Chagas 2008 Gilberto e Willy

12
1 Gilberto e Willy: ética e estética Paulo C. Chagas University of California, Riverside 1. Wittgenstein, ética e estética O compositor é julgado pela sua obra e não pela vida. Nesse aspecto, ele não se distingue dos demais artistas da sociedade – pintores, escritores, dançarinos, etc. A biografia, a personalidade e as atividades de um artista são importantes na medida em que ajudam a iluminar os contextos da criação – histórico, geográfico, social, cultural, etc. Entretanto, é a obra que permanece como referência. A ética e a estética são uma coisa só, foi o que afirmou Wittgenstein no Tratado Lógico Filosófico (1971). Este livro, escrito durante a Primeira Guerra Mundial, revolucionou a filosofia. Vamos examinar aqui o que Wittgenstein está querendo dizer com esta afirmação. O que seria a ética para Wittgenstein? Normalmente, considera-se que a ética é a forma como deveríamos agir, a atitude que deveríamos adotar em relação aos outros, às nossas próprias vidas e a tudo o que acontece conosco. Segundo este ponto de vista, a ética não pode ser radicalmente desassociada da política e das questões sociais de uma forma mais ampla. A ética serviria assim para avaliar tal ou tal pessoa, em tal ou tal condição, com tal ou tal caráter e tal ou tal posição social. Ou seja, a ética distinguiria um ser humano no turbilhão de todos os fatos e todas as coisas. Porém, ao afirmar que a ética e a estética são idênticas, Wittgenstein não está se referindo ao conceito transcendental de ética. Seu raciocínio é o seguinte: o objeto da estética é a obra de arte, o objeto da ética é a boa vida. (Vale dizer que o termo “boa vida” tem aqui um sentido filosófico, e não, é claro, o sentido coloquial de “boa vida” na língua portuguesa.) A atitude estética significa que eu estou observando um objeto de arte em relação a um todo e não em referência a alguma coisa específica como, por exemplo, em

description

pdf

Transcript of Chagas 2008 Gilberto e Willy

Page 1: Chagas 2008 Gilberto e Willy

1

Gilberto e Willy: ética e estética

Paulo C. Chagas

University of California, Riverside

1. Wittgenstein, ética e estética

O compositor é julgado pela sua obra e não pela vida. Nesse aspecto, ele não se distingue

dos demais artistas da sociedade – pintores, escritores, dançarinos, etc. A biografia, a

personalidade e as atividades de um artista são importantes na medida em que ajudam a

iluminar os contextos da criação – histórico, geográfico, social, cultural, etc. Entretanto, é

a obra que permanece como referência.

A ética e a estética são uma coisa só, foi o que afirmou Wittgenstein no Tratado Lógico

Filosófico (1971). Este livro, escrito durante a Primeira Guerra Mundial, revolucionou a

filosofia. Vamos examinar aqui o que Wittgenstein está querendo dizer com esta

afirmação. O que seria a ética para Wittgenstein? Normalmente, considera-se que a ética

é a forma como deveríamos agir, a atitude que deveríamos adotar em relação aos outros,

às nossas próprias vidas e a tudo o que acontece conosco. Segundo este ponto de vista, a

ética não pode ser radicalmente desassociada da política e das questões sociais de uma

forma mais ampla. A ética serviria assim para avaliar tal ou tal pessoa, em tal ou tal

condição, com tal ou tal caráter e tal ou tal posição social. Ou seja, a ética distinguiria um

ser humano no turbilhão de todos os fatos e todas as coisas.

Porém, ao afirmar que a ética e a estética são idênticas, Wittgenstein não está se referindo

ao conceito transcendental de ética. Seu raciocínio é o seguinte: o objeto da estética é a

obra de arte, o objeto da ética é a boa vida. (Vale dizer que o termo “boa vida” tem aqui

um sentido filosófico, e não, é claro, o sentido coloquial de “boa vida” na língua

portuguesa.) A atitude estética significa que eu estou observando um objeto de arte em

relação a um todo e não em referência a alguma coisa específica como, por exemplo, em

Page 2: Chagas 2008 Gilberto e Willy

2

relação a si próprio. A atitude ética significa observar a “boa vida” também como um

todo, e não como uma possível forma de vida com um corpo específico, uma história

específica, um futuro – e tudo o que um indivíduo pode querer e desejar. A atitude ética

implica em considerar a vida como algo não específico que está incorporado em todas as

vidas.

Mas, como a vida e mundo não podem ser separados, ética e estética são, portanto, uma e

só coisa, afirma Wittgenstein. A influência de Schopenhauer fica evidente quando ele diz,

por exemplo, que a vida é simplesmente o mundo enquanto objeto da vontade. E é

através dessa vontade que se definem os predicados éticos. A ética refere-se uma vontade

que não está no mundo e sobre a qual não se pode falar. Ao contrário do que se considera

normalmente, a ética não determina como deveríamos agir, que atitudes deveríamos

tomar em relação aos outros, às nossas vidas e ao que acontece conosco. A ética não se

refere a um único ser humano no turbilhão dos fatos e das coisas.

A atitude ética que temos de tomar em relação às nossas vidas, aos outros e a tudo o que

acontece é a de aceitação. Wittgenstein afirma que devemos “ser felizes” com nós

mesmos. Mas este “ser feliz”, aqui, não é um convite ao hedonismo ou ao misticismo. O

mundo é independente da minha vontade. É um objeto de uma vontade alienada de mim.

O ser humano está sempre tomando atitudes específicas em relação às pessoas e às coisas

que, na concepção mais generalizada de ética, são contextuais. Porém, a atitude à qual se

refere Wittgenstein não é o comportamento em relação a isto ou aquilo, mas em relação a

um todo. É a atitude de ser feliz apesar da miséria do mundo, porque esta pertence ao

domínio do particular. A vida que é feliz tem a atitude certa para o mundo como um todo,

independente do que seja o mundo.

2. Willy e Gilberto, uma experiência pessoal

Voltando à questão que postulamos no início: portanto, o que seriam – à luz dessa

concepção de Wittgenstein – a ética e a estética de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de

Oliveira? Seguindo Wittgenstein, falar da ética e da estética de Gilberto e Willy seria

Page 3: Chagas 2008 Gilberto e Willy

3

referir-se a uma única e só coisa. A ética remete à estética e vice-versa. Entretanto, apesar

do seu caráter positivista, o Tratado de Wittgenstein diz, claramente, na sua última

sentença, que não se pode falar do que realmente é importante. Ou seja, falar da ética e

estética de Gilberto e Willy seria simplesmente calar e deixar que a música fale for si só.

É o que faremos aqui. Vamos apontar alguns fatos e experiências e buscar na própria obra

as referências éticas e estéticas.

Quero deixar claro que não estou preocupado em avaliar Gilberto Mendes e Willy Corrêa

de Oliveira, e sim iluminar as suas presenças no mundo, particularmente, suas

contribuições como artistas e criadores. Certamente não teria me aventurado a uma

abordagem dessa natureza se não tivesse uma experiência pessoal e, de certa forma,

bastante próxima, tanto com Willy quanto com Gilberto. E, além disso, não empreenderia

tal reflexão se não nutrisse uma grande admiração e gratidão por ambos.

Willy Corrêa de Oliveira teve um impacto significante na minha formação musical. Não

apenas fui seu aluno de composição no Departamento de Música da Universidade de São

Paulo (USP), entre 1973 a 1979, como também considero-o o mais importante mentor

musical da minha carreira de compositor. Em 1980, instigado por Willy, embarquei para

uma nova etapa de aprendizado e aventuras profissionais fora do Brasil. Primeiramente

instalei-me na Bélgica, em seguida na Alemanha e, desde há alguns anos, vivo nos

Estados Unidos. Este processo distanciou-me naturalmente do meu ex-professor. Perdi

praticamente o contato pessoal com o Willy, mas continuei acompanhando os seus passos

e ouvindo a sua música, sempre que possível.

Conheci Gilberto Mendes nos meus tempos de aluno da USP. Porém, naquela época, o

meu contato com ele foi apenas esporádico. Mas aos poucos, mesmo de longe,

começamos a construir uma relação de amizade e interesse mútuo, a partir de encontros,

visitas e conversas. Ao contrário do que ocorreu com Willy, a minha relação com o

Gilberto intensificou-se ao longo dos anos, o que explica uma familiaridade maior com as

suas atuais idéias e posições. Sempre que venho ao Brasil vou visitá-lo em Santos e

Page 4: Chagas 2008 Gilberto e Willy

4

retorno com a memória de suas palavras e narrativas sobre música, arte, política e muitos

outros temas.

3. Estética: continuidade e ruptura

As trajetória de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira revelam um processo

contínuo de reelaboração que se manifesta no conjunto de suas obras musicais e em suas

atitudes no mundo. Nesse processo, podemos detectar algumas similaridades, mas

também diferenças. De uma forma geral, podemos dizer que tanto Gilberto quanto Willy

percorreram um caminho que vai da exaltação à negação da estética da música

contemporânea de “vanguarda”. Entretanto, a forma como isto aconteceu foi diferente

para cada um dos compositores.

A estética de Gilberto Mendes caracteriza-se por assimilar novos elementos que vão

transformando a sua linguagem musical de forma não-linear, não-direcional, e criam uma

diversidade estética. As transformações são movimentos que oscilam para diferentes

direções, com idas e vindas para o passado e o futuro. Parafraseando o título de uma

própria peça de Gilberto, podemos dizer que a sua música é um constante vai-e-vem.

Na estética de Willy Corrêa de Oliveira, constatamos também a busca de novos

elementos que são, porém, assimilados de forma mais brusca e abrupta. Em Willy, há

uma forte tendência à ruptura através de uma dialética de negação/afirmação: negação do

que foi dito anteriormente e afirmação de novos rumos e idéias. No longo prazo, esta

dialética conduz a um processo de síntese, na medida em que idéias do passado retornam

– de forma filtrada e reelaborada – e se incorporam ao presente.

Se tentarmos representar essa diferença fundamental entre Gilberto e Willy em termos de

forma musical, podemos dizer que a evolução de Gilberto Mendes é um processo de

variação no qual os temas vão surgindo sem um programa aparente, e causando

transformações sutis e recorrentes. A estética de Gilberto Mendes consegue articular e

conciliar elementos distintos e heterogêneos em uma mesma estrutura.

Page 5: Chagas 2008 Gilberto e Willy

5

Já a estética de Willy Corrrea de Oliveira opta pelo contraste e a oposição como

princípio. Os temas revelam conflitos que, no primeiro instante, parecem ser

inconciliáveis. Os materiais se sucedem como se tivessem negando uns aos outros.

Entretanto, os elementos contrastantes vão se diluindo no processo global de

desenvolvimento e, no final das contas, as diferenças passam a fazer parte de uma mesma

estrutura.

Resumindo: a estética do Gilberto revela uma preocupação em desenvolver uma

continuidade através da assimilação de novos elementos. A estética do Willy opera por

contrastes e oposições que são assimilados e integrados no âmbito da forma global.

4. Ouvindo a música de Willy e Gilberto

Os 3 Instantes para piano, de 1977, têm um caráter simbólico na produção de Willy

Corrêa de Oliveira. São três peças curtas que desenvolvem uma forma ABA – tanto ao

nível de cada uma das peças como em relação ao todo – e uma reflexão sobre a questão

da memória. A forma ABA e a memória são dois motores de criação na música de Willy.

Ele considera que a forma ABA é o protótipo de toda a forma musical. No seu curso de

composição, Willy desenvolvia um diálogo com a sua própria memória musical,

mostrando e analisando para os seus alunos a música de seus compositores prediletos:

Chopin, Schumann, Mozart, Beethoven, Schoenberg, etc.

No Instante 1 (A), ouvimos citações da Schumann (Phantasiestuck), Liszt e Mozart. A

música desenvolve uma polifonia de caráter lírico, combinando diferentes citações. No

Instante 2 (B), ouvimos a repetição obsessiva de uma seqüência de notas rápidas que é

executada três vezes com alterações de ataques, pedalizações, oitavas, etc. No Instante 3

(A), ouvimos a reexposição do Instante 1, onde repercute a explosão de pela energia do

Instante 2. Os 3 Instantes são uma obra sobre a memória musical de Willy na década de

1970, período que tive a oportunidade de presenciar. Posteriormente, Willy iria buscar

inspiração em outras regiões de sua memória, por exemplo, resgatando melodias que

Page 6: Chagas 2008 Gilberto e Willy

6

ouviu na sua infância em Recife, como os hinos de sua formação protestante. Mas esse

processo não vivi pessoalmente, só através de relatos.1

Vento Noroeste (1982/84), obra para piano de Gilberto Mendes desenvolve um tecido de

lembranças e referências musicais. A cidade de Santos marca a memória musical de

Gilberto: o mar, a natureza, o vento, etc. Gilberto deixa-se levar pelo fluxo das ondas e

sopros. A memória é menos uma obsessão do que um porto seguro para projetar-se no

mundo. Gilberto Mendes utiliza técnicas de composição inspiradas do serialismo; cria

motivos como arpeggios, acordes, ornamentações que oscilam entre harmonias tonais,

pseudo-tonais e dissonâncias que lembram o jazz, o foxtrot e outros universos da música

norte-americana. Em Vento Noroeste, esses materiais se alternam de forma recorrente e

variada em uma estrutura narrativa não-linear, que sugere a forma de um mosaico. Os

materiais são sobretudo justapostos; não há praticamente sobreposições. Vento Noroeste

desenvolve mais uma homofonia do que propriamente uma polifonia.

A poesia tem uma grande influência na música de Gilberto Mendes. Vento Noroeste

desenvolve uma narrativa de rimas sonoras que, na minha opinião, é inspirada na poesia

brasileira. Gilberto sempre dialogou com os poetas – sobretudo os seus amigos poetas da

Poesia Concreta. A música expressa a poesia do vento, seus sussurros e ondulações. O

vento também faz mover as ondas do mar. Portanto, ao mesmo tempo em que fala do

vento, a música fala também do mar. O mar de Santos e o porto, de onde partem e

chegam os navios. Não é preciso sair do porto para percorrer o mundo, pois o mundo vem

ao porto. A música de Gilberto Mendes assimila qualquer influência. Em Vento Noroeste

há uma influência do minimalismo norte-americano. Por exemplo, ao longo de toda a

obra, aparecem motivos que se repetem e se alternam formando ondulações. Porém, esses

elementos nunca se desenvolvem continuamente; eles se integram ao fluxo poético de

rimas sonoras, entrecortados por pausas, cortes, suspiros, suspensões, etc.

1 Os 3 Instantes sintetizam também a colaboração com o pianista Caio Pagano, que foi professor de piano

do Departamento de Música da ECA na década de 1970, e ao qual Willy esteve intimamente ligado. Foi

Caio Pagano quem estreou a obra em concerto e gravou-a em CD.

Page 7: Chagas 2008 Gilberto e Willy

7

5. Ética: da Música Nova à morte da música contemporânea

Nas trajetórias de Gilberto e Willy, observamos atitudes ambíguas e contraditórias sobre

o papel da arte no sistema capitalista. Em 1963, eles encabeçavam o grupo de

compositores que assinou o Manifesto Música Nova. Este documento tornou-se uma

referência histórica para o estudo da música erudita brasileira na segunda metade do

século XX. O Manifesto propunha, entre outros, uma reavaliação positiva dos emergentes

meios de comunicação e informação da sociedade de consumo industrial e pós-industrial.

Os jovens compositores, poetas e artistas exaltavam as mídias tecnológicas como o

cinema, a televisão, a propaganda, o design, etc. Essas mídias, segundo eles, abririam

novas perspectivas para a criação artística e musical.

Apesar do seu caráter de ruptura, na minha opinião, o Manifesto Música Nova representa

uma continuidade das idéias do Modernismo brasileiro, da primeira metade do século

vinte. Uma das características fundamentais do movimento modernista, do ponto de vista

musical, foi o anseio de superar a dialética internacional/nacional. Como apontou Mário

de Andrade, nos seus inúmeros textos sobres música, a música erudita brasileira, assim

como a arte e a cultura como um todo, sempre oscilou entre a afirmação de elementos

internos ou a assimilação de elementos externos. Esta dialética continua sendo uma

marca significativa do nosso comportamento estético. Hoje, na era da economia

globalizada e das redes de comunicação e informação, esta dialética assume novas

conotações como, por exemplo, a oposição global/local. Mas, o cerne da questão

permanece o mesmo.

No início da década de 1960, os compositores que assinaram o Manifesto Música Nova

estavam preocupados em inserir a música brasileira no contexto internacional da

chamada Música Nova que desenvolveu-se na Europa e Estados Unidos, após a Segunda

Guerra Mundial. Este movimento da música européia ficou conhecido no Brasil como

música de “vanguarda”, lembrando que esta conotação não é relevante na Europa. Em

1962, Gilberto e Willy participaram dos Cursos de Verão de Darmstadt, Alemanha. Eles

Page 8: Chagas 2008 Gilberto e Willy

8

perceberam aí diversas tendências como, por exemplo, a música aleatória e a música

eletroacústica, que trouxeram na sua bagagem de regresso ao Brasil. Mas, ao mesmo

tempo, eles sempre trataram de buscar caminhos próprios, associando-se a movimentos

locais, tais como o da Poesia Concreta. Como bem assinalou Gilberto Mendes, eles

tinham a convicção de que precisavam construir “uma linguagem musical particular e não

seguir as linguagens dos outros” (MENDES, 1994, p. 70).

Portanto, ao mesmo tempo em que queriam assimilar os elementos da “vanguarda”

européia, os compositores do Grupo Música Nova esforçavam-se em contextualizá-los na

cultura brasileira. Como afirma Gilberto Mendes,

“foram realmente os primeiros [compositores] a fazer música aleatória,

microtonal, música estruturada parâmetro por parâmetro segundo os

princípios do serialismo integral, não periódica, não discursiva, música

com a introdução do ruído no contexto sonoro (o ruído elevado à categoria

de som, de objeto musical, vale dizer, música concreta e/ou eletrônica),

com a utilização dos mixed media (como eram chamados então,

liquidificadores, aspiradores de pó, televisores, etc.), do gesto e da ação

musical como teatro (a serem encarados e desenvolvidos como tal, como

teatro musical), de novos grafismos, abolindo a notação musical

tradicional (falávamos em design para nossas obras), música com a

participação do ouvinte na sua execução, e música “programada” em

computador [etc., etc, etc.] … “ (MENDES, 1994, p. 80)

No Manifesto Música Nova, constatamos um paradoxo que marcaria profundamente o

discurso de inspiração marxista de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira. Assim

como a classe operária se apoderaria da infra-estrutura econômica da sociedade – os

chamados os meios de produção –, os compositores estavam convencidos de que a ênfase

na invenção e na experimentação levaria à conquista da super-estrutura cultural da

sociedade – os meios de comunicação de massa como o rádio, a tevê, a propaganda, etc.

Inspirado, entre outros, na estética do poeta russo Vladimir Maiakosvki (1893-1930), o

Page 9: Chagas 2008 Gilberto e Willy

9

Manifesto acreditava no poder de transformação da arte através de uma forma

revolucionária. A mensagem do Manifesto era de que “sem forma revolucionaria não há

arte revolucionária.” A arte revolucionária conquistaria o poder através da mídia,

contribuindo assim para libertar o ser humano da opressão do capitalismo.

É interessante observar como essas idéias do Manifesto eram também, de certa forma,

influenciadas pela Arte Pop. Mas, ao mesmo tempo em que os compositores se deixaram

seduzir pela mass media, pela perspectiva de inserir a música erudita nas estruturas da

comunicação de massa e ampliar assim o seu público, eles não captaram, na época, a

dramática transformação dos objetos artísticos, que ocorreu na primeira metade do século

vinte, e que foi impulsionada justamente pelo movimento da Arte Pop. O significado

essencial da Arte Pop, conforme assinalou o sociólogo francês Baudrillard, é ter reduzido

o objeto artístico a um objeto sem significação. Enquanto que, no passado, o objeto

artístico estava revestido de valores morais e psicológicos, com uma aura espiritual e

antropomórfica, a Arte Pop transformou os objetos de arte em objetos homogêneos,

produzidos em série e em escala industrial. A Arte Pop, incluindo a música pop que

impôs-se como modelo do mercado fonográfico, reflete assim a lógica da sociedade

contemporânea, pós-moderna. O objeto artístico perde a sua profundidade, sua

perspectiva, seu poder de evocação; o artista deixa de ser o criador ativo de significados e

críticas.

Dentro dessa perspectiva, a arte torna-se uma mera simulação: de imagens, sons, corpos e

objetos do mundo contemporâneo. A lógica de produção de objetos de arte torna-se um

exemplo contundente de como os objetos são organizados como um sistema de signos na

sociedade de consumo. Assim, é uma ingenuidade acreditar que a arte tem a função de

reelaborar o mundo, de proporcionar novas maneiras de ver o mundo, de mediar o acesso

à realidade. A arte está sujeita às mesmas regras do sistema de significação das demais

mercadorias da sociedade capitalista; ela segue os mesmos códigos de moda, de

marketing e valor de mercado. Esses valores eliminam a capacidade da arte de exercer a

crítica. Baudrillard argumenta contra Adorno e outros teóricos da cultura revolucionária,

Page 10: Chagas 2008 Gilberto e Willy

10

ao afirmar que a arte perdeu a sua função crítica e negativa. A arte tornou-se um “jogo de

peças” da tradição, um jogo de combinação de “vestígios do passado”.

Embora eu não concorde inteiramente com o pessimismo de Baudrillard, é inegável que

temos aqui uma visão polêmica e aguçada da transformação do papel da arte na sociedade

contemporânea. É interessante observar como esta transformação afetou os compositores

Willy Corrêa de Oliveria e Gilberto Mendes, de maneiras diferentes.

6. Willy e a trans-estética:

Willy Corrêa de Oliveira desenvolveu um discurso de rejeição radical ao capitalismo. Ele

refugiou-se no isolamento como uma forma de redenção do artista na sociedade

capitalista. Willy afirma, por exemplo:

“Por não haver uma língua musical erudita falada no capitalismo – porque

o aprendizado da linguagem musical revela-se custoso e de inepta e inútil

aplicação no MERCADO: é que não temos como nos comunicar. Nem o

público como entender. Pobres simulações de compreensibilidades são

desperdiçadas quando IMITAÇÕES (quase sempre grosseiras) do

PASSADO são dispostas para o engodo geral. No capitalismo, presente é

só o Mercado. E a arte não se reduz a mercadoria: Pode até ser tocada por

Midas mas não se deixa reduzir. Arte se fazendo passar por mercadoria

não ultrapassa a mentira do dinheiro: o preço pago e só.” (OLIVEIRA,

2006, páginas não numeradas)

Vejamos outra afirmação de Willy: “Viver sob o capitalismo para mim é uma

condenação. O exílio voluntário foi a única maneira de possível sobrevivência que

encontrei.” (OLIVEIRA, 2006) E mais esta frase: “O capitalismo é um deserto tedioso:

em vez de vento e areias, lucros e logros.” (OLIVEIRA, 2006)

Page 11: Chagas 2008 Gilberto e Willy

11

Apesar da aparente ferocidade, auto-flagelação e seu caráter nostálgico, a posição

assumida por Willy projeta uma visão de artista absolutamente compatível com a lógica

do capitalismo. A rejeição à arte como mercadoria e a opção pelo exílio são, sobretudo,

simulações do real. Willy manipula conscientemente os processos de simulação da

sociedade capitalista, criando para si próprio uma hiper-realidade de pastiches e modelos,

que legitimam o seu status privilegiado de artista e compositor. O criador messiânico,

agindo isoladamente e lançando-se contra os moinhos de vento do deserto capitalista, cria

um espaço que Baudrillard chamou de “trans-estética”. É uma esfera de criação no qual

tudo se torna possível, tudo adquire um valor de mercadoria, até mesmo o próprio

isolamento do artista. Criticar a falta de comunicação, a ausência de uma linguagem

comum, é também uma forma de se comunicar, é uma forma eficaz de atrair seguidores

para uma causa aparentemente política, uma forma de manipular a mídia e criar novos

significados.

A proliferação de simulações, que perderam toda a sua relação com o real, é a

característica da sociedade contemporânea. Na sociedade capitalista, as simulações se

sobrepõem ao deserto do real. A Disneylândia impôs-se como paradigma, substituindo o

poder da arte como aventura, negação da realidade, redenção de ilusões, etc. Willy

restituiu este poder ao criar a ilusão do artista auto-exilado. Ao combater a

comercialização da arte, ele materializou a dimensão estética da não-comercialização,

transformando a sua própria imagem de resistente anti-capitalista em um signo a ser

consumido no capitalismo pós-moderno.

7. Gilberto e a escuta

A exemplo de Baudrillard, os profetas do fim da arte, com o seu pessimismo e sua

obsessiva repetição de idéias pré-estabelecidas, acabam contaminando os artistas e

gerando um processo niilista que desvaloriza o pensamento critico e a investigação. É

indiscutível que a cultura de massas, as novas tecnologias digitais e as novas formas de

comunicação e expressão social e cultural estão transformando a arte e a estética. E são

justamente essas transformações que requerem uma investigação mais profunda.

Page 12: Chagas 2008 Gilberto e Willy

12

Precisamos de novas perspectivas, novas teorias e análises. Negar apenas o valor da arte

na sociedade de consumo bloqueia o pensamento, anula o esforço que devemos

empreender. É preciso ir além das atitudes provocativas, é preciso desenvolver novas

teorias e visões sobre a estética e as práticas artísticas.

Encerrando esta minha reflexão sobre ética e estética, gostaria de colocar duas questões

que me parecem fundamentais, neste momento:

(1) é necessário investigar as múltiplas e complexas relações entre música e

entretenimento;

(2) é necessário investigar o significado musical não apenas do ponto de vista do criador

mas, sobretudo, do ponto de vista do ouvinte. É preciso dialogar com o ouvinte, da

mesma forma que devemos estabelecer um diálogo entre os criadores.

Como disse Gilberto Mendes, a propósito de Eisler e Brecht: “Eu imprimo o significado

que quero às coisas que ouço. Nunca entendi essa coisa de evitar o sentimental, o

entretenimento […]. A arte deve instruir e entreter, já dizia Aristóteles. Como invenção,

maquinação de vanguarda, até que é um grande achado, a idéia do distanciamento, uma

das maiores jogadas do teatro do século XX. Mas reprimir o sentimento é mais coisa de

alemão, que acha que ter sentimento é sinal de fraqueza, como pensavam os nazistas

(MENDES, 1994, p. 170).”

Referências

Baudrillard, Jean (1994). The Transparency of Evil. London: Verso. ________(1994). Simulacra and Simulation. Ann Arbor: The University of Michigan

Press. Oliveira, Willy Corrêa de (2006). O Presente. São Paulo: Água Forte (CD booklet). Mendes, Gilberto (1994). Uma Odisséia Musical. São Paulo: Editora da Universidade de

São Paulo. Wittgenstein, Ludwig (1971). Philosophische Untersuchungen. Frankfurt am Main:

Suhrkamp.