredo Dias, “a

proibição de dupla valoração do mesmo substrato material”342. Observe-se que a falta de

previsão solene e formal no direito interno da regra do non bis in idem não prejudica sua

335 HERRERA, 2004, p. 40. 336 Para um estudo do princípio da proporcionalidade a partir da obra de Carlos Bernal Pulido. confira-se:

CRUZ, 2014, pp. 262 e ss. 337 A associação entre o princípio da proporcionalidade, sob a perspectiva da proibição de excesso, e o ne

bis in idem é destacada por Caro Coria com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional peruano: “o TC

peruano considera que o ne bis in idem material se fundamenta por um lado no princípio da proporcionalidade

vinculado à chamada ‘proibição de excesso’, fundamento indiscutível se se tem em conta que impor mais de uma

sanção pelo mesmo conteúdo de injusto implica impor ‘uma dupla carga coativa’...” (tn). CARO CORIA, Dino

Carlos. El principio de “ne bis in idem” en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. In: ARÚS, Francisco

Bueno; DALBORA, José Luis; MAÍLLO, Afonso Serrano (coords.). Derecho penal y criminología como

fundamento de la política criminal: estudios en homenaje al profesor Alfonso Serrano. Madrid: Dykinson, 2006.

pp. 655-683. 338 ROXIN, 2014, pp. 997-998 (tn). 339 MIR PUIG, 2015, p. 662. 340 SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 260 (tn). 341 Trata-se de regra, não de princípio, pois uma vez configurada, não admite ponderação, cf. CRUZ, 2014,

p. 303. 342 DIAS, 2007, p. 978.

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imperatividade, seja pela relação havida com o princípio da proporcionalidade, seja porque

consta indiretamente em outras regras do ordenamento nacional, seja ainda, por sua presença

explícita em pactos internacionais dos quais o país é signatário343.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos da União Europeia, em 2014, ao julgar o caso

“Grande Stevens”344, reconheceu a violação ao non bis in idem entre a infração administrativa

italiana de veicular informações falsas ou enganosas no mercado de capitais e o crime correlato.

Entendeu-se que o componente bis significa a dupla punição, não importando o rótulo legal:

naquele caso concreto, a severidade da sanção administrativa franqueou a conclusão de que ela

equivaleria à sanção criminal, com o que se reconheceu a repetição de punição. Quanto ao

componente idem, entendeu-se que equivale à “identidade substancial dos fatos sancionados”,

i.e., à dupla punição pelo mesmo “motivo de uma infração”, na esteira do art. 4, §1º, da

Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais345.

Segundo García Cavero, o bis in idem pressupõe identidade de sujeito, fato e

fundamento346. Quando a uma mesma pessoa e pela prática do mesmo fato (compreendido

simplesmente como acontecimento histórico) se pune mais de uma vez com repetição da

apreciação do sentido de desvalor jurídico (mesmo fundamento valorativo), tem-se, em

princípio, dupla punição indevida347. Com efeito, a regra do non bis in idem (material),

emergida do princípio da proporcionalidade, responde em grande parte pela operação

hermenêutica, cogente, de se escolher uma única norma penal incriminadora dentre as

conflitantes porque a descrição jurídica da norma prevalente (dominante) esgota a totalidade do

desvalor (de ação e resultado) do fato realizado348, consubstanciando uma unidade normativa

de delito, independentemente do número de ações puníveis passíveis de identificação.

343 Apesar da ausência de declaração solene do non bis in idem, considere-se a previsão deste princípio em

documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

da ONU (Cláusula 7ª, art. 14), ratificado e promulgado no Brasil pelo Decreto nº 592/1992, e o Pacto de São José

da Costa Rica (cláusula 4ª, art. 8), ratificado e promulgado no Brasil pelo Decreto nº 678/92. Ademais, merecem

alusão as previsões do art. 61 e do art. 8º, ambos do CP. Pela primeira, proíbe-se a consideração de agravantes que

simultaneamente constituam ou qualifiquem o crime. Pela segunda, a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena

imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas. Ambas trazem em

essência a proibição de duplicidade de repressão com base no mesmo fundamento. 344 Processo nº 18640/18 do TEDH, de 4 de março de 2014, cf. referido em: BURNIER DA SILVEIRA,

Paulo. O direito administrativo sancionador e o princípio non bis in idem na União Europeia: uma releitura a partir

do caso “Grande Stevens” e os impactos na defesa da concorrência. Revista de Defesa da Concorrência, vol. 2,

nº 2, Nov. 2014. pp. 5-22. 345 BURNIER DA SILVEIRA, 2014, pp. 17-18. 346 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 235. 347 GARCÍA CAVERO, 2014, pp. 236-237. 348 BUSATO, 2017, p. 877.

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Convém consignar, aqui, a posição divergente de Schmidt, para quem somente o critério

da especialidade seria governando pela vedação à dupla punição pelo mesmo fato; a consunção,

ao contrário, não se justificaria na proibição do bis in idem, mas em puro imperativo de

proporcionalidade, pois em casos tais existe pluralidade de condutas puníveis, de modo que a

punição autônoma de cada uma estaria “legitimada internamente”. Segundo o autor, o

fundamento da consunção seria, então, a ilegitimidade “externa” da pluralidade de punições,

“visto não ser justo punir mais de uma vez um criminoso que ofendeu um só objeto jurídico de

uma mesma vítima, apesar de tal lesão restar consolidada mediante mais de uma conduta

criminosa”349.

Politoff L., Matus A. e Ramirez G., por sua vez, fundamentam a consunção no princípio

da insignificância, argumentando que as “relações empíricas entre os fatos puníveis suscetíveis

de ser qualificados por dois ou mais preceitos” permitem que se considere um deles

“insignificante” frente a outro de “intensidade criminal” maior. Nesse caso, o castigo da norma

principal é suficiente e proporcional para reprovar o agente por seu comportamento global,

porque o delito acompanhante carece de “significação autônoma” no caso concreto, i.e., revela-

se insignificante perante a norma prevalente350.

Não obstante os argumentos da proporcionalidade e da insignificância sejam

persuasivos e convincentes, parece possível, em caráter complementar, associar o critério da

consunção também à regra do non bis in idem, como o faz a doutrina majoritária351. Como no

conflito aparente a norma prevalecente reúne em si a totalidade do desvalor do fato punível,

esgotando em plenitude a reprovação jurídica do comportamento global352, a aplicação

concorrente da norma descartada consubstanciaria dupla punição, pois negaria a aptidão da

norma dominante de expressar o desvalor global do fato, bem assim, sua proeminência

axiológica. Em se negando a relação lógica-valorativa entre os tipos legais, a norma descartada

não teria outra finalidade a não ser repetir a punição, cujo desvalor a norma prevalente já

contemplou na totalidade, segundo as balizas do caso concreto. Confira-se a síntese de Muñoz

Conde sobre a assimilação da carga material de um injusto por outro: “quando a conexão entre

os diversos delitos é tão íntima que, na falta de um deles, não se praticaria o outro, deve-se

349 SCHMIDT, 2001, p. 79. 350 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 457-458 (tn). Assim também: MATUS ACUÑA,

2005, p. 485. 351 RIOS; LAUFER, 2011, pp. 160-161; TAVARES, 2009, p. 516. 352 STRATENWERTH, 2005, p. 540.

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considerar todo o complexo delitivo como uma unidade, e não como dois delitos”353. Portanto,

o ne bis in idem encarna a condição de fundamento concorrente, independentemente de se poder

identificar uma razão ainda mais específica para justificar a consunção. Ao se declarar a

absorção material de uma norma em outra, declara-se, junto, a repetição de juízo de reprovação

que a aplicação concorrente das normas resultaria. Está-se, portanto, evitando-se punir em

duplicidade.

Conquanto o exposto, disso não segue que um mesmo comportamento delitivo não

possa ser reprovado sob mais de um ângulo valorativo, como foi pontuado no capítulo anterior

(a pedra lançada que simultaneamente destrói a vidraça e fere a vítima, encontra reprovação

também simultânea nos crimes de dano e lesões corporais, porque consubstanciam infrações

com conteúdo e significado próprios)354. O que se veda é a reprovação em duplicidade de uma

mesma expressão de desvalor (ou “mesma propriedade jurídico-penal relevante”355). Assim,

aquele que mata alguém não pode responder pelo crime de homicídio e também pelo crime de

lesões corporais, pois toda a gravidade do fato punível está prevista na norma que proíbe matar;

ou, então, quem falsifica um documento e por meio dele engana obtendo vantagem patrimonial,

não pode responder ao mesmo tempo pelos crimes de falsificação e estelionato, pois este último

contempla como modo de execução a fraude documental, congregando em si todo o desvalor

jurídico do evento criminoso – o que, porém, não se trata de um raciocínio a priori; essa

conclusão dependerá das circunstâncias do caso concreto.

Também por isso, se nenhum dos preceitos convergentes puder traduzir sozinho a

totalidade de desvalor do fato punível, pela independência valorativa (ou neutralidade) mantida

entre si, haverá fatalmente concurso de crimes (formal, material ou crime continuado). Caso,

porém, se constate a propriedade de uma das normas exaurir o desvalor do fato concreto e

mesmo assim se determine a aplicação das demais que com ela aparentemente concorram, a

conclusão só poderá ser o malogro à regra que proíbe punir em duplicidade pelo mesmo

fundamento de direito e, portanto, um resultado injusto, porque desproporcional. A abstenção

do exame da relação lógica ou valorativa (teleológica) entre as normas punitivas para delas

extrair a resposta jurídica proporcional e adequada ao caso concreto, conduziria a um

inadmissível automatismo na aplicação das leis, a revelar um apego cínico pelas fórmulas em

353 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto

Alegre: Fabris, 1988. p. 219. 354 GARCÍA CAVERO, 2014, pp. 236-237. 355 MATUS ACUÑA, Jean Pierre. Los criterios de distinción entre el concurso de leyes y las restantes

figuras concursales en el código penal español de 1995. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid,

v. 58, n. 2, p. 463-493., mai./ago. 2005. p. 474 (tn).

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detrimento do ser humano, em clara hecatombe ao dogma da racionalidade da pena e ao sentido

antropológico do direito penal democrático356. É por isso que, segundo a orientação dominante,

a aplicação das regras do concurso ideal e do concurso real depende da prévia rejeição do

concurso de leis, cujas regras resolutivas são “elementos negativos à definição das figuras

concursais comuns”357. Entre nós, Flavio Cruz enfatiza a precedência do concurso impróprio

ao próprio358.

Agora, não obstante a fundamentação hermenêutica e dogmática da unidade de lei, ainda

poderia subsistir a pergunta: mas como tornar ainda mais previsível a resolução da unidade de

lei? Considere-se especialmente a hipótese de consunção, cujo conteúdo é valorativo/axiológico

e depende das circunstâncias do caso concreto (cfe. o próximo capítulo), o que prejudica uma

pretensão metodológica de exatidão matemática359. Embora controlar o intérprete seja

praticamente impossível, especialmente porque as leis não têm conteúdo inequívoco360, é

possível exercer um controle mínimo sobre a racionalidade judicial para o equacionamento da

consunção – a regra de resolução da unidade de lei mais controversa. O que em si já é bastante,

pois seria impensável o controle total da atividade hermenêutica. Tampouco se podem esperar

respostas únicas, apenas respostas melhores361. O fundamental é que com os critérios sugeridos

se possa obter, na sentença, um parâmetro argumentativo claro e delimitado, e que exatamente

por isso permita a crítica e o contraponto, analogicamente ao que ocorre na dosimetria da pena.

Nesse sentido, uma última palavra deve ser dita a respeito do papel da dogmática

jurídico-penal relativamente ao exercício do poder de punir. Conforme Gimbernat, a dogmática

tem a importante função de orientar a “aplicação segura e calculável do Direito penal”,

subtraindo-lhe a “irracionalidade, a arbitrariedade e a improvisação”. Afinal, “quanto menos

desenvolvida esteja uma dogmática, mais imprevisível será a decisão dos tribunais, mais

dependerá do azar e de fatores incontroláveis a condenação ou a absolvição”. Na lúcida

percepção do referido autor, “quanto menor for o desenvolvimento dogmático, mais loteria, até

chegar a mais caótica e anárquica aplicação de um Direito penal de que – por não ter sido objeto

de um estudo sistemático e científico – se desconhece seu alcance e seu limite”362.

356 ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2007, p. 316. 357 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 464-465 (tn). Vide também: BACIGALUPO, 1999, p. 572. 358 CRUZ, 2014, p. 679. 359 CRUZ, 2014, p. 227. 360 CRUZ, 2014, p. 262. 361 CRUZ, 2014, p. 276. 362 GIMBERNAT, Ordeig. ¿Tiene um Futuro la Dogmática Juridicopenal? p. 9 (tn). Disponível em:

<https://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/articulos/a_20080521_84.pdf>. Acesso em: 6 de junho de 2018.

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No fim das contas, portanto, o que interessa é investir a decisão de racionalidade,

tornando-a suscetível ao controle e à crítica, ainda que não se possa antever com segurança o

resultado. O fato de se evitar o decisionismo já é um avanço.

3.2 OS CRITÉRIOS EM ESPÉCIE

Quanto ao número de critérios (ou relações363) de resolução do conflito aparente de

normas e, principalmente, o conteúdo de cada um, não é nenhum exagero afirmar que impera a

confusão na doutrina. Trata-se de campo em que a literatura penal diverge

consideravelmente364. Não há unanimidade tanto em relação ao elenco de hipóteses de

resolução, quanto ao conteúdo delas. E em relação aos casos de aplicação desses parâmetros,

pode-se dizer que as dissidências atingem “proporções caleidoscópicas”, na metáfora Horta365.

Essas dificuldades não são recentes. Oscar Stevenson já afirmava que

não é só o cabimento do processo lógico-sistemático e a aplicabilidade de normas em

função desses princípios, ou regras, que tem suscitado fundas discordâncias entre os

doutrinadores. Mas é igualmente o rol dêles, a sua índole e o ajustamento de um dado

fato a um princípio que não outro, como na elisão da tentativa pelo crime consumado

e do delito de perigo pelo de dano366.

Pela amplitude dessas questões, este trabalho naturalmente não se ocupará de catalogar

toda opinião a respeito, mesmo porque, uma tal tarefa seria própria de Sísifo, dada a profusão

não só de posições como de autores. Sendo assim, serão destacados os pontos congruentes entre

os marcos teóricos aqui adotados e as conclusões mais sólidas e operativas pragmaticamente.

Vale dizer, a escolha por determinada opinião observa critérios como operatividade prática e

coerência lógico-jurídica, a fim de se tentar chegar a resultados satisfatórios para a resolução

de casos concretos de concurso aparente, em especial a consunção, revigorada no âmbito do

direito penal econômico. Afinal, a abstenção de escolha diante de um cenário de divergências

teóricas só conduziria à paralisia. Isso, porém, não significa que as opções aqui adotadas sejam

necessariamente as melhores e mais justas, pois uma tal postura seria não apenas não científica

como pedante.

363 DOTTI, 2010, p. 364. O autor esclarece que o termo “princípios” não é adequado, pois pelas regras se

decide “o que é verdadeiro e falso” no momento da aplicação da lei. 364 MARQUES, 1997, p. 437. 365 HORTA, 2007, p. 98. 366 STEVENSON, 1962, p. 37.

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Os mesmos critérios que resolvem casos de concurso impróprio também os identificam,

apresentando-se como ferramentas hermenêuticas com dupla função, a saber: identificação e

resolução367. De acordo com a doutrina majoritária, são eles: especialidade (Lex specialis

derogat legi generali), subsidiariedade (Lex primaria derogat legi subsidiarie) e consunção

(Lex consumens derogat legi consumptae). A alternatividade (para a qual não há brocardo

correspondente368) seria um quarto critério, mas sua autenticidade é muito questionada.

Enquanto um setor da doutrina afirma que nessa hipótese não há verdadeiro conflito aparente,

senão mais de uma forma de incurso na mesma norma penal369 ou mais de uma lei à disposição

do julgador para basear alternativamente sua decisão (como, p.ex., “nos tipos mistos

alternativos ou nas hipóteses de dificuldade na apreciação dos fatos”370), outro setor sequer a

refere como regra pertencente ao rol de resolução371. Observam Rios e Laufer que nas

dogmáticas alemã e italiana o critério da alternatividade foi praticamente abandonado pelos

doutrinadores372; a doutrina espanhola, por sua vez, “tem conferido um tratamento sui generis

a esta categoria”373. Tal postura é compreensível, pois o Código Penal espanhol reconhece a

alternatividade na 4ª regra do art. 8: “Em não se aplicando os critérios anteriores, o preceito

penal mais grave excluirá os que castiguem o fato com pena menor” (tn)374. Considerando,

portanto, a intensa controvérsia e a identidade movediça da alternatividade, ela não será aqui

tratada, até porque a doutrina nacional tradicional não a reconhece375.

Em caráter sumular, considere-se que há especialidade quando uma norma especial

contém estruturalmente a norma geral, acompanhada de elementos que a especializam, com o

que oferece um nível de detalhamento de configuração típica maior que o contemplado na

norma base376. Haverá subsidiariedade quando um preceito se subordinar ao outro na proteção

de um mesmo bem jurídico, sendo que sua incidência dependerá da não aplicação daquele dito

principal, podendo esse caráter residual ser expresso ou tácito377. A consunção, por sua vez, se

verifica quando uma das normas puder englobar, axiologicamente, o conteúdo de desvalor de

367 HORTA, 2007, p. 87. 368 RIOS; LAUFER, 2011, p. 151. 369 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. p. 81. 370 TAVARES, 2009, p. 512; ZAFFARONI, 2002, p. 871. 371 Nesse sentido, vide: HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 95 et seq. FRAGOSO, 2006, p. 455 et seq. TOLEDO,

1994, p. 50 et seq. 372 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791. 373 RIOS; LAUFER, 2011, p. 159. Vide também: ALBERO, 1995, p. 401. 374 MATUS ACUÑA, 2005, p. 480. “En defecto de los criterios anteriores, el precepto penal más grave

excluirá los que castiguen el hecho con pena menor”. 375 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 628. 376 PRADO, 2013, p. 275; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 629. 377 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 629.

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outra (conteúdo de injusto), segundo a moldura fática do caso concreto, de modo que mediante

uma interpretação valorativa/substancial considera-se um dos crimes (normalmente

considerado crime-meio, mas nem sempre) absorvido por outro (dito crime-fim), achados em

relação de acessório e principal (acompanhante e dominante)378. Há, na consunção, um

“fechamento material” entre os tipos, pois um “consome ou exaure o conteúdo proibitivo” do

outro379.

O aprofundamento de cada mecanismo de resolução de conflito aparente será realizado

a seguir. Não obstante, com elas já se sinalizam as compreensões que neste trabalho se julgam

mais satisfatórias. Atente-se que referida classificação se confirma desde uma concepção

pluralista (ou clássica), que admite a existência de mais de uma regra de resolução da

convergência aparente. Embora minoritária, não se podem deixar de referir as concepções

monistas, que arbitram um único critério de resolução. Dentre seus adeptos, cite-se Puppe380 e

Jakobs381, para os quais o critério da especialidade bastaria à resolução de todo caso de conflito

aparente382, e a posição do italiano Antolisei, que originalmente reconhecia a especialidade e

um outro critério denominado por ele de progressão383, mas em trabalho posterior passou a

admitir apenas a especialidade384. Entre nós, Fortes Barbosa também encampou o monismo,

mas elegia a consunção como critério definitivo385.

Na plêiade de divergências relacionadas ao rol de critérios (desde as concepções

pluralistas/clássicas), há quem opte por apenas duas regras, com exclusão de uma terceira

(geralmente, a subsidiariedade ou a consunção são descartadas). Em caráter meramente

ilustrativo, mencionem-se as posições de Schmidt (que aceita apenas a especialidade e a

consunção386), Mezger (pela especialidade e consunção387), Figueiredo Dias (que reconhece a

consunção, mas a situa fora da temática do conflito aparente388), Cirino dos Santos (que sustenta

a tendência de a consunção sofrer “sua própria consunção” por outros critérios, especialmente

o da especialidade e o do antefato e pós-fato copunidos389), Fontán Balestra (pela especialidade

378 BUSATO, 2017, p. 879; MATUS ACUÑA, 2005, p. 483 et seq. 379 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 629. 380 ROXIN, 2014, p. 1000. Examinando em detalhe a perspectiva teórica da professora Ingeborg Puppe,

vide: CRUZ, 2014, pp. 572 e ss. 381 HORTA, 2007, p. 105 et seq. 382 Em relação às abordagens de Jakobs e Puppe, confira-se a análise de: CRUZ, 2014, p. 741. 383 GARCIA, 1972, p. 511. 384 BRUNO, 1967, p. 261; CARVALHO FILHO, 2009, p.78. 385 BARBOSA, 1976, pp. 31-32. 386 SCHMIDT, 2001, p. 80. 387 MEZGER, 1958, p. 346. 388 DIAS, 2007, p. 1002. 389 SANTOS, 2006, p. 420.

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e subsidiariedade390), Frosali (igualmente pela especialidade e subsidiariedade391) e, por fim, o

clássico trabalho de Klug, que examinando o tema a partir das relações lógico-conceituais entre

as normas, atribui relevância à especialidade e à subsidiariedade392. Na verdade, a única regra

que conta com apoio praticamente unânime é a relação de especialidade393. Embora as posições

sejam defensáveis e disponham de argumentos razoáveis, convém reconhecer a relevância dos

três critérios, na esteira dos marcos teóricos adotados neste trabalho. Tavares apregoa a respeito

o seguinte:

diante da complexidade do fato e ainda da dubiedade dos procedimentos

interpretativos, parece ser adequado a uma argumentação delimitativa que se proceda

a uma diferenciação dos critérios da especialidade propriamente dita, que seleciona a

lei aplicável segundos as particularidades da configuração típica do injusto, daqueles

outros casos, de subsidiariedade e consunção, nos quais fatos diversos se integram ao

mesmo conteúdo de injusto em face, respectivamente, da gradação na violação do bem

jurídico ou do sentido imprimido à realização da conduta e do resultado.394

Para isso, contudo, é preciso encontrar um sentido estrito para as regras de solução do

concurso impróprio, capaz de lhes conferir significação autônoma, com o que se rejeitam

enunciados retóricos ou excessivamente genéricos, que apenas dificultam a compreensão das

relações de conflito. É que boa parte da divergência doutrinária se deve a formulações

excessivamente amplas dos conceitos, levando alguns a afirmar a inutilidade de determinado

critério, e outros a eleger um único aplicável. Assim, por exemplo, caso se tome a especialidade

em sentido genérico ou lato, todos os casos de conflito se resolveriam por ela, pois sempre seria

possível afirmar que o predomínio de uma norma sobre outra se deve a que a lei precedente

descreve melhor e mais especificamente o fato395. Mesma lógica se aplicaria à relação de

subsidiariedade, pois em um sentido amplo, o predicado subsidiário indica que alguma coisa

prefere outra396 (p.ex., o direito penal, enquanto ramo do direito, é subsidiário ao direito civil e

ao direito administrativo). Até mesmo a consunção sofreria com uma definição genérica dessa

natureza, caso fosse considerada, simplesmente, como o fenômeno pelo qual uma norma

390 BALESTRA, Carlos Fontán. Derecho penal. Introducción y Parte general. Buenos Aires: Abeledo-

Perrot, 1998. p. 117. 391 FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, p. 770. 392 KLUG, Ulrich. Sobre el concepto de concurso de leyes: análisis lógico de una regulación lingüística de

la dogmática penal. Problemas de la filosofía y de la pragmática del derecho. [S.l.]: Distribuciones Fontamara,

1992. pp. 57-75. 393 HORTA, 2007, p. 93. 394 TAVARES, 2009, p. 513. 395 TAVARES, 2009, p. 513. 396 HORTA, 2007, pp. 131-132.

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absorve outra, tal como a declarava Beling397, afinal, em todo caso de conflito aparente é

possível afirmar, formalmente, que ocorre a absorção de uma norma pela outra398.

Portanto, convém descortinar o sentido estrito dos conceitos, pois somente assim é

possível lhes reservar autonomia e relevância dogmática. Registre-se, por fim, que há quem

sustente a possibilidade de coincidência de regras na resolução de determinando conflito

aparente, entendendo, assim, pela ausência de incompatibilidade entre os critérios, a obrigar

que se opte por um em detrimento necessário de outro399.

A fim de facilitar a compreensão dos critérios abordados nos tópicos seguintes, é

importante esclarecer, desde logo, que enquanto as relações de especialidade e de

subsidiariedade são explicadas desde uma perspectiva lógico-conceitual das normas em conflito

(plano abstrato), a consunção resulta da relação teleológico/valorativa entre as normas

incriminadoras a que se chega mediante um processo de interpretação do caso concreto e de sua

expressão de desvalor400. Não que na consunção prescinda-se totalmente da relação lógica entre

as normas em tensão; é que essa relação lógica não deriva propriamente do conteúdo abstrato

dos tipos penais (como na especialidade ou na subsidiariedade – esta em menor intensidade,

pois ela também não olvida totalmente a relação valorativa entre os tipos), mas da interação

valorativa entre as normas, aferida empiricamente, segundo as circunstâncias do caso

concreto401. Na consunção, portanto, predominam critérios teleológicos/axiológicos em atenção

ao caso concreto, sendo inserível a mera relação lógico-formal entre os tipos402.

Justamente pelo predomínio dessa perspectiva material, Figueiredo Dias acaba situando

a consunção fora do problema do conflito aparente, tratando-a como um caso de “concurso

impuro ou impróprio”, que se resolve com o reconhecimento da unidade delitiva, já que “os

sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se interceptam e se cobrem mutuamente, de tal

397 BELING, Ernst Von. Esquema de derecho penal: la doctrina del delito-tipo. Buenos Aires: Librería EL

FORO. 2002. pp. 168-169. 398 ALBERO, 1995, p. 382-383. É por essa razão que o argentino Carlos Fontán Balestra a rejeita

(BALESTRA, 1998, p. 117). Confira-se o rol de autores mencionados por Rios e Laufer que rejeitam a consunção

por considerarem-na um conceito coincidente que a definição geral do fenômeno do conflito de leis: RIOS;

LAUFER, 2011, p. 159 (nota 98). 399 HORTA, 2007, p. 150; CARVALHO FILHO, 2009, pp. 106 et seq. 400 RIOS; LAUFER, 2011, p. 160. Nas palavras dos autores: “Não é demais apontar que entre os aspectos

distintivos entre a consunção e a regra da especialidade e da subsidiariedade, reside que para estes dois últimos

são determinantes as relações abstratas entre os preceitos. De outra sorte, a consunção opera sempre sobre um viés

concreto, e realizado por meio de razões valorativas que determinam o predomínio de uma norma incriminadora

sobre a outra”. Assim também, Figueiredo Dias: a consunção “é agora repensada não sob o prisma das relações

entre normas, mas de relações entre sentidos dos ilícitos singulares no contexto da realidade da vida constituída

pelo comportamento global” (DIAS, 2007, p. 1012). Vide ainda: HORTA, 2007, p. 149. 401 ALBERO, 1995, p. 386. 402 RIOS; LAUFER, 2011, p. 160; CRUZ, 2014, p. 745; HORTA, 2007, pp. 147-149.

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modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição de dupla

valoração”403. O autor português assim conclui porque concebe o conflito aparente só em caso

de unidade de conduta delitiva404. Mesma posição é compartilhada por Aníbal Bruno405.

No entanto, caso se atribua maior importância às relações pelas quais se reconhece a

unidade delitiva, não haveria por que apartar a consunção das hipóteses de conflito aparente.

Noutras palavras, parece possível incluir a consunção no rol de critérios, desde que se priorize

o entendimento sobre o reconhecimento da unidade normativa de delito, independentemente do

número de condutas: mais importante do que o número de comportamentos reprováveis

praticados é a carga de desvalor jurídico por eles revelada, com o que se admite que a magnitude

de injusto de uma única conduta seja, eventualmente, mais intensa que a adstrita a várias.

Refira-se, em complemento, que a ideia mestra da unidade de lei é a aptidão de um dos tipos

penais convergentes ser “suficiente para englobar completamente o sentido jurídico-penal da

conduta realizada”, cf. Garcia Cavero406. Portanto, o decisivo ao reconhecimento do conflito

aparente não é o número de condutas puníveis, mas a caracterização da unidade delitiva em

meio à pluralidade de normas em tese incidentes.

3.2.1 Relações lógico-formais: a contribuição de Ulrich Klug

A essa altura, torna-se obrigatório referir a monografia de Klug, vastamente citada pela

literatura no bojo da temática do conflito aparente de normas. Em seu trabalho El concurso de

Leys (apresentado na jornada dos professores de Direito Penal em 1955407), o autor investigou

as relações lógico-conceituais existentes entre preceitos incriminadores, fornecendo um

caminho dogmático elucidativo à temática da convergência de normas. Klug preconiza haver

quatro tipos de relações, a saber: heterogeneidade, identidade, subordinação e interferência.

Haverá heterogeneidade quando um objeto que incidir sob o conceito A não puder

incidir simultaneamente sob o conceito B, vale dizer, quando um fato não puder se enquadrar

ao mesmo tempo nos conceitos A e B (p. ex.: furto – CP, art. 155 – e apropriação indébita –

CP, art. 168)408. Em casos tais, não se cogita de concurso ideal, tampouco de conflito aparente

403 DIAS, 2007, p. 1002. 404 DIAS, 2007, p. 992. 405 BRUNO, 1967, p. 263. 406 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 709. 407 RIOS; LAUFER, 2011, p. 153. 408 KLUG, 1992, p. 62.

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de normas, pois os preceitos são absolutamente independentes. Portanto, quando preenchidas

ambas as normas, haveria concurso real de crimes necessariamente.

Haverá relação de identidade quando um objeto puder incidir ao mesmo tempo sob os

conceitos de A e B e vice-versa, de modo que uma norma se confunde com a outra409; i.e., um

tipo de pleonasmo legal. No entender do autor, essa relação seria anacrônica se o ordenamento

jurídico se pretende coerente, pois não há fundamento para tipos penais diversos proibirem uma

mesma conduta410.

Com influência, agora, sobre a temática em estudo, há relação de subordinação

(inclusão) “quando cada objeto que cair sob o conceito A também o fizer sob o conceito B sem

que seja cabível o inverso”.411 A e B não são idênticos, mas A (subordinado) está contido em

B (considerado subordinante ou abrangente). A ilustração pertinente é a dos círculos

concêntricos. Os exemplos clássicos são a relação lógico-formal entre o roubo (CP, art. 157) e

o furto (CP, art. 155), e entre o peculato (CP, art. 312) e a apropriação indébita (CP, art. 168)412.

No primeiro caso, o crime de furto está subordinado (contido) no de roubo; no segundo, o de

apropriação indébita integra conceitualmente o de peculato.

A última relação, também pertinente ao tema em apreço, é a de interferência (intersecção

ou cruzamento), verificada quando “pelo menos um objeto que incide sob o conceito A recai

também sob o conceito B e ao menos um objeto que cai sob o conceito A não recai ao mesmo

tempo sob o conceito B”.413 Nesse caso, os tipos legais se interferem, pois dispõem de partes

comuns. A ilustração clássica são os círculos secantes. Exemplo desta relação é a falsidade

ideológica (CP, art. 299) ou o uso de documento falso (CP, art. 304) com o estelionato (CP, art.

171), pois aqueles delitos podem constituir uma das formas pelas quais se comete o último414.

Com Klug conclui-se, portanto, que os únicos fundamentos lógico-conceituais que estão

na base das regras de resolução de conflito aparente de normas são a subordinação e a

interferência415; a heterogeneidade remeteria necessariamente ao concurso próprio de crimes e

a identidade seria inoportuna no mesmo ordenamento jurídico. Estabelece o autor, então, que a

regra da especialidade corresponde à relação de subordinação, ao passo que a regra da

409 KLUG, 1992, p. 62. 410 KLUG, 1992, pp. 62 e 71. Não obstante, como anota o próprio Klug, essa relação tem importância no

âmbito do direito penal comparado, direito penal internacional e em material de extradição. 411 KLUG, 1992, 62 (tn). 412 HORTA, 2007, p. 67. 413 KLUG, 1992, 63 (tn). 414 HORTA, 2007, p. 71. 415 KLUG, 1992, p. 71.

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subsidiariedade remete à relação de interferência416. E só na presença dessas duas hipóteses de

relações lógico-conceituais entre as normas seria possível conceber a exclusão de um preceito

pelo outro já no plano abstrato417.

Ocorre que, como Klug mesmo reconhece, o exame lógico-conceitual é insuficiente para

distinguir o conflito de normas do concurso ideal, pois essa perspectiva não responde por que

uma norma deve ceder em função da outra. É por isso que o autor acrescenta ainda outro

aspecto, que denomina teleológico:

A relação de interferência ou de subordinação que se constatou entre os tipos em pauta

tem, todavia, de ser considerada sob o aspecto teleológico, pois é claro que a

constatação de que os tipos legais se encontram entre si na relação lógica da

interferência ou da subordinação nada diz, porém, acerca do que se infere a respeito

da aplicação destes tipos. Somente quando se dispõem de diretivas adicionais podem

ser inferidas as consequências para a aplicação da lei determinadas pela averiguação

da relação lógica existente entre os tipos legais. Estes princípios teleológicos que

devem derivar da obra legislativa podem ser mencionados expressamente pelo

legislador ou estar tacitamente previstos.418

Com efeito, na especialidade, o “respectivo sentido teleológico é sempre tão

inequivocamente reconhecível que não necessita nenhuma referência especial do legislador

com respeito ao fundamento ao efeito derrogante do tipo especial”419. Quanto à subsidiariedade,

o princípio geral é de que em caso de interferência entre as normas, deve-se reconhecer o

concurso ideal, a não ser que haja referência expressa pelo legislador da relação de

subsidiariedade420. A subsidiariedade tácita, por sua vez, é concebível, mas como exceção; ela

requer uma “fundamentação teleológica inequívoca que, afastando-se do princípio já

mencionado, justifique a suposição de que o legislador em lugar do concurso ideal pressupôs

tacitamente a subsidiariedade”421. Quanto à consunção, seu fundamento também seria a relação

lógico-conceitual de interferência, mas Klug entende que ela seria supérflua, pois não passaria

de um caso de subsidiariedade tácita especial: “como no caso da subsidiariedade, a consunção

subjaz a relação conceitual da interferência. Sem maiores dificuldades, pode ser entendida como

416 KLUG, 1992, p. 64. 417 Quanto à alternatividade, Klug a interpreta de dois modos: se existir heterogeneidade entre as normas

(p.ex., furto e apropriação indébita), não se cogita de conflito de leis; se, porém, houver relação de subordinação,

porque duas normas proíbem o mesmo fato sob diferentes pontos de vista jurídicos (com o que se considera uma

incluída na outra), a hipótese seria de um caso especial de concurso de leis: “a diferença com a especialidade não

consiste na estrutura lógica, senão nas diferentes consequências que na aplicação da lei se retiram da mesma

constelação de conceitos”. (KLUG, 1992, pp. 61; 68-70 – tn). 418 KLUG, 1992, p. 71 (tn). 419 KLUG, 1992, p. 73 (tn). 420 KLUG, 1992, pp. 73 e 75. 421 KLUG, 1992, p. 73 (tn).

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subsidiariedade tácita e com isso resulta ser igualmente supérflua na teoria do concurso de

normas”.422 Não obstante as ponderações de Klug, considere-se o seguinte: na subsidiariedade,

reconhece-se justamente a incidência da norma subsidiária; na consunção, ao contrário,

descarta-se a norma subsidiária (em sentido amplo). Portanto, consunção e subsidiariedade não

se confundem.

O estudo de Klug é uma referência indispensável pela clareza com que examina as

hipóteses de relações lógico-formais entre normas e, especialmente, pela indicação da relação

lógica de interferência na base da subsidiariedade tácita e do concurso ideal, acompanhada do

elemento teleológico como conceito-chave para distingui-los423. Embora de notável avanço

dogmático, a formulação de Klug não alcança, porém, todas as formas de interação entre as

normas, pois ao centrar o exame nas relações lógico-formais em abstrato e, mais ainda, limitar

o conflito de normas a situações de conduta punível única424, olvida a possibilidade de

interferência valorativa/axiológica no momento da concreta subsunção das normas ao fato

punível (i.e., a relação entre conteúdos de desvalor dos preceitos incriminadores) e, portanto, a

dimensão material de que a consunção se ocupa425. Por outro lado, os casos de antefatos e pós-

fatos coapenados ou impuníveis ficariam sem resposta segundo a concepção de conflito

aparente de normas formulada por Klug, pois não podem ser explicadas conforme as relações

lógico-conceituais entre as normas:

Isto se deve à existência de uma pluralidade de condutas cronologicamente separadas

com a devida relação material entre o comportamento anterior ou posterior e a

estrutura e significado valorativo essencial da norma incriminadora prevalente, cujo

cerne é o aproveitamento ou a garantia da posição obtida através do fato antecedente

sem, no entanto, resultar na aplicação dos efeitos do concurso real426.

Como observa Palma Herrera, o próprio Klug acabou reconhecendo a insuficiência das

relações lógicas para a solução dos casos de conflito aparente, pela inevitabilidade de

parâmetros axiológicos para a resolução de casos em que a relação lógico-conceitual não

ajuda427. Não obstante, o sentido teleológico (que Klug até refere como de importância similar

422 KLUG, 1992, pp. 67 e 74 (tn). 423 RIOS; LAUFER, 2011, p. 158. 424 KLUG, 1992, p. 58. 425 Se bem que Klug trata intencionalmente da convergência de normas em um sentido estritamente formal,

sem a pretensão de equipara-la à problemática da superposição de normas na apreciação valorativa do fato (KLUG

1992, pp. 57; 71 e 74). A propósito da insuficiência da abordagem de Klug relativamente às hipóteses de unidade

de lei, vale a pena conferir ainda as ponderações de Flavio Cruz (CRUZ, 2014, p. 722). 426 RIOS; LAUFER, 2011, p. 162. 427 HERRERA, 2004, p. 29.

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a das relações lógicas428) pode ser tomado como um reforço ao imperativo de identificação de

relações jurídico-valorativas para absorção do conteúdo de injusto de um tipo penal pelo outro

no plano concreto429, inclusive entre aquelas que mantém relação lógica de heterogeneidade

entre si430 (considerem-se, a propósito, os casos de antefatos e pós-fatos coapenados)431.

3.2.2 Especialidade

A especialidade é uma regra de resolução identificada pela relação lógico-formal de

subordinação conceitual entre as normas. É a forma de manifestação mais evidente e de

“aplicação mais segura do concurso de leis”432. Seu exame se resolve já no plano lógico-

abstrato433, antes, portanto, de eventual avaliação dos sentidos de desvalor revelados pelas

normas casuisticamente. Essa relação se dá quando um dos tipos, considerado especial, contém

outro, chamado geral, e pelo menos uma característica a mais, fazendo com que a hipótese fática

deva ser considerada desde um particular ponto de vista434; vale dizer, o suposto de fato do tipo

especial contém todos os elementos do geral, além de um ou outros aspectos conceituais a

mais435.

Por sua maior completude conceitual, a norma especial tem preferência sobre a geral.

Portanto, é a maior exatidão descritiva da norma prevalente na operação de encaixe da situação

fática que conduz ao afastamento da norma geral436. Frise-se que a subordinação do tipo geral

no especial é puramente conceitual, não valorativa. Portanto, o tipo especial, embora contenha

o geral, atribuirá ao fato uma pena diferente (maior ou menor) em razão de algum de seus

atributos de especialização437. Conforme a doutrina majoritária e abstraindo-se as insuperáveis

polêmicas, os delitos complexos revelam relação de especialidade relativamente às normas

penais que o compõem438. Assim também, os tipos qualificados ou privilegiados em relação

428 KLUG, 1992, pp. 57 e 74. 429 MEZGER, 1958, p. 306; RIOS; LAUFER, 2011, p. 160. 430 Nesse sentido: CRUZ, 2014, p. 816. Como refere Horta, entre tipos heterogêneos não há somente

incompatibilidade e, portanto, relação de exclusão recíproca; é possível haver concurso ideal entre tipos

heterogêneos, desde que não sejam incompatíveis entre si: HORTA, 2007, pp. 73-74. 431 MIR PUIG, 2015, pp. 667-668; JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 793-794. 432 ROXIN, 2014, p. 1000; ALBERO, 1995, p. 321. 433 FRANCO; STOCO, 2007, p. 387; MEZGER, 1958, p. 346. 434 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 790. 435 ROXIN, 2014, p. 999; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 146; MATUS ACUÑA, 2005, p. 470. 436 FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, p. 752. 437 SOLER, 1992, p. 223; HORTA, 2007, pp. 123 e 128. 438 KLUG, 1992, p. 64; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 790; ROXIN, 2014, p. 1002; HORTA, 2007, p.

119; STRATENWERTH, 2005, p. 542; CRUZ, 2014, p. 767.

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aos simples439. Em ambos os casos, o preceito geral está subordinado conceitualmente ao

especial, podendo-se reconhecer a relação de gênero e espécie.

Embora se considere a especialidade o mecanismo de solução do concurso impróprio

menos tormentoso440, isso não significa que ela seja sempre observada e que suas hipóteses de

incidência sejam necessariamente triviais. No âmbito do direito penal econômico, destacam-se,

aqui, dois casos.

O primeiro, de percepção mais simples, é a relação de especialidade entre o art. 334, do

CP (contrabando) e o crime do art. 56, da Lei 9.605/98 (Lei de crimes ambientais), analisada

nos autos do REsp 1524517, do STJ441. A conduta punível de importar produto proibido (no

julgado examinado, pneus usados) para fins de comercialização ilegal, embora ofenda tanto o

bem jurídico supraindividual meio ambiente como a administração pública, se amolda com

mais precisão no delito da lei de crimes ambientais. Em se tratando de pneus usados (ou de

qualquer outro bem de consumo nocivo ao meio ambiente), é mais forte e exerce força atrativa

a peculiaridade de se tratar de produto nocivo “à saúde humana ou ao meio ambiente”, em

comparação com a previsão geral que proíbe, genericamente, a importação fraudulenta de

produtos sob a rubrica do descaminho. Afinal, há especialidade também quando “uma figura

importa em uma descrição mais próxima ou minuciosa de um fato”, conforme Soler442. O

Ministério Público recorreu pleiteando o reconhecimento do concurso ideal/formal, mas o STJ

desproveu o REsp ministerial ao considerar que a lei ambiental “prevê uma forma especializada

de contrabando de objeto nocivo ao meio ambiente e à saúde humana”, assentando, em

conclusão, que:

o objeto jurídico aqui tutelado não é o interesse estatal na importação de qualquer

mercadoria proibida (art. 334 do CP) mas de produto ou substância tóxica, perigosa

ou nociva à saúde humana e ao meio ambiente, em desacordo com as exigências

estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos – critério especializante –, a exemplo

da importação de medicamentos adulterados ou corrompidos (art. 273 do Código

Penal) ou com finalidade lucrativa (§1º do art. 273, CP), e do tráfico de armas e

munições (arts. 18 e 19 da Lei 10.826/03).

É verdade que se pode objetar esse raciocínio com este argumento: caso se considere

como ratio legis do crime de contrabando apenas a proteção da indústria nacional da

439 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 790; ROXIN, 2014, p. 1000; BACIGALUPO, 1999, p. 572; DIAS,

2007, p. 994; HORTA, 2007, p. 116. 440 BACIGALUPO, 1999, p. 572. 441 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1524517/BA, Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado

em 17/08/2017. DJe 29/08/2017. 442 SOLER, 1992, p. 223 (tn). Assim também: TAVARES, 2009, p. 512 e HORTA, 2007, p. 115.

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concorrência estrangeira (política econômica), então em princípio não se poderia falar em

especialidade, já que o fundamento da proibição de importação de pneus usados é mais

precisamente a proteção da saúde e do meio ambiente (política ambiental). Assim, como os

interesses protegidos pelas normas em conflito em nada se confundiriam, o concurso de crimes

seria a melhor saída hermenêutica. Contudo, caso se entenda que a razão de ser do contrabando

não se restringe à proteção econômica da produção da indústria nacional, mas abrange, também,

outras finalidades, como, p.ex., a proteção da saúde443, a proibição da lei ambiental pode ser

considerada apenas uma especificação de um dos (diversos) motivos para se proibir a

importação de determinados produtos, podendo ser considerada, nesse passo, especial.

Há, igualmente, especialidade entre o crime do art. 272, do CP, e o art. 7º, IX, da Lei

8.137/90, com a interessante peculiaridade de o tipo especial estar previsto na lei geral444.

Partindo-se da lição de Matus Acuña, a norma do Código Penal que proíbe a comercialização

de produto alimentício corrompido é uma espécie do “gênero conceitual” mercadoria, sendo,

portanto, um caso de especialidade por “especificação”, já que ela “supõe conceitualmente”445

os elementos do inciso IX, do art. 7º, da lei dos crimes contra as relações de consumo (produto

alimentício corrompido ou adulterado é uma espécie do gênero mercadoria imprópria ao

consumo)446. Em consequência, caso se constate que um produto destinado ao consumo de

natureza alimentícia tenha sido corrompido, adulterado, falsificado ou alterado, vale a previsão

do Código Penal; se, porém, a conduta for simplesmente a de expor a venda alimento em

condições impróprias ao consumo, sem que se constate alguma das modalidades de intervenção

previstas na lei geral (corrupção, adulteração, falsificação e alteração447), a norma penal da lei

especial deverá prevalecer. A lei especial, ao tratar de mercadoria imprópria ao consumo em

sentido amplo, acaba assumindo conotação geral, enquanto a norma do Código Penal, ao

443 Vide, a propósito, a doutrina de Luiz Regis Prado, que entende estar abrangido no crime de contrabando

“a proteção à saúde, à segurança pública, à moralidade pública, no que se refere à proibição de importação de

mercadorias proibidas...”. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, vol. 4: parte especial, arts. 289

a 359-H. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 505. 444 Note-se que não é empecilho à especialidade a fato de uma das normas estar prevista na legislação comum

e a outra em lei extravagante, como observa Figueiredo Dias (DIAS, 2007, p. 995). 445 MATUS ACUÑA, 2005, p. 470. 446 Semelhante classificação é compartilhada pelo italiano Frosali, que subdivide o critério em especialidade

por “especificação” e por “adjunção”. No primeiro caso, a especialidade decorre de um maior detalhamento ou

especificação de algum elemento do tipo geral (ex., a qualidade da vítima como qualificadora no crime de lesões

corporais contra pessoa do convívio doméstico – CP, art. 129, §9º –; no segundo, a especialidade é fruto da adição

de algum elemento não previsto no tipo-base. (FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, pp. 753 -754). 447 Cf. Silva Franco e Rui Stoco, todos os verbos típicos do caput do art. 272, do CP, pressupõem uma

conduta comissiva de alteração do alimento em sentido amplo, a fim de lhe retirar o valor intrínseco ou “inferioriza-

lo” (FRANCO; STOCO, 2007, pp. 1304-1305). Isso difere, naturalmente, de uma conduta criminosa resultante da

violação ao dever de cuidado de manutenção do produto alimentício em condições adequadas ao consumo.

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delimitar uma espécie do gênero bem de consumo (alimento) e prever formas específicas de

torná-lo impróprio ao consumo (corrupção, adulteração etc.), assume, excepcionalmente,

conotação especial. Ademais, observe-se que o crime do art. 7º não protege apenas a saúde do

consumidor, tendo alcance mais amplo. É por isso que a jurisprudência do STJ endossa, em

regra, o enquadramento típico na figura do inciso IX, do art. 7º, da Lei 8.137/90, quando o caso

é de exposição à venda de alimento vencido448.

Observe-se, por fim, que não é possível concordar com Horta no ponto em que sustenta

haver uma “presunção absoluta de especialidade das normas ou das leis extravagantes”, nos

termos do art. 12, do CP, “ainda que a norma codificada apresente uma descrição mais detalhada

do fato”449. Estima-se que uma leitura tão rígida desse dispositivo comprometeria a unidade

conceitual da regra em questão, conquanto o preceito realmente priorize a aplicação das normas

extravagantes, como se infere: “as regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados

por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”. Uma leitura muito ortodoxa

neutralizaria a aplicação de normas incriminadoras que, embora previstas no Código Penal,

podem ser consideradas especiais relativamente a outras extravagantes, como no caso do crime

do art. 272, do CP, frente ao do inciso IX, do art. 7º, da Lei 8.137/90.

3.2.3 Subsidiariedade

A subsidiariedade é uma regra que também leva em conta a relação lógico-abstrata entre

os tipos penais, mas repousa, ao contrário da especialidade, na relação de interferência450. Essa

interferência decorre de que as normas em relação de subsidiariedade têm um âmbito de

proteção comum de determinado bem jurídico451, sendo que uma preferirá a outra porque,

ostentando “uma mesma propriedade jurídico-penalmente relevante”452, sua aplicação conjunta

significa dupla punição indevida. Vale dizer, como as normas interferentes compartilham

alguma propriedade jurídico-penal equivalente, sua aplicação conjunta não se ajustaria ao

princípio do ne bis in idem. No concurso ideal, ao contrário, normas interferentes obrigam a

aplicação conjunta porque não compartilham propriedades jurídicas comuns, mostrando-se

448 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1582152/PR. Rel. Min. Reynaldo Soares da

Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 20/04/2017. DJe 28/04/2017. 449 HORTA, 2007, p. 118. 450 ROXIN, 2014, p. 1003; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791; MATUS ACUÑA, 2005, p. 474. 451 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 147; DIAS, 2007, pp. 997-999; BITENCOURT, 2014, p. 255; SANTOS,

2006, p. 419. 452 MATUS ACUÑA, 2005, p. 475 (tn).

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neutras ou indiferentes em termos de expressão de desvalor (v.g. causar dano e lesões corporais

mediante uma só conduta)453.

O raciocínio fundamental dessa relação é a incidência da norma subsidiária apenas

quando não se puder aplicar a norma principal454, o que a qualifica como uma norma auxiliar,

ou então, um “soldado de reserva”, na célebre metáfora de Hungria455. Sua lógica subjacente é

evitar que a ausência de determinados requisitos deixe sem sanção um fato que, de outro modo,

pode ser sancionado por outro preceito que não os exige. Daí que, em caso de aplicação da

norma principal, sai necessariamente de cena a subsidiária456.

A doutrina divide a subsidiariedade em expressa e tácita457. A subsidiariedade expressa

(ou formal) se define pela declaração legal categórica de preferência do preceito legal com

exclusão de outro na qualificação jurídica do fato punível (ou fatos)458, e depende de uma

coincidência pelo menos parcial de proteção do bem jurídico, como preconiza a doutrina alemã.

Um exemplo clássico de subsidiariedade expressa é o art. 132, do CP (perigo para a vida ou

saúde de outrem), em relação ao crime do art. 121, do CP (homicídio), expressa na fórmula: “se

o fato não constitui crime mais grave” – aquele só se aplica quando este for descartado459.

Considerando que não raro a subsidiariedade expressa (ou formal) é ampla e absoluta,

ou seja, nem sempre observa os critérios inerentes à subsidiariedade tácita ou em sentido estrito

(p.ex., proteção do mesmo bem jurídico e norma de gravidade menor preterida pela de

gravidade maior), Zaffaroni a trata como uma hipótese de especialidade para manter a unidade

conceitual do instituto460. Essa é a mesma posição de Soler461. Roxin compreende, igualmente,

que em casos de subsidiariedade em sentido estrito, o tipo preferente mais rigoroso deve

“proteger ao menos parcialmente o mesmo bem jurídico que o tipo subsidiário e estar

tipicamente vinculado a ele”462. Resistem os mencionados autores, portanto, a considerar como

caso de subsidiariedade propriamente dita hipóteses que não conservam minimamente os

453 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 474-475. 454 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 146; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791; MATUS ACUÑA, 2005,

p. 473. 455 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97. Expressão também encontrada em: ALBERO, 1995, p. 333. 456 ROXIN, 2014, p. 1003; MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 472; SOLER, 1992, p. 226. 457 Na síntese de Albero: “A subsidiariedade de um preceito pode deduzir-se diretamente de seu teor literal,

posto que existe uma cláusula de inaplicação expressa em favor de outro, ou bem do sentido e finalidade do

preceito, através de uma interpretação teleológica e sistemática. Ambas as classes se referem respectivamente à

subsidiariedade expressa e tácita.” (ALBERO, 1995, p. 334). 458 MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 472; DIAS, 2007, pp. 997. 459 TOLEDO, 1994, pp. 51-52. 460 ZAFFARONI, 2002, pp. 869-870. 461 SOLER, 1992, p. 226. 462 ROXIN, 2014, p. 1006 (tn).

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pressupostos do instituto463. Um exemplo disso é o art. 177, §1°, do CP (“incorrem na mesma

pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular”): sua aplicação não está

condicionada apenas à configuração de um crime mais grave pertinente ao mesmo bem jurídico.

Baseado nisso, Horta diferencia os casos de subsidiariedade propriamente dita da

subsidiariedade como fenômeno formal de simples preferência de uma norma por outra464.

Albero, por sua vez, prefere a divisão da subsidiariedade expressa em absoluta (quando a norma

subsidiária deixa de ser aplicada por força de qualquer outro tipo penal) e relativa (quando ela

dá lugar a um crime com pena superior)465.

A subsidiariedade tácita (ou material), por sua vez, se baseia na ideia de que os graus de

afetação mais próximos a um mesmo bem jurídico preferem aos mais afastados, e prescinde de

previsão expressa porque essa relação de absorção assenta em critérios lógicos e valorativos466.

Bem por isso, a subsidiariedade tácita pressupõe com mais razão a tutela do mesmo bem

jurídico pelas normas em conflito e uma relação de minus e plus467. Na expressão de Jescheck

e Weigend, a subsidiariedade se caracteriza pela “mesma direção de ataque”468 e, na elaboração

de Zaffaroni, a ideia governante dessa regra é de “progressão da afetação típica”469. Pressupõe-

se, portanto, estágios de proteção distintos pelos normas quanto ao mesmo bem jurídico: o tipo

que prevê um ataque mais intenso descarta o que abarca um grau menor de afetação470. Essa

superposição parcial na proteção de um mesmo bem jurídico é justamente a propriedade

jurídico-penal compartilhada pelas normas. Atente-se, porém, que quando se fala em “mesmo

bem jurídico”, não se descarta a hipótese de eventual bem jurídico albergar conceitualmente

outro, como na relação havida entre integridade física e vida.

Embora seja possível estimar a subsidiariedade tácita a partir da relação lógico-formal

de interferência entre os tipos penais, a opção por uma em detrimento de outra se dá desde um

sentido valorativo/teleológico, associado aos diferentes níveis de gravidade e de punição dos

injustos471. Portanto, ao contrário da especialidade, o exame lógico não é puramente conceitual,

463 ALBERO, 1995, p. 334-335. 464 HORTA, 2007, p. 135. 465 ALBERO, 1995, pp. 334-335. 466 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 471 e 476; BITENCOURT, 2014, p. 256; CRUZ, 2014, pp. 762-763;

CARVALHO FILHO, 2009, p. 80; TOLEDO, 1994, p. 51; HORTA, 2007, p. 136. 467 MIR PUIG, 2015, p. 665; ZAFFARONI, 2002, p. 870; MARQUES, 1997, p. 439; CARVALHO FILHO,

2009, pp. 74 e 80. 468 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 791 (tn). Stratenwerth também utiliza essa expressão:

STRATENWERTH, 2005, p. 544. 469 ZAFFARONI, 2002, p. 870 (tn). 470 TAVARES, 2009, p. 514. 471 ALBERO, 1995, p. 351; ZAFFARONI, 2002, p. 870; DIAS, 2007, p. 997; MATUS ACUÑA, 2005, p.

476; HORTA, 2007, pp. 129-130.

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mas também valorativo. Por isso, a subsidiariedade é eventualmente associada à consunção472.

Contudo, as ideias particulares da subsidiariedade (tácita) são os diferentes estágios de proteção

de um mesmo bem jurídico e a relação principal-acessório entre as normas extraída

axiologicamente da progressão na agressão ao interesse tutelado penalmente473. A consunção,

por sua vez, se baseia nas relações empírico-valorativa das normas conforme a magnitude do

injusto verificada no caso concreto e, portanto, independentemente de eventual relação lógica

de interferência entre os preceitos, além de não ter como pressupostos necessários a identidade

de bem jurídico protegido e a progressão de ataque de menos para mais; a ela interessa apenas

se uma das normas pode esgotar o sentido de desvalor (de ação e de resultado) de outra na

dinâmica do caso concreto, a partir da relação empírica de conexão valorativa de uma em

função da outra474.

Na subsidiariedade tácita, em meio a muita divergência, incluem-se475: a) os atos

preparatórios autonomamente puníveis – ou seja, os antefatos coapenados cujo bem jurídico é

o mesmo da norma principal correlata (p.ex., o delito de possuir petrechos de falsificação em

relação ao delito de falsificação de moeda); b) o crime progressivo (p.ex., o autor que, num

mesmo contexto de fato, resolve passar de lesões corporais para o homicídio – não haverá,

porém, subsidiariedade tácita, caso a norma de passagem apresente um desvalor próprio e

autônomo no caso concreto)476; c) os crimes de perigo concreto em relação ao crime de dano.

Nota-se, portanto, a possibilidade eventual de haver subsidiariedade tácita inclusive em

hipóteses nas quais o agente pratica mais de uma conduta punível477.

No âmbito do direito penal econômico, a subsidiariedade ganha especial destaque e

repercussão na interação entre os crimes de perigo e de lesão. Como regra geral, concebe-se

que somente o crime de perigo concreto é subsidiário ao de dano, excluindo-se dessa hipótese

472 No sentido de que a subsidiariedade e a consunção regulam-se “por critérios de valoração jurídica”, e

não apenas lógicos, como a especialidade, Fragoso (FRAGOSO, 2006, p. 455). Para Toledo, é difícil “distinguir

com clareza” a subsidiariedade da consunção (TOLEDO, 1994, p. 52). 473 ZAFFARONI, 2002, pp. 869-870. MIR PUIG, 2015, p. 665; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 147;

STRATENWERTH, 2005, p. 544; BACIGALUPO, 1999, p. 573; TAVARES, 2009, p. 515. 474 ROXIN, 2014, p. 1012. 475 Sobre a classificação aqui adotada, conferir: JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 792; WELZEL, 1956, p.

229; ZAFFARONI, 2002, pp. 870-871; ROXIN, 2014, pp. 1006 et seq.; MATUS ACUÑA, 2005, p. 475; DIAS,

2007, pp. 999-1000; SANTOS, 2006, p. 419; HORTA, 2007, p. 136 et seq. (Note-se, porém, que Dias e Horta

excluem da subsidiariedade a hipótese do delito progressivo). 476 CRUZ, 2014, p. 766. Embora considerando o crime progressivo como caso de consunção, Regis Prado

fornece a seguinte definição didática de crime progressivo: “o delito menos grave abstratamente considerado é

meio ou passagem obrigatória para o delito mais grave (do menor ao maior/minus a maius) com ofensa de crescente

gravidade a um mesmo bem jurídico ou a um outro bem jurídico de superior relevância. Essa forma de delito

pressupõe um só fato, e se distingue da progressão delitiva, em que existe uma pluralidade de fatos diferentes que

se sucedem no tempo, de modo sequencial e em âmbito unitário (PRADO, 2013, p. 278). 477 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958, p. 147; HORTA, 2007, p. 138.

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os crimes de perigo abstrato478. Não se trata, porém, de uma regra absoluta. Segundo Roxin, a

subsidiariedade do crime de perigo abstrato frente ao de perigo concreto, e de ambas as classes

de perigo frente ao delito de lesão “somente se dá se nas distintas fases ou etapas da ameaça

delitiva se protege o mesmo bem jurídico”479. Segue daí que, se eventual crime de perigo

abstrato proteger “algo a mais” que o objeto lesionado, não se falará em subsidiariedade, mas

sim, em concurso ideal480. E faz todo sentido, pois se não houver coincidência de bens jurídicos

e seus respectivos titulares entre a norma de perigo e a de lesão, não se poderá cogitar de unidade

delitiva (complexa) e, portanto, de concurso impróprio: haverá fundamento idôneo para cada

norma incidir autonomamente, porque não haverá mais perfeita relação de minus a plus.

Portanto, não haverá subsidiariedade tácita se a norma penal de perigo abstrato tutelar

bem jurídico supraindividual que abarque interesses estranhos ao bem jurídico individual

tutelado pelo delito de lesão, com o que não se poderá falar em simples antecipação da proteção

penal481. Nesse caso, em se constatando violação a ambos os preceitos, impõe-se, em regra, o

concurso próprio, e não a punição do crime de perigo abstrato apenas na ausência do crime de

lesão. Segue daí que somente se o crime de perigo abstrato tiver como referência interesses e

valores equivalentes aos do crime de lesão (concluindo-se, portanto, que a norma acessória

protege, na verdade, apenas ameaças menos intensas ao mesmo objeto de proteção penal),

poderá se falar em preferência do tipo mais grave com o reconhecimento de que o conteúdo de

injusto da norma menos grave está logica e valorativamente contido naquele482.

O concurso entre os crimes de homicídio culposo no trânsito – Lei 9.503/98, art. 302 –

e de embriaguez na condução de veículo automotor – Lei 9.503/98, art. 306 – suscitava até

pouco tempo essa discussão. Quem entendia que o interesse sob a tutela do segundo crime

(incolumidade pública vulnerada pela condução em estado de embriaguez) não se exauria na

proteção da vida, de que se ocupa o primeiro mais grave, defendia o concurso próprio. Quem,

porém, compreendia que o crime de embriaguez representa um simples estágio anterior de

proteção da vida, sustentava o concurso impróprio483. Não obstante, com as alterações

478 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 792; MIR PUIG, 2015, p. 666. 479 ROXIN, 20014, pp. 1009-1010. Matus Acuña também reconhece essa possibilidade, mas a considera um

caso de consunção (MATUS ACUÑA, 2005, p. 487). 480 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 710; STRATENWERTH, 2005, p. 545; MATUS ACUÑA, 2005, pp. 487-

488. 481 ROXIN, 2014, p. 1010. 482 HORTA, 2007, pp. 138-143. 483 Nesse sentido: ARANA, 2007, p. 315-371. Embora no presente tópico se aborde a subsidiariedade, o

STJ já reconheceu a consunção (absorção material) entre esses crimes. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.

AgRg no AREsp 611237/MS. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em 15/12/2016. DJe 02/02/2017: “O

delito previsto no art. 306 do CTB (condução de veículo automotor sob influência de álcool) constitui crime de

perigo, tendo o dano se materializado na efetiva colisão entre o veículo do acusado e a motocicleta das vítimas,

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promovidas pela Lei 13.546/17 no Código de Trânsito Brasileiro, a hipótese de concurso

próprio parece ter perdido força. Agora, o homicídio culposo no trânsito sob a influência de

álcool é um crime qualificado (art. 302, §3º) e de natureza complexa (fusão de dois crimes em

uma só norma). Haverá, portanto, um único crime (mais grave) caso se cometam as infrações

simultaneamente.

Em vista dos pressupostos referidos (caráter auxiliar da norma subsidiária, diferentes

estágios de agressão ao mesmo bem jurídico, relação de minus a plus), é possível sustentar

subsidiariedade tácita, por exemplo, entre os crimes do art. 41 (provocar incêndio em mata ou

floresta) e do art. 38 (destruir ou danificar floresta), ambos da Lei 9.605/98 (lei de crimes

ambientais). Ambas as normas protegem o mesmo bem jurídico (mediatamente, o meio

ambiente, e imediatamente a flora), sendo que o incêndio (previsto no tipo menos grave) e um

dos meios possíveis (interferência) para a destruição de floresta (tipo mais grave). Horta

sustenta também haver subsidiariedade tácita entre o crime do art. 52 da lei de crimes

ambientais (penetrar em Unidade de Conservação sem licença portando instrumentos para a

exploração de produtos florestais) e o crime do art. 40 da mesma lei (dano à Unidade de

Conservação), quando os instrumentos proibidos forem todos utilizados para causar dano484.

Estima-se, também, subsidiariedade tácita entre o crime do art. 15 da Lei 10.826/03

(disparo de arma de fogo) e o delito de porte ilegal de arma de fogo (seja o de uso permitido –

art. 14 – seja o de uso restrito – art. 16), a partir da noção de progressão de ataque. Levando em

conta que essas normas tutelam o bem jurídico supraindividual incolumidade pública com o

mesmo alcance, faz sentido pensar na aplicação da norma menos grave (disparo) apenas quando

não incidente a mais grave (porte) – não obstante, a jurisprudência costuma declarar a relação

de absorção material entre ambas (consunção)485. Pela mesma razão, o delito de porte ilegal

(art. 14 ou art. 16) pode ser considerado subsidiário frente ao delito mais grave de tráfico

internacional de armas (art. 18), caso por alguma razão este não incida no caso concreto (relação

minus e plus). Anote-se, porém, que há bastente divergência jurisprudencial em relação a essa

última hipótese486.

causando-lhes lesão corporal (art. 303 do CTB), de modo que, considerando-se a completa vinculação entre as

condutas, o primeiro delito restou absorvido pelo segundo. Precedentes.” 484 HORTA, 2007, p. 145. 485 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 635.891/SC. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma.

Julgado em 17/05/2016. DJe 25/05/2016. No mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no

REsp 1347003/SC. Rel. Min. Moura Ribeiro. 5ª Turma. Julgado em 17/12/2013. DJe 03/02/2014. 486 No sentido de que há concurso próprio entre esses crimes: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp

1661226/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em 16/05/2017. DJe 24/05/2017.

Admitindo, por outro lado, a absorção da norma menos grave com base na subsidiariedade: PORTO ALEGRE/RS.

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89

3.2.4 Consunção

Considerando que este trabalho se ocupa primordialmente do critério da consunção e

que não são poucos os aspectos que o distinguem, ele será analisado com a atenção que merece

no capítulo seguinte, em conjunto com casos concretos selecionados da experiência

jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se da hipótese mais recorrente de

concurso impróprio no âmbito do direito penal econômico aplicado, com uma fenomenologia

bem peculiar. É o único critério que conta com verbete sumular dos Tribunais Superiores

(Súmula 17/STJ: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é

por este absorvido”)487. Tanto por sua dimensão marcadamente material, i.e., sua carga

valorativa/axiológica, como pela generalizada divergência quanto aos seus pressupostos488, a

consunção é comumente olvidada ou indevidamente descartada no exame dos casos concretos

relacionados ao direito penal secundário. Seu reconhecimento parece ser dificultado ainda por

uma certa antipatia em se declarar a absorção material de uma norma por outra, já que ela

pressupõe o preenchimento formal pleno e logicamente independente da norma de menor

alcance substantivo – do contrário sequer se poderia cogitar de conflito aparente. Não obstante,

essa operação interpretativa se deve à melhor técnica, não se confundindo com benevolência

ou indulgência.

Tribunal Regional Federal da 4ª Região. ACR 5000582-41.2012.404.7017. 8ª Turma. Rel. Gilson Luiz Inácio.

Juntado aos autos em 30/09/2014. 487 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas. Enunciados. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em 6 nov. 2017. 488 ALBERO, 1995, p. 382.

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90

4 A CONSUNÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO

4.1 CONSUNÇÃO: DELIMITAÇÃO

Abstraindo-se as insuperáveis divergências, é razoável considerar que a relação de

consunção se confirma quando um dos preceitos penais convergentes contempla de modo

exaustivo o desvalor ou o conteúdo material do fato punível visto em perspectiva, mostrando-

se repetido e, portanto, desarrazoado o castigo autônomo previsto na norma penal meramente

acompanhante489. Nas palavras de Zaffaroni, a consunção (ato ou efeito de consumir) ocorre

quando um dos tipos, chamado consuntivo, “consume o conteúdo material” de outro,

denominado consunto490. Segundo Tavares, quando a relação concreta entre os delitos “indicar

que o conteúdo de injusto de cada um está comprometido com o do outro, de modo a impor

uma avaliação conjunta de ambos e exaurir-se, portanto, em único processo de imputação a fim

de evitar o bis in idem”491. Já na formulação de Cirino dos Santos, a consunção surge quando

“o conteúdo de injusto penal do tipo principal consume o conteúdo de injusto do tipo

secundário, porque o tipo consumido constitui meio regular (não, porém, necessário) de

realização do tipo consumidor”492.

A propósito dessa última definição, é praticamente unânime na literatura nacional a

referência à relação de meio e fim entre as normas acompanhante e principal como condição à

consunção. Nesse sentido, as lições de Hungria493, Fragoso494, Marques495, Prado496, Tavares497,

Bitencourt498, Cirino dos Santos499, Busato500 e Schmidt501. Embora essa mecânica explique, de

fato, a maioria dos casos, o fenômeno não se restringe à absorção do crime meio no crime fim;

há hipóteses de condensação valorativa de uma conduta punível posterior ao comportamento

489 ALBERO, 1995, p. 382; MATUS ACUÑA, 2005, pp. 483 e 485; HORTA, 2007, p. 148; BUSATO,

2017, p. 879; FRAGOSO, 2006, p. 457; COSTA, 1998, p. 428. 490 ZAFFARONI, 2002, p. 869 (tn). 491 TAVARES, 2009, p. 516. 492 SANTOS, 2006, p. 420. 493 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97. 494 FRAGOSO, 2006, p. 457. 495 MARQUES, 1997, p. 441. 496 PRADO, 2013, p. 276. 497 TAVARES, 2009, p. 515. 498 BITENCOURT, 2014, p. 256. 499 SANTOS, 2006, p. 420. 500 BUSATO, 2017, p. 879. 501 SCHMIDT, 2001, p. 87.

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delitivo ajustado à norma principal (são os chamados pós-fato coapenados ou impuníveis502).

Portanto, mais precisa parece a posição de Matus Acuña, que opta pelo conceito de ato

acompanhante em sentido lato (propriamente acompanhante ou posterior)503. Assim, embora na

maioria dos casos de relação consuntiva realmente se constate que um dos preceitos é “meio,

etapa ou forma comum, mas não necessária, de cometimento de outro”504, o fundamento

essencial é de que uma das normas incidentes (a dominante) pode assimilar a expressão de

desvalor da considerada meramente acompanhante que, por sua vez, encerra integralmente seu

conteúdo material naquela, conforme as particularidades do caso concreto505.

A consunção é uma regra cuja aplicação é empírica e casuística, como amplamente se

consigna, pois depende da forma concreta com que o ato típico acompanhante se manifesta. Ela

não regula segundo as relações lógico-formais das normas convergentes, tanto que, por se ater

apenas ao conteúdo valorativo dos tipos, pode se confirmar tanto diante de relações de

interferência como de heterogeneidade506. Isso não significa, é claro, que não seja possível

estabelecer seus pressupostos teóricos de incidência; ocorre que são as relações de desvalor

exprimidas pelas normas na dinâmica do caso concreto que permitem dizer sobre seu efetivo

cabimento. Portanto, o atendimento aos critérios que a identificam só se satisfaz mediante o

exame das relações empírico-valorativas estabelecidas entre as normas penais conforme o

comportamento punível manifestado concretamente507. O casuísmo, portanto, não estaria na

falta de critérios teóricos, mas na impossibilidade de se admitir a consunção aprioristicamente,

sem exame do desvalor externado concretamente. Como isso se percebe que a consunção é uma

espécie de antípoda da especialidade: enquanto nesta uma norma abrange conceitualmente outra

desde o ponto de vista formal, naquela, uma norma abrangerá materialmente outra se a

casuística do caso concreto o permitir; em ambas, de todo modo, reconhece-se a inclusão de

uma norma em outra508.

502 Reconheça-se, porém, não haver unanimidade quanto à inclusão dos pós-fatos coapenados na regra da

consunção. 503 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 485 e 486. 504 TAVARES, 2009, p. 515. 505 BUSATO, 2017, p. 879; DOTTI, 2010, p. 365. 506 ROXIN, 2014, p. 1012; BUSTOS RAMÍREZ, 1997, p. 100; CRUZ, 2014, p. 769; HORTA, 2007, pp.

129 e 148; MATUS ACUÑA, 2005, p. 484 (tn). Matus Acuña, porém, não menciona a hipótese de

heterogeneidade; contenta-se com a menção à interferência, “sempre que os preceitos não tenham nenhuma

propriedade jurídico-penalmente relevante comum”. 507 ALBERO, 1995, p. 383; STRATENWERTH, 2005, p. 543; DIAS, 2007, p. 1012; RIOS; LAUFER, 2011,

p. 160; TAVARES, 2009, p. 516; MATUS ACUÑA, 2005, pp. 485 e 486; MEZGER, 1958, p. 346; HORTA,

2007, p. 149; CARVALHO FILHO, 2009, pp. 87 e 88. 508 MATUS ACUÑA, 2005, p. 485; HORTA, 2007, p. 148.

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Como na consunção se investiga a continência da carga de desvalor de uma norma pela

outra, i.e., a propriedade da norma prevalente/consuntiva de absorver o conteúdo de desvalor

da norma consunta, é indiferente que as normas convergentes tutelem bens jurídicos distintos509.

E nisso a consunção se distingue com nitidez da subsidiariedade tácita: não se trata de normas

interferentes em função dos estágios distintos de proteção ao um mesmo bem jurídico, mas de

uma unidade delitiva complexa (ou unidade de fato punível) derivada da sobreposição de

normas penais com objetividades jurídicas distintas que, à vista da magnitude do injusto

externada no caso concreto, revelam entre si uma atração valorativa indisfarçável que cancela

a neutralidade requerida pelo concurso ideal ou real510. A isso se deve acrescentar que, enquanto

a subsidiariedade tácita é regra que define a incidência do tipo subsidiário quando impossível a

aplicação do principal, a consunção implica no reconhecimento da absorção do tipo

acompanhante no tipo principal. São, portanto, regras que não se confundem.

Destarte, se abstratamente ou a priori é prematuro dizer sobre a consunção de uma

norma por outra511, concretamente será possível reconhecer essa continência do sentido

material (conteúdo de desvalor). É por isso que, nos termos da Súmula 17/STJ, quando a norma

subordinada não “esgotar sua potencialidade lesiva” na principal, não poderá ser por ela

absorvida512. Ou seja, quando a norma acompanhante manifestar uma carga de desvalor

autônoma e transcendente à da norma principal, já não se poderá falar em absorção. Trata-se,

portanto, de operação hermenêutica na qual se examina a atração axiológica irresistível que

uma norma incriminadora exerce sobre outra na moldura do caso concreto, e a incorporação ou

condensação valorativa (material) disso resultante513.

Tampouco a propriedade absorvente (consumptiva) é prerrogativa exclusiva da norma

de maior gravidade514. Embora o comum seja a assimilação material da norma abstratamente

menos grave pela mais grave (major ab absorbet minorem), só com base no caso concreto se

pode dizer qual das normas apresenta maior conteúdo de desvalor efetivo (e, portanto, é

relativamente a mais grave) a ponto de absorver a carga valorativa de outra. Apesar das

divergências doutrinárias e jurisprudenciais quanto ao ponto, a Súmula 17/STJ515 é um reforço

509 ROXIN, 2014, p. 1012; ALBERO, 1995, p. 390; TOLEDO, 1994, pp. 52-53; CRUZ, 2014, p. 805;

HORTA, 2007, p. 150. 510 SOLER, 1992, p. 210. 511 MATUS ACUÑA, 2005, p. 486. 512 TOLEDO, 1994, p. 53. 513 CRUZ, 2014, p. 768. 514 ROXIN, 2014, p. 1013; STRATENWERTH, 2005, p. 543; MATUS ACUÑA, 2005, p. 486; HORTA,

2007, p. 151; CARVALHO FILHO, 2009, p. 105. 515 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas. Enunciados. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em 6 nov. 2017.

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à corrente que rejeita a exigência estreita da relação menor-maior516. Afinal, a falsificação de

documento público admite absorção pelo estelionato, conquanto sua pena abstrata seja mais

rigorosa517. De qualquer forma, é discutível se em casos tais a situação seria realmente a de

absorção da norma mais grave pela menos grave. Ora, como a consunção regula segundo o

conteúdo material do fato punível global manifestado no caso concreto, mostra-se incompleta

a relação de gravidade entre as normas aferidas apenas abstratamente: será o caso concreto, em

última análise, que permitirá dizer qual das normas, relativamente, é a mais grave (não é difícil

imaginar, afinal, uma hipótese em que a magnitude de injusto de um estelionato seja maior do

que a de uma falsidade).

Não obstante, há uma corrente jurisprudencial vigorosa do Superior Tribunal de Justiça

que veda o reconhecimento da consunção justamente com base nos dois aspectos mencionados

acima: a) a diversidade de bens jurídicos tutelados pelas normas penais em conflito518; b) a

maior gravidade abstrata do crime-meio em relação ao crime-fim519.

Além dos argumentos já expostos pela incorreção dessa posição, pode-se ainda

acrescentar os seguintes: a) a exigência de ofensa ao mesmo bem jurídico para o

reconhecimento da absorção material é própria do critério da subsidiariedade; na medida em

que se concebe a consunção como uma regra autônoma de resolução do concurso impróprio520,

não se justifica o traslado de um pressuposto de regra diversa para limitar sua abrangência; b)

as objeções, além de suplantarem e tornarem inoperante a ideia central de absorção (assimilação

casuística do conteúdo material do tipo legal acompanhante pelo principal), acabam

restringindo de tal forma o instituto que o reconhecimento do concurso próprio (material ou

formal) se imporia quase sempre; c) ambas as exigências olvidam os casos tradicionais de

516 HORTA, 2007, p. 152. 517 CRUZ, 2014, p. 775. 518 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 390945/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.

Julgado em 05/10/2017. DJe 16/10/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1682928/MG.

Rel. Min. Felix Fischer. 5ª Turma. Julgado em 14/09/2017. DJe 25/09/2017. BRASIL. Superior Tribunal de

Justiça. AgRg no REsp 1619960/MG. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 27/06/2017.

DJe 01/08/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AgRg no REsp 1547489/MG. Rel. Min.

Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma. Julgado em 28/06/2016. DJe 03/08/2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.

AgRg no REsp 1580693/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em 05/04/2016. DJe

15/04/2016. 519 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 405448/MS. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª

Turma. Julgado em 19/09/2017. DJe 26/09/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp

1274707/PR. Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo. 5ª Turma. Julgado em 01/10/2015. DJe 13/10/2015. BRASIL.

Superior Tribunal de Justiça. REsp 1168446/MG. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em 13/11/2012. DJe

23/11/2012. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1084877/SP. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 5ª

Turma. Julgado em 23/06/2009. DJe 03/08/2009. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 886068/RS. Rel.

Min. Felix Fischer. 5ª Turma. Julgado em 10/05/2007. DJ 03/09/2007. 520 ROXIN, 2014, p. 1012.

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consunção, como a falsificação de documento em função do estelionato ou a invasão de

domicílio absorvida pelo crime-fim de furto. Cabe, então, concluir com Bitencourt:

Não é, por conseguinte, a diferença dos bens jurídicos tutelados, e tampouco a

disparidade de sanções cominadas, mas a razoável inserção na linha causal do crime

final, com o esgotamento do dano social no último e desejado crime, que faz as

condutas serem tidas como únicas (consunção) e punindo-se somente o crime último

da cadeia causal, que efetivamente orienta a conduta do agente.521

A despeito dessa corrente jurisprudencial mais rígida, mencione-se a existência de outra

diretriz que se ajusta melhor aos pressupostos atribuídos pela doutrina (pelo menos por uma

parte dela) à consunção. Confira-se, por todos, este julgado também do STJ, proferido pelo

Min. Reynaldo Soares da Fonseca quando ainda aderia à corrente mais generosa:

O princípio da consunção pressupõe que um delito seja meio ou fase normal de

execução de outro crime (crime-fim), ou mesmo conduta anterior ou posterior

intimamente interligada ou inerente e dependente deste último, mero exaurimento de

conduta anterior, não sendo obstáculo para sua aplicação a proteção de bens jurídicos

diversos ou a absorção de infração mais grave pelo de menor gravidade.522

Ressalte-se, em complemento, que a 3ª Seção do STJ, em sede de recurso repetitivo,

adotou a orientação segundo a qual a consunção não exige que a norma prevalente (crime-fim)

seja mais grave do que o comportamento típico acompanhante, como se infere: “o delito de uso

de documento falso, cuja pena em abstrato é mais grave, pode ser absorvido pelo crime-fim

de descaminho, com menor pena comparativamente cominada, desde que etapa preparatória ou

executória deste, onde se exaure sua potencialidade lesiva. Precedentes”523.

O âmbito de aplicação ordinário da consunção são, por excelência, os casos em que há

pluralidade de condutas puníveis524, o que em nada compromete sua caracterização, pois,

conforme já acentuado, o que distingue o conflito aparente do concurso de crimes não é a

521 BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito Penal da Licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 165-168. 522 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 672170/SC. Rel. Min. Reynaldo Soares da

Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 02/02/2016. DJe 10/02/2016. Neste mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal

de Justiça. AgRg no AREsp 993670/MG. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em 20/06/2017. DJe

26/06/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 691844/PA. Rel. Min. Ribeiro Dantas. 5ª

Turma. Julgado em 09/03/2017. DJe 17/03/2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp

1472834/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma. Julgado em 07/05/2015. DJe 18/05/2015. 523 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1378053/PR. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 3ª Seção. Julgado

em 10/8/2016. DJe 15/08/2016. 524 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97; JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 789-790; ROXIN, 2014, p. 997;

MIR PUIG, 2015, p. 662; ZAFFARONI, 2002, p. 868; RIOS; LAUFER, 2011, p. 166; FRANCO; STOCO, 2007,

p. 388; BITENCOURT, 2014, p. 258; HORTA, 2007, p. 34.

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unidade ou pluralidade de ações puníveis exatamente525, mas a viabilidade de se reconhecer a

unidade delitiva complexa (unidade de fato punível) em face da sobreposição de normas penais;

ou, como prefere Dias, a “conexão de sentido dos ilícitos compreendidos pelos tipos legais

preenchidos pelo comportamento total”526. No raciocínio preciso do autor português, a ideia

central da consunção é a de que:

situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um

tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes

uma conexão objectiva e/ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos

de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc

sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma

consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou

dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de

punição do concurso de crimes constantes do art. 77.° seria desproporcional, político-

criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses,

inconstitucional.527

Embora a formulação de Dias de unidade delitiva (complexa) com base na conexão

valorativa entre os tipos seja precisa, é bom registrar que o autor português vai além em relação

às hipóteses comumente referidas pela doutrina como de unidade de sentido de ilícito. Assim,

por exemplo, haveria unidade de delito: derivada do sentido social do comportamento, da

condição de crime-meio, do desígnio criminoso único, da conexão espaço-temporal das

realizações típicas e dos diferentes estágios de intensidade de realização global (quando não for

o caso de subsidiariedade)528. Seja como for, essas hipóteses específicas mencionadas por Dias

podem vir a determinar o reconhecimento da unidade delitiva complexa sempre que os

pressupostos gerais do instituto estejam presentes.

A doutrina nacional, reverberando a estrangeira, também diverge em relação aos

pressupostos e aos grupos de casos adstritos à consunção. Toledo529, Franco e Stoco530,

Bitencourt531, Horta532 e Carvalho Filho533 reconhecem os mesmos requisitos aqui adotados,

como a absorção operável mesmo entre normas protetivas de bens jurídicos diferentes, a relação

ordinária de meio e fim entre o ato típico acompanhante e o preceito principal, sem a exigência

525 Enfatizando que a pluralidade de fatos não exclui a possibilidade de apreciar o concurso de leis, conferir:

MIR PUIG, 2015, p. 665 (nota 56). Entre nós: CRUZ, 2014, pp. 737 e ss. 526 DIAS, 2007, p. 1014. 527 DIAS, 2007, p. 1014. 528 DIAS, 2007, p. 1016 et seq. 529 TOLEDO, 1994, pp. 52-54. 530 FRANCO; STOCO, 2007, pp. 388-389. 531 BITENCOURT, 2014, pp. 256-258. 532 HORTA, 2007, p. 147 et seq. 533 CARVALHO FILHO, 2009, p. 85 et seq.

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de que a norma consumida seja “etapa ou passagem necessária” ou menos grave relativamente

à consuntiva, o esgotamento do desvalor da norma acompanhante no tipo legal principal e, por

fim, a inclusão dos casos de pós-fato coapenados (abaixo examinados) na consunção.

A literatura nacional majoritariamente dissente da orientação aqui adotada de que é

indiferente a menor gravidade do crime consunto. Em defesa da necessária relação de minus e

plus, ou seja, da absorção de uma norma de menor gravidade por uma mais grave, Hungria534,

Stevenson535, Frederico Marques536, Mayrink da Costa537, Prado538, Fragoso539 e Schmidt540.

É também lugar-comum (ao menos entre os clássicos) a menção de que o crime

progressivo e o crime complexo são casos de consunção541, o que não é incorreto,

principalmente quando se tem em mente a relação material entre os tipos. Porém, com base no

raciocínio imanente à subsidiariedade tácita, segundo o qual é subsidiário o tipo menos grave

na condição de passagem necessária do ataque ao bem jurídico determinado pelo mais grave, o

crime progressivo revela melhor uma relação lógica de subsidiariedade tácita (aplicando-se a

norma subsidiária quando inviável a norma principal). Quanto ao crime complexo, em se

tratando da fusão de dois injustos em um (crime complexo em sentido estrito), também faz

sentido considerar a consunção, não obstante as considerações acima referentes ao critério da

especialidade. Sem embargo, essas são divergências compreensíveis.

Mencione-se, por fim, que a consunção é tida como um critério residual de concurso de

leis, “ao qual se deve acudir quando um dos preceitos em jogo for suficiente para valorar

completamente o fato e não existir uma forma mais específica de solução de concurso de

leis”542. Disso resulta que as hipóteses de consunção não são taxativas nem definitivas,

especialmente porque será o caso concreto que permitirá dizer, em última análise, se realmente

um ato típico é apenas acompanhante ou acessório em relação a outro543.

534 HUNGRIA; DOTTI, 2014, p. 97. 535 STEVENSON, 1962, p. 41. 536 MARQUES, 1997, p. 442. 537 COSTA, 1998, p. 429. 538 PRADO, 2013, p. 277. 539 FRAGOSO, 2006, pp. 457-458. 540 SCHMIDT, 2001, p. 88. Atento ao fato de que há casos de absorção material de uma norma mais grave

por uma menos grave (v.g. falsum documental e estelionato), Schmidt sugere o reconhecimento da consunção com

o acréscimo de uma causa de aumento. 541 NORONHA, 1978, p. 293; GARCIA, 1972, p. 509; MARQUES, 1997, p. 442 e COSTA, 1998, pp. 430-

432. 542 MIR PUIG, 2015, p. 666. Também no sentido de que a consunção abrange os casos não solucionados

pela especialidade e pela subsidiariedade: TOLEDO, 1994, p. 52. 543 ALBERO, 1995, p. 383. Assim também: POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 461-462.

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4.1.1 Atos típicos acompanhantes e atos posteriores coapenados (ou copunidos)

Apesar da interminável divergência a respeito, tem-se que a consunção engloba os

chamados atos concomitantes ou acompanhantes típicos e os atos (ou fatos) posteriores

coapenados/copunidos544, situações nas quais há pluralidade de ações puníveis545. Atos

acompanhantes, entendidos como comportamentos paralelos ao tipo legal prevalente, mas a ele

vinculados, são, p.ex., a invasão de domicílio (CP, art. 150) para a prática de furto (CP, art.

155)546, a falsidade ideológica (CP, art. 299) temporalmente conjugada ao estelionato (CP, art.

171)547, a calúnia (CP, art. 138) seguida do delito de denunciação caluniosa (CP, art. 339) e,

mais controversamente, o porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/03, art. 14) especificamente

orientado para a prática do homicídio (CP, art. 121) – desde que todo o potencial lesivo do

crime (meio) de perigo abstrato contra a incolumidade pública tenha se exaurido no crime (fim)

contra a vida548.

Exemplos de atos típicos posteriores, assim considerados os crimes cometidos enquanto

desdobramento natural e ordinário do delito principal para seu exaurimento, são a destruição da

coisa (CP, art. 163) após o furto consumado (CP, art. 155)549, a falsificação de moeda (CP, art.

289) e a subsequente introdução em circulação (CP, art. 289, §1°)550, a falsificação de

documento (CP, art. 297) e o seu uso subsequente (CP, art. 304)551 ou, ainda, a exposição à

venda de produto fabricado com violação de patente (Lei 9.279, art. 184, I) após a prática do

crime de fabricação de produto objeto de patente de invenção ou de modelo de utilidade sem

autorização do titular (Lei 9.279, art. 183, I)552.

Em relação à terminologia, Roxin observa que o mais adequado seria falar em “fato”

posterior, em vez de “ato”, pois “às vezes a conduta típica posterior coapenada pode não ser

544 Nesse sentido: ROXIN, 2014, p. 1011; ZAFFARONI, 2002, p. 869; JESCHECK; WEIGEND, 2002, p.

793; MIR PUIG, 2015, pp. 666-667; MATUS ACUÑA, 2005, p. 466; BACIGALUPO, 1999, p. 574; WELZEL,

1956, p. 229; CRUZ, 2014, p. 798; HORTA, 2007, pp. 34 e 152. 545 CRUZ, 2014, p. 788 e ss. 546 HORTA, 2007, p. 154; WELZEL, 1956, p. 229. 547 TOLEDO, 1994, p. 53. 548 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1351249/RS. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.

Julgado em 01/06/2017. DJe 09/06/2017. 549 Mencione-se, a propósito, a posição do Superior Tribunal de Justiça no seguinte julgado, reconhecendo

o delito de porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/03, art. 14) como hipótese de pós-fato coapenado em relação

ao furto (CP, art. 155), em hipótese na qual entre os bens subtraídos em poder do réu se encontrou uma arma de

fogo: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1503548/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma.

Julgado em 06/08/2015. DJe 26/08/2015. 550 FRAGOSO, 2006, p. 459. 551 RIOS; LAUFER, 2011, p. 167. 552 Essa hipótese foi reconhecida no seguinte julgado: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC

56.097/MG. Rel. Min. Og Fernandes. 6ª Turma. Julgado em 17/11/2009. DJe 07/12/2009.

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ativa, mas omissiva”553. Em relação aos termos “coapenado” e “impunível”, Rios e Laufer

sustentam ser mais correto o primeiro, tendo em vista que o ato típico acompanhante em sentido

lato não consiste propriamente em uma conduta impune, mas sim, em um comportamento cuja

pena se atrela ao crime da conduta principal554. No mesmo sentido é a doutrina de Palma

Herrera, que sustenta não ser o ato posterior causa de impunidade (em que não se discute a

realização do crime), mas de suficiência da sanção principal para abranger todos os atos

reconhecidamente praticados555. Se bem que a expressão “coapenado” não exprime com

exatidão o aspecto de o tipo acompanhante e sua respectiva pena serem descartados. Sob essa

perspectiva (desconsideração da punição endereçada na norma descartada), fato “impune” faria

mais sentido. A não ser que se entenda possível considerar o ato típico posterior para efeito de

valoração das circunstâncias judiciais, na conjuntura do caso concreto (CP, art. 59) – o que em

princípio não está descartado, cfe. se analisará no próximo capítulo. Nessa hipótese, a

terminologia “coapenado” faz mais sentido.

Quanto ao antefato coapenado, discute-se se são casos adstritos à consunção ou à

subsidiariedade556. Apesar das infindáveis divergências, assume-se, aqui, a posição de que se a

conduta punível antecedente consistir em norma penal protetiva do mesmo bem jurídico, mas

em menor intensidade comparativamente à norma principal, em função da qual serve como

etapa ou passagem necessária, há subsidiariedade tácita557. Até porque, em casos tais,

regularmente o que se tem é uma efetiva unidade de ação punível558, e não ações puníveis

diversas conectadas normativamente vindo a caracterizar uma unidade delitiva complexa. Se,

porém, a conduta antecedente se adscrever à norma penal cujo bem jurídico divirja do tutelado

pela norma dominante, revelando simples relação de meio e fim (não essencial), poderá haver

553 ROXIN, 2014, p. 1013 (tn). 554 RIOS, LAUFER, 2011, p. 164. Em igual sentido: HORTA, 2007, p. 156 (nota 262). 555 HERRERA, 2004, pp. 15-16. 556 Sobre isso, vale conferir as ponderações de Rios e Laufer: “no sistema clássico, via de regra, os atos

prévios são tratados na subsidiariedade e os atos posteriores na consunção. (...) Outros autores aglutinam ambas

as categorias sob o manto exclusivo da consunção, alicerçados no estudo de Honig”. (RIOS, LAUFER, 2011, pp.

164-165). Para Zaffaroni (ZAFFARONI, 2002, p. 870) e Welzel (WELZEL, 1956. p. 229) o antefato coapenado

é hipótese de subsidiariedade. Para Jiménez de Asúa (JIMÉNEZ DE ASÚA, 1958 p. 148), Soler (SOLER, 1992,

p. 221), Muñoz Conde (MUÑOZ CONDE; GARCÍA ARÁN, 2010, p. 473) e Fragoso (FRAGOSO, 2006, p. 458)

é, porém, caso de consunção. Frosali, por sua vez, considera os comportamentos copunidos como hipóteses de

subsidiariedade (FROSALI, Raoul Alberto apud CRUZ, 2014, p. 797). 557 ZAFFARONI, 2002, p. 832 (“Subsidiário é o que substitui ou pode substituir ao principal, de modo que

enquanto o principal está operando, o subsidiário fica relegado ou interferido” – tn). Considerando, portanto, o

raciocínio segundo o qual a tipicidade posterior cancela a anterior, atos anteriores (ou antefatos) coapenados são

subsidiários à norma principal, desde que haja coincidência de bem jurídico tutelado. Neste mesmo sentido:

MATUS ACUÑA, 2005, p. 487. Caso, porém, a conduta antecedente viole norma cujo bem jurídico divirja do

tutelado pela norma principal, sem que constitua uma etapa necessária para a prática desta, só se poderá falar em

consunção (TOLEDO, 1994, pp. 52-54). 558 RIOS; LAUFER, 2011, p. 164.

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consunção, desde que presentes os pressupostos necessários ao seu reconhecimento – esse seria

o caso, por exemplo, da prática com antecedência temporal de um falsum documental (CP, arts.

297, 298 ou 299) que vem a se exaurir em um estelionato posterior (CP, art, 171), assim

reconhecido pela Súmula 7/STJ já transcrita; a falsidade não é etapa necessária à prática de

estelionato, tampouco tutela o mesmo bem jurídico559.

Há, ainda, quem atribua ao pós-fato coapenado a condição de categoria autônoma,

dissentindo da orientação doutrinária predominante que o inclui na consunção, especialmente

porque ele não se ajusta à orientação hermética segundo a qual o conflito aparente só cabe em

caso de unidade de conduta punível560.

As ideias governantes da absorção dos atos típicos acompanhantes e posteriores pela

norma penal dominante são a de que, no primeiro caso, o desvalor de “uma característica

eventual” da conduta global subsumida ao tipo acompanhante já está compreendido ou é

abarcado materialmente pela norma principal e, no segundo caso, a etapa posterior à

consumação do delito principal, embora possua expressão típica autônoma, não tem outro

objetivo senão o de “esgotar o conteúdo proibitivo ou desvalorante do delito”, ou seja, exaurir

ou aproveitar o crime já consumado561, não dando lugar a uma conduta punível autônoma562.

Neste último caso, o sujeito ativo, como regra geral, também deve cometer o fato posterior para

desfrutar das vantagens derivados do fato principal563. No raciocínio de Roxin, o

aproveitamento do ato delitivo prévio é um comportamento “tipicamente vinculado com ele e,

portanto, não requer punição própria”564. Nas palavras de Soler, a ação típica acompanhante

será absorvida quando traduzir “aquilo que geralmente acontece” relativamente à figura

principal, nesta estando prevista explicita ou implicitamente565.

Em qualquer caso, não se justifica a punição autônoma porque o conteúdo de desvalor

do fato global está totalmente abarcado pela norma principal ou consumptiva, de modo que o

ato típico acompanhante em sentido amplo, embora formalmente típico e com identidade

própria de desvalor, no caso concreto perde essa autonomia pela relação de dependência

empírica com a conduta principal. Nas palavras de Palma Herrera:

559 CRUZ, 2014, p. 805. 560 Nesse sentido: STRATENWERTH, 2005, p. 545; BRUNO, 1967, p. 263. Vide ainda as observações de

Roxin (ROXIN, 2014, p. 1014) e de Bacigalupo (BACIGALUPO, 1999, p. 574). 561 TOLEDO, 1994, p. 54. 562 ZAFFARONI, 2002, p. 869. 563 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 793. 564 ROXIN, 2014, p. 1014. 565 SOLER, 1992, pp. 221-222 (tn).

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Respondendo à natureza do concurso de normas, a causa explicativa de que o ato

copunido não se castigue de maneira autônoma, senão através da pena prevista pelo

legislador para o fato principal, está em que o seu conteúdo desvalorativo é captado

pelo preceito que resulta aplicável ao fato principal. Por isso, podemos definir no teor

literal de um preceito distinto a aquele no qual é o fato principal, ao que precede ou

segue, é, sem embargo, captado integralmente em seu desvalor pelo último preceito.566

Segue então que não se cogitará de absorção, caso o desvalor do ato típico

acompanhante em sentido lato extravase ou transcenda o sentido material da norma principal567;

vale dizer, “transborde o necessário para cometer o delito ou assegurar o fim delitivo”568 ou

ainda, como enuncia a jurisprudência iterativa, não esgote no crime principal sua potencialidade

lesiva569.

Especificamente no caso do pós-fato coapenado, a consunção também será em princípio

afastada se a conduta subsequente consubstanciar uma lesão autônoma com objetividade

jurídica distinta (dano a um novo bem jurídico), reveladora de um incremento de desvalor do

crime já consumado570 ou, na formulação de Horta, quando a conduta posterior “importar em

incremento quantitativo ou qualitativo da ofensa reprimida pela norma prevalente e não puder

ser tida como uma decorrência normal e corriqueira” (aumento do dano do crime principal,

portanto)571.

Não obstante, é oportuna a advertência de Palma Herrera de que não é absoluto esse

critério de “incremento da ofensa”:

Tenha-se em conta que, quando falamos em 'fato posterior' nos movemos, em todo

caso, no terreno de comportamentos que resultam subsumíveis em um tipo delitivo, é

dizer, que dos mesmos se infere necessariamente um conteúdo desvalorativo, devendo

ser tomados como lesivos ou, quando menos, perigosos para um bem jurídico. Por

essa razão, pela própria definição, é impossível que esse fato posterior resulte neutro,

desde a perspectiva do bem jurídico afetado pelo fato principal; é impossível que não

promova um incremento do dano já ocasionado. Para que isto fosse assim teria que se

tratar de um comportamento alheio ao Direito Penal, é dizer, que nem sequer houvesse

sido previsto pelo legislador e reconhecido em um tipo delitivo, algo que, como

dissemos, escapa ao que é ato copunido572.

Realmente, em se tratando de um ato posterior previsto como crime, nunca haverá

neutralidade ofensiva. Por isso, nem todo incremento ofensivo pode cancelar o reconhecimento

566 HERRERA, 2004, p. 137. 567 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 794; SOLER, 1992, pp. 222; BITENCOURT, 2014, p. 259. 568 GARCÍA CAVERO, 2014, p. 712 (tn). 569 TOLEDO, 1994, p. 53. 570 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 793; ROXIN, 2014, p. 1014; MIR PUIG, 2015, p. 667; WELZEL,

1956, p. 230; STRATENWERTH, 2005, p. 545. 571 HORTA, 2007, p. 157. 572 HERRERA, 2004, p. 145.

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da consunção na forma de pós-fato copunível. Flavio Cruz pontua que a esse óbice não se deve

atribuir rigor absoluto573. Observe-se que a jurisprudência do STJ reconhece, por exemplo, a

possibilidade de uma falsidade ideológica (CP, art. 299) cometida para assegurar a prática de

um crime de sonegação fiscal (Lei 8.137/90, art. 1º) ser absorvida por este, priorizando,

portanto, mais o sentido acompanhante ou o caráter assessório do ato típico posterior em relação

à norma principal (que nela esgota seu sentido material), do que a circunstância de haver uma

lesão autônoma a um bem jurídico distinto. Estima-se, aliás, que essa orientação faz mais justiça

ao princípio da isonomia, pois não haveria razão para se admitir a consunção num caso em que

o delito de falso tenha sido o meio regular para a prática da sonegação fiscal e, ao mesmo tempo,

negar-se a absorção material em outro caso em que o falsum tenha se prestado exclusivamente

a assegurar a prática da supressão tributária: em ambos os exemplos o ato típico acompanhante

em sentido lato representou uma lesão a um bem jurídico diverso, razão pela qual este não seria

um argumento suficiente para afastar a consunção na segunda hipótese. Confira-se, a propósito,

este julgado:

1. Segundo pacífico entendimento desta Corte, a contrafação ou uso do falsum quando

utilizados para facilitar ou encobrir falsa declaração, com vistas à efetivação do crime

de sonegação fiscal, é por este absorvido, ainda que sua apresentação à autoridade

fazendária seja posterior, pela aplicação do princípio da consunção.

2. Agravo Regimental improvido.574

Considerando que a consunção se apoia na premissa de que a magnitude do crime meio

se exaure ou é assimilada pelo conteúdo de injusto do crime fim, é preciso investigar, então,

com base em quais categorias será possível realizar esse exame. Vale dizer, sondar as possíveis

ferramentas dogmáticas pelas quais se poderá considerar que a carga de injusto de um crime

está contida em outro, segundo o conteúdo material do caso concreto.

4.1.2 Desvalor da ação e desvalor do resultado: critérios de aplicação da consunção

Seria enfadonho abordar neste tópico os conceitos de desvalor de ação e desvalor de

resultado desde sua concepção, evolução histórica e conformação atual segundo as mais

diversas abordagens teóricas. A análise desses conceitos está adstrita, aqui, à sua funcionalidade

573 CRUZ, 2014, p. 805. 574 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1360309/SE. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma.

Julgado em 05/02/2015. DJe 20/02/2015. Consigne-se, porém, que há entendimento contrário: BRASIL. Superior

Tribunal de Justiça. HC 99244/RJ. Rel. Min. Felix Fischer. 5ª Turma. Julgado em 17/06/2008. DJe 18/08/2008.

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com o critério da consunção, enquanto elementos de sistematização da operação hermenêutica

pela qual se considera a magnitude do injusto de uma norma penal exaurida em outra575.

Sumariamente, por desvalor da ação se entende a conduta do sujeito contrária à norma, a

deliberada contradição com o comando legal (criação de um risco não permitido a um bem

jurídico) – mas que não se restringe a isso; o desvalor é fruto também do sentido negativo em

si mesmo da conduta (atentar contra a vida de outrem não é um erro apenas porque uma norma

jurídica assim dispõe). O desvalor do resultado (ou antijuridicidade material, para quem o aloca

na categoria antijuridicidade576), de sua parte, corresponde à vulneração, ao grau de ofensa ao

bem jurídico tutelado penalmente, e corresponde à perspectiva material do injusto penal.

Silva Sánchez consigna que majoritariamente se compartilha uma “concepção mista (ou

dualista) da antijuridicidade, na qual se somam o desvalor da ação (entendido como desvalor

da intenção) e o desvalor do resultado “(lesão de um bem jurídico)”577. Acrescenta o espanhol

que não se pode prescindir da referência aos bens jurídicos (desvalor do resultado), pois a

proibição de fatos destituídos de lesividade conduziria o direito penal à margem de sua

finalidade protetiva. Tampouco, porém, se poderia olvidar que o mecanismo de proteção de

bens jurídicos é a “motivação, ou seja, o estabelecimento de diretrizes de conduta sob a ameaça

de pena”578 (i.e., o desvalor da ação). Sob essa perspectiva, o injusto penal assume natureza

dual, portanto, congregando aspectos formais e materiais.

Estima-se que ambos os conceitos – com destaque maior para o desvalor do resultado –

podem servir de ferramenta para aclarar ou delimitar a operação hermenêutica mediante a qual

se considera uma das normas penais formalmente aplicáveis como meramente acompanhante

de outra, a partir de um ponto de vista material. Sem embargo, não são os únicos; a eles se deve

acrescentar outros critérios axiológicos, como logo abaixo se verá. Com isso se pretende reduzir

ou pelo menos ancorar minimamente a discricionariedade ínsita à operação valorativa de

reconhecimento da consunção. Não obstante a justificada abstenção do exame pormenorizado

das categorias, vale ao menos uma rápida análise histórica desses conceitos.

Sob o causalismo (sistema clássico), de base ontologicista, era decisivo à configuração

do injusto o desvalor do resultado579; a intenção do autor (dolo ou culpa) era questão a ser

analisada na culpabilidade. O resultado empírico determinado pela prática do crime era o fator

575 CRUZ, 2014, p. 691. 576 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; MALARÉE, Hernán H. Lecciones de derecho penal. V. II. Madrid:

Trotta, 1999. pp. 31 e 36. Assim também: SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 384. 577 SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 385 (tn). 578 SILVA SÁNCHEZ, 1992, p. 385 (tn). 579 BUSTOS RAMÍREZ, 1999, p. 33.

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decisivo de configuração típica: “[o] tipo é a descrição objetiva de uma modificação no mundo

exterior”580. Na esteira da dogmática de Franz von Liszt, o acento era positivista naturalista e a

episteme empirista581. Por sua vez, os neokantianos (sistema neoclássico) voltaram-se ao

mundo do dever ser (valores) e à metodologia teleológica, afastando-se do cientificismo

naturalista, tendo entre seus expoentes Honig, Radbruch e Mezger582. Sob essa concepção,

mesclaram-se aspectos subjetivos e objetivos ao tipo (embora o dolo ainda fosse tratado na

culpabilidade), que passou a ostentar um conteúdo material (lesividade social)583. Dentre os

legados do neokantismo, destacam-se “a materialização das categorias do delito e a construção

teleológica de conceitos”, revisitadas posteriormente pelas concepções funcionalistas584. A

inclinação ao dever-ser reconfigurou o desvalor do resultado de uma perspectiva naturalista

para normativa – em vez de modificação física no mundo, ofensa a bem jurídico; aliás, o bem

jurídico como elemento essencial do desvalor do resultado vem do neokantismo. Não obstante,

essa abordagem não prosperou em seu tempo, entre outras razões, pelo radical antagonismo

entre realidade e mundo dos valores, o que lhe rendeu a acusação de relativismo valorativo585.

Já com o finalismo de Hans Welzel e o resgate do ontologicismo (neo-ontologicismo),

atribuiu-se importância decisiva ao desvalor da ação com o tipo sendo ancorado integralmente

na dimensão subjetiva (agir final)586. Sob essa concepção, o desvalor do resultado passou a ter

importância reduzida para a caracterização do injusto587: “[o] tipo torna-se a descrição de uma

ação proibida [...]. O ilícito, materialmente, deixa de centrar-se no dano social, ou ao bem

jurídico, para configurar um ilícito pessoal”588. Esse modelo foi o mais difundido na doutrina e

teve grande receptividade em âmbito legislativo (do que é exemplo a reforma penal brasileira

de 1984)589. Porém, a demanda por condicionamentos político-criminais impulsionada pela

crescente normativização do direito penal (neo-neokantismo) determinou a perda de

rendimento do finalismo590. Vicejaram, então, as concepções funcionalistas. Dentre elas,

destacam-se os modelos de Roxin (funcionalismo teleológico-racionalista) e o de Jakobs

580 GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito – Em comemoração aos trinta anos de

“Política criminal e sistema jurídico-penal” de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Vol. 32/2000,

p. 120-163, Out-Dez/2000. p. 123. 581 CRUZ, 2014, p. 337; BUSATO, 2017, pp. 203-207. 582 CRUZ, 2014, p. 338. 583 BUSATO, 2017, pp. 213 e 214. 584 GRECO, 2000, p. 126. 585 GRECO, 2000, p. 127. 586 BUSATO, 2017, pp. 216. 587 BUSTOS RAMÍREZ, 1999, p. 33. 588 GRECO, 2000, pp. 128 e 129. 589 BUSATO, 2017, pp. 219. 590 BUSATO, 2017, pp. 219; GRECO, 2000, p. 129.

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(funcionalismo sistêmico), estruturalmente distintos, mas alinhados quanto à construção do

sistema dogmático conforme os fins do direito penal (funcionalização dos conceitos)591. As

diferenças entre um e outro renderia um capítulo à parte. Consigne-se, apenas, em ousada

síntese, a predileção do sistema de Jakobs com o desvalor de ação – sob a noção de papéis

sociais – e o cuidado do sistema de Roxin de não olvidar o desvalor de resultado, ao reputar útil

a teoria do bem jurídico para o controle de legitimidade da intervenção penal592. O presente

estudo se alinha com o funcionalismo “moderado” de Roxin que, sintetizando categorias

ontológicas e valorativas593, perfilha uma concepção mista de injusto, em cuja essência

convergem o desvalor da ação e o desvalor do resultado594.

Independentemente, porém, do modelo dogmático específico que se acolha, há aceitação

ampla na doutrina das categorias do desvalor de ação e do desvalor do resultado como

elementos do injusto penal595. Sem embargo, não apenas elas devem orientar o reconhecimento

da consunção, como já pontuado. À luz do caso concreto, convém também trabalhar o exame

de absorção material entre tipos com o juízo de proporcionalidade entre a reprovação e a

magnitude do injusto, que perpassa a natureza dos bens jurídicos envolvidos596 e a finalidade

perseguida pelo agente597. Na verdade, a unidade delitiva complexa (unidade de lei) é produto

da conjugação de diferentes critérios valorativos imbricados entre si.

O desvalor da ação diz em boa medida com o dolo, a “realização do plano” perseguido

pelo autor com cujas consequências anuiu598 (ou, então, desde uma perspectiva atributiva, o

compromisso com a vulneração do bem jurídico, à luz da concepção significativa de ação599).

Na dimensão subjetiva, o ato típico acompanhante em sentido lato acaba encontrando sua razão

de ser na prática da infração dominante, à qual se subordina e se mostra dependente600 – o que

não se confunde, porém, com a exigência de que o crime consunto seja logicamente necessário

591 GRECO, 2000, p. 132. 592 ARANA, Raul Pariona. El derecho penal “moderno” sobre la necesaria legitimidad de la intervenciones

penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 68, p. 315-371, Set–Out/2007. 593 ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. ¿Normativismo radical o normativismo moderado? Revista Peruana

de Doctrina y Jurisprudencia Penales, n. 5, pp. 17-82, 2004 (pp. 78-79). 594 GRECO, 2000, p. 137. 595 ROXIN, 1997, pp. 319 e ss. 596 RIOS; LAUFER, 2011, p. 158; CRUZ, 2014, pp. 358 e 805. 597 Quanto à importância do exame do dolo, vide: CRUZ, 2014, p. 804. 598 ROXIN, 1997, p. 417. 599 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 365; BUSATO, 2017, p. 391. 600 CRUZ, 2014, p. 804.

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à prática do crime consuntivo; basta que simplesmente seja uma forma idônea ou regular à

realização da figura principal601.

Já o desvalor do resultado, atrela-se ao “esgotamento da potencialidade lesiva” (nos

termos da jurisprudência) do ato típico acompanhante na infração dominante e, portanto, diz

com a natureza de vulneração dos bens jurídicos envolvidos. Deve ser possível estabelecer que

a ofensividade do tipo penal consunto tenha se esgotado no consuntivo, ainda que os bens

jurídicos não sejam equivalentes602. Aqui, ganha ainda mais força a premissa de que somente o

caso concreto autorizará o reconhecimento da consunção. A ofensividade de que se trata é a

concreta, não a abstrata com a qual se afere a legitimidade da prescrição penal. Somente a

moldura do caso concreto permitirá a conclusão de que a ofensividade concreta da norma

acompanhante se esgotou na norma dominante, o que justifica adjetivá-las casuisticamente

como tais (i.e., consunta e consuntiva).

Tome-se como exemplo de ausência de relação consuntiva o crime de associação

criminosa (CP, art. 288), que pune o ajuste de mais de 3 pessoas para a prática (indeterminada)

de crimes. Caso comprovada a intenção dos agentes de se associarem de forma estável e

permanente para a prática de diversos estelionatos (CP, art. 171), ainda que, em dado caso

concreto, eles tenham logrado cometer apenas um único estelionato antes de serem descobertos,

não se poderá falar em absorção pela constatação de que tanto o desvalor da ação como do

resultado do crime de associação criminosa transcenderam o conteúdo de injusto daquele único

crime que vieram a cometer. O plus da ofensa está na ameaça da paz pública enquanto pendia

a determinação do grupo de cometer um número indeterminado de crimes. Haverá, nesse caso,

concurso de crimes603.

601 TOLEDO, 1994, pp. 52-54; FRANCO; STOCO, 2007, pp. 388-389; BITENCOURT, 2014, pp. 256-258;

HORTA, 2007, p. 147 et seq.; CARVALHO FILHO, 2009, p. 85 et seq. 602 CRUZ, 2014, p. 805. 603 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 70919. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgado em

14/12/1993. DJ 29.04.1994: “I. Quadrilha: requisitos de fundamentação da sentença condenatória. 1. O crime de

quadrilha se consuma, em relação aos fundadores, no momento em que aperfeiçoada a convergência de vontades

entre mais de três pessoas, e, quanto aqueles que venham posteriormente a integrar-se ao bando já formado, no

momento da adesão de cada qual; crime formal, nem depende, a formação consumada de quadrilha, da realização

ulterior de qualquer delito compreendido no âmbito de suas projetadas atividades criminosas, nem,

consequentemente, a imputação do crime coletivo a cada um dos participes da organização reclama que se lhe

possa atribuir participação concreta na comissão de algum dos crimes-fim da associação. 2. Segue-se que a

fundamentação da sentença condenatória por quadrilha bastara, a rigor, a afirmação motivada de o denunciado se

ter associado a organização formada de mais de três elementos e destinada a prática ulterior de crimes; não é

necessário, pois, que se demonstre a sua cooperação na prática dos delitos a que se destine a associação, aos quais

se refira a denúncia, a título de evidencias da sua formação anteriormente consumada. II. Quadrilha armada:

caracterização. Incide a causa especial de duplicação da pena, quando a própria inteireza logica da imputação

formulada na denúncia e acolhida na sentença reclama a circunstância de a associação dispor de armamentos, na

medida mesma em que uma das suas atividades-fim seria a eliminação física de intrusos não desejados na

exploração cartelizada da contravenção, a que se dedicavam os seus integrantes.”

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Sob essa perspectiva, ganha destaque a visão de Matus Acuña, no sentido de que o

princípio da insignificância explicaria a absorção da expressão material de uma norma

incriminadora por outra: a declaração da aptidão consuntiva da norma principal implica

reconhecer que, no caso concreto, a norma acompanhante teria revelado um conteúdo de injusto

insignificante. Nas palavras do autor chileno:

Nestes casos, a aplicação da pena correspondente ao delito de menor intensidade se

justifica, porque ao ser o fato coapenado insignificante em relação ao principal, o

castigo por este parece suficiente para assinalar tanto ao autor como ao resto da

população, a reprovação jurídica de sua conduta, parecendo desproporcionado

castigar, ademais, pelos fatos acompanhantes que, na consideração do caso concreto,

não têm uma significação autônoma. (tn)604

Colhe-se da jurisprudência do STJ este interessante julgado, em que a perspectiva da

insignificância foi explorada em conjunto com a proporcionalidade:

Na espécie, não obstante, à primeira vista, a valoração dos fatos postos em discussão

aponte, em tese, para o possível cometimento, em concurso, dos crimes de tráfico de

drogas e de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins

terapêuticos ou medicinais, certo é que o fato rendeu a prática de um único crime. Com

efeito, há de se analisar o contexto fático em uma perspectiva axiológica da realidade,

de modo a se admitir serem várias as interpretações possíveis dessa realidade em

confronto com as condutas que venham a ensejar a intervenção penal. Em uma análise

global (conjunta) dos fatos criminosos, um deles se mostra valorativamente

insignificante - embora não insignificante, se isoladamente considerado - diante de

outro (ou de outros), de modo a perder seu significado autônomo. Nesse contexto, não

se mostra plausível sustentar a prática de dois crimes distintos e em concurso material

quando, em um mesmo cenário fático, se observa que a intenção criminosa era dirigida

para uma única finalidade, visto que, no caso em apreço, a conduta criminosa, desde o

início da empreitada, era orientada para, numa sucessão de eventos e sob a fachada de

uma farmácia, falsificar e vender produtos falsificados destinados a fins terapêuticos ou

medicinais. Essa unidade de valor jurídico da situação de fato justifica, no caso

concreto, a aplicação de uma só norma penal. Perfeitamente factível, portanto, a

consunção, aplicável quando a intenção criminosa una é alcançada pelo cometimento

de mais de um crime, devendo o agente, no entanto, ser punido por apenas um delito,

de forma a, também e principalmente, obviar a sobrecarga punitiva, incompatível com

a proporcionalidade da sanção, princípio regente no processo de individualização da

pena.605

A compreensão de que o ato típico acompanhante é insignificante perante a norma

dominante na dinâmica do caso concreto acaba sendo, em última análise, o reconhecimento de

que houve o exaurimento do desvalor da ação e do resultado de uma norma em outra, afinal, o

agente deve ter se orientado à prática do crime principal valendo-se de outro, cuja

604 MATUS ACUÑA, 2005, pp. 466 e 485. 605 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1537773/SC. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. p/

acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz. Julgado em 16/8/2016. DJe 19/9/2016.

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potencialidade lesiva deve ter se encerrado no tipo penal eleito suficiente para a reprovação e

prevenção do crime (CP, art. 59).

A maior concreção do desvalor do resultado demandaria, ainda, aprofundamento na

teoria do bem jurídico e das respectivas técnicas de proteção, o que nesta sede, porém, não se

mostra possível606. Não obstante, tenha-se em mente a importantíssima função do bem jurídico

de conectar dogmática penal com política criminal607. A vulneração ao bem jurídico com a

prática da infração pode funcionar como um filtro valorativo que impede a censura penal sob a

insígnia do concurso próprio apenas com base na verificação da subsunção formal à norma

penal608. O exame da relação material entre os tipos e, portanto, do conteúdo de desvalor que

compartilham na dinâmica do caso concreto permite que se analise funcionalmente as ofensas

perpetradas e se reconheça a absorção valorativa de uma norma por outra, não obstante a

constatação da múltipla transgressão formal. Se se parte da premissa de que compete ao direito

penal a “proteção subsidiária de bens jurídicos”609, para o que a pena cumpre determinados

fins610, não parece haver óbice ao juízo axiológico pelo qual se declara casuisticamente o

desvalor de uma norma contido em outra, conforme a ofensividade revelada no caso concreto.

Afinal, como pontuado, os injustos penais estão impregnados de atributos valorativos,

axiológicos, o que demanda análise sobre a afetação do bem jurídico que tutelam (designada

antijuridicidade material)611.

Por fim, o princípio da proporcionalidade, em sua formulação tradicional, pode

complementar a operação hermenêutica como um referencial para a sintetização ou

entrelaçamento dos demais critérios axiológicos. Nas palavras de Flavio Cruz:

O postulado da proporcionalidade fornece uma perspectiva interessante para se aferir

a racionalidade de determinadas tipificações penais. Em princípio, ele permite aferir

se o grau de privação de liberdade, imposto ao agente, é razoável/adequado, frente ao

grau de efetiva proteção ao bem jurídico das potenciais vítimas, pretensamente

asseguradas mediante incriminação.612

606 Para um estudo mais aprofundado da teoria do bem jurídico: CRUZ, 2014, pp. 331 e ss. 607 CRUZ, 2014, p. 334. 608 CRUZ, 2014, p. 805. 609 ROXIN, 1997, p. 51. Ou, como prefere Silva Sánchez, a “proteção de determinados bens jurídicos através

de uma estratégico preventiva que passa por dirigir imperativos de conduta aos cidadãos que os motivem

mediamente a ameaça de pena a realizar condutas conforme a tais imperativos” (tn). (SILVA SÁNCHEZ, 1992,

p. 385). 610 GRECO, 2000, p. 132. 611 CRUZ, 2014, pp. 351 e 354. 612 CRUZ, 2014, p. 328.

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Com efeito, em se aferindo a dependência axiológica de um crime em relação a outro,

ou, dito de modo inverso, caso não se constate a transcendência da magnitude do injusto

(desvalor) do ato típico acompanhante frente à norma principal, o princípio da

proporcionalidade e a regra do non bis in idem determinarão o reconhecimento da unidade

delitiva complexa. Nesse caso, não se poderá cogitar do tot poena quot delicta, ou seja, do

dogma da vedação à punição insuficiente613. Não seria possível justificar político-

criminalmente a punição autônoma prevista na norma penal acompanhante caso se possa

considerá-la materialmente contida na norma principal. Nessa hipótese, seria indisfarçável a

desproporção da punição, notadamente caso se parta da perspectiva funcionalista de direito

penal de Roxin. Ora, se o conteúdo material de um injusto estiver assinalado em outro, só

sobrará a violação pura da proibição ou do mandado plasmados na norma (exclusivo desvalor

de ação), que não pode legitimar o castigo penal614.

Não se ignora que a pretensão de sistematização da consunção exigiria também

abordagem quanto às técnicas de proteção ao bem jurídico (lesão e perigo abstrato,

especialmente) e como elas se relacionariam entre si axiologicamente (ou seja, se haveria

alguma metodologia para se antever relações consuntivas). No entanto, reconhece-se esse

âmbito de discussão como um dos limites da presente investigação – o que sugere

aprofundamento em um eventual estudo posterior. Reconheça-se, contudo, a relevância dessa

abordagem para a proposta de sistematizar a consunção, já que, à vista da vocação preventiva

do direito penal econômico e da recorrente antecipação de tutela que o caracteriza, o concurso

de normas entre normas de lesão e de perigo tende a ser ainda mais frequente.

Em conclusão, registre-se que não se pretende dar uma resposta definitiva ao desafio

hermenêutico em questão. A pretensão deste estudo é de se efetuar uma análise inicial e

provisória de critérios julgados pertinentes, sujeita, naturalmente, a questionamento e

aprofundamento, até porque, se há algo unânime nesse âmbito dogmático é a divergência.

Reconheça-se, também, que o amadurecimento de critérios ainda assim não impede a utilização

de expedientes retóricos para se afastar a consunção em casos nos quais ela poderia ser

reconhecida. Em se tratando de um juízo eminentemente valorativo, há uma insuperável

margem de discricionariedade615. Assim, a sondagem de marcos hermenêuticos pode permitir

algum controle da atividade judicial, mas não o controle pleno. Afinal, sempre se poderá afirmar

(retoricamente) que o conteúdo de injusto de um dos crimes transcendeu o de outro, em vista

613 CRUZ, 2014, p. 801. 614 BUSTOS RAMÍREZ, 1999, p. 36. 615 Como pontua Flavio Cruz, nesse âmbito nada é matemático: CRUZ, 2014, p. 805.

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das particularidades da norma penal sob análise; o direito admite sofismas. Ilustrativamente,

tome-se o exemplo da falsidade ideológica orientada ao estelionato, exemplo clássico de

consunção (Súmula 17/STJ): não seria difícil justificar a punição autônoma do falsum a partir

de alguma peculiaridade de sua ratio legis, a despeito da presença dos requisitos para a operação

de absorção material. Ou seja, com algum esforço retórico, a consunção poderia afastada em

todo e qualquer caso, à vista de sua natureza axiológica e parcialmente discricionária. Nem por

isso, contudo, deve-se abdicar do esforço de sistematização.

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5 CASUÍSTICA: A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Neste tópico se pretende ilustrar a consunção com algumas hipóteses frequentes de

conflito aparente no âmbito do direito penal econômico. Há inúmeras discussões dessa natureza

nos tribunais, não sendo possível, tampouco pertinente esgotar os exemplos616. Os casos abaixo,

extraídos da inteligência jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, têm caráter

meramente exemplificativo e foram escolhidos porque permitem explorar em boa medida os

critérios indicados no capítulo precedente. Esse é um âmbito realmente controverso e

espinhoso, o que desencoraja a pretensão de oferta de respostas definitivas. Para os fins desta

pesquisa, supõe-se suficiente a exposição dos problemas com a indicação dos caminhos

possíveis, bem assim de seus eventuais obstáculos.

5.1 Sonegação fiscal e falsidade ideológica

No âmbito do DPE, a hipótese mais comum de conflito aparente de normas ocorre entre

o crime do art. 1º, da Lei 8.137/90 (sonegação fiscal) e o crime do art. 299, do CP (falsidade

ideológica)617. O crime tributário é cravejado de elementos típicos-normativos como:

“declaração falsa”, “fraudar a fiscalização”, “falsificar ou alterar”, “utilizar documento que

saiba ou deva saber ser falso ou inexato”618. De fato, uma das maneiras mais comuns de se

suprimir tributo é falsificando um documento fiscal, o que explica a insistente menção do

legislador a esse modus operandi. Como o crime tributário remete a outro comportamento típico

(falsum)619, o questionamento sobre a ocorrência de concurso próprio ou impróprio torna-se

inevitável. Embora até seja razoável sustentar a especialidade do delito da lei de crimes contra

a ordem tributária perante o de falsidade ideológica com base nas elementares-típicas indicadas

acima, a consunção tem sido o critério preferencial da jurisprudência, mediante o exame da

relação axiológica/valorativa entre os injustos620. Essa é a hipótese que conta com maior número

de precedentes no STJ, dos quais se destacam estes:

616 Cf. Carvalho Filho, “exemplos poderiam ser multiplicados à exaustão, se convocássemos para nosso

estudo os milhares de julgamentos judiciais que consagram o cânon do conflito aparente de lei” (CARVALHO

FILHO, 2009, p. 109). 617 Essa afirmação leva em conta a frequência de casos semelhantes na jurisprudência do STJ. 618 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 244. 619 RIOS; LAUFER, 2011, p. 172. 620 Se bem que os especiais fins de agir presentes no tipo de injusto do Código Penal são mais amplos que

o do crime da Lei 8.137/90: “com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato

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[...] A jurisprudência desta Corte Superior orienta-se no sentido de que o crime de

falso, quando cometido única e exclusivamente para consumar a sonegação de

tributos, é absorvido por este último delito, em observância ao princípio da consunção.

[...].621

[...] A jurisprudência deste Sodalício consolidou-se no sentido de que os crimes de

falso praticados com o fim próprio de suprimir ou reduzir tributos restam absorvidos

pelo de sonegação fiscal, na medida em que a potencialidade lesiva daqueles se exaure

no injusto fiscal. [...].622

[...] O uso de documento falso pelo recorrido teve como único fim a execução do

crime de sonegação fiscal, e, sendo o meio pelo qual se buscou alcançar a finalidade

de sonegar o imposto de renda, quer não recolhendo nenhum valor, quer pagando a

menor quantia, inexiste, por essa razão, potencialidade lesiva para o cometimento de

outros crimes, o que atrai a incidência do instituto da consunção. [...]623

[...] Conforme o quadro fático delineado no acórdão hostilizado, o crime contra o

Sistema Financeiro Nacional, consistente em prestar informação falsa em operação de

câmbio – crime meio – foi praticado para efetivar o pretendido crime de sonegação

fiscal – crime fim –, localizando-se na mesma linha de desdobramento causal de lesão

ao bem jurídico, integrando, assim, o iter criminis do delito-fim. Restou comprovado

que as ações estavam unidas por um único contexto, isto é, o sistema de

subfaturamento de exportações. 2. Constatado que os Recorridos apresentaram

valores inverídicos às autoridades públicas com o fim único e específico de reduzir a

carga tributária incidente sobre suas exportações, visando, exclusivamente, à

sonegação de tributos, e que a lesividade da conduta não transcendeu o crime fiscal,

incide, na espécie, mutatis mutandis, o comando do Enunciado n.º 17 da Súmula do

Superior Tribunal de Justiça, ad litteram: "Quando o falso se exaure no estelionato,

sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido". 3. No contexto em que o crime

de sonegação fiscal foi praticado, as falsidades documentais não podem ser punidas

de forma autônoma, ainda pela aplicação do princípio da especialidade, tendo em vista

que os incisos do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90 as constituíram como elementos

essenciais desse crime complexo. [...]624

Notem-se estas referências: “quando cometido única e exclusivamente para consumar a

sonegação”, “praticado com o fim próprio de suprimir ou reduzir tributos”, “sendo o meio pelo

qual se buscou alcançar a finalidade de sonegar o imposto”, “a potencialidade lesiva daqueles

[crimes de falso] se exaure no injusto fiscal” e “exaurir a potencialidade lesiva”. Os julgados

reproduzidos servem bem à avaliação dos critérios mencionados no tópico anterior e é

principalmente por isso que neste estudo se optou por tratar da hipótese mais clássica de unidade

juridicamente relevante”, o que dificulta a conclusão de que a falsidade ideológica estaria logicamente subordinada

ao crime de supressão fiscal. 621 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 350.211/PE. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma.

Julgado em 17/05/2016. DJe 25/05/2016. 622 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1343464/MG. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma.

Julgado em 07/04/2015. DJe 15/04/2015. 623 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1411730/MG. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze.

5ª Turma. Julgado em 18/03/2014. DJe 26/03/2014. 624 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 908.704/RS. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em

15/10/2009. DJe 09/11/2009.

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de lei no DPE. As premissas trazidas nos precedentes como condição ao reconhecimento da

consunção evocam especialmente o desvalor da ação e o desvalor do resultado, embora não

estejam assim referidos.

A indicação “como meio para” explicita a razão de ser do ato típico acompanhante e,

portanto, a dependência de sentido mantida com a norma dominante, com o que se depreende

a acessoriedade teleológica entre as normas. Concebe-se, assim, que o desvalor da ação do

injusto acompanhante não pode ser explicado sem referência à norma principal, de modo que o

desvalor da ação de um crime acaba implicando necessariamente, na dinâmica do caso concreto,

no desvalor de ação do outro. Mas somente o desvalor da ação não é suficiente.

A partir da indicação “exaurir a potencialidade lesiva”, constata-se a necessidade de que

também o desvalor do resultado do crime acessório esteja visceralmente atrelado ao da norma

principal, com o detalhe fundamental de que não exprima potencialidade lesiva autônoma, ou

seja, que a ofensa ao bem jurídico se esgote totalmente na norma dominante. Com efeito,

eventual falsidade que permita a prática indeterminada de sonegações não poderia ser

considerada consumida, por revelar desvalor autônomo e potencial danoso independente625; não

se cogitaria, nesse caso, de força atrativa material entre os tipos forte o suficiente para que um

pudesse descartar axiologicamente o outro. Afinal, a ideia mestra da consunção é que o desvalor

de um injusto seja consumido pelo desvalor de outro, ambos plenamente configurados.

Esse caso paradigmático (e tão bem conhecido) de consunção é um interessante ponto

de partida para os demais, na medida em que dele se extraem as diretrizes básicas para a solução

da unidade da lei sob o critério em exame. Essa lógica explica o enunciado da Súmula 17/STJ,

concebido para o tratamento hermenêutico da relação entre o falsum e o estelionato, muito

similar ao exemplo em questão: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais

potencialidade lesiva, é por este absorvido”626. No estelionato, que é uma fraude orientada à

obtenção de vantagem contra o patrimônio individual, a falsidade pode operar da mesma forma.

A diferença entre os casos, essencialmente, é que a vantagem, no estelionato, não transcende a

dimensão privada, ao passo que na sonegação fiscal agride um bem jurídico coletivo.

Embora tenha se dado preferência, aqui, ao crime econômico do art. 1º, da Lei 8.137/90,

mesmo entendimento se aplica ao crime socioeconômico do art. 337-A, do CP (sonegação de

contribuição previdenciária), que contém as previsões: “omitir de folha de pagamento”, “deixar

625 RIOS; LAUFER, 2011, p. 173. 626 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmulas. Enunciados. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em 6 nov. 2017.

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de lançar mensalmente”, “omitir, total ou parcialmente”627. Destaque-se, ainda, a correta

admissão da consunção na condição de pós-fato coapenado ou impunível quando o falsum é

utilizado para encobrir o crime tributário, ou seja, para assegurar a prática já ocorrida da

infração principal628:

[...] Segundo pacífico entendimento desta Corte, a contrafação ou uso do falsum

quando utilizados para facilitar ou encobrir falsa declaração, com vistas à efetivação

do crime de sonegação fiscal, é por este absorvido, ainda que sua apresentação à

autoridade fazendária seja posterior, pela aplicação do princípio da consunção. [...]629

[...] A declaração falsa inserida na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda

da Pessoa Física nada mais é do que a representação da informação contida no

documento ideologicamente falsificado, do qual se utiliza o agente para obter a

redução ou supressão do referido tributo, circunstância que impede a incidência dos

tipos penais previstos no artigo 299 e 304 do Código Penal, para que não ocorra o

vedado bis in idem. 2. O fato do sujeito passivo da obrigação tributária apresentar o

documento ideologicamente falsificado à autoridade fazendária, quando chamado a

comprovar as declarações prestadas em momento anterior, configura mero

exaurimento da conduta necessária para a configuração do delito de sonegação fiscal,

já que desprovido, neste momento, de qualquer outra potencialidade lesiva que exija

a aplicação autônoma do delito descrito no artigo 304 do Estatuto Repressor. [...]630

Uma vez analisada a relação de consunção, é oportuna uma palavra sobre o exame da

unidade e pluralidade de condutas relativamente ao crime do art. 1º, da Lei 8.137/90. Quando

se abordou a unidade e pluralidade de ações puníveis como questão prévia à distinção entre

concurso próprio e unidade de lei, mencionou-se (item 2.2) a operação hermenêutica pela qual

é possível considerar várias condutas típicas de mesma natureza como um único delito (crime

continuado verdadeiro). Destacou-se a lição de Zaffaroni e Pierangelli de que a figura do art.

71, do CP, é, na verdade, um “falso crime continuado”, pois o dispositivo não estabelece em

quais casos várias condutas típicas semelhantes poderiam ser consideradas uma só (delito

único); apenas prevê um tratamento punitivo mais brando para uma situação especial de

concurso material631.

Esse tratamento mais brando da lei brasileira para o que na verdade é um concurso

material atenuado (quando os crimes subsequentes, de mesma espécie, podem ser tidos como

627 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 386.863/MG. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior.

6ª Turma. Julgado em 06/08/2015. DJe 26/08/2015. 628 RIOS; LAUFER, 2011, p. 175. 629 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1360309/SE. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma.

Julgado em 05/02/2015. DJe 20/02/2015. 630 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1347646/MG. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma.

Julgado em 05/02/2013. DJe 15/02/2013. 631 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 625.

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continuação do primeiro pelas semelhantes condições de tempo, lugar e maneira de execução)

não se confunde com a análise mediante a qual se considera um único delito a prática reiterada

de condutas semelhantes, todas ajustadas formalmente à mesma redação típica. Sob essa

operação, chega-se à valoração jurídica única de uma série de ações típicas semelhantes

conectadas temporal e espacialmente de forma estreita, reveladoras de um significado social

igualmente único632.

O crime do art. 1º, da Lei 8.137/90, possui um bem jurídico imediato (considerando-se,

aqui, a formulação teórica de Martínez-Buján, para quem o injusto em questão apresenta um

bem jurídico mediato, consubstanciado no correto funcionamento da ordem econômica-

tributária, e outro imediato, com função representativa, retratado no patrimônio do Erário633)

cuja lesão demanda geralmente a prática de mais de um ato típico semelhante pelo agente; esse

crime pressupõe um determinado montante de imposto suprimido a que se chega eventualmente

mediante a prática de mais de uma ação típica, devidamente apurado em procedimento

administrativo específico – aqui, a unidade de ação normativa em sentido amplo não se

depreende da redação do tipo, mas de uma valoração conjunto dos atos individuais634. Tal como

o clássico exemplo de crime continuado verdadeiro635 (o furto cometido repetidas vezes pela

empregada doméstica contra a mesma vítima, cujo saldo final é a subtração do valor total y

composto de x + x + x...), o crime de sonegação fiscal admite a reunião de ações típicas isoladas

semelhantes que, conjuntamente consideradas, podem ser tidas como um só injusto penal –

ainda que de especial gravidade; nesse caso, “existe uma unidade objetiva e/ou subjetiva que

permite considerar os distintos atos, por si sós delitivos e não produzidos em forma de unidade

natural de ação, como parte de um processo continuado unitário. Se fala neste caso de uma

unidade jurídica de ação”636.

É decisivo o fato de que a configuração desse crime somente ocorre com a constituição

definitiva do crédito tributário, nos termos da Súmula vinculante 24/STF: “não se tipifica crime

material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º. incisos I a IV, da lei nº 8.137/90, antes do

lançamento definitivo do tributo”637. Considerando, portanto, que sob uma única inscrição em

632 BACIGALUPO, 1999, pp. 582/583. 633 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 175. 634 ROXIN, 2014, p. 949. 635 Ou na esteira da compreensão alemã de unidade natural de ação segundo a “normal concepção de vida”:

ROXIN, 2014, p. 950. 636 MIR PUIG, 2015, p. 652 (tn). 637 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmulas Vinculantes. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante. Acesso em 26 fev.

2018.

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115

dívida ativa geralmente há um feixe de ações típicas isoladas semelhantes e, o mais importante,

que corre um único prazo prescricional contado desde o lançamento definitivo638, parece não

ser possível identificar concurso de crimes entre ações individuais que admitem reunião sob o

raciocínio do crime continuado verdadeiro para apresentar um só desvalor jurídico-penal639.

Não obstante, a jurisprudência geralmente olvida esse detalhe, e mesmo considerando

apenas um prazo prescricional contado da constituição definitiva do crédito tributário (condição

indispensável à configuração típica), entende haver concurso (em regra o crime continuado –

CP, art. 71) entre as ações isoladas, como se retratassem crimes autônomos. O que se tem,

portanto, é uma inconsistência em termos de aperfeiçoamento do injusto (admitindo-se, aqui,

como dogmaticamente correta a orientação da Súmula vinculante 24/STF): um só prazo

prescricional, mas a aplicação da disciplina de concurso próprio levando em conta a prática de

ações individuais semelhantes e conectadas entre si – não obstante o injusto penal se encontre

no todo, com a consideração global dos fatos640. Portanto, em relação ao crime do art. 1º, da

Lei 8.137/90, é comum a prática de diversas condutas pontuais de sonegação, que não

necessariamente consubstanciam crime continuado, pois a ofensa ao bem jurídico admite

gradação e, portanto, franqueia a conclusão de que as várias condutas típicas isoladas compõem

um todo unitário normativo, representante de um só crime de supressão fiscal.

5.2 Empreendimento causador de dano à unidade de conservação ambiental mediante a conduta

de impedir regeneração de floresta

Outro caso de consunção aparentemente simples (pelo menos em teoria), mas

controvertido na experiência forense, é a relação axiológica entre os crimes ambientais dos arts.

48 e 64, da Lei 9.605/98 (respectivamente, impedir regeneração natural de vegetação e construir

em solo não edificável sem autorização). É o caso do agente que realiza, sem autorização do

órgão competente, obra em solo não edificável assim considerado por seu valor

ambiental/ecológico, impedindo com isso a regeneração da vegetação ali existente. O Superior

Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a possibilidade de absorção material entre esses

crimes (consunção), como se depreende destes julgados:

638 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1031806 AgR. Rel. Min. Dias Toffoli. 2ª Turma. Julgado em

30/06/2017. DJe 10/08/2017. 639 JESCHECK; WEIGEND, 2002, pp. 767-770. 640 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1533316/RS. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.

Julgado em 17/05/2016. DJe 24/05/2016.

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116

[...] 2. O crime de destruir área de preservação permanente dá-se como meio

necessário da realização do único intento de construir edificação em solo não

edificável, sendo o crime-meio de destruição de vegetação absorvido pelo crime-fim

de edificação proibida. 3. Recurso especial improvido.641

[...] 2. O crime de destruir floresta nativa e vegetação protetora de mangues dá-se

como meio necessário da realização do único intento de construir casa ou outra

edificação em solo não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio

de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida. 3. Dá-se tipo penal

único de incidência final (art. 64 da Lei n. 9.605/98), já em tese crime uno,

diferenciando-se do concurso formal, onde o crime em tese é duplo, mas

ocasionalmente praticado por ação e desígnio únicos. 4. Recurso especial

improvido.642

Rios e Laufer encampam essa orientação observando que se a situação concreta admitir,

pode-se considerar “englobada” e ser encarada como um pós-fato coapenado a conduta

subsumida ao crime do art. 48 (impedir regeneração) da lei dos crimes ambientais no delito do

art. 64 (construir em solo protegido) da mesma lei, “pois se trata de decorrência axiológica”, ou

“consequência natural e necessária”: ao manter a construção em local não edificável, parece

“lógico” que a vegetação nativa ali existente fique impedida de se recuperar643.

Embora efetivamente se trate de caso de consunção, talvez se possa esmiuçar ainda mais

a relação valorativa entre esses injustos para se concluir pela concorrente interação lógica entre

ambos, analogicamente ao que ocorre nos casos de subsidiariedade tática, sob a noção de

progressão de ataque ao bem jurídico. É que, sem prejuízo da conexão de desvalor material

entre referidas normas penais, há mesmo alguma interferência lógica entre elas, pois quem

empreende sem autorização necessariamente impede a regeneração da vegetação no local

existente. Assim, não se trataria tanto de ato típico acompanhante por conveniência prática

(como no caso da sonegação acompanhada da falsidade), mas de ato típico colateral

logicamente necessário, na medida em que o crime-fim (edificar em local sob restrição) implica

necessariamente no posterior ato coapenado ou copunível de impedir regeneração.

Semelhante raciocínio pode ser transportado para os crimes dos arts. 48 e 63, também

da lei ambiental (respectivamente, impedir regeneração e alterar estrutura de edificação ou de

local protegido sem autorização). Afinal, essa hipótese distingue-se da situação acima apenas

em relação ao verbo “alterar”, em lugar de “promover construção”; vale dizer, um crime é

construir (art. 64) enquanto o outro é alterar local sem permissão (art. 63), não diferindo

641 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1376670/SC. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. Rel. p/

Acórdão Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em 16/02/2017. DJe 11/05/2017. 642 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1639723/PR. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado

em 07/02/2017. DJe 16/02/2017. 643 RIOS; LAUFER, 2011, p. 176.

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essencialmente. Não obstante, o STJ já negou a relação de consunção entre os crimes do art. 48

e art. 63, da lei ambiental, ao argumento de que o primeiro é delito permanente, o que,

teoricamente, comprometeria o raciocínio do esgotamento da potencialidade lesiva:

[...] 6. As condutas do art. 48 da Lei 9.605/98 (Impedir ou dificultar a regeneração

natural de florestas e demais formas de vegetação) e do art. 63 da mesma Lei (Alterar

o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato

administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico,

turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou

monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a

concedida) são autônomas, não se podendo tratar a primeira delas como crime meio

para a construção ou alteração de edificação. Reforça essa ideia o fato de que o crime

previsto no art. 48 da Lei de Crimes Ambientais é delito permanente, cuja

potencialidade lesiva se protrai no tempo, não se esgotando na construção de

edificação. Precedentes desta Corte. 7. Recurso a que se nega provimento.644

Sem embargo, não se pode desconsiderar que o ato típico principal conduz logicamente

ao ato típico posterior, revelando conexão valorativa necessária (não há como se empreender

em local protegido por motivo ecológico sem ao mesmo tempo bloquear a regeneração natural

da vegetação). Estando imbricados o desvalor de ação e o desvalor de resultado de cada crime,

a absorção de um pelo outro parece um caminho coerente, inclusive por questão de

proporcionalidade.

Há, porém, um relevante argumento contrário ao reconhecimento da consunção em

casos tais. Os bens jurídicos imediatos tutelados pelas normas são distintos, o que pode

eventualmente dificultar a assimilação do desvalor do resultado de uma norma no de outra: no

do art. 48, a flora, ao passo que no do art. 64, o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.

Assim sendo, somente seria inequívoco o reconhecimento do pós-fato copunível caso o solo

não edificável seja considerado como tal em razão de seu valor ecológico. Se ele não admitir

intervenção em razão de seu valor artístico, p ex., seria difícil considerar o desvalor do resultado

do crime de edificar sem autorização (art. 64) implicado no de impedir regeneração (art. 48).

Vale dizer, a inequívoca interação de expressão de desvalor dos crimes é mais bem percebida

quando a proibição de edificar se dá por motivo ecológico, com o que a obstrução da

regeneração da vegetação ali existente acaba sendo um consectário lógico: destruiu-se a

vegetação porque se empreendeu, e como se empreendeu, obstruiu-se a vegetação. Há, nesse

caso, conexão material irresistível, mas que deixa de ser evidente quando a obra corrompe,

p.ex., o valor histórico ou religioso do local e ainda por cima agride a flora. Lembre-se que a

644 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 49.909/SC. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª

Turma. Julgado em 16/05/2017. DJe 21/06/2017.

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proteção do solo, nos termos do art. 64, não se dá apenas em razão de seu valor

ambiental/ecológico, mas também por motivo paisagístico, turístico, artístico, histórico,

cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental.

Vale notar, contudo, que a razão de ser da opção pelo concurso próprio, nessa última

hipótese, não seria propriamente a diversidade de bens jurídicos tutelados, mas a dificuldade de

considerar o desvalor do resultado de um crime plenamente absorvido no de outro. Essa linha

de argumentação talvez possa explicar a aparente ausência de consunção entre o crime do art.

55, da Lei 9.605/98, que pune a conduta de extrair recursos minerais sem competente

autorização, no interesse do bem jurídico coletivo meio ambiente, e o delito do art. 2º, caput,

da Lei 8.176/91, que criminaliza a exploração de matéria-prima pertencente à União sem

autorização legal ou em desacordo (usurpação), norma penal orientada à proteção do patrimônio

da União. A não ser que se entenda o patrimônio da União como um bem jurídico macro, no

qual esteja contido o meio ambiente, é difícil conceber que o desvalor do resultado do crime

ambiental possa se exaurir completamente no do delito de usurpação, e não propriamente

porque os bens jurídicos são diversos645, mas porque hierarquicamente é difícil estabelecer qual

deles tem precedência para que, a partir disso, seja possível entender que um dos atos típicos

cumpriu mera função acompanhante relativamente ao outro dominante. Ou seja, é difícil

estabelecer (apesar da pena sensivelmente mais severa do crime da Lei 8.176/91) qual bem

jurídico é o mais relevante para a partir disso identificar a norma penal dominante aplicável.

Não obstante, não se descarta a consunção se, por exemplo, no caso concreto ficar claro

o propósito do agente de usurpar o patrimônio da União ao explorar indevidamente local

passível de liberação ambiental, concluindo-se com isso que a falta de licença ambiental ocorreu

mais por falta de zelo do agente do que pela impossibilidade mesma de ali se extrair matéria-

prima desde uma perspectiva ecológica. Assim, caso se demonstre ser possível a exploração

ambiental da área, conquanto a ausência de permissão concreta, talvez se possa considerar o

desvalor do resultado do crime ambiental insignificante (já que a liberação ambiental era

factível) perante o crime de usurpação de patrimônio da União, mais grave.

5.3 Apropriação de valores de instituição financeira e gestão fraudulenta

645 No sentido de que a diversidade de bens jurídicos impede a consunção neste exemplo: BRASIL. Superior

Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1580693/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em

05/04/2016. DJe 15/04/2016.

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Possivelmente, a hipótese de consunção em apreço é uma das mais controversas e

problemáticas no âmbito do direito penal econômico. Trata-se da possível relação axiológica

entre os crimes do art. 4º e 5º, da Lei 4.792/86, respectivamente, gerir fraudulentamente

instituição financeira e apropriar-se ou desviar ativos de que o agente tenha posse (esses são

crimes próprios, cujos sujeitos passivos são as pessoas elencadas no art. 25, da mesma lei, não

obstante a eles se sujeitem também particulares que concorram como coautores ou partícipes,

nos termos do art. 30, do CP646). Realmente não há consenso quanto ao tipo de concurso, se

próprio ou impróprio. As soluções são as mais variadas.

Como anotam Rios e Laufer, há quem entenda haver concurso formal ou material entre

tais crimes e há quem compreenda ser o crime do art. 5º especial em relação ao crime do art.

4º647. Também há os que consideram o art. 5º um pós-fato impunível e aplicam a regra

consuntiva para subsistir apenas o delito do art. 4º, assim como há quem entende haver

consunção entre os crimes, só que para declarar o injusto penal do art. 4º absorvido pelo do art.

5º, independentemente de a pena cominada deste ser menor do que a prevista para aquele648.

No Superior Tribunal de Justiça, há precedentes refratários à possibilidade de consunção

entre o crime de gestão fraudulenta e os demais da Lei 7.492/86 (como o de apropriação/desvio

financeiro); outros, porém, a admitem. Como exemplos da primeira corrente:

[...] 4. Quanto aos crimes tipificados nos arts. 4º e 5º da referida lei, é inviável a

aplicação do princípio da consunção, uma vez que os crimes de gestão fraudulenta e

de peculato-apropriação se diferenciam quanto ao tipo objetivo, objeto material e

consumação, atingindo objetos materiais distintos. Precedentes. [...]649

[...] 4. Não há que se falar em consunção entre os crimes de gestão fraudulenta e de

desvio de dinheiro de instituição financeira de que o agente tenha posse, mas, sim, em

concurso formal, no qual um mesmo comportamento acarretou vários resultados,

ofendendo objetos jurídicos diversos. Inviável cogitar-se da incidência dos princípios

da consunção ou especialidade, porquanto incorreram os agentes nas sanções previstas

nos arts. 4º e 5º da Lei nº 7.492, por meio de diversas condutas não vinculadas umas

às outras, sem que haja qualquer relação de instrumentalidade entre elas,

configurando, na hipótese, crimes diferentes. [...]650

646 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o Sistema Financeira Nacional &

contra o Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p. 80. Os autores advertem, porém, que o

particular responde desde que tenha consciência da qualidade especial do controlador ou administrador da

instituição financeira, sob pena de caracterizar erro de tipo. 647 Entendendo que os demais crimes da Lei 7.492/86 são especiais em relação ao delito do art. 4º (gestão

fraudulenta): ROSA, 2005, p. 467-472. 648 RIOS; LAUFER, 2011, p. 181. 649 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 351.960/SP. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma.

Julgado em 20/06/2017. DJe 26/06/2017. 650 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1099342/PR. Rel. Min. Adilson Vieira Macabu. 5ª Turma.

Julgado em 02/06/2011. DJe 02/02/2012.

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Em comum, ambos os precedentes referem divergências de tutela entre as normas penais

(v.g. credibilidade do sistema financeiro vs. patrimônio dos investidores). São exemplos da

segunda orientação (pela admissão):

[...] Os crimes dos arts. 5.º ("Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art.

25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse,

ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio"), 6.º ("Induzir ou manter em erro, sócio,

investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação

financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente") e 10 ("Fazer

inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos

contábeis de instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de

distribuição de títulos de valores mobiliários") podem, eventualmente, ser perpetrados

de forma autônoma e dissociada da conduta delituosa inserta no art. 4.º ("Gerir

fraudulentamente instituição financeira"), todos da Lei n.º 7.492/86.

Não obstante, no caso em apreço, a Corte Regional entendeu que as condutas

capituladas nos arts. 5.º, 6.º e 10 da Lei n.º 7.492/86 estavam todas no mesmo contexto

a partir do qual se concluiu pela existência do crime do art. 4.º da mesma lei (gestão

fraudulenta) e, portanto, este deveria absorver aqueles.

A prática do crime do art. 5.º pode significar, como no caso, um exaurimento do crime

do art. 4.º, configurando uma ampliação da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma,

a autorizar a incidência do princípio da consunção. O mesmo se diga em relação ao

art. 6.º e ao art. 10.

O tipo legal do art. 19 pressupõe a existência de fraude anterior, voltada para a

finalidade de obtenção do financiamento em instituição financeira. Já o tipo inserido

no art. 20 pressupõe a regular obtenção de financiamento, mas com desvio de

finalidade na sua aplicação.

Assim, eventualmente, pode-se admitir a absorção do art. 20 pelo art. 19, como

vislumbrou a Corte Regional, quando, dentro de um mesmo contexto fático, o desvio

de finalidade se apresenta como um exaurimento da conduta delituosa de fraudar a

obtenção do financiamento. Ou seja: mais uma vez se está diante de uma ampliação

da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, a ensejar a incidência da consunção.

[...]651

[...] 6. Consunção do post factum pelo crime anterior mais grave e como resultado

dele - sem ser o único resultado - é idéia, parece-me, mais adequada à interpretação

valorativa. Procedência das razões do primeiro e segundo recorrentes. Lei 7.492/86:

delitos consumptos: art. 5º, caput (desvio/apropriação); e art. 9º (fraude à fiscalização

ou ao investidor); delito consumptivo: art. 4º, caput (gestão fraudulenta). A norma do

artigo 4º, caput, da Lei 7.492/86, não incrimina resultado material, naturalístico, que

porventura venha a ocorrer e que, por lógico, diz respeito à obtenção de alguma

vantagem indevida - patrimonial, ainda que indireta. Se, porém, a vantagem

patrimonial indevida é conseqüência da própria gestão, o resultado material não

demandaria outra classificação de conduta, sendo suficiente para a punição a norma

definidora da gestão fraudulenta. O crime definido no artigo 4º, in casu, absorveu os

delitos de apropriação/desvio e de fraude a investidor. A mesma relação consuntiva

há de ser negada entre a norma do artigo 4º e a do artigo 7º, inciso IV.

7. Recurso parcialmente provido para reconhecimento quanto à absorção dos delitos

de desvio/apropriação (art. 5º, caput) e fraude à fiscalização ou ao investidor (art. 9º)

651 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1290073/ES. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em

13/05/2014. DJe 23/05/2014.

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pela norma incriminadora da gestão fraudulenta (artigo 4º, caput) e conseqüente

modificação no quantum de pena aplicada a cada um dos Recorrentes. [...]652

Antes de se examinar como eventualmente se dá a interação valorativa entre os injustos,

cabe ressaltar a necessidade de que haja conexão estreita de sentido entre os crimes, o que

permitirá a investigação sobre se o desvalor de um pode se exaurir no de outro. Resgata-se,

aqui, a noção – tantas vezes aqui repetida – de unidade delitiva complexa, pela qual menor

importância têm o número de condutas típicas pontualmente praticadas, frente à conexão de

sentido entre elas e à expressão de desvalor global do fato. Segue daí que se os comportamentos

forem “absolutamente dissonantes e distantes em sua forma de consecução”653, o caminho

inevitável é o reconhecimento do concurso próprio entre os crimes, formal ou material654.

Disso também decorre que sempre é preciso aplicar ao fato a norma penal que melhor

se ajuste a ele. Assim, caso se constate a prática de apropriação ou desvio de recursos

financeiros e nada mais, só se poderá cogitar do crime do art. 5º, ainda que mediante esforço

semântico seja possível argumentar que tais condutas não deixam de ser formas de

comportamento fraudulento e, portanto, passíveis de subsunção no art. 4º655. De fato, até seria

possível considerar o crime de gestão fraudulenta, o mais grave de lei, residual em relação aos

demais em função da abrangência e alcance do seu conteúdo proibitivo – uma espécie de norma

coringa, o que, porém, não afasta o imperativo de subsunção jurídica mais precisa possível

(especialidade). Apenas se não for possível subsumir em algumas das hipóteses mais

específicas de ofensa ao objeto tutelado pela Lei 7.492/86, cogitar-se-ia do tipo aberto de gestão

fraudulenta656. Com a compreensão de que o conceito de fraude do art. 4º tem uma amplitude

maior do que os comportamentos insidiosos pontuais previstos nos demais delitos contra o

sistema financeiro, confira-se o acórdão proferido no HC 285.587/SP do STJ, de cujo voto se

destaca: “o fato de os pacientes haverem sido absolvidos em relação ao crime de emissão de

652 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 575.684/SP. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. Rel. p/

Acórdão Min. Paulo Medina. 6ª Turma. Julgado em 04/10/2005. DJ 23/04/2007. 653 RIOS; LAUFER, 2011, p. 180. 654 O STJ já se pronunciou sobre a inexistência de consunção em caso de “condutas bastante diferenciadas,

que comprometeram a liquidez da instituição de forma perigosa aos investidores e causando lesão a um grande

número deles, consumando crimes distintos”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 946.653/RJ. Rel. Min.

Laurita Vaz. 5ª Turma. Julgado em 02/06/2011. DJe 23/04/2012. 655 TRAUCZYNSKI, Nicole. Gestão fraudulenta e concurso de normas na lei dos crimes contra o

sistema financeiro nacional. Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito,

Mestrado em Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense. São Paulo, 2014. pp. 76; 84 e 85. 656 RIOS; LAUFER, 2011, p. 189.

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títulos fraudulentos não significa, a rigor, que não devessem ser condenados por gestão

fraudulenta”657.

Se bem que não se pode deixar de registrar as noções de permanência ou reiteração

ínsitas ao conceito de gestão, que acenam para a razoável exigência de atos de gestão, enquanto

grupo ou reunião de procedimentos. A gestão fraudulenta deve pressupor que o patrimônio de

todos os titulares foi posto em risco ou em desconfiança. Essa forma de compreender esse

injusto tornaria sua aplicação mais limitada, afastando a hipótese de concurso em casos nos

quais sequer se poderia cogitar de sua incidência por falta de preenchimento do tipo objetivo.

Não seria, nesse caso, uma norma coringa, mais um tipo especialmente grave para os casos de

desfaçatez no exercício da administração da instituição financeira. Porém, em prol de um

desafio maior no tratamento hermenêutico dos casos envolvendo a prática desse crime, há a

orientação jurisprudencial dominante no sentido de que se trata de um “crime habitual

impróprio, bastando uma única ação para que se configure”658. E em sendo possível sua

incidência mediante a prática de um único ato de gestão, está pavimentado o caminho da

discussão sobre sua aplicação concorrente com outros tipos que genuinamente se configuram

com a prática de um único ato.

A consunção pressupõe incurso formal e literal simultâneo nas duas normas em conflito,

etapa posterior à conclusão de que não é mesmo possível a incidência abstrata de apenas uma,

ante a impossibilidade de contemplar plenamente todas as circunstâncias do fato. O bem

jurídico supraindividual tutelado pelos crimes previstos na Lei 7.492/86 é prioritariamente a

higidez do sistema financeiro nacional contra atos que, “de maneira espúria ou irresponsável,

incrementem sobremaneira o risco inerente ao próprio sistema financeiro, destituindo-lhe de

parcela da confiança do mercado”659. Apenas “secundariamente” protegem-se outros bens

jurídicos, como “o patrimônio da própria instituição financeira ou dos seus investidores”660.

Nas palavras de Paulo Cezar da Silva, em comentários ao tipo de injusto do art. 4º, por

meio da tutela penal pretende-se cuidar “para que as operações atribuídas às instituições

financeiras ou a entes assemelhados se realizem de forma regular e honesta, zelando pela

657 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 285.587/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.

Julgado em 15/03/2016. DJe 28/03/2016. 658 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 284.546/SP. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma. Julgado em

01/03/2016. DJe 08/03/2016. 659 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 285.587/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 6ª Turma.

Julgado em 15/03/2016. DJe 28/03/2016. 660 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 79.

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estabilidade e credibilidade de Sistema Financeiro Nacional”661. Compreensão similar é a de

Tortima, ao anotar que “em primeiro plano”, tutela-se “a estabilidade e higidez do Sistema

Financeiro Nacional, indispensável à eficiente execução da política econômica do governo.

Secundariamente, protegem-se (...) os investidores e o próprio mercado financeiro”662. Não

obstante, tomando-se como marco teórico a teoria do bem jurídico na concepção de Martínez-

Buján, a estabilidade ou higidez do sistema financeiro seria mesmo o bem jurídico mediato,

enquanto o patrimônio ou direitos correlatos dos correntistas corresponderiam a bens jurídicos

imediatos com função representativa.

A doutrina em geral enxerga no delito do art. 5º a proteção primeira da credibilidade do

Sistema Financeiro Nacional, apesar de algumas divergências, como a de Bitencourt e Breda,

para quem a tutela prioritária desse crime “á a inviolabilidade patrimonial da própria instituição

financeira, dos investidores, em particular, e da coletividade, em geral”663. Seja como for, é

inegável que a ratio legis do crime de apropriação indébita financeira corresponde à higidez

desse âmbito organização social, ainda que o crime tenha como bem jurídico imediato a

proteção do patrimônio de sujeitos determinados: é que a proteção do patrimônio particular não

deixa de ser um instrumento de garantia do funcionamento íntegro e regular do sistema

financeiro.

É importante lembrar, também, a distinção existente entre objeto jurídico e objeto

material do crime (p.ex., no caso da falsidade ideológica, o bem jurídico é a fé pública, enquanto

o objeto da ação é o documento falsificado)664. Nesse caso, deve-se ponderar se o patrimônio

dos investidores é realmente um bem jurídico autônomo ou se não passa do objeto material no

qual se materializa a ofensa ao bem jurídico supraindividual primordial da Lei 7.492/86665. De

qualquer forma, não se identifica divergência significativa entre os propósitos das normas

penais.

Se é certo que eventual divergência entre os bens jurídicos tutelados pelas normas em

conflito não compromete o reconhecimento da consunção, como já salientado666, não menos

correto que a grande semelhança das objetividades jurídicas de cada uma pode pavimentar o

caminho para o reconhecimento da unidade de lei, pois facilita o juízo axiológico pelo qual se

661 SILVA, Paulo Cezar da. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Quartier Latin,

2006. p. 110 662 TORTIMA, José Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Uma contribuição ao Estudo

da Lei nº 7.492/86). 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 30. 663 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 80. 664 ROXIN, 1997, p. 62. 665 ROSA, 2005, p. 467-472. 666 RIOS; LAUFER, 2011, p. 185 e TRAUCZYNSKI, 2014, p. 73.

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reconhece o desvalor da ação e do resultado de uma norma absorvidos (ou esgotados) nos de

outra.

O crime de gestão fraudulenta (art. 4º) é reconhecidamente aberto e genérico, assumindo

papel central na configuração do injusto o elemento normativo fraude (acoplado ao verbo

“gerir”), não se exigindo a ocorrência de resultado material667. É o crime a que se comina pena

mais grave (3 a 12 anos de reclusão), elemento que aumenta a pertinência do princípio da

proporcionalidade na solução do problema hermenêutico668. E é crime de perigo abstrato669 que,

enquanto tal, antecipa consideravelmente a tutela jurídica para punir condutas que “geralmente”

põem em perigo o bem jurídico670, ainda que no caso concreto não se constate a produção de

perigo efetivo (funcionamento regular do sistema financeiro). Nesse delito, o desvalor do

resultado é visto em perspectiva e sua caracterização observa as fronteiras mais etéreas do bem

jurídico supraindividual que se presta a tutelar. Na compreensão de Cerezo Mir, o desvalor do

resultado nos crimes de perigo abstrato está associado à “perturbação das condições de

segurança que são imprescindíveis para um desfruto despreocupado dos bens”, e vem

assinalado nas ações “que geralmente põe em perigo o bem jurídico protegido”671.

Apesar de o crime de gestão fraudulenta exigir um desvalor de resultado cuja

configuração é muito mais normativa do que ontológica (o que franqueia alegações de

vulneração ao bem jurídico mediante puro exercício semântico), isso não significa a

impossibilidade de se considerarem eventuais agressões mais sensíveis (ou menos retóricas) ao

bem jurídico como desdobramentos ordinários da(s) conduta(s) de perigo abstrato praticada(s).

Vale dizer, embora a configuração desse crime se dê com a prática de conduta(s) empiricamente

perigosa(s) ao bem jurídico, isso não compromete sua aptidão de apreender materialmente

eventuais resultados lesivos previstos como crimes autônomos, tornando-os pós-fatos

667 TRAUCZYNSKI, 2014, p. 75. 668 Mais grave não apenas pelas penas mínima e máxima cominadas, mas pelo intervalo entre elas (3-12),

que aumenta o impacto de cada circunstância judicial na determinação da pena. Com efeito, a culpabilidade

negativa de um crime cuja pena seja de 2 a 8 anos não tem o mesmo peso da culpabilidade atrelada ao qual é

sancionado com pena de 3 a 12. 669 SILVA, 2006, p. 133. O STJ, ao demandar a análise ex post de que a conduta seja apta a produzir o dano,

faz da gestão fraudulenta um crime de perigo concreto: “[...] 5. Cumpre registrar que o delito descrito no art. 4° da

Lei n. 7.492/86 é formal e de perigo concreto, bastando para sua consumação a comprovação da gestão fraudulenta,

independentemente da existência ou não da efetiva lesão ao patrimônio de instituição financeira e prejuízo dos

investidores, poupadores ou assemelhados. Em outras palavras, para a consumação do delito em comento, não é

necessária a verificação de um resultado natural externo à conduta do agente, devendo ser demonstrada a

potencialidade do perigo, mas não a sua ocorrência. [...]”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp

1133948/RJ. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 5ª Turma. Julgado em 10/06/2014. DJe 24/06/2014. 670 CEREZO MIR, 2002, p. 47. 671 CEREZO MIR, 2002, p. 64.

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coapenados672. Afinal, enquanto delito mais severamente reprimido na Lei 7.492/86, não parece

absurdo sustentar que a técnica de perigo abstrato foi pensada mais para permitir a antecipação

de tutela do que para criar uma figura penal absolutamente indiferente a eventuais resultados

lesivos673. Fosse mesmo essa norma penal totalmente indiferente aos resultados derivados da

gestão fraudulenta, seria, então, difícil negar a ofensa à proporcionalidade ao se comparar seu

apenamento com o de outros tipos de lesão, como o do art. 5º (apropriação indébita

financeira)674 ou o do art. 9º (falsidade ideológica financeira)675. Também no sentido de que o

crime do art. 4º prefere materialmente os demais, Rios e Laufer: “o desvalor da ação atinente à

gestão fraudulenta já englobaria o desvalor de todo e qualquer desvio ou apropriação que venha

a ocorrer no iter do cometimento da gestão fraudulenta”676.

Com posição inversa, Carvalho Filho677, que utiliza como exemplo o crime do art. 17

(operação de crédito à pessoa proibida) e a precedência material deste sobre a gestão

fraudulenta, considerada por ele mero antefato impunível do crime fim de crédito indevido.

Conquanto as posições antagônicas, os resultados lesivos advindos da gestão

fraudulenta podem ser considerados pós-fato coapenados678. Porém, deve existir uma conexão

de sentido muito clara entre as condutas679. Veja-se este julgado do STJ:

[...] 2. Os crimes previstos nos arts. 299 do CP e 22 da Lei nº 7.492/96 restaram

absorvidos pelo delito mais grave e sofisticado, in casu, a administração fraudulenta,

nela amoldando-se as irregularidades perpetradas pelos gerentes e diretores do banco

estadual. Assim, não há falar em condutas autônomas e independentes dos injustos de

falsidade ideológica e evasão de divisas. [...]680

Assim também, o HC 285.587/SP acima reproduzido, em que o Min. Rel. Rogério

Schietti Cruz atestou a possibilidade de que o crime do art. 7º, da Lei 7.492/86 (negociação de

títulos fraudulentos) “integre a cadeia de toda a gestão efetivada de forma fraudulenta, hipótese

esta que poderia eventualmente atrair a incidência do princípio da consunção (o desvalor da

gestão englobaria o desvalor da emissão, do oferecimento ou da negociação)”. No REsp

672 TRAUCZYNSKI, 2014, pp. 74 e 84. 673 TRAUCZYNSKI, 2014, p. 76. 674 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 93; SILVA, 2006, p. 153. Assim também: MAIA, Rodolfo Tigre.

Dos crimes contra o sistema financeiro nacional – anotações à lei federal n. 7.492/86. 1.ed. São Paulo:

Malheiros, 1999. p. 66. 675 BITENCOURT; BREDA, 2010, p. 93; SILVA, 2006, p. 173; MAIA, 1999, p. 88. 676 RIOS; LAUFER, 2011, p. 188. 677 CARVALHO FILHO, 2009, p. 105. 678 RIOS; LAUFER, 2011, p. 187. 679 TRAUCZYNSKI, 2014, p. 85. 680 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1115275/PR. Rel. Min. Adilson Vieira Macabu. 5ª Turma.

Julgado em 13/09/2011. DJe 04/11/2011.

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575.684 (cuja ementa já se transcreveu), o Rel. Min. Paulo Medina, assentou que: “o

desvio/apropriação ‘não exaure a potencialidade lesiva’ da gestão fraudulenta. O contrário, ou

seja; a consunção do post factum pelo crime anterior mais grave e como resultado dele – sem

ser o resultado único –, é ideia, parece-me, mais adequada à ‘interpretação valorativa’.” E no

REsp 1290073/ES (igualmente já reproduzido), a Min. Rel. Laurita Vaz, consignou: “a prática

do crime do art. 5.º pode significar, como no caso, um exaurimento do crime do art. 4.º,

configurando uma ampliação da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, a autorizar a

incidência do princípio da consunção. O mesmo se diga em relação ao art. 6.º e ao art. 10”.

5.4 Ausência ilegal de licitação e peculato de prefeito

Outra hipótese interessante de conflito aparente no âmbito do direito penal econômico

é a eventual relação consuntiva entre o crime do art. 89 da Lei 8.666/93 e o delito do art. 1º,

inciso I, do Decreto-Lei 201/67. A primeira figura reprime a dispensa ou a inexigibilidade de

licitação fora das hipóteses legais e busca assegurar a lisura e transparência na contratação

pública, cobrando “retidão no processo licitatório para permitir ampla competição observando

a regra da isonomia concorrencial”681. O segundo injusto, por sua vez, censura o gestor

municipal ímprobo, que desvia recursos em proveito próprio ou alheio, tutelando, portanto, “o

patrimônio da Administração Pública Municipal”682.

Sob uma perspectiva em abstrato, a prática de um crime não implica no outro, não se

podendo falar em especialidade ou subsidiariedade, especialmente pela divergência de bens

jurídicos tutelados e ausência de conexão lógica entre os preceitos. Mas é possível que em

determinado caso concreto haja relação de meio e fim entre as infrações penais, dando azo à

discussão sobre o reconhecimento da consunção. Pense-se no caso hipotético em que um

prefeito favorece empresa de um familiar, desobrigando-a de licitação em contrato com valor

superfaturado às expensas dos cofres públicos. Poder-se-ia argumentar que a ausência de

licitação se orientou ao desvio de recursos em favor do contratado.

Ambas as Turmas do Superior Tribunal de Justiça (5ª e 6ª) têm rechaçado a possibilidade

de consunção entre esses injustos penais. Confiram-se os argumentos:

[...] 4. Esta Corte Superior já rechaçou a alegada absorção do crime descrito no art. 89

da Lei n. 8.666/1993 pelo ilícito previsto no art. 1º, I, do Decreto-Lei n. 201/1967,

681 BITENCOURT, 2012, p. 132. 682 BITENCOURT, 2012, p. 117.

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tendo consignado que não há subsunção entre os crimes em comento, cujos bens

jurídicos tutelados são distintos, não se podendo afirmar que o primeiro seria meio

necessário para o último. [...]683

[...] 1. A alegada absorção do delito de fraude à licitação pelo ilícito previsto no artigo

1º, inciso I, do Decreto-lei 201/1967, além de demandar o estudo aprofundado do

conjunto probatório produzido no feito, já foi rechaçada por esta colenda Quinta

Turma, que consignou que não há subsunção entre os crimes em questão, cujos bens

jurídicos tutelados são distintos, não se podendo afirmar que o primeiro seria meio

necessário para o último. [...]684

3. Ordem denegada.

[...] 1. Não há subsunção dos crimes de fraude em licitação (arts. 90 e 92 da Lei n.º

8.666/93) no de desvio de verba pública (art. 1.º, inciso I, do Decreto-Lei n.º 207/67),

cujos bens jurídicos tutelados são notoriamente distintos, sendo que aqueles não são

meio necessário para este. Na linha do parecer ministerial, "Aquele que, como os

Recorrentes, frustra a competitividade de licitação, e, além disso, apropria-se dos

recursos públicos relativos ao respectivo contrato, comete dois delitos, em concurso

material [CP: art. 69 (caput)]." [...]685

Em que pese a sintonia teórica da atual orientação jurisprudencial do STJ, a diversidade

de bens jurídicos tutelados pelas normas não pode, por si só, obstar a consunção, conforme já

salientado nesta pesquisa686. As objetividades jurídicas distintas, sem referência a critério

adicional que indique a inconveniência de se declarar o desvalor de um crime exaurido em

outro, não pode ser suficiente para se descartar a priori a hipótese de concurso impróprio. Essa

premissa desnatura as ideias fundamentais do critério, consubstanciadas, de um lado, na

interpretação do fato global como uma unidade delitiva complexa a partir da interferência

axiológica irresistível entre os diferentes delitos e, de outro, na sobrecarga punitiva derivada da

aplicação autônoma dos injustos sem exame da interação ou da interconexão material de seus

desvalores concretos.

Tampouco pode ser idônea a referência de que a consunção pressuporia relação de

“meio necessário” entre os crimes. Já se viu que a condição de um injusto pressupor

logicamente outro é o que identifica a especialidade; a consunção se distingue das demais regras

justamente pelo fato de o ato típico descartado poder ser considerado, no mais das vezes, como

“normalmente acompanhante”687 da norma dominante – afinal, o furto não requer

683 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 261.766/BA. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. 6ª Turma.

julgado em 27/02/2018. DJe 08/03/2018. 684 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 275.909/MG. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma. Julgado em

05/05/2015. DJe 14/05/2015. 685 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1293176/PR. Rel. Min. Laurita Vaz. 5ª Turma.

Julgado em 20/02/2014. DJe 07/03/2014. 686 ROXIN, 2014, p. 1012; ALBERO, 1995, p. 390; TOLEDO, 1994, pp. 52-53; CRUZ, 2014, p. 805;

HORTA, 2007, p. 150. 687 MIR PUIG, 2015, p. 666 (tn).

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necessariamente a invasão de domicílio. Nesse sentido em particular, foi acertada a decisão da

6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 705.636, julgado em agosto de 2006, quando

considerou a condição de meio do crime licitatório para a prática do peculato pelo gestor

municipal, reconhecendo a consunção: “a ausência de licitação, na verdade, é apenas um dos

atos praticados em uma série, com o objetivo de lesar o patrimônio público, sendo absorvido

pela conduta mais grave, mais abrangente, qual seja o peculato previsto em lei especial”688. Não

surpreende, realmente, que um prefeito possa burlar a lei de licitações objetivando desviar

recursos.

Embora os precedentes do STJ não declarem, a antipatia à consunção parece decorrer

da compreensão de que entre os crimes em análise vige uma autonomia axiológica plena, que

impediria a consideração de um deles como simples ato acompanhante de outro. Ou seja, o que

talvez se queira dizer com a menção às objetividades jurídicas distintas é que o desvalor de um

deles não se exaure no de outro pelo potencial lesivo particular e especialmente grave inerente

à cada norma: num caso, a probidade do chefe do Poder Executivo municipal com impacto na

integridade do patrimônio comum; no outro, o ataque à transparência e à isonomia na disputa

por contratos com o Poder Público, a implicar em favorecimento indevido. Em comum, há o

trato da coisa pública como privada, em prejuízo do interesse público e dos cofres públicos.

Portanto, nas entrelinhas da rejeição à consunção está o reconhecimento de que a potencialidade

lesiva (desvalor do resultado) do crime meio nunca se esgotaria totalmente no crime fim:

haveria interesses maculados com a prática do crime licitatório que não estariam todos

submetidos aos interesses ofendidos com o desvio de recursos por um gestor municipal.

Sem embargo, o exame da consunção pode ganhar alcance renovado caso se levem em

conta as condições que a jurisprudência tem construído para a configuração típica do crime do

art. 89, da Lei 8.666/93. Já está de certa forma consolidado o entendimento de que referido

injusto penal, assim como o do art. 90 (fraude de certame licitatório para obtenção de vantagem

indevida), demanda dolo específico de lesar o Erário (desvalor da ação) e, pelo menos para

alguns, pressupõem ainda prejuízo concreto aos cofres públicos (desvalor do resultado)689.

Trata-se, pontue-se, de uma compreensão moderna, que enxerga um elemento subjetivo diverso

688 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 705.636/PR. Rel. Min. Paulo Medina. 6ª Turma. Julgado

em 22/08/2006. DJ 25/09/2006. 689 “É pacífico hoje na jurisprudência desta Corte Superior e do Supremo Tribunal Federal o entendimento

de que a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 depende da presença do dolo específico

de causar dano ao erário e a caracterização do efetivo prejuízo. Precedentes.” BRASIL. Superior Tribunal de

Justiça. AgRg no AREsp 263.820/DF. Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Turma. Julgado em 08/02/2018.

DJe 21/02/2018.

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do dolo estranho à previsão típica literal. Essa orientação – sujeita, naturalmente, à

reconsideração – pode facilitar a admissão da consunção. É que esses requisitos de configuração

típica revelam a proeminência conferida à proteção do patrimônio público no âmbito dos crimes

licitatórios, ainda que componham a ratio legis da norma outros interesses, como a lisura do

procedimento, a igualdade de competição entre os participantes e até mesmo o respeito aos

princípios da Administração Pública – a vulneração somente a eles, contudo, não atrai a

previsão típica, cfe. a jurisprudência majoritária. Ao se acentuar a dimensão patrimonial do

crime de dispensa ilegal de licitação, identifica-se uma aproximação empírica com os interesses

tutelados pelo crime de peculato cometido por prefeito (sem, naturalmente, se confundir),

pavimentando o caminho para o reconhecimento casuístico do esgotamento do dano social deste

naquele. Em uma palavra: os atributos de índole patrimonial estipulados para a configuração

típica do crime da lei de licitações acentuam seu pendor pela tutela do patrimônio público (cfe.

a jurisprudência pretoriana, a intenção não é punir criminalmente o “administrador inapto”, mas

o “administrador ímprobo”690), aproximando-o do objeto de proteção do peculato de prefeito e,

pela mesma razão, homogeneizando o desvalor de resultado de cada injusto.

Não obstante, é inegável o especial desvalor de ação daquele que, visando à apropriação

de recursos públicos, fulmina a mecânica normativa para a lisura das contratações pelo poder

público. Isso suscita a questão sobre se convém considerar na dosimetria penal esse modus

operandi mais reprovável – já que consubstancia um crime autônomo com relação lógica de

heterogeneidade relativamente ao principal. Trata-se de uma discussão em aberto. Em

princípio, não se descarta essa hipótese, na esteira da tradição doutrinária alemã691. Assim, por

exemplo, consignava Welzel: “o fato posterior impune não é completamente irrelevante no

sentido do direito penal. Pode ser tomado em consideração na aplicação das penas”692.

Igualmente Jescheck e Weigend: “também na determinação da pena pode ser tida em conta com

efeitos agravatórios a norma descartada pela unidade de lei; isso pode ocorrer na medida em

que não se trata de elementos que pertençam ao tipo da disposição penal aplicável”693. Mesma

posição é a de Roxin: “...o tipo penal descartado foi preenchido – portanto, não é que seja

inexistente –, e isto tem a consequência de que a lei descartada pode contribuir na sanção de

690 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AP 971. Rel. Min. Edson Fachin. 1ª Turma. Julgado em

28/06/2016. DJe 10-10-2016. 691 Entre alguns espanhóis, há resistência quanto ao impacto da norma descartada sobre a pena, cfe. MIR

PUIG, 2015, p. 663 e BACIGALUPO, 1999, p. 571. Pela admissão de presença de efeitos residuais da norma penal

descartada na determinação da pena, vide: POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, p. 646. Assim

também: STRATENWERTH, 2005, p. 547. 692 WELZEL, 1956, p. 230 (tn). 693 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 795 (tn).

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diferentes maneiras quando o delito preferente, ou bem não pode ser sancionado, ou bem não

possibilita um castigo suficiente”694. Por fim, vale destacar a similar orientação de Matus

Acuña:

Salvo nos casos de especialidade em que se prefere um delito privilegiado, não parece

proibido pela lei, nem incompatível com a preferência dada à uma das normas

concorrentes, estimar as propriedades jurídico-penalmente relevantes da lei

descartada e que não se encontram compreendidas na preferente, como circunstâncias

do fato possíveis de se considerar na concreta determinação da pena, através das regras

previstas nos arts. 65 e ss. (se tais propriedades podem constituir circunstâncias

agravantes não compreendidas no delito preferente), e particularmente na regra do art.

69, quando tais propriedades não podem apreciar-se isoladamente na configuração das

circunstâncias agravantes.695

Destarte, sob as rubricas culpabilidade e circunstâncias específicas do crime (CP, art.

59), p.ex., parece haver espaço para ajustar a pena à especial gravidade do contexto delitivo,

não o suficiente para a admissão do concurso próprio entre as infrações penais, mas bastante

para refletir na pena o potencial lesivo do ato típico acompanhante descartado.

Contudo, isso inaugura a questão sobre em que medida a incorporação do crime

absorvido na dosimetria penal do crime dominante não vulneraria, de certo modo, o non bis in

idem material – lembre-se da distinção já feita neste trabalho entre as dimensões material e

processual dessa regra696. Trata-se, contudo, de discussão em aberto, em relação a qual cabe

avançar dogmaticamente. O que se pode adiantar é que, na perspectiva da insignificância do

ato típico acompanhante vinculado ao desvalor da norma penal dominante, cfe. a doutrina de

Politoff L., Matus A. e Ramirez G.697, ou ainda na perspectiva da consunção justificada pelo

imperativo da proporcionalidade, cfe. Schmidt698, as dificuldades seriam menores do que na

compreensão segundo a qual o fundamento da consunção é o non bis in idem. Vale dizer, se a

razão de ser da consunção repousa na proibição de se punir em duplicidade pela mesma

justificativa material (identidade de fundamento), o aumento de pena por um aspecto que o

crime prevalente cuidou de absorver poderia significar repetição de reprovação, afinal, a

694 ROXIN, 2014, p. 1017 (tn). 695 MATUS ACUÑA, Jean Pierre. La teoría del concurso aparente de leyes penales y el “resurgimiento” de

la ley en principio desplazada. Revista de Derecho-Facultad de Ciencias Jurídicas-Universidad Católica del

Norte, n. 9, 2002. pp. 27-68 (p. 61 - tn). 696 Como já destacado no item 3.1 do capítulo 3, o non bis in idem na perspectiva material consiste em

identidade de sujeito, fato e fundamento. Em complemento ao exposto anteriormente, confiram-se as

considerações de Schmidt, que examina a qualidade material da sanção no âmbito da identidade de fundamento

para efeito de identificação de bis in idem. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral.

Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. pp. 264-275. 697 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 457-458. Assim também: MATUS ACUÑA, 2005,

p. 485. 698 SCHMIDT, 2001, p. 79.

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consunção requer que o desvalor do injusto penal acompanhante tenha se exaurido no

dominante, homogeneizando-se/condensando-se. Mas se o fundamento da consunção é

deslocado para a proporcionalidade ou para a insignificância da norma penal acompanhante, o

desvalor do crime consunto, embora absorvido pelo consumidor, pode reverberar na fixação da

pena da norma penal dominante, porque seu reconhecimento não significa o amálgama do

conteúdo de desvalor dos injustos, mas uma simples correção de excesso no contexto da

unidade delitiva complexa. Até porque, não parece coerente atribuir a mesma carga de

reprovação a um crime que se comete acompanhado de outro, daquele cometido sem esse modal

de realização.

Sem prejuízo da possibilidade de o tipo penal descartado impactar na determinação da

pena da norma penal prevalente, registre-se, em complemento, outra hipótese comum de

concurso impróprio em se tratando dos dois diplomas em análise: trata-se de eventual conflito

entre o peculato de prefeito e o crime de fraude ao caráter competitivo de licitação para obtenção

de vantagem (Lei 8.666/93, art. 90). Como anota Bitencourt, nesse caso o critério de resolução,

porém, não seria propriamente a consunção, mas sim, a especialidade699. A posição é coerente.

Embora os bens jurídicos não se confundam (lisura dos procedimentos licitatórios, de

um lado, e patrimônio da Administração Pública, de outro), o elemento normativo “vantagem”

da infração penal licitatória não esconde seu pendor à proteção do patrimônio público. Referida

expressão engloba as noções de bens e rendas, previstas no peculato de prefeito. Nas palavras

de Bitencourt, “o art. 90, caput, in fine, como exposto, traz a mesma proibição de o agente,

mediante algum expediente, se beneficiar economicamente da coisa pública, seja a vantagem

para si ou para outrem”700. Sob o conceito de que a norma especial reúne todos os elementos da

geral, acrescidos de mais alguns, denominados especializantes, é possível considerar realmente

o crime da Lei 8.666/93 como de caráter especial, cuja relação se resolve em abstrato com o

confronto conceitual dos crimes: o art. 90 é, em suma, uma especial formal de o gestor

municipal se apropriar de “bens ou rendas públicas”701. Também no sentido de que os prefeitos

municipais se sujeitam à Lei 8.666/93, no âmbito das práticas licitatórias, a doutrina de Marcelo

Leonardo702.

699 BITENCOURT, 2012, p. 117. 700 BITENCOURT, 2012, p. 123. 701 BITENCOURT, 2012, pp. 119-120. 702 LEONARDO, Marcelo. Crimes de responsabilidade fiscal: crimes contra as finanças públicas; crimes

nas licitações; crimes de responsabilidade de prefeitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 78.

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Por fim, e sem prejuízo da identificação de outras hipóteses de conflito aparente de

normas entre os diplomas, refira-se a antinomia existente entre a figura penal do inciso XI, do

art. 1º, do primeiro diploma, que reprime a aquisição de bens e a realização de serviços e obras

em desobediência à lei (contratação sem licitação fora das hipóteses legais) e o injusto do art.

89, da lei de licitações, que trata da dispensa e inexigibilidade ilegais. Reconhecendo a

impossibilidade de vigência simultânea entre os injustos, porquanto equivalentes, o Superior

Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que o crime de lei de licitações, por ser mais

recente (critério cronológico), revogou a conflitante previsão do Decreto-Lei 201/67703.

5.5 Lavagem, exaurimento do crime antecedente e consunção

O crime de lavagem, previsto na Lei 9.613/98, é um pós-fato cuja repressão é

demandada político-criminalmente em diversos países. Há um esforço comum de órgãos

nacionais e internacionais pela adoção de políticas específicas para a prevenção e repressão

desse crime que, em essência, consiste em expedientes (omissão e dissimulação) para a

desvinculação dos ativos sujos da atividade criminosa que lhes precedeu, com sua consequente

inserção na economia legal704.

Não fosse o vigoroso compromisso político-criminal de alcance internacional705 com a

criminalização do disfarce ou encobrimento do produto de crime, enquanto estratégia

fundamental de combate ao crime organizado706, talvez fosse mais fácil trabalhar

dogmaticamente o confronto do desvalor desse comportamento com o de outras condutas

puníveis para se identificar eventual aptidão absortiva. Mas o destaque axiológico atribuído ao

703 “Conquanto o Decreto-Lei nº 201/67 seja norma especial porque institui crimes próprios praticados por

prefeitos e vereadores, a Lei nº 8.666/90 também é especial porque tipifica os crimes praticados em procedimentos

licitatórios, disciplinando especificamente o tema relativo às licitações públicas. 2. Tratando-se de normas com

equivalência hierárquica e incidência nos âmbitos municipal, estadual e federal, resta dirimir o conflito aparente

de normas pelo critério cronológico, prevalecendo o artigo 89 da Lei nº 8.666/90 para os atos praticados após a

sua entrada em vigor.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1288855/SP. Rel. Min. Maria Thereza de

Assis Moura. 6ª Turma. Julgado em 17/10/2013. DJe 29/10/2013. 704 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 38. Diz o autor: “a lavagem de dinheiro consiste em ocultar ou

dissimular a procedência criminosa de bens e integrá-los à economia, com aparência de terem origem lícita.”

Não obstante o acerto dessa definição, a configuração do crime não requer a realização de todas as fazes da

lavagem, bastando, p.ex., a prática de mera ocultação, desde que orientada à quebra do vínculo causal com o crime

antecedente: BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 33. 705 Sobre a característica transnacional do crime de lavagem e a necessidade de cooperação internacional

para combatê-lo, vide: MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. pp.

23 e ss. 706 PITOMBO, 2003. pp. 21-23. Nas palavras do autor: “Crime organizado e lavagem de dinheiro mostram-

se temas tão interligados que parece impossível escrever sobre um sem analisar o outro”.

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delito de lavagem para que receba atenção especial dos órgãos de repressão, tendo em vista a

complexidade imanente à criminalidade moderna (divisão de tarefas, estrutura hierárquica,

impessoalidade e ocultação de instâncias de comando etc.707), singulariza-o frente às demais

figuras penais quando com elas conflitante. O legislador se preocupou em demarcar essa

característica ao consignar ser indiferente ao crime de lavagem a existência de processo e

julgamento relativo às infrações penais antecedentes (Lei 9.613/98, art. 2º, II), embora tenha

compensado essa previsão com a exigência de que a denúncia deve ser instruída com “indícios

suficientes da existência da infração penal antecedente” (Lei 9.613/98, art. 2º, §1º). A lavagem,

portanto, é um crime acessório ou derivado (“acessoriedade limitada”), pois pressupõe um

injusto precedente, mas é dotada de autonomia708.

Essa predileção pelo reconhecimento do concurso próprio aumenta a pertinência da

delimitação daquilo que consubstancia lavagem daquilo que constitui apenas o exaurimento do

crime antecedente (um indiferente penal). Por ocultar (esconder) e dissimular (disfarçar) o

produto de crime se deve entender o comportamento mendaz suficientemente idôneo para

desvirtuar os laços que ligam o patrimônio espúrio ao seu proprietário. O ardil, por mais sutil

que seja, deve estar presente para a configuração da lavagem709. Trata-se, portanto, da criação

de um risco não permitido ao bem jurídico mediante comportamento tendente a dificultar o

vínculo entre o produto de crime e seu detentor. Na lição de Carla Veríssimo de Carli, a essência

da lavagem é a separação dos ativos sujos do delito antecedente mediante movimentos ou

operações que obnubilam essa relação de causa e efeito, permitindo, assim, a reinserção

disfarçada do produto de crime na economia legal710.

Em vista disso, sedimentou-se a orientação de que o mero exaurimento do delito

antecedente não se confunde com lavagem. Não fosse isso, a lavagem faria concurso próprio

com qualquer figura penal da qual resultassem dividendos materiais. É importante, assim,

demarcar aquilo que significa o simples desfrute de produto de crime, daquilo que significa

expediente de legalização ou branqueamento para descaracterizar a origem criminosa dos bens.

O simples proveito econômico do crime antecedente, sem a intenção de disfarçar a natureza

espúria dos ativos, não caracteriza a figura penal em exame. A “lavagem não se configura nem

com a guarda do dinheiro auferido ilicitamente nem com o gasto não falseado dessa quantia,

707 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 30. 708 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 41.203/SP. Rel. Min. Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Julgado em

03/05/2016. DJe 12/05/2016. 709 RIOS; LAUFER, 2011, p. 193. 710 CARLI, Carla Veríssimo de. Lavagem de dinheiro – ideologia da criminalização e análise do

discurso. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2008. pp. 117 e 118.

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pois tais ações não guardam qualquer relação com a reinserção fraudulenta ou ardilosa do

dinheiro ilícito na economia oficial”711. Nas palavras de Caiero, não se pune a “simples

detenção das vantagens e a sua utilização ‘normal’, conaturais ao facto precedente”; em

contrapartida, legitimam a repressão penal as condutas que constituem “um modo

particularmente eficiente de garantir a conservação das vantagens ilicitamente obtidas, em

detrimento da pretensão estadual à sua detecção e subsequente perda”712. Extrai-se da

jurisprudência do STJ, a propósito disso:

[...] I - O mero proveito econômico do produto do crime não configura lavagem de

dinheiro, que requer a prática das condutas de ocultar ou dissimular. Assim, não há

que se falar em lavagem de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a

depositar o dinheiro em conta de sua própria titularidade, paga contas ou consome os

valores em viagens ou restaurantes. [...]713

Essa orientação é complementada pelo entendimento de que a lavagem requer ainda o

elemento subjetivo específico de “emprestar aparência de licitude aos valores”714, i.e., a prática

das ações de adquirir, receber, guardar ou ter em depósito devem “atingir o propósito de ocultar

ou dissimular a utilização” de ativos provindos de crime715. Portanto, não se configura referido

crime quando não for possível concluir que o agente quis disfarçar a origem ilícita dos ativos

sujos.

A demarcação da fronteira entre o comportamento caracterizador do injusto em estudo

daquilo que se deve considerar atípico viabiliza a posterior reflexão sobre a absorção

(consunção) da lavagem pelo crime antecedente (e vice-versa), lembrando-se que a consunção

pressupõe a superação do exame prévio de (a)tipicidade716.

O compromisso com a “prevenção e repressão da atividade criminal”, ao “privar o

criminoso dos ganhos decorrentes de sua atividade”717, e a justificativa político-criminal

segundo a qual: “provar o crime de lavagem e a sua autoria pode ser mais fácil do que provar a

711 RIOS; LAUFER, 2011, p. 193. 712 CAIERO, Pedro. A consunção do branqueamento pelo facto precedente. (em especial: (i) as implicações

do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n. 13/2007, de 22 de Março; (ii) a punição da consunção impura)”.

In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA, Susana Aires de (org.). Estudos em

Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pp. 187-222 (p. 189). 713 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 458/SP. Rel. p/ Acórdão Min. Gilson Dipp. Corte Especial.

Julgado em 16/09/2009. DJe 18/12/2009. 714 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 328.229/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz.

6ª Turma. Julgado em 15/12/2015. DJe 02/02/2016. 715 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 472/ES. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Corte Especial.

Julgado em 01/06/2011. DJe 08/09/2011. 716 ZAFFARONI, 2002, p. 867; POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, p. 464. 717 MORO, 2010, p. 16.

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condição do chefe de mandante dos crimes praticados na base da organização”718 poderiam ser

tomados, em princípio, como obstáculo à admissão da absorção da lavagem pelo antefato.

Poder-se-ia argumentar, nesse sentido, que a consideração da lavagem como pós-fato

coapenado solaparia a estratégia de combate ao crime organizado, por se reservar a ela papel

punitivo secundário.

Mas o enfoque no combate ao crime organizado, se bem analisado, não se mostra

suficiente à rejeição do concurso impróprio na hipótese de o autor do crime antecedente ser o

mesmo que o da lavagem (autolavagem). Afinal, com a reprovação penal pelo crime

antecedente já se obtém o resultado condenatório e o seu efeito correspondente: o confisco do

produto do crime. Em paralelo, a admissão da consunção no caso de autolavagem não significa

obstáculo à condenação por lavagem do corréu a quem não se pôde atribuir o crime antecedente.

É dizer, o objetivo político-criminal fundamental do injusto de lavagem ainda estaria

preservado, pois só se falaria em consunção em caso de equivalência de autoria entre as

infrações penais, preservando a possibilidade de punição autônoma por lavagem daquele

resguardado da censura pelo delito antecedente. E como não se pode considerar frequente a

punição conjunta pelo crime antecedente, a consunção, restrita à autolavagem, não poderia ser

vista como obstáculo real ao combate ao crime organizado.

Em verdade, as categorias do desvalor da ação e do resultado revelam, aqui também,

importância invulgar ao exame de eventual consunção719. A rejeição (ou aceitação) do concurso

impróprio pode ser melhor explicada sob a perspectiva do específico desvalor da lavagem

(ocultação e dissimulação), à luz de sua peculiar objetividade jurídica. É o alcance atribuído ao

bem jurídico da lavagem que dirá sobre a possibilidade de sua assimilação material pelo

conteúdo de desvalor de outra norma penal. Com efeito, em não se podendo considerar a

lavagem um desdobramento regular, ordinário ou esperado do crime antecedente, por se reputá-

la uma forma de ataque especialmente relevante à administração de Justiça (ou à ordem

econômica), prejudicado estará o reconhecimento do exaurimento de sua potencialidade lesiva

no crime antecedente (interação material irresistível entre os conteúdos de injusto de cada tipo).

Como o antefato e o pós-fato coapenados pressupõem, relativamente ao comportamento

típico principal, a existência de uma “relação tal que permita asseverar que o legislador, na hora

de prever a pena para o tipo de delito no qual encaixa o fato principal, tenha considerado a

prévia ou subsequente realização deste outro fato”720, não se poderá reservar à lavagem a

718 MORO, 2010, p. 18. 719 BUSATO, 2017, p. 877. 720 HERRERA, 2004, p. 265.

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condição de ato típico acompanhante ou dominado caso se tenha como inequívoca a intenção

do legislador de torná-la um fato típico autônomo dotado de gravidade invulgar e inegociável.

Nessa hipótese, encarar a lavagem como um pós-fato coapenado seria ignorar sua razão de

ser721.

Não obstante, em se adotando orientação menos hermética quanto ao alcance atribuído

à objetividade jurídica da lavagem, será menos tormentoso o caminho para considerá-la

casuisticamente um pós-fato coapenado – pensando-se, aqui, na autolavagem. Consoante

Badaró e Bottini, a identificação do bem jurídico protegido pela norma penal de lavagem

permite “a solução de situações complexas de concurso de normas, e sobre a incidência do bis

in idem em determinados casos”722. Nessa ordem de ideias, acaso entendida apenas como um

reforço ao confisco, sob a perspectiva de ofensa exclusiva à administração da Justiça (obstrução

ao rastreamento do produto de crime pelas autoridades públicas e ao controle de atividades

ilícitas723), já não haveria óbice à consunção; antes o contrário, ela calharia para evitar a dupla

reprovação pelo mesmo conteúdo de desvalor. Afinal, o confisco estaria atendido com a

condenação do mesmo autor pelo crime antecedente (trata-se de efeito da condenação, nos

termos do art. 91, II, do CP).

Essa compreensão deflui da Convenção sobre Lavagem, Identificação, Apreensão e

Confisco de Produtos do Crime, aprovada pelo Conselho da Europa, que recomenda a não

sujeição ao delito de lavagem de quem cometeu a infração antecedente724. Delmanto adota essa

orientação, ao registrar que a punição do autor pelo crime antecedente e o consequente confisco

do produto do crime (efeito da condenação) esgotaria a necessidade de sua punição autônoma

pela lavagem, analogicamente ao que ocorre com o crime do art. 349, do CP (favorecimento

real)725.

Porém, caso se identifique no bem jurídico da lavagem uma significação de desvalor

transcendente ao objetivo de confisco como, por exemplo, a percepção de que é essencial à

organização social a circulação de ativos lícitos na economia para a preservação da livre

721 RIOS; LAUFER, 2011, p. 191. 722 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 81. 723 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 85. Em outra passagem, sustentando ser a administração da Justiça o bem

jurídico tutelado pela lavagem, os autores acentuam que: “a ideia da norma, bem como das diretivas internacionais

sobre o tema, é usar o direito penal para suprir a incapacidade do Estado de investigar o crime antecedente da

lavagem de dinheiro e rastrear seu produto”. 724 PITOMBO, 2003, p. 76. 725 DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; ALMEIDA DELMANTO, Fabio M. Leis

penais especiais comentadas. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. pp. 691-694.

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iniciativa e concorrência, p.ex. (atribuindo à lavagem a tutela da ordem econômica, portanto726),

então será difícil pretender que o desvalor da lavagem seja um mero ato típico acompanhante,

eclipsado pela expressão de desvalor da norma penal principal. Ou seja, se os atos de reciclagem

de capital espúrio são censurados penalmente também porque desestabilizam a ordem

econômica, a livre iniciativa, o sistema concorrencial, as relações de consumo, a transparência,

enfim, porque representam “abuso de instrumentos da vida econômica”727, consolida-se a

natureza plenamente autônoma do desvalor da lavagem. Nesse caso, fica difícil concebê-la

como desdobramento regular e, portanto, contida na expressão de desvalor do antefato

(exaurimento de potencialidade lesiva). Não se poderia falar em insignificância, à luz da

compreensão dogmática de Politoff L., Matus A. e Ramirez G.728.

Note-se que o aspecto central não é tanto a divergência entre os bens jurídicos dos

crimes antecedentes e o da lavagem, mas a característica singular atribuída à última (desde um

enfoque político-criminal), que dificulta a assimilação axiológica de uma norma penal por outra

(absorção da expressão de desvalor – especialmente do resultado). Essa forma de pensar

justifica a repressão à autolavagem sob a forma de concurso próprio, pois as condutas

praticadas, apesar da identidade de autoria, revelam expressão de desvalor autônomo (de ação

e de resultado) e lesões qualitativamente bem independentes729. Vale, aqui, a advertência de

Badaró e Bottini: “encontrar na ordem econômica o bem protegido pela norma legitima a

punição em concurso material do crime antecedente e da lavagem, quando praticados pelo

mesmo autor, sem a caracterização do bis in idem”730.

De fato, o Superior Tribunal de Justiça tem atribuído à lavagem desvalor autônomo,

negando a consunção em casos de autolavagem:

[...] 12. Embora a tipificação da lavagem de dinheiro dependa da existência de um

crime antecedente, é possível a autolavagem - isto é, a imputação simultânea, ao

mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem -, desde que sejam

726 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 184; TIEDEMANN, 2010, p. 344. Entre nós: PITOMBO, 2003, pp. 77-

79. Esse autor acentua: “No exercício da atividade empresarial, o crime organizado acaba adotando práticas que

atingem a livre-iniciativa, a propriedade, a concorrência, o consumidor, o meio ambiente, o patrimônio histórico,

enfim, vários, aspectos da ordem econômica”. 727 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 87. 728 POLITOFF L.; MATUS A.; RAMIREZ G., 2004, pp. 457-458 (tn). Assim também: MATUS ACUÑA,

2005, p. 485. 729 LORENCINI, Bruno César; CAVALI, Marcelo Costenaro. Separando joio, peste e praga: “caixa dois”

eleitoral, corrupção e lavagem de dinheiro. In: FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da Cunha et al. Direito,

Instituições e Políticas Públicas – O papel do jusidealista na formação do Estado. São Paulo: Quartier Latin,

2017. p. 41. 730 BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 85.

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demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do

primeiro crime, circunstância na qual não ocorrerá o fenômeno da consunção. [...]731

[...] 7. Por definição legal, a lavagem de dinheiro constitui crime acessório e derivado,

mas autônomo em relação ao crime antecedente, não constituindo post factum

impunível, nem dependendo da comprovação da participação do agente no crime

antecedente para restar caracterizado. [...]732

Questão em aberto, por fim, é se a lavagem eventualmente poderia assimilar o desvalor

do antefato copunível, exaurindo-o materialmente. Essa possibilidade poderia, aliás, compensar

a “desproporção” de o crime de lavagem eventualmente ser mais severamente sancionado do

que a infração antecedente (v.g. contravenção penal), à luz dos princípios da razoabilidade e da

proporcionalidade733 – que também constituem vetores ao exame da consunção, como

salientado supra. Posicionando-se pela possibilidade de a lavagem assimilar materialmente o

crime antecedente (consunção), mas considerando não propriamente o bem jurídico, e sim, os

“concretos sentidos de ilícito do caso (do ‘grande facto’), no seu significado social”,

independentemente do enunciado abstrato das normas (na linha do magistério de Figueiredo

Dias), vide a doutrina de Caiero734. Anote-se que esse não é um caminho excêntrico, como se

infere deste precedente do STJ:

[...] 3. Concluindo as instâncias ordinárias que "o crime contra o sistema financeiro

nacional se constituiu numa das etapas para emprestar efetividade ao delito de

lavagem de dinheiro, sendo por este absorvido", não há como inverter o decidido sem

reexaminar o acervo fático probatório dos autos. Incidência do enunciado nº 7/STJ.

[...]735

Bittencourt da Rosa, com orientação parecida, defende o concurso de leis quando um

dos crimes em conflito tutela “indiretamente” o bem jurídico protegido diretamente pelo outro,

ilustrando esse raciocínio com a relação havida entre o crime de evasão de divisas, cuja tutela

primeira seria o sistema financeira nacional, e o de lavagem, que embora prioritariamente tutele

a administração da Justiça, indiretamente protege o “sistema financeiro nacional” (melhor seria,

talvez, referir a ordem econômica), “porque afeta-se a integridade das finanças, desvirtuando-

731 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 856/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi. Corte Especial. Julgado

em 18/10/2017. DJe 06/02/2018. 732 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1342710/PR. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. 6ª

Turma. Julgado em 22/04/2014. DJe 02/05/2014. 733 RIOS, Rodrigo Sánchez. Alterações na lei de lavagem de dinheiro: breves apontamentos críticos.

Boletim IBCcrim, ano 20, nº 237, ago./2012. p. 3. Assim também: MORO, 2010, p. 46. 734 CAIERO, 2010, pp. 202-204. 735 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1277194/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis

Moura. 6ª Turma. Julgado em 10/12/2013. DJe 17/12/2013.

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se sua destinação”736. De todo modo, o exemplo é interessante porque expressa um caso de

antefato coapenado (impunível) no âmbito do crime de lavagem: haja vista, de um lado, a

primazia político-criminal do injusto de ocultar ou dissimular produto de crime e, de outro, a

possibilidade de que o crime-meio encontre sua razão de ser plena no crime-fim, na moldura

do caso concreto, a interconexão ou interseção entre os desvalores de resultado em razão de

similaridades em suas objetividades jurídicas poderá, eventualmente, conduzir ao exaurimento

do antefato punível na lavagem, fazendo com que apenas este delito prevaleça no caso concreto.

Em síntese: tomando-se a lavagem como um crime pluriofensivo ou complexo, cujo

objeto prioritário de proteção (não obstante o dissenso doutrinário737) é a administração da

Justiça, que deve ser entendida em seu sentido “mais genérico e abrangente de quaisquer

manifestações da Justiça no atingimento de suas metas e finalidades”738, mas sem a exclusão

de outros bens jurídicos que proteja indireta ou colateralmente, pensa-se ser possível especular

sobre a assimilação, pela lavagem, do desvalor de injusto antecedente com objetividade jurídica

similar. Assim, se no caso concreto ficar evidenciado que a infração penal antecedente, com

bem jurídico equivalente ao tutelado mediatamente pela lavagem, foi acessório ao objetivo final

de reciclagem de ativos ilícitos, poderá esta última norma penal ser considerada exaustiva do

desvalor material global do fato, inclusive por questão de proporcionalidade.

5.6 Corrupção e delitos econômicos

Muito mais poderia ser dito em relação à consunção no âmbito da criminalidade

socioeconômica. Como já pontuado, o objetivo aqui não é exaurir as hipóteses nas quais a

absorção material entre os delitos concorrentes pode se operar. Não obstante, uma palavra final

deve ser dita quanto ao crime de corrupção, que embora para a maioria não represente um delito

econômico propriamente dito739, guarda estreita relação com essa categoria, ante o intenso

intercâmbio entre o bem jurídico administração pública e as mais variadas atividades

econômicas – entre as diversas finalidades perseguidas por um agente corruptor,

definitivamente não são exóticas as de conotação econômicas, ainda mais em um ambiente de

crescente regulação e de protagonismo econômico-privado. Como a tônica político-criminal

736 ROSA, 2005, p. 467-472. 737 DELMANTO; DELMANTO JUNIOR; ALMEIDA DELMANTO, 2014, pp. 687-690. Rejeitando a

compreensão de que seja crime pluriofensivo: BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 93. 738 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime): Anotações

às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 1999. pp. 53 e 54. 739 MARTÍNEZ-BUJÁN, 2016, p. 126.

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dos injustos contra a administração pública é a reprovação pela obtenção de vantagem com

abuso de poder ou perversão entre público e privado740, não poderia surpreender a presença de

traços econômicos no contexto típico.

Adán Nieto Martín chama a atenção para a vinculação entre o crime de corrupção e os

de natureza econômica à luz da política-criminal global que conclama o setor privado a

colaborar na luta contra a corrupção com programas de compliance741. Sustenta o autor que a

Foreing Corrupt Practives Act (1977) introduziu a compreensão de que os “efeitos prejudiciais

da corrupção não radicam somente no dano gerado à administração pública, mas afeta também

a livre concorrência e lesa os investidores”742; em síntese: o suborno seria não apenas uma

forma de concorrência desleal entre agentes privados, mas representaria também uma utilização

temerária do dinheiro de acionistas (“administração desleal do patrimônio societário”743).

Abanto Vásquez, por sua vez, avaliando a corrupção sob uma perspectiva internacional, anota

que a “danosidade deste tipo de corrupção [internacional] assenta em suas implicações político-

sociais, pois, não raro, empresas transnacionais elaboram suas estratégias prevendo linhas de

atuação corruptoras e se aproveitando de seu poder para pressionar e chantagear a classe política

dos países onde operam”744. Acrescenta referido autor que a corrupção internacional “não

somente afeta o país do funcionário corrupto, mas também o país de quem realiza o ato de

corrupção, pois sua indústria perde confiança internacional com a consequente afetação do

sistema competitivo nacional”745. Sem prejuízo, porém, dessas questões dogmáticas, é inegável

a conexão social entre crimes contra a administração pública e os crimes econômicos

tradicionais, o que, no plano jurídico, suscita intensamente o problema do concurso, próprio e

impróprio.

Nos poucos precedentes colhidos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

relativos ao tema, nota-se certa resistência em se declarar a consunção em casos de corrupção746.

740 GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor;

TEIXEIRA, Adriano (orgs.). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois

eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 28. 741 MARTÍN, Adán Nieto. La privatización de la lucha contra la corrupción. In: ZAPATERO, Luis Arroyo;

MARTÍN, Adán Nieto (dire.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch:

2013. pp. 192 e 193. 742 MARTÍN, 2013, p. 194 (tn). 743 MARTÍN, 2013, p. 195. 744 ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. La lucha contra la corrupción en un mundo globalizado. In: PREDA,

Ricardo (coord.). Apuntes de Derecho Penal Económico III. Asunción/PY: ICED, 2013. p. 57 (tn). 745 ABANTO VÁSQUEZ, 2013, p. 57 (tn). 746 Assim, por exemplo: “Não há que se falar em consunção entre o crime de falsidade ideológica e o de

corrupção passiva na medida em que aquele não se mostra meio necessário para a configuração deste. Concurso

material que deve ser aplicado quando houver dolo específico na conduta delitiva.” (BRASIL. Superior Tribunal

de Justiça. REsp 1106603/SP. Rel. Min. Moura Ribeiro. 5ª Turma. Julgado em 18/06/2014. DJe 27/06/2014). E

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141

Mas da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região extrai-se o exemplo abaixo

(alinhado com outros precedentes da mesma Corte), no qual se admitiu a absorção material do

crime de corrupção passiva (CP, art. 317) pelo de facilitação de contrabando/descaminho (CP,

art. 318):

[...] 8 Cometem os delitos de corrupção passiva e facilitação ao

contrabando/descaminho, os agentes policiais que, mediante o recebimento de

propinas, permitem a entrada de mercadorias contrabandeadas ou descaminhadas no

território nacional. 9. Hipótese em que se reconhece a consunção entre os delitos do

artigo 317, caput, e 318, ambos do Código Penal. Delito-meio com pena mais grave

absorve crime-fim. [...]747

Do bojo desse acórdão destaca-se esta conclusão:

[...] no caso concreto, o dolo dos servidores públicos estava, indubitavelmente,

voltado para a obtenção da vantagem indevida, no exercício da função (corrupção

passiva), e, para a obtenção dessa vantagem indevida (objetivo final), o único modo

possível era atuar em violação a dever funcional (na espécie, a prática da facilitação

ao contrabando e/ou descaminho).

Destacou, então, o relator que estaria evidenciado o “nexo de dependência entre as

condutas”. Em complemento, assentou-se que, à época dos fatos, o crime de corrupção passiva

contemplava pena mais branda (1 a 8 anos, pois antes da vigência da Lei 10.763/03) para, a

partir disso, adotar-se a regra do maior absorve o menor e estabelecer punição apenas pelo

crime-meio de facilitação de contrabando e descaminho – em que pese em outros julgados a

Corte tenha priorizado a corrupção passiva em atenção à sua condição de crime-fim.

É interessante frisar a referência ao “nexo de dependência” entre as condutas. Embora

o aresto tenha emprestado maior importância à unidade de desígnios, revelada pela relação de

meio e fim entre as infrações a partir do dolo dos agentes, a expressão “nexo de dependência”

acabou deixando implícito o reconhecimento da interação entre o conteúdo de desvalor de cada

crime, com o que se entendeu que a ofensividade exprimida por um estaria abarcada na do

outro.

também: “EXCESSO ACUSATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DA PRATICA DO CRIME PREVISTO NO

ARTIGO 96, INCISO V, DA LEI 8.666/1993 E ABSORÇÃO DO DELITO DE CORRUPÇÃO ATIVA PELO

ILÍCITO PREVISTO NO ARTIGO 90 DA LEI DE LICITAÇÕES. CONTRATO DE AQUISIÇÃO DE

VEÍCULOS COM MANUTENÇÃO DA FROTA. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 96, INCISO V, DA LEI

8.666/1993. PRÁTICA DOS DELITOS DE FRAUDE À LICITAÇÃO E CORRUPÇÃO ATIVA EM

MOMENTOS DISTINTOS. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. AUSÊNCIA DE

COAÇÃO ILEGAL. DESPROVIMENTO DO RECURSO.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC

38.617/BA. Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo. 5ª Turma. Julgado em 23/06/2015. DJe 03/08/2015). 747 PORTO ALEGRE/RS. Tribunal Regional da 4ª Região. ACR 0004487-05.2003.404.7002/PR. 8ª Turma.

Rel. Gilson Luiz Inácio. D.E. 24/04/2013.

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Mas independentemente do fim perseguido pelo agente no caso concreto (opção

hermenêutica do aresto em análise), a contraposição das objetividades jurídicas dos crimes

permite identificar um plus no tocante ao objeto de tutela da figura do art. 318, do CP; além da

moralidade ou probidade da administração pública, referido injusto resguarda a arrecadação

tributária (descaminho) ou a ordem econômica (contrabando)748, revelando, assim, maior

abrangência comparativamente à corrupção passiva. Cabe, aqui, o parêntesis de que os bens

jurídicos protegidos pelo crime primo de descaminho (CP, art. 334) coincidem em certa medida

com a objetividade jurídica dos crimes tributários – na compreensão de Scandelari,

“imediatamente, um interesse arrecadatório, a receita pública ou a ordem tributária;

mediatamente, interesses coletivos, a sanidade da relação entre o particular e o Fisco e algumas

instituições do Estado”749. Logo, associam-se os crimes de descaminho e contrabando com o

DPE.

Embora o correlato crime de facilitação de contrabando e descaminho se dirija ao

funcionário público, a quem tem por dever reprimir a prática do descaminho ou contrabando,

sua objetividade jurídica não se restringe à probidade da administração pública. Observe-se,

com Tavares, que “a realização do contrabando ou descaminho” são o “resultado da

facilitação”750, devendo a ação de descaminho ou de contrabando ter pelo menos iniciado para

que se configure o tipo legal – trata-se de um “delito de omissão e resultado”, nas palavras desse

autor. Se a prática do descaminho ou contrabando integra o conteúdo de injusto do crime

funcional de facilitação, a objetividade jurídica deste último delito não poderia se restringir à

probidade da administração pública. Em complemento, reconheça-se a incidência do crime

residual de corrupção passiva caso se constate o recebimento de vantagem indevida, mas não

se comprove o início da internalização indevida de mercadorias; isso demonstra que o delito do

art. 318, do CP, tutela algo a mais do que o do art. 317, do mesmo diploma.

Assim sendo, como o delito do art. 318, do CP, não se limita à tutela da probidade

administrativa, no exame do caso concreto é possível compreender que ele abrange o desvalor

(de ação e de resultado) de outro crime contra a administração pública, como a corrupção

passiva, tal como entendeu o TRF4 no julgado reproduzido acima. Mesmo porque, é implícito

à facilitação de contrabando/descaminho eventual recebimento de vantagem que, embora não

748 FRANCO; STOCO, 2007, p. 1478. 749 SCANDELARI, Gustavo Britta. O crime tributário de descaminho. Porto Alegre: Magister, 2013. p.

121. 750 TAVARES, Juarez. Alguns aspectos da estrutura dos crimes omissivos. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, vol. 15/1996, p. 125-127, Jul-Set/1996.

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constitua uma elementar típica, não prejudica a conclusão de que essa circunstância compõe o

fato típico desde uma perspectiva lógica ou de racionalidade prática. Portanto, no exame da

relação valorativa entre corrupção passiva e facilitação de contrabando e descaminho é possível

cogitar da operação axiológica pela qual se opera o esgotamento material de um crime em outro,

o que é facilitado pelo fato de que o âmbito de tutela de um deles (CP, art. 318) abarca o do

outro (CP, art. 317).

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CONCLUSÃO

O direito penal econômico é campo fértil para casos de concurso próprio e impróprio,

quer pelo aumento numérico de figuras penais, quer por sua peculiar forma de proteção ou,

ainda, pelo catálogo cada vez maior de interesses sob seus cuidados. Dependendo do apetite da

acusação, não é difícil o trânsito de denúncias com cargas acusatórias destemperadas,

pretextando a literalidade da lei sob raciocínio semântico trivial. Como o conflito aparente e a

concorrência típica real são recorrentes no âmbito da criminalidade socioeconômica, cresce o

interesse por delimitar cada fenômeno dogmático, inclusive em razão da discrepância

jurisprudencial pretoriana na estipulação de pressupostos gerais da consunção e no tratamento

de casos similares. Cabe à dogmática desenvolver critérios que tornem mais previsível e estável

a subsunção jurídica de episódios insertos no âmbito do direito penal econômico, especialmente

no tocante à interação valorativa/material entre os injustos virtualmente concorrentes

(consunção), almejando mais segurança e controle do poder punitivo e, portanto, concreção das

liberdades em sentido amplo.

No primeiro capítulo, viu-se que embora o direito penal econômico em sua manifestação

moderna tenha lugar cativo no plexo de opções normativas para a soluções de problemas

socioeconômicos no contexto da sociedade de risco/pós-industrial, é preciso estar atento quanto

a eventuais excessos derivados de silogismos empedernidos e literais. Um direito penal político-

criminalmente funcionalizado requer, por definição, atenção a atributos axiológicos e à

magnitude da ofensa aos interesses que protege, quer a título de dano, quer sob a forma de

perigo. O manuseio do sistema jurídico-penal à luz de fins político-criminais não coaduna com

expedientes literalistas e indiferentes à dimensão substancial das normas penais. É confortável

a interpretação literal, mas ela, sozinha, não basta. O contexto da criminalidade

socioeconômica, em que o discurso punitivo se volta mais à censura de meios reprováveis do

que de fins (geralmente lícitos e socialmente incentivados) e atinge estruturas organizadas,

evoca complexidade. Trata-se de uma dinâmica em que se pode subsumir o comportamento

global (divisível em unidades menores) não a uma norma penal, mas a várias, o que suscita a

questão do concurso de crimes, o próprio e impróprio. A superposição de normas penais é,

portanto, uma constante em âmbito socioeconômico; mas cabe atentar que nem sempre há

concurso real.

No segundo capítulo, viu-se que a consunção demoveu o pressuposto da unidade de

ação ou de fato como condição ao reconhecimento da unidade de lei/concurso impróprio. A

consunção evoca, em regra, uma pluralidade de condutas típicas, o que esvazia a discussão

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tradicional referente ao número de comportamentos praticado pelo autor como fator de

distinção entre conflito aparente e concurso efetivo. Menor importância tem também a

discussão sobre o número de resultados/lesões formais. Mais importante é o tratamento

normativo do episódio, com o que se considera o fato global uma unidade delitiva complexa

(subsiste um só crime, não obstante a pluralidade de tipos formalmente preenchidos). Em meio

aos interesses sociais maculados pelo comportamento punível, o intérprete deve identificar

aquele proeminente capaz de absorver as demais normas formalmente incidentes, que doravante

exprimirá o conteúdo de desvalor global do fato. Em não sendo possível essa operação

hermenêutica, caberá reconhecer o concurso próprio e aplicar os injustos penais cumulativa ou

combinadamente (a depender da modalidade de concurso efetivo de que se trate), importando

em tratamento punitivo mais severo. A pluralidade de condutas típicas não é óbice, portanto,

ao fenômeno do conflito aparente de normas, ao contrário da compreensão clássica.

No terceiro capítulo, viu-se que a consunção pode assentar em fundamentos

hermenêuticos e dogmáticos concorrentes, como a regra do non bis in idem, o princípio da

proporcionalidade e, até mesmo, em juízo de insignificância – embora a doutrina majoritária

quase sempre refira apenas o primeiro aspecto. A imposição de se investigar a relação

axiológica entre as normas concorrentes decorre da inclinação do direito penal a finalidades

político-criminais, com destaque à função sistemática reservada ao princípio da lesividade.

Com efeito, a subsunção jurídica envolve necessariamente o exame da dimensão substancial

dos injustos em tese (desvalor de ação e desvalor do resultado), o que reclama análise de

eventual interação axiológica/valorativa entre eles e, portanto, de eventual concurso impróprio.

Em relação ao insuperável subjetivismo imanente a juízos axiológicos, não há solução perfeita.

Resta a fixação de critérios claros para garantir o controle da atividade judicial, devendo-se ter

presente, ainda, a relevância dos grupos de casos.

Na sequência, examinaram-se os critérios da especialidade e da subsidiariedade. Quanto

ao primeiro, pauta-se em relação lógica de subordinação entre os tipos penais em conflito, e é

expresso na ideia de que a norma especial contém todos os elementos da norma geral, mais

alguns elementos singularizantes. A partir do exame abstrato dos injustos, constata-se que um

contém conceitualmente o outro – conclusão de natureza estritamente lógica, não valorativa. A

subsidiariedade, por sua vez, conjuga relação lógica com valorativa. Haverá subsidiariedade

quando um preceito se subordinar ao outro na proteção de um mesmo bem jurídico, sendo que

sua incidência dependerá da não aplicação daquele dito principal, podendo esse caráter residual

ser expresso ou tácito. Ela leva em conta a relação lógico-abstrata entre os tipos penais, mas

repousa, ao contrário da especialidade, na relação de interferência. Essa interferência decorre

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de que as normas em relação de subsidiariedade têm um âmbito de proteção comum de

determinado bem jurídico, sendo que uma preferirá a outra porque ostenta uma mesma

propriedade jurídico-penalmente relevante.

No quarto capítulo, demonstrou-se que a consunção é um mecanismo hermenêutico

eminentemente axiológico/valorativo dependente das relações empíricas verificadas no caso

concreto. Os preceitos em relação consuntiva não se contrapõem por motivos lógicos; com ela

se estabelece a relação material de principal e acessório entre as normas penais, com o

consequente reconhecimento de que o conteúdo de desvalor da norma penal dita dominante ou

principal absorveu ou exauriu o da norma meramente acompanhante, na dinâmica do caso

concreto. Por isso, menor importância tem a diversidade de bens jurídicos tutelados ou o fato

de não ser o crime consunto/absorvido um meio necessário ao crime consumidor. Os casos

clássicos de consunção ocorrem entre normas com objetividades jurídicas distintas e que se

acham em relação de etapa normal e não indispensável (p.ex.: falsidade ideológica e supressão

tributária). À consunção interessa apenas, portanto, se uma das normas pode esgotar o sentido

de desvalor (de ação e de resultado) de outra na dinâmica do caso concreto, levando-se em conta

a conexão empírico-valorativa entre ambas. Se o conteúdo material de um injusto estiver

assinalado em outro, só sobrará a violação pura da proibição ou do mandado plasmados na

norma, que não pode legitimar o castigo penal.

A ideia governante da absorção do ato típico posterior pela norma penal dominante é

também a de que a etapa posterior à consumação do delito principal, embora possua expressão

típica autônoma e eventualmente ofenda outro bem jurídico, não tem outro objetivo senão o de

esgotar o conteúdo proibitivo ou desvalorante do delito, ou seja, exaurir ou aproveitar o crime

já consumado. Assim, o ato típico acompanhante em sentido amplo (concomitante ou

posterior), embora formalmente típico e com identidade própria de desvalor, no caso concreto

perde essa autonomia pela relação de dependência empírica com a conduta principal, operando-

se a condensação valorativa.

Convém, porém, a delimitação de critérios para o reconhecimento da absorção

valorativa. O desvalor da ação e o desvalor do resultado têm papel destacado no exame da

relação material entre os tipos, especialmente porque o injusto requer ofensa efetiva ao bem

jurídico, seja como dano, seja como perigo. Mas além desses elementos, é importante observar

também o princípio da proporcionalidade e o sentido da conduta praticada pelo agente (o

compromisso antijurídico fundamental assumido pelo agente). O reconhecimento da unidade

delitiva complexa (unidade de lei) será produto, portanto, da conjugação de diferentes critérios

valorativos imbricados entre si. A pretensão deste estudo foi de efetuar uma análise inicial e

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provisória de critérios considerados pertinentes, sujeita, naturalmente, a questionamento e

aprofundamento, até porque, se há algo unânime nesse âmbito dogmático é a divergência. Não

obstante, o amadurecimento de critérios não necessariamente impedirá a utilização de

expedientes retóricos para se afastar a consunção em casos nos quais ela poderia ser

reconhecida. A sondagem de marcos hermenêuticos pode permitir algum controle da atividade

judicial, mas não o controle pleno.

Finalmente, no quinto capítulo, ilustrou-se a regra da consunção com algumas hipóteses

no âmbito do direito penal econômico. Os casos extraídos da inteligência jurisprudencial do

Superior Tribunal de Justiça tiveram caráter meramente exemplificativo e foram escolhidos por

sua frequência e porque permitem testar os critérios sugeridos. O primeiro caso analisado

corresponde à relação material entre os crimes de sonegação fiscal (Lei 8.137/90) e de falsidade

ideológica (CP, art. 299), hipótese clássica e paradigmática no âmbito do DPE. Segundo a

jurisprudência, a falsidade é absorvida pela sonegação quando serve integralmente à esta, com

inolvidável acessoriedade teleológica (o desvalor da ação do injusto acompanhante não pode

ser empiricamente explicado sem referência à norma principal). Mas é preciso também – e

principalmente – que o desvalor do resultado do crime acessório esteja totalmente atrelado ao

da norma principal; ou seja, a potencialidade lesiva do ato acompanhante deve se esgotar

totalmente na norma dominante ou, dito de outro modo, exaurir nela seu sentido danoso. Por

fim, observou-se que o crime do art. 1º da Lei 8.137/90 envolve normalmente a prática de

diversas condutas pontuais de sonegação, que não necessariamente consubstanciam crime

continuado entre si (CP, art. 71), pois a ofensa ao bem jurídico admite gradação e, portanto,

franqueia a conclusão de que as várias condutas típicas isoladas semelhantes compõem um todo

unitário normativo, representante de um só crime de supressão fiscal, com prazo prescricional

único, contado da constituição definitiva do crédito fiscal.

O segundo caso corresponde à relação axiológica entre os crimes ambientais dos arts.

48 e 64, ambos da Lei 9.605/98, respectivamente, impedir regeneração natural de vegetação e

construir em solo não edificável sem autorização. O ato típico principal (construir em solo não

edificável) conduz logicamente ao ato típico posterior (impedir regeneração), revelando clara

conexão valorativa (não há como se empreender em local protegido por motivo ecológico sem

ao mesmo tempo bloquear a regeneração natural da vegetação). Estando imbricados o desvalor

de ação e o desvalor de resultado de cada crime, a absorção de um pelo outro (consunção) é de

rigor, inclusive por questão de proporcionalidade. Sem prejuízo, porém, da conexão de desvalor

material entre as normas, pode-se até sustentar interferência lógica entre elas, pois quem

empreende sem autorização necessariamente impede a regeneração da vegetação no local

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existente. Trata-se, portanto, de ato típico colateral logicamente necessário, na medida em que

o crime-fim (edificar em local sob restrição) implica necessariamente no posterior ato

coapenado de impedir regeneração. Observe-se, porém, que essa conclusão é tranquila quando

o solo não pode ser edificado em razão de seu valor ecológico. Se, porém, o solo não admitir

intervenção em razão de seu valor artístico, p.ex., é mais difícil considerar o desvalor do

resultado do crime de edificar sem autorização (art. 64) implicado no de impedir regeneração

(art. 48). Ou seja, a interação de expressão de desvalor dos crimes é mais bem percebida quando

a proibição de edificar se dá por motivo ecológico: destruiu-se a vegetação porque se

empreendeu, e como se empreendeu, obstruiu-se a vegetação. Essa nítida conexão material

deixa de ser evidente quando a obra corrompe, p.ex., o valor histórico ou religioso do local e

ainda por cima agride a flora. A preferência pelo concurso próprio, nessa última hipótese, não

é propriamente a diversidade de bens jurídicos, mas a dificuldade de considerar o desvalor do

resultado de um crime plenamente absorvido no de outro.

O terceiro caso corresponde à relação axiológica entre os crimes do art. 4º e 5º, da Lei

4.792/86, respectivamente, gerir fraudulentamente instituição financeira e apropriar-se ou

desviar ativos de que o agente tenha posse. Essa é uma das hipóteses de concurso mais

controversas. As soluções propostas são as mais variadas. Na jurisprudência do STJ, há julgados

que admitem a consunção e outros que a rejeitam. Se é certo que eventual divergência entre os

bens jurídicos das normas em conflito não compromete o reconhecimento da consunção, não

menos correto que eventual semelhança entre eles facilita o juízo axiológico de condensação

valorativa entre as normas. O bem jurídico supraindividual tutelado pelos crimes previstos na

Lei 7.492/86 é prioritariamente a higidez do sistema financeiro nacional e o paradigma

normativo, a propósito desta finalidade, é o crime de gestão fraudulenta (art. 4º). Embora o

crime de apropriação indébita financeira (art. 5º) tenha como bem jurídico imediato a proteção

do patrimônio de sujeitos determinados, a higidez do sistema financeiro nacional compõe sua

ratio legis. Assim, a proteção do patrimônio particular não deixa de ser um instrumento de

garantia do funcionamento íntegro e regular do sistema financeiro. Além da semelhança de

objetividades jurídicas facilitar o reconhecimento da consunção, o fato de a configuração do

crime de gestão fraudulenta demandar um desvalor do resultado cujos contornos são menos

precisos não significa a impossibilidade de se considerarem eventuais agressões mais sensíveis

ao bem jurídico como desdobramentos ordinários da(s) conduta(s) de perigo abstrato

praticada(s). Vale dizer, embora a configuração desse crime se dê com a prática de conduta(s)

empiricamente perigosa(s) ao bem jurídico, isso não compromete sua aptidão de apreender

materialmente eventuais resultados lesivos previstos como crimes autônomos, tornando-os pós-

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fatos coapenados. O crime de gestão fraudulenta é, afinal, o mais grave da Lei 7.492/86 – isso

aumenta a pertinência da proporcionalidade como subcritério da consunção. Assim, pela regra

da consunção é possível considerar a gestão fraudulenta a norma penal dominante e os

resultados lesivos dela advindos pós-fato coapenados, desde que haja inequívoca conexão de

sentido entre as condutas.

O quarto caso corresponde à relação valorativa entre os crimes do art. 89 da Lei 8.666/93

e do art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei 201/67, respectivamente, ausência ilegal de licitação e

peculato de prefeito. O STJ tem se mostrado refratário ao reconhecimento da consunção. Os

argumentos mais comuns são os de que as objetividades jurídicas dessas normas incriminadoras

são distintas e que o crime de licitação não é meio necessário para a prática do peculato de

prefeito. Contudo, essas objeções, sem referência a critério adicional que indique a

inconveniência de se declarar o desvalor de um crime exaurido em outro, não pode ser suficiente

para se descartar a priori a hipótese de concurso impróprio. Embora os precedentes do STJ não

declarem expressamente, a antipatia à consunção parece decorrer da compreensão de que entre

os crimes vige uma autonomia axiológica plena, que impediria a consideração de um deles

como simples ato acompanhante de outro. Nas entrelinhas, portanto, parece estar a

compreensão de que o desvalor de um não pode se exaurir no de outro pelo potencial lesivo

particular e especialmente grave inerente à cada norma: num caso, a probidade do chefe do

Poder Executivo municipal com impacto na integridade do patrimônio comum; no outro, o

ataque à transparência e à isonomia na disputa por contratos com o Poder Público, a implicar

em favorecimento indevido. Não obstante, o acento patrimonial que a jurisprudência pretoriana

vem conferido ao crime de dispensa ilegal de licitação acaba aproximando-o dos interesses

tutelados pelo crime de peculato de prefeito, o que pavimenta o caminho para o reconhecimento

casuístico do esgotamento do dano social da fraude licitatória no peculato de prefeito. Ou seja,

os atributos de índole patrimonial estipulados pela jurisprudência para a configuração do crime

da lei de licitações acentuam seu pendor pela tutela do patrimônio público, aproximando-o do

objeto de proteção do peculato de prefeito e, pela mesma razão, permitem a condensação do

desvalor de resultado dos injustos. Não obstante, remanesce a questão sobre se convém

considerar na dosimetria penal esse modus operandi mais reprovável – já que o crime meio de

licitação mantém relação lógica de heterogeneidade com o crime principal de peculato. Parece

coerente ajustar a pena à especial gravidade do contexto delitivo, não o suficiente para a

admissão do concurso próprio entre as infrações penais, mas bastante para refletir na pena o

potencial lesivo do ato típico acompanhante descartado. Essa é uma discussão em aberto.

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Analisou-se, também, eventual aptidão absortiva do crime de lavagem relativamente ao

crime antecedente que lhe pressupõe, e vice-versa. A predileção político-criminal atribuída à

lavagem singulariza-a frente às demais figuras penais quando com elas conflitante. Assim,

considerando a intenção do legislador de tornar a lavagem um fato típico autônomo dotado de

gravidade invulgar, é difícil, em princípio, reservar a ela a condição de ato típico acompanhante.

Essa preferência pelo reconhecimento do concurso próprio aumenta, antes de tudo, a pertinência

de se diferenciar a lavagem do simples exaurimento do crime antecedente: o simples proveito

econômico do crime antecedente, sem a intenção de disfarçar a natureza espúria dos ativos, não

caracteriza a figura penal em exame. Após a demarcação da fronteira entre o comportamento

caracterizador de lavagem daquilo que não passa de ato atípico, tem cabimento a reflexão sobre

a consunção da lavagem pelo crime antecedente (e vice-versa). A rejeição (ou aceitação) do

concurso impróprio pode ser melhor explicada sob a perspectiva do específico desvalor da

lavagem (ocultação e dissimulação), à luz de sua peculiar objetividade jurídica. Parece ser o

alcance atribuído ao bem jurídico da lavagem o aspecto decisivo à assimilação material do

conteúdo de desvalor entre as normas concorrentes. Em não se podendo considerar a lavagem

um desdobramento regular, ordinário ou esperado do crime antecedente, por se reputá-la uma

forma de ataque especialmente relevante à administração de Justiça (ou à ordem econômica),

prejudicado estará o reconhecimento do exaurimento de sua potencialidade lesiva no crime

antecedente. É dizer, caso se identifique no bem jurídico da lavagem uma significação de

desvalor transcendente ao objetivo de confisco como, por exemplo, a percepção de que é

essencial à organização social a circulação de ativos lícitos na economia para a preservação da

livre iniciativa e concorrência, p.ex. (atribuindo à lavagem a tutela da ordem econômica,

portanto), então será mais difícil pretender que o desvalor da lavagem seja um mero ato típico

acompanhante, eclipsado pela expressão de desvalor da norma penal principal. Essa forma de

pensar justifica a repressão à autolavagem sob a forma de concurso próprio, pois as condutas

praticadas, apesar da identidade de autoria, revelam expressão de desvalor autônomo (de ação

e de resultado) e lesões qualitativamente independentes. Não obstante, em se adotando

orientação menos hermética quanto ao alcance atribuído à objetividade jurídica da lavagem,

será menos tormentoso o caminho para considerá-la casuisticamente um pós-fato coapenado

(pensando-se, aqui, na autolavagem). Acaso entendida apenas como um reforço ao confisco,

sob a perspectiva de ofensa exclusiva à administração da Justiça (obstrução ao rastreamento do

produto de crime pelas autoridades públicas e ao controle de atividades ilícitas), já não haveria

óbice à consunção; antes o contrário, ela calharia para evitar a dupla reprovação pelo mesmo

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conteúdo de desvalor. Afinal, o confisco estaria atendido com a condenação do mesmo autor

pelo crime antecedente (trata-se de efeito da condenação, nos termos do art. 91, II, do CP).

Por fim, examinou-se a relação entre o crime de corrupção e os delitos socioeconômicos.

Embora seja controversa a consideração da corrupção como um delito socioeconômico

propriamente dito, não se pode negar o intenso intercâmbio entre o bem jurídico administração

pública e as mais variadas atividades econômicas, o que, pelo menos no plano das relações

sociais, conecta o injusto de corrupção com o DPE. Os injustos contra a administração pública

contam com um forte acento político-criminal na questão da obtenção de vantagem indevida a

ensejar perversão entre público e privado. Em paralelo, intensifica-se a convocação do setor

privado a colaborar na luta contra a corrupção com a instituição de programas de prevenção

como o compliance. Esse intercâmbio entre corrupção e delitos socioeconômicos intensifica o

problema dos concursos próprio e impróprio. O STJ tem-se mostrado refratário em reconhecer

a consunção em casos de corrupção. Mas, no âmbito do TRF4, extrai-se a orientação pela

admissão da absorção material do crime de corrupção passiva (CP, art. 317) pelo de facilitação

de contrabando/descaminho (CP, art. 318), por exemplo. No precedente analisado, entendeu-se

pela caracterização do conflito aparente em razão do forte “nexo de dependência” entre as

condutas, com o que se admitiu a interação entre o conteúdo de desvalor dos crimes

concorrentes e, especialmente, a relação de meio e fim entre ambos. Não obstante a importância

do fim perseguido pelo agente, a contraposição das objetividades jurídicas permite identificar

um plus no tocante ao objeto de tutela da figura do art. 318, do CP, o que autoriza a compreensão

de que pode, eventualmente, vir a esgotar o conteúdo de desvalor da corrupção, absorvendo-a

em dado caso concreto. Além da probidade da administração pública, o crime de facilitação de

contrabando/descaminho alcança questões relativas à arrecadação tributária (descaminho) e à

proteção da ordem econômica (contrabando), o que lhe imbui de maior abrangência – a

configuração do injusto do art. 318, do CP, requer o início das ações de descaminho ou de

contrabando. Com efeito, esse delito pode vir a abranger o desvalor de ação e de resultado de

outro crime contra a administração pública, como a corrupção passiva, tal como entendeu o

TRF4 no julgado analisado.

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Turma. Julgado em 15/03/2016. DJe 28/03/2016.

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Turma. Julgado em 20/06/2017. DJe 26/06/2017.

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