Cessar-fogo_parte 2

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DOMINGO, 1 DE FEVEREIRO DE 2015 capa 5 “Morta como se fosse uma criminosa” Para Sônia Vargas Mot- ta, de 55 anos, a ferida ainda está aberta. A mãe de Ha- íssa Vargas Motta, jovem morta pela polícia do Rio de Janeiro em 2014, falou com exclusividade à repor- tagem da Folha Univer- sal . Por telefone, contou que a divulgação do vídeo esclareceu a morte da filha e que a polícia não deve ser desarmada, mas precisa es- tar bem preparada. “O vídeo se espalhou e hoje eu acho que isso foi um mal necessário. Foi uma forma de fazer com que a justiça seja feita. Por- que essa causa não é única. Quantas pessoas trabalha- doras, como a minha filha, perderam as suas vidas? Quantas famílias perderam seus entes queridos?” Antes de assistir às imagens, os pa- rentes sabiam que Haíssa ti- nha morrido em uma ação policial, mas não tinham detalhes sobre o caso. “Nós pensávamos: será que o tiro partiu do policial? Será que foi briga ou tiroteio? A gen- te não sabia. Até então, ha- via uma interrogação.” Para Sônia, a polícia que deveria proteger os cidadãos é a mesma que ainda assusta e mata. “Es- ses policiais precisam ser punidos, têm que perder a farda. A polícia precisa rever os conceitos, mudar muita coisa ali dentro, para que seja possível uma ca- pacitação melhor. Eu en- tendo o trabalho deles, os riscos. Mas não faz parte do trabalho deles matar inocentes. Minha filha foi morta como se fosse uma criminosa. Isso me dói de- mais, porque criei os meus filhos com muito carinho.” serão os gases lacrimogêneo e de pimenta, as balas de borracha e as armas de choque. Em cada Estado do Brasil, a polícia deve- rá adquiri-los e treinar seu efe- tivo para usar prioritariamente esses artefatos”, diz. Crivella destaca que o treina- mento de agentes é fundamen- tal para evitar abusos e mortes. “É importante que os policiais tenham uma formação mais ampla e mais prolongada. Hoje eles se formam em poucos me- ses e são colocados nas ruas para enfrentar situações complexas, de grande perigo.” A secretária Nacional de Se- gurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, afirma que um dos destaques da nova lei é que ela prevê o equilíbrio no uso da força policial. “Se uma pessoa está de- sarmada e não oferece qualquer risco, é quase absurdo o policial sacar uma arma letal. Em contra- partida, seria absurdo obrigar o policial a usar arma de me- nor potencial ofensivo quando alguém está com uma arma de fogo”, opina. Questionada sobre o grande número de mortes provocadas por policiais, Regina nega que a polícia brasileira seja violen- ta, mas admite a necessidade de ajustes. “Nós também temos o aumento de policiais mortos. Estamos em um ciclo vicioso em que a violência gera mais violência. Sem dúvi- da, a polícia precisa de melhores condições para a sua atuação e a Corregedoria deve ser cada vez mais forte para que a gente tire os maus policiais e faça a valorização dos bons po- liciais.” Em 2013, 490 agentes tiveram mortes violentas. O sociólogo e coordena- dor do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Univer- sidade Federal do Para- ná (UFPR), Pedro Bodê, argumenta que nada justi- fica a “taxa vergonhosa de le- talidade da ação policial”. Para ele, a Lei 13.060 pode ajudar a diminuir o número de mor- tes provocadas pela polícia. “O Brasil é um dos países onde a polícia mais mata sem que isso produza o efeito desejado, que seria aumentar a sensação de segurança e diminuir a crimina- lidade. Então, essa lei incentiva no sentido de diminuir a letali- dade”, pondera. Para Bodê, o vídeo da per- seguição que terminou com a morte de Haíssa comprova que a violência durante as ações po- liciais é algo natural para muitos agentes de segurança. “É claro que um policial que trabalha na madrugada tem altos níveis de adrenali- na e precisa se sentir protegido, caso contrário, ele sempre terá res- postas desproporcionais. Mas o vídeo mostra que o policial que baleou o carro estava tranquilo, calmo. Uma violência naturali- zada. As imagens deixam clara a prática de atirar primeiro e perguntar depois”, diz. Banalização e despreparo O 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que, em cinco anos, a polícia brasilei- ra matou mais do que a polícia norte-americana em quase três décadas. Entre 2009 e 2013, o Brasil registrou 11.197 mortes provocadas pelas polícias, en- quanto a polícia dos Estados Unidos matou 11.090 pessoas entre 1983 e 2012. A fundadora e coordena- dora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, reforça que a violência não pode ser banalizada e que a policia não deve perder sua função A arma de eletrochoque (à esq.), também conhecida como pistola taser, e o spray de pimenta são algumas armas de menor potencial ofensivo que devem ser priorizadas pelas polícias de todo o País Sônia Vargas dir.) ao lado de Ironildo da Silva, pai de Haíssa: revolta REPRODUÇÃO ABR DEMETRIO KOCH EXCLUSIVO DIVULGAÇÃO A violência é uma das características da sociedade brasileira, diz especialista Os PMs Marcio José Alves e Delviro Anderson Ferreira, que participaram da ação que causou a morte de Haíssa, tiveram a prisão decretada. Eles são acusados de homicídio duplamente qualificado ARTE: EDER SANTOS

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DOMINGO, 1 DE FEVEREIRO DE 2015 – capa 5

“Morta como se fosse uma criminosa”

Para Sônia Vargas Mot-ta, de 55 anos, a ferida ainda está aberta. A mãe de Ha-íssa Vargas Motta, jovem morta pela polícia do Rio de Janeiro em 2014, falou com exclusividade à repor-tagem da Folha Univer-sal. Por telefone, contou que a divulgação do vídeo esclareceu a morte da fi lha e que a polícia não deve ser desarmada, mas precisa es-tar bem preparada.

“O vídeo se espalhou e hoje eu acho que isso foi um mal necessário. Foi uma forma de fazer com que a justiça seja feita. Por-que essa causa não é única. Quantas pessoas trabalha-doras, como a minha fi lha, perderam as suas vidas? Quantas famílias perderam seus entes queridos?” Antes de assistir às imagens, os pa-rentes sabiam que Haíssa ti-nha morrido em uma ação policial, mas não tinham detalhes sobre o caso. “Nós pensávamos: será que o tiro partiu do policial? Será que foi briga ou tiroteio? A gen-te não sabia. Até então, ha-via uma interrogação.”

Para Sônia, a polícia que deveria proteger os cidadãos é a mesma que ainda assusta e mata. “Es-ses policiais precisam ser punidos, têm que perder a farda. A polícia precisa rever os conceitos, mudar muita coisa ali dentro, para que seja possível uma ca-pacitação melhor. Eu en-tendo o trabalho deles, os riscos. Mas não faz parte do trabalho deles matar inocentes. Minha fi lha foi morta como se fosse uma criminosa. Isso me dói de-mais, porque criei os meus fi lhos com muito carinho.”

serão os gases lacrimogêneo e de pimenta, as balas de borracha e as armas de choque. Em cada Estado do Brasil, a polícia deve-rá adquiri-los e treinar seu efe-tivo para usar prioritariamente esses artefatos”, diz.

Crivella destaca que o treina-mento de agentes é fundamen-tal para evitar abusos e mortes. “É importante que os policiais tenham uma formação mais ampla e mais prolongada. Hoje eles se formam em poucos me-ses e são colocados nas ruas para enfrentar situações complexas, de grande perigo.”

A secretária Nacional de Se-gurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, afi rma que um dos destaques da nova lei é que ela prevê o equilíbrio no uso da força policial. “Se

uma pessoa está de-sarmada e não oferece

qualquer risco, é quase absurdo o policial sacar

uma arma letal. Em contra-partida, seria absurdo obrigar o policial a usar arma de me-nor potencial ofensivo quando alguém está com uma arma de fogo”, opina.

Questionada sobre o grande número de mortes provocadas por policiais, Regina nega que a polícia brasileira seja violen-ta, mas admite a necessidade de ajustes. “Nós também temos o aumento de policiais mortos. Estamos em um ciclo vicioso em que a violência gera mais

violência. Sem dúvi-da, a polícia precisa de

melhores condições para a sua atuação e a Corregedoria deve ser cada vez mais forte para que a gente tire os maus policiais e faça a valorização dos bons po-liciais.” Em 2013, 490 agentes tiveram mortes violentas.

O sociólogo e coordena-dor do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos

Humanos da Univer-sidade Federal do Para-

ná (UFPR), Pedro Bodê, argumenta que nada justi-

fi ca a “taxa vergonhosa de le-talidade da ação policial”. Para ele, a Lei 13.060 pode ajudar a diminuir o número de mor-tes provocadas pela polícia. “O Brasil é um dos países onde a polícia mais mata sem que isso produza o efeito desejado, que seria aumentar a sensação de segurança e diminuir a crimina-lidade. Então, essa lei incentiva no sentido de diminuir a letali-dade”, pondera.

Para Bodê, o vídeo da per-seguição que terminou com a morte de Haíssa comprova que a violência durante as ações po-liciais é algo natural para muitos agentes de segurança. “É claro que um policial que trabalha na madrugada tem altos níveis

de adrenali-na e precisa se

sentir protegido, caso contrário,

ele sempre terá res-postas desproporcionais. Mas o vídeo mostra que o policial que baleou o carro estava tranquilo, calmo. Uma violência naturali-zada. As imagens deixam clara a prática de atirar primeiro e perguntar depois”, diz.

Banalização e despreparoO 8º Anuário Brasileiro de

Segurança Pública revela que, em cinco anos, a polícia brasilei-ra matou mais do que a polícia norte-americana em quase três décadas. Entre 2009 e 2013, o Brasil registrou 11.197 mortes provocadas pelas polícias, en-quanto a polícia dos Estados Unidos matou 11.090 pessoas entre 1983 e 2012.

A fundadora e coordena-dora do movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, reforça que a violência não pode ser banalizada e que a policia não deve perder sua função

A arma de eletrochoque (à esq.), também conhecida como pistola taser, e o spray de pimenta são algumas armas de menor potencial ofensivo que devem ser priorizadas pelas polícias de todo o País

Sônia Vargas (à dir.) ao lado de Ironildo da Silva, pai de Haíssa: revolta

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A violência é uma das características da sociedade brasileira, diz especialista

Os PMs Marcio José Alves e Delviro Anderson Ferreira, que participaram da ação que causou a morte de Haíssa, tiveram a prisão decretada. Eles são acusados de homicídio duplamente qualifi cado

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