CHARTIER, Roger. a Mão Do Autor Arquivos Literários, Crítica e Edição

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A måo do autor: arquivos literários, crítica e edição 7 1 Este texto foi originalmente apresentado como conferência de abertura [keynote lecture] no se- minário Vidas Póstumas: Arquivos Literários no Século XXI, que teve lugar na University of Pennsylva- nia, de 19 a 21 de março de 2009. A mão do autor: arquivos literários, crítica e edição 1 Roger Chartier (tradução: Antonio Herculano Lopes) O ponto de partida desta reflexão é a frase inicial que define o objetivo do Deutsches Literaturarchiv Marbach: “O arquivo se destina a coletar, catalogar e processar todos os tipos de documen- tos relacionados à literatura alemã moderna (de 1750 ao presente)”. Daí, a minha pergunta: por que 1750? Os arquivos literários fran- ceses e britânicos, em parte inspirados no exemplo de Marbach, não ajudam a responder essa questão de modo direto, pois escolheram deliberadamente se concentrar nos registros dos séculos XIX e XX. É o caso do Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (Imec), fundado em 1988 com o objetivo de “reunir, preservar e explorar os arquivos dos diferentes atores ligados à publicação e à criação esté- tica”. As coleções do Imec, guardadas e consultadas desde 1998 na abadia de Ardenne, perto de Caen, consistem, sobretudo, de duas séries de registros: 66 arquivos de editores, os mais velhos dos quais são os de Hachette, Hetzel ou Flammarion – todos do século XIX –, e 238 arquivos de autores, do século XX (com a exceção de Claude Bernard). A mesma ênfase nos séculos XIX e XX caracteriza as duas co- leções de Registros de Editoras e Tipografias Britânicas e de Pa- péis de Autor, mantidas entre as coleções especiais da biblioteca da University of Reading, e das quais o arquivo mais espetacular é a coleção Beckett, com mais de 600 manuscritos ou textos datilogra- fados do autor. Com base nos casos britânico e francês, a resposta para a minha pergunta inicial seria simples: os arquivos de literatu- ra moderna abrigam e preservam documentos que anteriormente

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Transcript of CHARTIER, Roger. a Mão Do Autor Arquivos Literários, Crítica e Edição

  • A mo do autor: arquivos literrios, crtica e edio

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    1 Este texto foi originalmente apresentado como conferncia de abertura [keynote lecture] no se-minrio Vidas Pstumas: Arquivos Literrios no Sculo XXI, que teve lugar na University of Pennsylva-nia, de 19 a 21 de maro de 2009.

    A mo do autor: arquivos literrios, crtica e edio1

    Roger Chartier (traduo: Antonio Herculano Lopes)

    O ponto de partida desta reflexo a frase inicial que define o objetivo do Deutsches Literaturarchiv Marbach: O arquivo se destina a coletar, catalogar e processar todos os tipos de documen-tos relacionados literatura alem moderna (de 1750 ao presente). Da, a minha pergunta: por que 1750? Os arquivos literrios fran-ceses e britnicos, em parte inspirados no exemplo de Marbach, no ajudam a responder essa questo de modo direto, pois escolheram deliberadamente se concentrar nos registros dos sculos XIX e XX. o caso do Institut Mmoires de ldition Contemporaine (Imec), fundado em 1988 com o objetivo de reunir, preservar e explorar os arquivos dos diferentes atores ligados publicao e criao est-tica. As colees do Imec, guardadas e consultadas desde 1998 na abadia de Ardenne, perto de Caen, consistem, sobretudo, de duas sries de registros: 66 arquivos de editores, os mais velhos dos quais so os de Hachette, Hetzel ou Flammarion todos do sculo XIX , e 238 arquivos de autores, do sculo XX (com a exceo de Claude Bernard).

    A mesma nfase nos sculos XIX e XX caracteriza as duas co-lees de Registros de Editoras e Tipografias Britnicas e de Pa-pis de Autor, mantidas entre as colees especiais da biblioteca da University of Reading, e das quais o arquivo mais espetacular a coleo Beckett, com mais de 600 manuscritos ou textos datilogra-fados do autor. Com base nos casos britnico e francs, a resposta para a minha pergunta inicial seria simples: os arquivos de literatu-ra moderna abrigam e preservam documentos que anteriormente

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    no tinham sido levados em considerao por arquivos tradicionais. Eles salvam um patrimnio precioso de registros e papis modernos, ignorado por arquivos nacionais ou regionais; quem o preservava eram editores e escritores.

    Mas a data de 1750 permanece intrigante, porque levanta uma questo distinta: teria sido possvel construir arquivos literrios para a fase inicial dos tempos modernos? Registros de editores e tipografias dos trs primeiros sculos posteriores inveno de Gutemberg so de fato excepcionais, da mesma forma que manuscritos de autores. Essa ausncia tem preocupado a crtica gentica, dedicada a seguir o processo criativo que leva ao texto publicado e a estudar registros mltiplos: esboos e planos do trabalho, notas e documentos, sries de rascunhos, provas corrigidas. Tal perspectiva crtica pressupe que traos dos diferentes estgios do processo criativo tenham sido mantidos geralmente pelo prprio autor. Podemos lembrar o desejo expresso por Flaubert em carta a Louise Colet datada de 3 de abril de 1852: Se ao menos os meus manuscritos durarem tanto quanto eu, tudo o que eu quero. Eu os faria enterrar junto comigo, como um selvagem faz com o seu cavalo.Mas ser que a crtica gentica s possvel para os sculos XIX e XX, na medida em que autores como Flaubet, Zola ou Proust deixaram a srie de traos que permitem aos crticos ir do autor ao escritor, do que foi escrito escrita em si, da estrutura ao processo, do trabalho sua gnese, como Pierre-Marc de Biasi escreveu para definir o programa da disciplina?

    1. Tal questo levou busca de manuscritos de autor anteriores ao sculo XIX. Os achados no so to raros para os autores fran-ceses do sculo XVIII. Rascunhos autgrafos com cortes, correes, alteraes ou anotaes existem para A nova Helosa, de Rousseau, A religiosa, de Diderot, As ligaes perigosas, de Choderlos de Laclos, e Paulo e Virgnia, de Bernardin de Saint-Pierre (deixando de lado o ex-cepcional rolo de 12 metros dos Cento e vinte dias de Sodoma, de Sade). Tambm sobreviveu o manuscrito autgrafo de Dilogos ou Rousseau

    2 Pourvu que mes manuscrits du-rent autant que moi, cest tout ce que je veux. Je les ferais enterrer avec moi, comme un sauvage fait de son cheval. Apud NEEFS, Jac-ques. Gustave Flaubert: les aven-tures de lhomme-plume. In: GERMAIN, Marie-Odile; THIBAULT, Danile (Org.). Brouillons dcrivains. Paris: Bibliothque Nationale, 2001. p. 68.

    3 BIASI, Pierre-Marc de. La gnti-que des textes. Paris: Nathan, 2000.

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    4 GERMAIN, M.-O.; THIBAULT, D. (Org.). Brouillons dcrivains. p. 18.

    5 SACQUIN, Michle. Les penses de Pascal: des manuscrits en qute dune uvre. In: GERMAIN, M.-O.; THIBAULT, D. (Org.). Brou-illons dcrivains. p. 22-23.

    6 HOFFMANN, George. Montaignes career. Oxford: Clarendon Press, 1998. p. 97-107.

    juiz de Jean Jacques, de Rousseau, que o autor queria deixar no coro de Notre-Dame logo depois de ter completado o trabalho, mas afinal decidiu dar a Condillac, porque os portes da catedral estavam fecha-dos. Rousseau fez trs outras cpias autgrafas dos Dilogos, que fo-ram publicados em 1782. Manuscritos autgrafos franceses, portanto, existem, mas todos os exemplos que mencionei so posteriores a 1750, assim como o so as cpias de escriba corrigidas pelo autor como o Cndido, de Voltaire, ou as obras de Diderot copiadas por seu escriba Girbal.

    Antes de meados do sculo XVIII, os manuscritos autorais no so frequentes e foram preservados por razes excepcionais. Bran-tme deixou para os seus herdeiros os sete volumes do seu Livre des dames, pedindo-lhes que o publicassem o que s foi feito em 1665 Fragmentos da apologia ao cristianismo, de Pascal, foram reunidos, transcritos e ordenados pelos senhores de Port-Royal para a sua edi-o dos Pensamentos, de 1669-1670. Os manuscritos de Pascal deixam em aberto at hoje a questo da relao entre as duas cpias da trans-crio (BNF Ms. Fr. 9203 e Fr. 12449), a edio chamada de Port-Royal dos Pensamentos e os textos autgrafos, escritos por Pascal em longas folhas de papel que ele prprio cortou. Em seguida, ele reuniu os fragmentos em vrios maos, com as tiras de papel presas entre si por um fio passado por um pequeno buraco feito em cada tira. Infe-lizmente, no sculo XVIII, esses fragmentos foram reordenados e co-lados nas folhas de um caderno (BNF Ms. Fr. 9202), o que torna dif-cil consider-los o manuscrito original dos Pensamentos.Um ltimo exemplo o de Montaigne: seus nicos manuscritos literrios aut-grafos so as anotaes que deixou em alguns livros que leu (hoje, na Biblioteca Municipal de Bordeaux, na Biblioteca Nacional da Frana e na biblioteca de Trinity College, em Cambridge) e as correes e acrscimos que ele escreveu em sua cpia da edio de luxo in quarto de 1588 dos seus Ensaios (conhecida hoje em dia como o exemplar de Bordeaux), em que as grandes margens permitiram importantes acrscimos e acrscimos aos acrscimos.6

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    7 ARELLANO, Ignacio. La edicin de textos teatrales del Siglo de Oro (s. XVII). Notas sueltas sobre el estado de la cuestin (1980-1990). In: CANAVAGGIO, Jean (Org.). La comedia. Madri: Collec-tion de la Casa de Velzquez, 1995. p. 36.

    8 GREER, Margaret. Early modern Spanish theatrical transmission, memory, and a Claramonte play. Durham, 2007. Trabalho apresen-tado no seminrio Producing the Renaissance text [Produzindo o texto renascentista], na Duke University, em 3 de fevereiro de 2007.

    9 VEGA, Lope de. Carlos V en Fran-cia. Editado por Arnold G. Rei-chenberger. Filadlfia: University of Pennsylvania Press, 1962.

    H, no entanto, algumas excees a essa escassez de manuscritos autgrafos anteriores a 1750. A primeira na literatura dramtica, tanto da Espanha quanto da Inglaterra. Manuscritos autorais ainda existem para peas de Caldern, Quevedo e Lope de Vega. Deste l-timo, h duas peas autgrafas nas colees da biblioteca da Univer-sity of Pennsylvania: Los Benavides, assinada por Lope a 15 de junho de 1600, e Carlos V en Francia, assinada a 20 de novembro de 1604.7 Na Biblioteca Nacional de Madri, h 17 manuscritos autgrafos de Caldern e 24 de Lope, num total de ao menos 100 de dramaturgos do Siglo de Oro.8 Para Lope de Vega, a primeira condio para uma comedia era a durao aceitvel do espetculo, que determinava o nmero de pliegos ou folhas de papel que o autor deveria escrever. De acordo com o seu Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, de 1609, cada ato deve corresponder a quatro pliegos, e como uma comedia se compe de trs atos, seu manuscrito no deveria ter mais do que 12 pliegos. O termo pliego deve ser entendido como uma folha de papel dobrada duas vezes, criando assim quatro folhas para cada pliego, 16 para um ato e 48 para a pea completa. O manuscrito autgrafo da pea Carlos V en Francia se atm quase exatamente a essa dimenso, uma vez que o texto em si consiste em 50 pginas.9

    Tambm na Inglaterra, alguns manuscritos autgrafos escritos pelos prprios dramaturgos sobreviveram. Um exemplo espetacu-lar The booke of sir Thomas More, um manuscrito dramtico sem data, escrito a seis mos (British Library, Ms. Harleian 7368). A pea original parece ter sido escrita provavelmente entre 1592 e 1595 por Anthony Munday, cuja caligrafia identificada por comparao com os dois manuscritos autgrafos de suas peas John a Kent e John a Cumber (ambas na Hutington Library). Henry Chettle e Thomas Dekker parecem ter colaborado na pea original. No comeo do s-culo XVII, o manuscrito foi revisto e cenas foram acrescentadas por Thomas Heywood, e talvez tambm por Shakespeare, cuja mo seria a D do manuscrito, segundo provas paleogrficas, ortogrfi-cas e estilsticas. Se esse o caso (como se acredita hoje, apesar da fragilidade das comparaes paleogrficas da escrita das duas passa-

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    10 The booke of sir Thomas More. Editado por W.W. Greg. Oxford: Oxford University Press, 1911.

    11 TAYLOR, Gary; LAVAGNINO, John. A game at chess: general textual introduction. In: ______. (Ed.). Thomas Middle-ton and early modern textual cul-ture: a companion to the collected works. Oxford: Clarendon Press, 2007. p. 712-873.

    12 Para uma lista provisria dos autgrafos de Petrarca, ver PE-TRUCCI, Armando. La scrittura de Francesco Petrarca. Citt del Vati-cano: Biblioteca Apostolica Vati-cana. 1967. (Coleo Studi e Testi, 248),

    13 PETRUCCI, Armando. Minute, autograph, authors book. In: PE-TRUCCI, A. Writers and readers in medieval Italy: studies in the his-tory of written culture. New Ha-ven: Yale University Press, 1995. p. 145-168.

    14 PETRUCCI, Armando. Il libro manoscritto. In: ROSA, Asor (Org.). Letteratura italiana. Turim: Einau-di, 1984. v. 2, p. 516-517.

    gens atribudas a Shakespeare com suas poucas e diferentes assina-turas ou mesmo com o seu testamento, qui de prprio punho), os flios dessa cena acrescentada a Sir Thomas More seriam o nico manuscrito literrio sobrevivente de Shakespeare.10 The booke of sir Thomas More no o nico manuscrito autgrafo de pea elizabe-tana ou jacobina: entre outros exemplos podemos citar um dos seis manuscritos de A game at chess, inteira ou parcialmente da mo de Middleton.11

    O Trecento italiano outro exemplo, ainda anterior, que pro-va que manuscritos literrios autgrafos no esto necessariamente ausentes antes de meados do sculo XVIII. Os autgrafos de Pe-trarca so numerosos e preservam traos de seu trabalho de criao potica.12 Os mais espetaculares desses manuscritos, estudados por Armando Petrucci, so o rascunho do cdice dos Rerum vulgarium fragmenta (Vat. lat. 3196) e o assim chamado Canzionere original (Vat. lat. 3195).13 O primeiro manuscrito tem nove flios amarrados e duas folhas soltas vindas do arquivo de Petrarca. Contm esboos, primeiros rascunhos, correes, acrscimos e cortes, mas tambm, nas margens, referncias cronolgicas precisas aos estgios suces-sivos de elaborao de textos individuais. O segundo manuscrito um livro de autor, no qual Giovanni Malpaghini, o escriba e discpulo de Petrarca, copiou as sees de abertura da primeira e segunda partes, que Petrarca continuou, num paciente trabalho de cpia, acrscimos, correes e reordenamentos, de 1368 a 1373. Esse manuscrito ilustra os esforos de Petrarca para reformar o sistema de produo de livros e garantir o controle do autor sobre o seu trabalho, protegendo os textos dos erros de cpia dos escribas profis-sionais. Assim, com a multiplicao de manuscritos autgrafos, po-deria ser instituda uma relao mais direta e autntica entre autor e leitores, pois, como indica Petrucci, uma textualidade perfeita, uma emanao direta do autor, validada por sua escrita autgrafa, era (e seria para sempre) uma garantia de legibilidade absoluta para o leitor.14

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    15 ARATA, Stefano. Los manuscri-tos teatrales (siglo XVI y XVII) de la Biblioteca del Palacio. Pisa: Giardi-ni, 1989.

    O rascunho do cdice das Rime de Petrarca pertence a outro mundo e mostra como os hbitos de escrita dos poetas vernaculares dependiam das prticas cartoriais contemporneas. Minutas car-toriais e manuscritos poticos autgrafos partilhavam das mesmas prticas: esboos escritos em folhas de papel com mo extremamen-te rpida e fluente, notas nas margens testemunhando as vrias fa-ses de elaborao do texto ou cortes com grandes traos oblquos de fragmentos do texto transcritos alhures. Essa observao nos faz lembrar, antes de tudo, que muitos poetas eram membros de fam-lias de notrios. O prprio Petrarca era filho e neto de notrios e Francesco da Barberino cujo manuscrito parcialmente autgrafo de Documenti damore em verso vernacular apresenta as mesmas ca-ractersticas que o rascunho do cdice de Petrarca (Vat., Barb. Lat. 4076) era no apenas filho e neto, mas um notrio ele prprio.

    A proximidade entre a escrita cartorial e os rascunhos poticos no Trecento italiano indica tambm que muitos manuscritos aut-grafos dos princpios da era moderna no devem ser considerados equivalentes aos esboos e rascunhos literrios de autores do sculo XIX. Com frequncia, seus autores estavam agindo como escribas para si mesmos e escreveram de punho prprio cpias de apresenta-o a serem oferecidas a seus patronos. Portanto, seus manuscritos devem ser situados no corpus das cpias de escribas, que constitui a maioria dos manuscritos literrios dos sculos XVI e XVII. o caso, por exemplo, das peas de Middleton: cinco dos seis manuscri-tos do Game at chess e os manuscritos de The witch, Hengist, King of Kent ou The ladys tragedy so cpias de escriba e cinco deles foram copiados pelo mesmo escriba, Ralph Crane, tambm empregado pela companhia de Shakespeare. tambm o caso dos manuscritos dramticos mantidos na Biblioteca del Palacio, em Madrid, entre os quais h 80 peas anteriores a 1600, que tinham sido guardadas pelo conde de Gondomar em sua biblioteca em Valladolid.15

    A proximidade entre cpias de escriba e manuscritos autgrafos evidenciada pela coexistncia no mesmo manuscrito das mos do autor e do escriba a mo C em The booke of sir Thomas More de

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    16 JONSON, Ben. Three comedies. London: Penguin Books, 1966. p. 42.

    17 LOVE, Harold. Thomas Middle-ton: oral culture and the manus-cript economy. In: TAYLOR, G.; LA-VAGNINO, J. (Ed.). Thomas Midd-leton and early modern textual culture. p. 98-109.

    18 Cf. o censo de cpias de impres-so em MOORE, J. K. Primary ma-terials relating to copy and print in English books of the the sixteenth and seventeenth centuries. Oxford: Oxford University Press, 1998; e TROVATO, Paolo. Lordine dei tipo-grafi: letteri, stampatori, corret-tori tra Quatro e Cinquecento. Roma: Bulzoni, 1998. (Biblioteca del Cinquecento).

    um copista , e tambm pela confuso denunciada por Ben Jonson na epstola que abre a edio de 1607 de Volpone, na qual estigmati-za ao mesmo tempo poetas corruptos e escribas desonestos. Para ele, os escritores destes dias no so mais o intrprete e rbitro da na-tureza, um professor de coisas divinas no menos que de humanas, um mestre em boas maneiras, porque tanto suas maneiras como sua natureza esto invertidas, nada restando neles da dignidade do poeta, alm do nome abusado, que qualquer escriba usurpa.16 Nesse sentido, os manuscritos autgrafos de peas deviam ser substitudos pelas mltiplas produes dos escribas profissionais, que transfor-mavam rascunhos em cpias limpas, faziam cpias de apresen-tao elegantes para os patronos e propunham aos leitores edies de escriba.17

    O papel decisivo dos escribas no processo de publicao uma das razes para a perda de manuscritos autorais em princpios da era moderna. Na Castela do Sculo de Ouro, manuscritos enviados ao Conselho Real para receber licena e privilgio nunca eram c-pias autgrafas, mas sempre copias en limpio, cpias limpas escri-tas por amanuenses profissionais e com frequncia corrigidas pelos autores, que queriam trocar algumas palavras ou frases, introduzir acrscimos nas margens, cortar algumas linhas ou mesmo adicionar folhas soltas ao manuscrito. Uma vez aprovados e eventualmente corrigidos pelos censores, o manuscrito era entregue ao editor e de-pois ao impressor. A cpia de impresso era chamada em espanhol de original e submetia o texto a uma primeira srie de transfor-maes, seja na ortografia, seja na pontuao. Enquanto os manus-critos de autor tinham em geral muito poucas marcas de pontuao e apresentavam uma grande irregularidade na grafia das palavras, os originais de escriba (que de fato estavam longe de ser originais) precisavam dar melhor legibilidade ao texto dirigido aos censores e aos tipgrafos.

    Uma vez na tipografia, a cpia de escriba do manuscri-to autgrafo era preparada por revisores, que acrescentavam acentos, letras maisculas, pontuao e marcas de composi-

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    19 ESCAPA, Pablo Andrs et al. El original de imprenta; e MERINO, Sonia Garza. La cuenta del origi-nal. In: RICO, Francisco (Org.). Im-prenta y crtica textual en el Siglo de Oro. Valladolid: Centro para la Edicin de los Clsicos Espaoles, 2000. p. 29-64 e p. 65-95; e RICO, Francisco. El texto del Quijote: pre-liminares a una ecdtica del Siglo de Oro. Barcelona: Ediciones Des-tino, 2006, p. 55-93.

    20 ENFIELD, William. Observations on literary property. London: Prin-ted for Joseph Johnson, 1774.

    o que tornavam possvel arranjar as folhas por frmas, e no seriatim, isto , seguindo a ordem das pginas no texto. Assim pre-parada e corrigida, a cpia manuscrita era composta e impressa. Depois dessas intervenes textuais, feitas pelo copista, o censor, o editor e o tipgrafo, o manuscrito autgrafo perdia toda a sua im-portncia. Uma vez impresso o texto, a cpia de impresso com-partilhava do mesmo destino e em geral era destruda. por isso que apenas um nmero limitado das cpias usadas nas tipografias sobreviveu18 talvez com a exceo da Espanha, onde a Biblioteca Nacional de Madri mantm centenas de originales datados de me-ados do sculo XVI a fins do XVIII, porque o texto impresso devia ser comparado com o manuscrito que havia recebido a licena de publicao.19

    2. Ento, por que desde meados do sculo XVIII manuscritos autgrafos tm sido guardados e preservados? Esse fato torna claro que a constituio de arquivos literrios no pode ser separada da construo de categorias filosficas, estticas e jurdicas, que defini-ram um novo regime para a composio, publicao e apropriao de textos. As aes judiciais que se seguiram na Inglaterra Lei Rainha Ana, em 1710, levaram associao original entre as noes de singularidade individual, originalidade esttica e propriedade literria. A defesa dos direitos tradicionais dos livreiros e impres-sores londrinos, que tinham sido afetados por essa legislao que limitava os direitos autorais a 14 anos, presumia que a propriedade do manuscrito implicava num direito patrimonial perptuo, desde que o editor o tivesse adquirido do autor, e que este ltimo possua previamente um direito imprescritvel, porm transmissvel, sua obra. O objeto desse direito primrio era a obra conforme elaborada pelo autor na sua existncia imaterial, invisvel e intangvel, nas palavras William Enfield em 1774.20

    Definida pela identidade fundamental e perptua que lhe fora dada pela mente e pela mo do seu autor, a obra transcendia

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    21 BLACKSTONE, William. Com-mentaries on the laws of England. Oxford, 1765-1769. Apud ROSE, Mark. Authors and owners: the invention of copyright. Cambrid-ge, EUA: Harvard University Press, 1993. p. 89-90.

    22 Quel est le bien qui puisse appartenir un homme, si un ouvrage desprit, le fruit unique de son education, de ses tudes, de ses veilles, de son temps, de ses recherches, de ses observa-tions; si les plus belles heures, les plus beaux moments de sa vie; si ses propres penses, les senti-ments de son coeur; la portion de lui-mme la plus prcieuse, celle qui ne prit point; celle qui limmortalise, ne lui appartient pas? DIDEROT. Lettre sur le com-ROT. Lettre sur le com-merce de la librairie. In: Oeuvres compltes: Encyclopdie IV (Lettres M-Z). Editado por John Lough e Jacques Proust. Paris: Hermann, 1976. v. 8. p. 509-510.

    todas as suas possveis materializaes. De acordo com Blackstone, outro advogado da causa dos livreiros de Londres:

    A identidade de uma composio literria consiste inteira-

    mente no sentimento e na linguagem; as mesmas concepes

    expressas pelas mesmas palavras devem por fora ser a mes-

    ma composio: e qualquer que seja o mtodo de transmitir

    essa composio aos ouvidos ou aos olhos de outrem, recita-

    do, escrito ou impresso, em qualquer nmero de cpias ou

    em qualquer perodo de tempo, sempre a mesma obra do

    autor que est sendo transmitida; e ningum tem o direito

    de transmiti-la ou transferi-la sem o consentimento deste,

    tcito ou expresso.21

    Para Diderot, toda obra a legtima propriedade do seu autor, porque uma obra literria a expresso singular dos pensamentos e sentimentos desse autor. Como ele afirmou em seu Mmoire sur le commerce de la librairie:

    Que bem pode pertencer a um homem, se uma obra do es-

    prito, o fruto nico de sua educao, de seus estudos, de sua

    viglia, de seu tempo, de suas pesquisas, de suas observa-

    es; se as mais belas horas, os mais belos momentos de sua

    vida; se seus prprios pensamentos, os sentimentos de seu

    corao; a poro mais preciosa de si, aquela que no perece

    jamais; aquela que o imortaliza, no lhe pertence?22

    Depois de Diderot, Fichte, no curso de um debate sobre reim-presso de livros na Alemanha (onde a pirataria era particularmente difundida devido fragmentao do Imprio em vrios pequenos estados, cujos privilgios estavam confinados ao estreito territrio de suas soberanias) reapresentou essa demanda de uma nova forma. clssica dicotomia das duas naturezas do livro corprea e espi-ritual , ele acrescentou uma segunda: entre as ideias expressas por

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    23 FICHTE, Johann Gottlieb. Beweis der Unrechtmssigkeit der Bcher-nadrucks: ein Rsonnement und eine Parabel. [S.l.: s. n.], 1791. Esse texto comentado por WOODMANSEE, Martha. The au-thor, art, and the market: rerea-ding the history of aesthetics. New York: Columbia University Press, 1994, p. 51-53.

    24 SHAKESPEARE, William. Come-dies, histories, & tragedies: publi-shed according the true original copies. Londres, 1623, A3 recto.

    um livro e a forma que lhes dada pela escrita. Ideias so universais por natureza, objetivo e uso; da que nenhuma apropriao pessoal delas se justifica. A apropriao s legtima porque:

    Cada pessoa tem o seu prprio conjunto de ideias, sua ma-

    neira particular de forjar conceitos e relacion-los entre

    si. Considerando que ideias puras, destitudas de imagens

    perceptveis, no podem ser nem mesmo concebidas, quan-

    to menos apresentadas a outros, todo escritor tem que dar

    uma certa forma a seus pensamentos e s pode dar a sua

    prpria forma, pois a nica que ele tem. [...] [Em consequ-

    ncia,] ningum pode se apropriar dos pensamentos de ou-

    tra pessoa, sem modificar-lhes a forma. Portanto, a forma

    permanece para sempre sua propriedade exclusiva.23

    A forma textual, sempre irredutivelmente singular, era a nica, mas poderosa, justificativa para a apropriao individual de ideias comuns transmitidas a outros por meio de impressos. Assim, pa-radoxalmente, para que os textos fossem submetidos s leis sobre propriedade que governam os objetos materiais, era preciso separ-los conceitualmente de toda incorporao material e coloc-los na mente do autor. O manuscrito autgrafo tornou-se o testemunho mais fundamental, a encarnao visvel do gnio invisvel do escri-tor.

    Esse no era o caso nos sculos XVI e XVII, quando a assinatura podia ser delegada a algum, fosse nos registros da parquia, fosse para um testamento, e quando at mesmo assinaturas autgrafas podiam ser muito diferentes umas das outras por exemplo, as seis assinaturas autenticadas de Shakespeare. Naquele tempo, o texto impresso podia ser considerado uma fico da mo do autor, sem necessidade de mostr-la. Em seu prefcio dirigido Grande va-riedade de leitores, os dois editores do First Folio de Shakespeare, John Heminge e Henry Condell, alegavam que a sua edio im-pressa dos escritos do bardo ofereciam de fato a escritura de seu

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    25 An inquiry into the authenticity of certain miscellanies papers and legal instruments. Published Dec. 2 MDCCXCV, and attributed to Shakespeare, Queen Elizabeth, and Henry, Earl of Southampton: illustrated by fac-similes of the genuine hand-writing of that no-bleman, and of Her Majesty; a new fac-simile of the handwriting of Shakespeare, never before exhibi-ted; and other authentick docu-ments. London 1795. SCHEN-BAUM, S. Shakespeares lives. Oxford: Oxford University Press, 1970. p. 193-223; e DE GRAZIA, Margreta. Shakespeare verbatim: the reproduction of authenticity and the 1790 apparatus. Oxford: Clarendon Press 1991. p. 107-109.

    26 Ulysses in hand: the Rosenbach manuscript. Filadlfia: The Ro-senbach Museum and Library, 2002.

    prprio punho: Sua mente e sua mo caminhavam juntas. E ao pensar ele produzia com tal facilidade que seus papis nos chega-ram quase sem rasuras.24

    No sculo XVIII, tal afirmao no mais bastava e a escrita do autor se tornou uma garantia da autenticidade dos seus trabalhos. Da que forjar manuscritos autgrafos tenha se tornado uma arte daquele tempo. Em fevereiro de 1795, William Henry Ireland exi-biu na casa de seu pai vrios manuscritos de Shakespeare, recen-temente descobertos: os autgrafos de King Lear e de duas peas desconhecidas, Henry II e Vortigern and Rowena (que foi encenada uma vez, no Drury Lane Theatre, no dia 2 de abril), as cartas tro-cadas entre o poeta e seu patrono, Southampton, a Profisso de f, muito protestante, de Shakespeare, e uma carta mandada para ele pela rainha Elizabeth. Quando os documentos foram publicados, em dezembro daquele ano, sob o ttulo de Authentic account of the Shakespearean MSS. (Relato autntico dos manuscritos de Shakes-peare), Edmond Malone foi o primeiro a expor a falsificao de Ireland, ao comparar as caligrafias dos documentos forjados com outros autnticos. Seu desvendamento meticuloso da impostura foi publicado com o ttulo significativo de Uma investigao sobre a autenticidade de certos documentos variados e instrumentos legais. Pu-blicados a 2 de dezembro de MDCCXCV e atribudos a Shakespeare, rainha Elizabeth e a Henrique, conde de Southampton: ilustrados por fac-smiles de manuscritos genunos daquele nobre e de Sua Majestade; um novo fac-smile de manuscrito de Shakespeare nunca antes exibido; e outros documentos autnticos. Londres, 1795.25

    O fetichismo da mo do autor levou no sculo XX fabricao de supostos manuscritos autgrafos que de fato eram cpias passa-das a limpo de escritos previamente existentes. o caso por exemplo do famoso manuscrito original de Ulysses no Rosenbach Museum and Library, na Filadlfia. Foi escrito por Joyce no s como uma cpia limpa dos rascunhos previamente escritos, mas tambm como um manuscrito autgrafo para ser vendido a um biblifilo norte-americano.26

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    27 FERRAND, Nathalie. J.-J. Rous-seau, du copiste lcrivain. Les manuscrits de la Nouvelle Hlose conservs la Bibliothque de lAssemble Nationale. In: IKE-BRAVE, Jean-Louis; GRSILLON, Almuth (Org.). crire aux XVIIe et XVIIIe sicles: gnse de textes littraires et philosophiques. Pa-ris: CNRS Editions, 2000. p. 191-212.

    28 HAHN, Karl-Heinz. Goethe-und-Schiller-Archiv: Bestandsverzeich-nis. Weimar, 1961, p. 11 Apud HURLEBUSCH, Klaus. Rarement vit-on tant de renouveau. Klops-tock et ses contemporains: te-nants dune esthtique du gnie et prcurseurs de la littrature moderne. In: IKEBRAVE, J.-L.; GRSILLON, A. (Org.). Ecrire aux XVIIe et XVIIIe sicles, p. 169-189.

    29 FOUCAULT, Michel. Quest-ce quun auteur?, [1969]. In: DEFERT, Daniel; EWALD, Franois (Org.). Foucault, dits et crits, 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994. p. 789-821.

    A forte relao entre manuscritos autgrafos e autenticidade do trabalho foi interiorizada por escritores que se tornaram arquivistas de si mesmos e, antes de Hugo ou Flaubert, constituram seus pr-prios arquivos literrios. o caso do rascunho, quatro cpias aut-grafas, provas corrigidas e cpias anotadas de trs diferentes edies que Rousseau manteve consigo de La nouvelle Hlose, constituindo um dossi gentico de muitos milhares de pginas.27 tambm o caso dos papis de Goethe. Numa carta escrita ao chanceler Mller no fim de sua vida, Goethe indicava: Meus manuscritos, minhas cartas e meus arquivos merecem a maior ateno [] Por muito tempo, no se encontrar to rica e variada coleo de um s in-divduo. [] a razo pela qual espero que sua conservao seja garantida.28 Para ambos autores, no s o projeto de uma comple-ta edio geral de seus trabalhos, mas tambm ou principalmente, uma muito intensa relao autobiogrfica com a escrita os levou a constituir meticulosamente os arquivos do poeta e do escritor, de acordo com a expresso de Goethe.

    3. Em sua famosa palestra de 1968, O que um autor?, Foucault afirmou que, longe de ser relevante para todos os textos e gneros, a atribuio de uma obra a um nome prprio no nem universal nem constante: O autor-funo caracterstico do modo de exis-tncia, circulao e funcionamento de certos discursos na socieda-de. A atribuio de um nome prprio a um discurso era para ele o resultado de operaes especficas e complexas que colocavam a unidade e a coerncia de uma obra (ou conjunto de obras) em rela-o com a identidade de um sujeito construdo. Essas operaes se baseiam num processo dual de seleo e excluso. Primeiro, os dis-cursos atribuveis ao autor-funo obra devem ser separados dos milhes de traos deixados por algum depois de sua morte. Depois, os elementos pertinentes definio da posio do autor precisam ser selecionados dos inumerveis eventos que constituem a vida de qualquer indivduo.29 O que muda nessas duas operaes quando existem arquivos literrios e quando no?

  • A mo do autor: arquivos literrios, crtica e edio

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    30 Ibid, p. 103-104.

    31 LOUIS, Annick. Jorge Luis Bor-ges: uvre et manuvres. Paris: LHarmattan, 1997.

    32 DE GRAZIA, Margreta. Shakes-peare verbatim, p. 142.

    A presena de arquivos literrios abundantes torna mais com-plexa a delimitao da obra em si e a separao entre os textos lite-rrios reconhecidos enquanto tal e os milhes de traos [escritos] deixados por um indivduo. Para Foucault,

    o problema tanto terico quanto tcnico. Ao promover a

    publicao das obras de Nietzsche, por exemplo, onde de-

    vemos parar? Certamente, tudo deve ser publicado, mas o

    que tudo? Tudo o que o prprio Nietzsche publicou,

    sem dvida. E quanto aos rascunhos iniciais de seus traba-

    lhos? Claro. O plano para os seus aforismos? Sim. As partes

    cortadas e as notas de rodap? Sim. E se num caderno de

    trabalho cheio de aforismos encontrarmos uma referncia,

    uma anotao de um compromisso ou de um endereo, ou

    a lista da lavanderia: isso obra ou no? Por que no? E

    assim por diante ad infinitum.30

    obra ou no?: a pergunta de Foucault sobre a proliferao infinita dos escritos de Nietzsche deve agora ser invertida para con-siderar a possibilidade ou necessidade de sua rarefao para usar o vocabulrio de Foucault em Lordre du discours. Como convincen-temente provado por Mazzino Montinari, o trabalho mais cannico de Nietzsche, Der Wille zur Macht, nunca foi escrito por ele, tendo que ser considerado uma falsificao de Elisabeth Frster-Niet-zsche. Ela cortou, reuniu e ordenou na forma de um livro vrios fragmentos (notas, esboos, reflexes) deixados por seu irmo, que de sua parte no tinha nenhuma inteno de transform-los num livro. Ento A vontade de poder existe como uma obra e deve ser includo na obra de Nietzsche ou no?

    Tomemos outro exemplo das manipulaes textuais tornadas possveis pela existncia de arquivos literrios de autores. Repetidas vezes, o prprio Borges determinou os limites da sua obra.31 Ele excluiu de suas Obras completas publicadas por Emec em 1974 trs livros que ele publicara entre 1925 e 1928: Inquisiciones, El tamao

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    de mi esperanza e El idioma de los argentinos; e ele proibiu qualquer republicao desses trs livros, que foram editados somente em 1993 e 1994 por Maria Kodama, sete anos depois da morte de Borges e no sem uma feroz controvrsia. Por outro lado, Borges selecionou com seu editor, neste caso Jean-Pierre Berns, que publicou suas Oeuvres compltes em francs na Bibliothque de la Pliade, todos os textos que ele considerou como parte de sua obra, no s livros e antologias, mas tambm resenhas, prlogos, artigos, crnicas e a primeira verso impressa de muitos poemas ou textos de fico que havia conservado no seu acervo pessoal.

    Os arquivos literrios modernos, que permitem tais manipula-es, produzem efeitos nas prticas editoriais que se voltam para os trabalhos impressos nos sculos XVI e XVII. Por um lado, inspi-raram a busca por identificar o tipo de manuscrito utilizado para a publicao dos textos impressos. Talvez paradoxalmente, a biblio-grafia material e analtica investigou rigorosamente os diferentes estados (edies, verses, exemplares) como uma dada obra veio a lume, na esperana de estabelecer uma cpia ideal do texto, ex-purgada das alteraes infligidas pelo processo de publicao, que representasse o texto como ele foi escrito, ditado ou imaginado por seu autor. Da veio uma disciplina quase exclusivamente dedicada comparao de textos impressos, uma obsesso com o manuscrito perdido e uma distino radical entre a essncia de uma obra, loca-lizada no manuscrito autgrafo ausente, e os acidentes introduzidos pelos copistas e tipgrafos, que a distorceram e corromperam.

    Por outro lado, a delimitao instvel da obra, introduzida pela riqueza dos arquivos literrios, inspirou decises originais para autores que no deixaram documentos autgrafos: por exemplo, a publicao de dois textos do mesmo trabalho, como no caso de King Lear na Complete Oxford Shakespeare ou no de A game at chess nos Oxford Middletons collected works ou, ainda, a recente e pro-vocadora incluso por Gary Taylor e John Lavagnino na obra de Middleton de peas que so geralmente publicadas sob outro nome, como The life of Timon of Athens, The tragedy of McBeth ou Measure

  • A mo do autor: arquivos literrios, crtica e edio

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    for measure, peas em que se considera que a mo de Shakespeare no a nica.

    A consequncia mais importante da existncia de arquivos li-terrios e da configurao conceitual que os fez possveis e neces-srios desde meados do sculo XVIII a relao estabelecida entre a obra do autor e a vida do escritor. Desde meados do Setecentos, as composies literrias deixaram de ser pensadas como baseadas em histrias que eram reutilizadas, lugares comuns compartilha-dos ou colaboraes impostas por patronos e empresrios teatrais, para serem vistas como criaes originais que expressavam os sen-timentos mais ntimos e as experincias mais decisivas e singulares. A primeira consequncia foi o desejo de editar as obras de acordo com a cronologia da vida de seu autor; a segunda foi a escrita de bio-grafias literrias. Em relao a Shakespeare, Edmond Malone foi o primeiro a associar os dois empreendimentos. Ele baseou sua Life of Shakespeare (impressa apenas em 1821) em documentos originais e autnticos, rompendo com as compilaes de anedotas impres-sas por Nicholas Rowe em sua edio de 1709, e estabelecendo a primeira (suposta) cronologia das obras de Shakespeare. De acordo com ele, as peas devem ser publicadas na ordem em que Shakespe-are as escreveu e no conforme a distribuio das peas na tradio do Folio entre comdias, peas histricas e tragdias. Boswell seguiu esse desejo (exceto pelas histricas) na reedio de 1821 das obras de Malone publicadas em 1790.

    Mas no era uma tarefa fcil, dada a ausncia de documentos autgrafos e autobiogrficos de Shakespeare e da existncia de muito pouco sobre sua vida. Para compensar essa escassez de infor-mao, Malone inaugurou o dispositivo fundamental para qualquer biografia literria: localizar os trabalhos na vida exige encontrar a vida nos trabalhos. Como escreveu Margreta De Grazia:

    A vida deu passagem ao trabalho, que voltou para a vida,

    tudo num mesmo continuum temporal. No lugar de docu-

    mentos arquivsticos, as peas estavam em posio de servir

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    como fonte primria de informao sobre a vida de Shakes-

    peare durante seus anos em Londres. O prprio arranjo

    sugeria que apenas realizando um escrutnio exaustivo das

    peas, como se fossem documentos arquivsticos, seria pos-

    svel conhecer a vida de Shakespeare como um todo do

    princpio ao fim.32

    Depois de Malone, todas as biografias de Shakespeare in-clusive as advindas do Novo Historicismo ficaram merc das armadilhas da imposio retrospectiva sobre autores sem arquivos, de um paradigma interpretativo tornado possvel apenas pela exis-tncia de uma riqueza de registros literrios e de uma nova compre-enso e leitura de composies literrias. Uma incompatibilidade radical, para usar a expresso de Margreta de Grazia, existe entre as estticas romntica e pr-romntica da obra que escrita, como disse Diderot, pelo corao de seu autor e um regime de produo textual prvio, que no considerava que a literatura (conceito que nem existia) devesse ser atribuda a uma singularidade individual. essa incompatibilidade que explica por que o Deutsches Literatu-rarchiv fez bem em comear sua busca por autgrafos e materiais autorais em 1750. E com essa incompatibilidade na mente que devemos compreender os efeitos produzidos sobre as prticas edi-toriais e a crtica literria pela existncia dos arquivos literrios e, mais fundamentalmente, pelas mutaes conceituais que a partir do sculo XVIII os tornaram possveis e necessrios.