Chesnais - Mundialização - o Capital Financeiro No Comando

download Chesnais - Mundialização - o Capital Financeiro No Comando

of 22

Transcript of Chesnais - Mundialização - o Capital Financeiro No Comando

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    1/22

    outubro - 7

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    Mundializao:o capital financeirono comando1

    Franois Chesnais

    Professor de Economia da Universidade de Paris XIII Villetaneuse

    Mesmo se o olhar social comea a se tornar mais crtico, continue-mos a examinar as palavras com prudncia. Afastemos mais do que nun-ca a imagem da cidade planetria. Atrs da expresso neutra da

    mundializao da economia e seu corolrio j mais explcito da vitriado mercado, esconde-se um modo especfico de funcionamento e dedominao poltica e social do capitalismo. O termo mercado a palavraque serve hoje para designar pudicamente a propriedade privada dos meiosde produo; a posse de ativos patrimoniais que comandam a apropriaosobre uma grande escala de riquezas criadas por outrem; uma economiaexplicitamente orientada para os objetivos nicos de rentabilidade e decompetitividade e nas quais somente as demandas monetrias solventes

    so reconhecidas. As fuses-aquisies dos ltimos anos empurraram oprocesso de concentrao a nveis que pareciam impossveis at vinteanos atrs. Atrs do eufemismo do mercado, encontram-se formas cadavez mais concentradas de capital industrial e financeiro que detm umpoder econmico sempre maior, que inclui uma capacidade muito forte decolocar em xeque o mercado, curto-circuitar e cercar os mecanis-mos da troca normal.2Um tero do comrcio mundial resulta das ex-portaes e das importaes feitas pelas empresas pertencentes a gruposindustriais que tm o estatuto de sociedades transnacionais, enquanto queo outro tero tem a forma de trocas ditas intragrupos, entre filiais deuma mesma sociedade situadas em pases diferentes ou entre filiais e a

    1 Publicado em Les Temps Modernes, 607, 2000 e reproduzido com a permisso do autore da revista. Traduo de Ruy Braga.

    2 Permito-me falar de meu livro , Le mondialisation du capital, 2 edio ampliada, Paris,

    Syros, 1997, para uma apresentao mais detalhada de muitos dados e noes aos quais

    ele far aluso. Aqui me refiro aos argumentos profundamente apologticos que justificama concentrao por supresso do mercado. Proceder a transaes correntes com outras

    firmas supe custos de transao que o grande grupo tem poder de limitar, seja compran-do as firmas em questo, seja os avassalando por uma sub-empreitada draconiana.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    2/22

    8 - outubro

    Franois Chesnais

    sede principal. Estas trocas no so livres, mas altamente planejadas.Elas no se efetuam no mercado, mas no espao privado interno dosgrupos, e so faturadas a preos de transferncia internos, fixados so-bretudo de modo a escapar o quanto for possvel do imposto.

    As formas mais concentradas do capital capital financeiro predo-minantemente industrial ou capital de investimento financeiro puro beneficiam-se, ento, de um campo de operaes e de um espao de do-minao que se estende sobre grande parte do planeta, ou mesmo a totali-dade se estimarmos que a integrao da China ao capitalismo mundial estperto de acontecer. Para tudo que pertence esfera visvel das mercado-rias, so os grupos industriais transnacionais (os FMN) que tm a condi-o de assentar a dominao poltica e social do capitalismo. Porm, noso eles que comandam o movimento do conjunto da acumulao hoje. Ao

    trmino de uma evoluo de vinte anos, so as instituies constitutivas deum capital financeiro possuindo fortes caractersticas rentveis que deter-minam, por intermdio de operaes que se efetuam nos mercados finan-ceiros, tanto a repartio da receita quanto o ritmo do investimento ou onvel e as formas do emprego assalariado. As instituies em questo com-preendem os bancos, mas sobretudo as organizaes designadas com onome de investidores institucionais: as companhias de seguro, os fundosde aposentadoria por capitalizao (os Fundos de Penso) e as sociedades

    financeiras de investimento financeiro coletivo, administradoras altamenteconcentradas de ativos para a conta de cliente dispersos (osMutual Funds),que so quase sempre as filiais fiducirias dos grandes bancos internacio-nais ou das companhias de seguro. Os investidores institucionais torna-ram-se, por intermdio dos mercados financeiros, os proprietrios dosgrupos: proprietrios-acionrios de um modo particular que tm estratgi-as desconhecidas de exigncias da produo industrial e muito agressivasno plano do emprego e dos salrios. So eles os principais beneficirios danova configurao do capitalismo.

    Um impulso extremo de fetichismoDominada pela procura do lucro, reduzido ele prprio ao valor para

    o acionista3, a economia apregoa sua pretenso de representar a ativida-de mais importante da sociedade contempornea, aquela cuja legitimidadeparticular lhe permitiria impor sua lei a todas as outras. Esta arrognciadecorre, certamente, da importncia tomada pelos mercados financeiros,

    3 Este um composto calculado por mtodos muito particulares entre o fluxo descontadodos dividendos provenientes de ttulos e da mais-valia das bolsas que a venda delas traz.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    3/22

    outubro - 9

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    artefatos sociais de um tipo particular,4que ajudam em muito as finanas ase colocar como uma potncia autnoma frente sociedade. Em um mundodominado pelas finanas, a vida social em quase todas as suas determina-es tende a sofrer as influncias daquilo que Marx designa como a forma

    mais impetuosa de fetichismo. Com as finanas, tem-se dinheiro produzin-do dinheiro, um valor valorizando-se por si mesmo, sem que nenhum pro-cesso (de produo) sirva de mediao aos dois extremos. Uma vez que ocapital parece ser a fonte misteriosa (...) de seu prprio crescimento, osproprietrios de ttulos financeiros, beneficirios de juros e de dividendos,consideram que o capital deles vai fornecer-lhes uma receita com a mes-ma regularidade que a pereira d pras.5Esta a mensagem que nos enviadiariamente o CAC40.6

    O triunfo do fetichismo financeiro provocou um salto do fetichismo

    inerente mercadoria. A extenso e a liberdade quase completa adquiridapelo capital dentro do quadro da globalizao tambm contriburam muitopara isso. Somando o espao sobre o qual o capital pode evoluir livremen-te para se abastecer, produzir e vender com lucro, mais empresas de for-as desiguais e seus assalariados que podem ser colocados em dvida alonga distncia e agora emsites virtuais, e mais, a relao social determi-nada dos homens entre eles reveste a forma fantasmagrica de uma rela-o entre coisas.7Enquanto que o fetichismo inerente mercadoria e ao

    dinheiro parece ter sido contido durante algumas dcadas com a ajuda dasinstituies sociais e polticas que comprimiram o capital em um quadronacional, a mundializao do capital apresenta-se como sendo o quadroonde a relao social dos produtores no conjunto do processo do traba-lho aparece mais uma vez e com uma fora renovada como uma relaosocial externa a eles, uma relao entre objetos. Durante a conferencia de

    4 Para uma anlise dos traos particulares desta instituio capitalista muito particular, ver

    Andr Orlan, Le pouvoir de la finance, Paris, Odile Jacob, 1999. Este autor de formao

    keynesiana e regulacionista conclui que (...) a frmula mercado financeiro no uma

    frmula neutra. A liquidez exprime a vontade de autonomia e de dominao das finanas.

    Ela o produto de poderosos juros. Ela responde a finalidades especficas que recobrem

    com imperfeio apenas aquelas perseguidas pelos administradoras do capital produtivo.Ela tem conseqncias macroeconmicas gerais sobre as relaes de fora que atraves-

    sam a sociedade mercantil, e particularmente sobre as relaes entre credores e devedo-

    res, assim como sobre aquelas que ope finanas e industrias (p. 49).

    5 Karl Marx, Le Capital, III/XXIV.

    6 ndice da Bolsa de Paris calculado a partir de uma cesta composta por 40 aesselecionadas pela sua importncia e representatividade. (N. do T.)

    7 Karl Marx, Le Capital, I/I.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    4/22

    10 - outubro

    Franois Chesnais

    Seattle, a campanha poltica contra a OMC foi levada a cabo sob a palavrade ordem, o mundo no uma mercadoria, que tem o mrito de posicionaro movimento poltico de resistncia mundializao frente s foras docapitalismo, que no concebem o mundo e no podem conceber o

    mundo sob outro aspecto. O desafio do movimento nascido durante asmanifestaes de 30 de novembro seria o de criar relaes entre os assa-lariados e os camponeses de diferentes pases de tal maneira que se torna-ria possvel reduzir o anonimato e a exterioridade da troca, aumentando ograu no qual se exprimiria uma relao entre produtores dominando suascondies de produo. Mas para isso seria preciso instituir uma concep-o diferente da propriedade dos meios de trabalho e, igualmente, des-mantelar as instituies sociais que permitem ao mundo financeiro afir-mar-se como uma fora autnoma.

    O discurso sobre o Estado e o mercadoOs fundamentos da mundializao atual so tanto polticos como eco-

    nmicos. apenas na vulgata neoliberal que o Estado exterior ao merca-do. preciso recusar as representaes que gostariam que a mundializaofosse um desenvolvimento natural.8O triunfo atual do mercado no poderiaser feito sem as intervenes polticas repetidas das instncias polticas dosEstados capitalistas mais poderosos, os Estados Unidos assim como os ou-

    tros pases membros do G7. Graas a medidas cujo ponto de partida remontaa revoluo conservadora de Margaret Tatcher e de Ronald Reagan dosanos 1979-1981, o capital conseguiu fazer soltar a maioria dos freios e ante-paros que comprimiram e canalizaram sua atividade nos pases industrializa-dos. O lugar decisivo ocupado pela moeda no modo de produo capitalistadeu liberalizao e desregulamentao um carter e conseqncias estrat-gicas.9Foi por meio delas que a difuso internacional da revoluo conserva-dora fez-se atravs da Europa continental e do Japo. Na Frana, foram asreformas do mercado financeiro e a regulao bancria de 1984-1986, sob osministrios de Pierre Brgovoy e de Edouard Balladur, que abriram a via paraa dominao atual dos mercados financeiros.

    8 Luc Boltanski e Eve Chiapello recusam-se a aceitar e corretamente, o neo-darwismohistrico que pretendia que estas mutaes imponham-se a ns como elas se impe as

    espcies (...) mas os homens (eu diria antes, as classes sociais e sobretudo as classes

    dominantes) no se submetem somente histria, eles a fazem. Ver Le nouvel esprit du

    capitalisme, Paris, Gallimard, 1999, p. 36.

    9 Ver a respeito do papel da moeda, das etapas, dos mecanismos da globalizao e das

    finanas, F. Chesnais, em colaborao com S. de Brunhoff, R. Guttman, D. Plihon, P. Salmae C. Serfati, La mondialisation financire: gense, cots et enjeux, Paris, Syros , 1996.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    5/22

    outubro - 11

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    Sem a ajuda ativa dos Estados, os FMN e os investidores financeirosinstitucionais no teriam chegado s posies de domnio que sustentam hojee no se manteriam to vontade nessas posies. A grande liberdade de aoda qual eles gozam no plano domstico e a mobilidade internacional quase

    completa que lhes foi dada, necessitaram de inmeras medidas legislativas ereguladoras de desmantelamento de instituies anteriores e de colocao nolugar das novas. A apresentao poltica dessas novas medidas exigiu a altera-o do termo reforma, palavra hoje despojada de seu sentido original. Foipreciso igualmente que tratados muitos importantes fossem elaborados e rati-ficados para citar apenas os mais marcantes, o tratado de Maastricht, oconsenso de Washington, o acordo do livre-comrcio norte-americano (oAlca), o tratado de Marrakech de 1994 instituindo a Organizao Mundial doComrcio. Continuando sobre esse plano, idias potencialmente progressistas

    foram adulteradas. O mesmo acontece com a idia da Europa, onde o Atonico aps o tratado de Maastricht fez da construo europia nada almdo que o quadro poltico e jurdico da liberalizao, da autonomizao e daprivatizao do conjunto dos pases da Unio.

    O discurso sobre a superioridade do mercado e a retrao neces-sria do Estado exploraram ao mximo a imensa desordem poltica nascidado balano to radical e totalmente negativo do socialismo real. A buro-cracia da Unio Sovitica e dos pases do Leste cavaram o leito da restaura-

    o liberal antes de se integrarem a ela de corpo e alma. No em 1989(queda do muro de Berlim) ou em 1991(desmoronamento do regime sovi-tico) que se deve situar o seu comeo, mas dez anos antes por volta dosanos 70-80. O processo de liberalizao, de desregulamentao e deprivatizao pde ser impelido tanto mais facilmente quanto a ao dos diri-gentes polticos e sindicais tinha, no primeiro instante, permitido conter esubmeter o potencial altamente democrtico, de carter anticapitalista, dosgrandes movimentos sociais operrios e estudantis que apareceram aolongo da dcada de 1968-1978, tanto na Europa do Leste quanto na doOeste e nos Estados Unidos.

    Esmagando a Primavera de Praga e fechando definitivamentetodas as vias de transformao dos pases de dominao burocrtica,Brejnev contribuiu largamente para a preparao das condies de vit-ria das foras polticas, as mais anti-sociais, dos pases da OCDE queprepararam a restaurao liberal na sombra da Trade. Os acontecimen-tos de 1989-1991 vieram, evidentemente, acentuar as mudanas nas re-laes econmicas e polticas entre o capital e o trabalho. A vitria do

    mercado apareceu tanto mais definitiva, irreversvel, quanto ela foicontempornea da tomada de conscincia da classe operria e da juven-tude da extraordinria amplitude do desastre no qual a gesto burocrti-

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    6/22

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    7/22

    outubro - 13

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    tecnologias e da mdia, permite a completa heterogeneidade e a desigualdadedas economias. O fato de que se tenha integrao para uns e marginalizaopara outros, resulta do processo contraditrio do capital na busca de rentabilida-de, ao mesmo tempo que ele determina os limites. Deixando-o por sua conta,

    operando sem nenhuma rdea, o capitalismo produz a polarizao da riqueza emum plo social (que tambm espacial), e no outro plo, a polarizao dapobreza e da misria mais desumana. A polarizao uma das expresses docarter sistmico dos processos com os quais se tem que negociar.

    Uma totalidade diferenciada e fortemente hierarquizadaNa poca da globalizao, se existe um conceito cuja utilizao

    parece se impor, o de totalidade. Como elementos de uma totalidade,diferenciaes no interior de uma unidade,11que preciso procurar anali-sar os diferentes componentes do capital, o sistema das relaes entre go-vernos e as relaes entre classes sociais na mundializao do capital.

    Esta encontra-se ordenada de modo a permitir a apropriao emuma escala mundial, em condies to regulares e seguras quanto pos-svel, dos lucros industriais, mas tambm e, sobretudo, das receitas fi-nanceiras, dos juros e dos dividendos. Sua arquitetura tem principalmentepor objetivo permitir a valorizao em escala internacional de um capitalde investimento financeiro, sobre uma vintena de mercados financeiros

    desregulados que desenham o espao da mundializao financeira. Nes-te sentido, ns voltamos a uma economia internacional que tem traossemelhantes queles revelados por Veblen, Hobson e Lenin no incio dosculo XX. A imensa acumulao do capital-dinheiro em um pequenonmero de pases, os investimentos financeiros internacionais que setornaram to vitais para os interesses financeiros nos pases capitalistascentrais quanto so os investimentos estrangeiros diretos dentro daindustria, as minas ou os servios, a organizao do fluxo de receitas apartir destes (a tosquia dos ttulos de juros e dividendos) em direo aospases que se tornaram novamente pases-rentistas, so tambm ele-mentos analticos que encontraram uma grande atualidade.12Um conjunto

    11Kal Marx, Postface, la Critique de lconomie politique.

    12 Lenin, LImperialisme, stade sprme du capitalisme, cap. 10, Cada vez mais em relevo

    aparece a tendncia do imperialismo em criar o Estado-Rentista, o Estado-Usurrio, donde

    a burguesia vive cada vez mais da exportao dos capitais e da tosquia dos ttulos de juros

    e dividendo. Ver meu artigo Etats rentiers dominants et contraction tendancielle: formescontemporaines de l imperialisme et de la crise, in Grard Dumnil e Dominique Lvy, Le

    triangle infernal: crise, mondialisation, financiarisation, Actuel Marx Confrontations, Paris,PUF, 1999.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    8/22

    14 - outubro

    Franois Chesnais

    de razes justificam que o modo de funcionamento do capitalismomundializado, ou ainda seu regime de acumulao, seja definido comosendo predominantemente financeiro.13

    Antes disso, preciso lembrar os fundamentos da hierarquia polti-

    ca que marca este regime. Enquanto totalidade sistmica, o conjunto ordenado em torno de trs plos da Trade (a Amrica do Norte, a EuropaOcidental e o Japo), mas ele o em condies nas quais os EstadosUnidos so o piv de tudo e o ponto de onde partem os mais importantesimpulsos em direo s outras partes do mundo, tanto do Norte comodo Sul. Os Estados Unidos so tambm, deste modo, o ponto em dire-o ao qual convergiro, em compensao, mais cedo ou mais tarde, asprincipais contradies da mundializao, principalmente os fatoressistmicos de fragilidade financeira.

    A mundializao do capital no apaga a existncia dos Estadosnacionais, nem as relaes polticas de dominao e de dependncia en-tre estes. Ela acentuou, ao contrrio, os fatores de hierarquizao entrepases. O abismo que separa os pases que pertencem aos plos daTrade (Amrica do Norte, Europa, Japo), ou que lhes so associa-dos, daqueles que sofrem a dominao do capital financeiro sem retor-no, e pior ainda, daqueles a quem no interessa mais de jeito nenhum ocapital, desenvolveu-se continuamente h vinte anos. Mas a mundializao

    do capital foi tambm inigualvel com as modificaes nas relaes po-lticas, compreendidas desta vez como relaes internas s classes diri-gentes dos pases capitalistas avanados. Os Estados Unidos acentua-ram este peso no somente pelo fato do desmoronamento da Unio Soviticae da posio militar nica deles, mas tambm em razo de uma posioinigualvel no domnio financeiro.

    A revogao, em 1971, do sistema de Bretton Woods, que impu-nha ao dlar constrangimentos pelo fato dele ser conversvel em ouro,como piv de um sistema financeiro estvel, foi um ato unilateral dosEstados Unidos. Este ato representou uma primeira vitria da finanaconcentrada e abriu a via para medidas mais radicais de liberalizao edesregulamentao financeiras empreendidas a partir de 1979. Mas paraos Estados Unidos, a passagem para o regime de taxas flexveis de cm-bio, significou um reforo da predominncia do dlar frente a todas asoutras moedas. Esta situao foi reforada ainda mais pelo crescimentomuito rpido da dvida pblica americana a partir de 1980-1982. Os Es-tados Unidos mostraram que eles so o nico pas capaz de contrair uma

    13 Para uma apresentao mais detalhada, ver La mondialisation du capital, op.cit., cap.12, assim como o artigo em Actuel Marx Confrontations.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    9/22

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    10/22

    16 - outubro

    Franois Chesnais

    Eles tambm no dizem nada a respeito das condies de domina-o poltica do capital.15 nos Estados Unidos que se v uma adequao,mais perfeita do que em qualquer outro grande governo civilizado, dosistema poltico e da filosofia social em relao s necessidades de uma

    valorizao do capital livre de qualquer freio. Foram eles, no entanto, quetomaram a iniciativa, mais do que outros membros do G7, de publicar emeditais, antes de tudo, as polticas de ajuste estrutural e mais tarde deliberalizao e desregulamentao financeira e comercial. Estas polticasso aquelas que melhor correspondem tanto a seus interesses de grandepotncia, quanto queles de seus lobbies. Mas a ordem mundial liberaliza-da no americana. Os governos de todos os pases onde o capital finan-ceiro desenvolvido esto comprometidos com os Estados Unidos. To-das as iniciativas que eles tomaram no FMI, no Banco Mundial, na OCDE,

    no GATT e, mais tarde, na Organizao Mundial do Comrcio, foram apoi-adas e revezadas na Europa pelo Reino Unido e setores importantes daComisso Europia. Ultimamente, no deles que veio o projeto da Ro-dada do Milnio na OMC, mas da Unio Europia. Foram, antes de tudo,setores antagnicos da sociedade americana que atacaram frontalmenteSeattle. A mundializao contempornea no americana. Ela capita-lista e como tal que ela deve ser combatida.

    A acumulao predominantemente financeiraO termo regime de acumulao predominantemente financeiro de-

    signa um modo de funcionamento do capitalismo marcado por dois fen-menos. O primeiro a reapario macia, junto ao salrio e ao lucro e, aomesmo tempo, fazendo pagar acrscimo de impostos, das receitas resultan-tes da propriedade de ttulos de dvidas e de aes.16O segundo o papelrepresentado pelos mercados financeiros na determinao das principaisgrandezas macroeconmicas (consumo, investimento e emprego). O papelregulador das finanas exercido de mltiplas maneiras: pela fixao donvel das taxas de juros; pela determinao da parte dos lucros que deixadaaos grupos para investir sem medo de sofrer a sano dos acionistas ou dedar aos rivais os meios para fazerem oferta pblica de aes; pela fora dos

    15 Ver por exemplo Loc Wacquant, Prisons de la misre, Paris, Raisons dAgir, 1999.

    16 No caso das aes, as receitas procedentes da posse de ttulo de investimento financei-

    ro em partilha do lucro da empresa, que se retoma tanto quanto se puder sobre os salrios.No caso dos ttulos de dvida, sobretudo os vales do Tesouro e os efeitos da dvida pblica,

    h transferncia de receitas para os possuidores de ttulos por meio do fisco. A venda vem,assim, duplamente repartida, isto , em funo do valor criado na produo.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    11/22

    outubro - 17

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    mecanismos que ela faz pesar sobre os governos para lhes impedir de sus-tentar as taxas de investimentos e para empurr-los privatizao e desregulamentao. Podemos, agora, distinguir claramente duas fases daformao e progresso de tal regime, cujas bases esto nos Estados Unidos

    mas os efeitos so mundiais.A primeira foi aquela, situada, grosso modo, de 1982 a 1994, nodecorrer da qual a dvida pblica foi o mecanismo principal da criao decrditos e o servio dos juros da dvida, o principal mecanismo de transfe-rncia de receitas em benefcio da renda. Esta transferncia foi tanto maisalta que as taxas de juros reais positivas pagas sobre os ttulos da dvidapblica foram elevadas. J se falou, a propsito, dos Estados Unidos, mas preciso ampliar os conceitos. O poder das finanas foi construdo sobre oendividamento dos governos, que permitiu a expanso ou, mesmo em pa-

    ses como a Frana, a ressurreio dos mercados financeiros. uma dasfontes da fora econmica e poltica imensa adquirida pelas instituies fi-nanceiras que comum a todosos pases da OCDE, praticamente sem ex-ceo. Ela repousa na sobreimposio do capital e das receitas elevadas e ofinanciamento para emprstimo junto aos mercados financeiros dos dficitsoramentais. Sob o efeito de taxas de juros superiores e mesmo muito supe-riores inflao e ao crescimento do PIB, a dvida pblica faz bola deneve. Ela geradora em seguida de presses fiscais altas sobre as receitas

    menos mveis e mais fracas, de austeridade oramentria e de paralisia dasdespesas pblicas. ela, no decorrer desses ltimos dez anos, que abriu avia para as privatizaes.

    Os recursos financeiros assim centralizados pelos mecanismos dofisco e da dvida permaneceram cativos das finanas e lhe permitiram re-construir plenamente mercados financeiros capazes de assentar a domina-o do capital de investimento financeiro sobre as empresas. ento que asegunda etapa do regime de acumulao predominantemente financeiro co-meou, aquela onde os dividendos tornaram-se um canal de transfernciaimportante e os mercados financeiros a instituio mais ativa da regulaoda acumulao predominantemente financeira. A presso impessoal dosmercados, exercendo-se sobre os grupos industriais por intermdio donvel comparado da taxa de juros sobre os ttulos da dvida e dos lucrosindustriais, cedeu lugar a formas de vigilncia muito mais diretas. As admi-nistradoras de fundos de penso e dosMutual Fundscomearam a subme-ter os grupos industriais a um exame quase que dirio da administraoindustrial e financeira deles. Novas normas de rentabilidade foram impos-

    tas, geradoras de presses fortemente acrescidas nos salrios, em termosde produtividade e de flexibilidade do trabalho, como mudanas nas formasde determinao dos salrios. Se os mercados das bolsas ocupam a frente

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    12/22

    18 - outubro

    Franois Chesnais

    dos cenrios, os investimentos financeiros em vales do Tesouro, no entan-to, no cessam. Ao contrrio, como se constata no momento de cada abalofinanceiro srio, os ttulos da dvida pblica de pases mais fortes, encabe-ados pelos Estados Unidos, conservam o valor financeiro refgio por ex-

    celncia. Os emprstimos para as empresas e para os particulares comple-tam a panplia da apropriao pelas finanas interposta das riquezas criadasdentro da produo.

    Os mercados emergentesEste regime de acumulao apenas vivel contanto que tenha uma

    base internacional to larga quanto possvel. As formas concentradas dedinheiro buscando investimentos financeiros vantajosos, devem, ao mesmotempo, atrair incessantemente liquidez acrescida para os mercados finan-

    ceiros onde acontecem as operaes mais numerosas e mais vantajosas,desdobrando-se mundialmente para se inserir em mecanismos locais de cap-tao de fraes de valor e de mais-valia ou de riquezas, se estes termosincomodam que comearam por tomar forma de receitas primrias. Paracaptar juros sobre ttulos da dvida pblica ou vir a partilhar sobre o lucroindustrial por dividendos e juros de emprstimos a empresas sobre umabase mais larga que sua economia domstica, preciso se posicionar noexterior. Um dos criadores do fundo de penso francs, o deputado socia-

    lista Jean-Claude Boulard, descreveu noLe Mondeem 13 de novembro de1998, os desafios do investimento financeiro no estrangeiro com uma totalclareza. A verdadeira vantagem dos fundos de penso, diz ele, permitir aantecipao de uma parte do crescimento exterior. No momento, ele diz, aFrana passa por esse mecanismo de apropriao e de transferncia interna-cional; imperativo que ela tambm tire proveito disto : Se ns no nosmexermos, dentro de dez anos, atravs dos fundos de penso anglo-saxes,uma parte do crescimento interno financiar as penses dos no residentesainda que tenhamos apenas nosso prprio crescimento para financiar nos-sas aposentadorias. Um pas desenvolvido e envelhecendo demograficamentecomo a Frana deve imperativamente expandir a base do financiamento desuas aposentadorias. Participando, por exemplo, no financiamento do cres-cimento de um pas como a China, os fundos de penso levantaro fundossobre a produo interna chinesa.

    Este o objetivo perseguido pela abertura de espaos financeiros nospases designados pelo nome de mercados emergentes e sua integrao namundializao financeira sob o cajado do FMI. A liberalizao e desregulamentao

    financeiras expuseram a economia destes pases aos impactos da especulaofinanceira. O termo economia de cassino foi por vezes usado para falar disto.Ele no mais apropriado. Keynes utilizou esta metfora para falar de operaes

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    13/22

    outubro - 19

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    na Bolsa nos anos 30 e ela pode ser utilizada ainda para descrever as operaesdos mercados de produtos derivados (a Baring em 1995, LTCM em 1998). Masa imagem de cassino no transportvel nas relaes de riquezas intermediadaspelos mercados financeiros, nem para crises como as que o Mxico e os pases

    da sia conheceram no decorrer do decnio que termina.Em um sistema de apropriao de riquezas fundado nos mercados dettulos, a mobilidade permanente do capital colocado consubstancial procurade melhores rendimentos. A boa administrao da liquidez concentrada entre asmos de administradoras de fundos exige, da parte delas, uma diversificao deseus papis, de crdito de uma maneira que combine dois nveis, aquele dosmercados nacionais e aqueles das categorias de ttulos. Ela supe a modificaoconstante da composio dos papis de crdito, isto , a multiplicao das ope-raes por meio das quais o investidor arbitra sistematicamente entre os dife-

    rentes compartimentos procura da montagem que obtm a melhor relaocusto-rendimento.17O administrador de fundos que investe procura a liquideze o rendimento. Atrs das decises de colocar ou liquidar bens detidos neste ounaquele investimento financeiro, sob esta ou aquela forma de ativos (divisas,ttulos da dvida pblica ou privada, aes), existem apreciaes quanto per-manncia desses fluxos de receitas nos nveis de rendimento que o capital fi-nanceiro fixa. O cassino um campo fechado dentro do qual os ganhos e asperdas so circunscritas entre os jogadores e o proprietrio do lugar e no qual

    todo jogador tem chances iguais aos outros de ganhar ou de recuperar perdas.Ora, no caso das crises econmicas provocadas pelas crises financeiras noMxico e na sia, vimos bem que, no essencial, foi fora da esfera dos merca-dos financeiros que as penalidades mais pesadas foram pagas. Seu peso emtermos de desemprego e de precariedades crescentes, isto , da perda de todomeio de existncia, recaiu principalmente sobre aqueles que nem sequer temacesso ao cassino. Quanto aos investidores financeiros, eles retiraram seusfundos e os colocaram l onde a liquidez e o rendimento continuam a lhesserem oferecidos, em Wall Street e nas praas europias.

    Os grupos industriais no coraodas relaes de dominao

    So as finanas que comandam hoje o nvel e o ritmo da acumulaostricto sensu,este termo designando o processo de reproduo ampliada docapital em suas duas dimenses: o da criao de capacidades de produonovas, e o da extenso das relaes de produo capitalistas, entendidas

    17 Henri Bouguinat, Finance internationale, Paris, Presse Universitaire de France, 1992,coleo Themis.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    14/22

    20 - outubro

    Franois Chesnais

    como relaes de explorao imediatas da fora de trabalho por um capitalorientado para a produo de valor e de mais-valia. Um pequeno nmero depases como o Japo e a Coria, acreditaram poder determinar, durante umtempo, sua taxa de investimento sem integrar de modo claro os dados do

    regime de acumulao predominantemente financeiro. Os limites destas pre-tenses apareceram, no Japo, no crackimobilirio e da bolsa, em 1990, ena crise asitica de 1997-1998. Foi nas finanas que repousou a responsabi-lidade imediata do incio das recesses em cadeia na sia. Mas a ajuda doFMI foi utilizada para exigir o alinhamento da Coria s condies macro-econmicas correspondentes s taxas mdias de crescimento mundial dodecnio de 1990; isto , impor a destruio de uma parte da capacidadeprodutiva industrial julgada excessiva em relao demanda mundial, a en-trada de capital ocidental nos chaebols e a liberalizao e completa

    desregulamentao do sistema financeiro coreano.Os investidores institucionais so os verdadeiros mestres do capita-

    lismo contemporneo mas eles preferem a discrio. Enquanto os adminis-tradores de fundos de investimento financeiro permanecem quase comple-tamente na sombra, so portanto os grupos industriais que, junto aos gover-nos, so constantemente visados. Eles esto na primeira fila, na luta contraas classes e as camadas que precisam explorar. Nisso h razes essenciais. na difuso mundial de seus produtos (Coca Cola, Nike, McDonalds...)

    que repousa a dominao econmica e poltica do capitalismo no aspectoto decisivo do imaginrio deste capital simblico cuja vitria permitedominaes de outro modo constrangedoras. Isso acrescido pela amplitu-de dos recursos da publicidade que exigida pelo estreiteza relativa do mer-cado, mesmo mundial, e a rivalidade entre eles quase sempre feroz. Ofetichismo das finanas, por outro lado, operante apenas na medida emque os portadores de crdito sobre a atividade de outrem vem a realidadeconformar-se miragem da autovalorizao dos investimentos financei-ros. Portanto, preciso que haja produo de riquezas, mesmo que as fi-nanas minem, dia aps dia, os alicerces. sobre os grupos industriais querepousa a organizao das atividades de valorizao do capital na indstria,os servios, o setor energtico e a grande agricultura, da qual depende,tanto a existncia material das sociedades nas quais os camponeses e artesosforam quase completamente destrudos, quanto a extrao da mais-valiadestinada a passar para as mos dos capitais financeiros.

    Para isto, os grupos industriais dispem de poderosos meios, vindosdos efeitos combinados da liberalizao e da desregulamentao das trocas

    e dos movimentos de capitais, assim como da tecnologia. Eles usam de sualiberdade de ao e de sua restaurada mobilidade, para fazer pesar sobre ossalrios a ameaa (que pode, alm do mais, tornar-se efetiva) de deslocar

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    15/22

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    16/22

    22 - outubro

    Franois Chesnais

    menores, seja em uma fuso com as gigantes. Concentrados no incio doprocesso, na virada dos anos 70-80, eles no cessaram de fazer crescer seugrau de concentrao. Os FMN salvaguardaram, assim, sua taxa de lucro,alm de acrescentarem um poder econmico e poltico j elevado, mas que

    adianta sempre novas exigncias, como eles mostraram no quadro das ne-gociaes abortadas do AMI.20A estratgia deles de reestruturao comdestruio clara dos postos de trabalho, superpe-se poltica de austerida-de oramentria e de privatizaes usadas pelos governos, agravando osmecanismos que empurram a economia mundial para um processoacumulativo de estagnao. A outra resposta dos grupos tem o mesmo efei-to: trata-se da valorizao puramente financeira dos capitais com o empregoverdadeiramente especulativo de uma frao do lucro no investido. Sabe-se, por exemplo, que o retorno a rentabilidade da Renault a partir de 1996

    repousou sobre dois pilares: a dispensa macia dos empregados, a flexibili-dade e a disciplina salarial, mas tambm os lucros financeiros importantesgraas a boa sade dos mercados.

    A sorte reservada aos pases em desenvolvimentos portas do terceiro milnio, a sociedade mundial parece ento estar

    colocada, em um grau ainda mais completo que no final do sculo XIX, soba gide de um capitalismo dominado por instituies que vivem de rendi-

    mentos. A avidez deste capitalismo e sua ferocidade na explorao so tantomais altas quanto a taxa de acumulao do capital produzindo valor e mais-valia baixa, enquanto que as exigncias daqueles que vivem de juros e dedividendos so muito elevadas. neste quadro que preciso considerar asorte reservada aos pases do Terceiro Mundo.

    Os pases aos quais interessa principalmente o capital de investimen-to financeiro, so aqueles que possuem uma posio financeira suficiente-mente desenvolvida para aspirarem ao estatuto de mercado financeiro emer-gente e, assim, permitir o posicionamento dos mecanismos de estrangula-mento dos recursos do pas ou da regio continental maior, em direo aospases centrais. A lista est limitada (uma dzia de praas na sia e naAmrica Latina, mais Johannesbourg na frica do Sul), de modo que em

    20 O AMI (Acordo Multilateral sobre o Investimento) um projeto de tratado que assegura

    aos investimentos estrangeiros direitos e privilgios exorbitantes frente aos assalariados, s

    leis e ao conjunto da sociedade. Sua negociao foi levada a cabo na OCDE antes de ser

    interrompida em outubro de 1998 em conseqncia da retrao da negociao do governofrancs. Na Franca a campanha contrria foi levantada pelo coletivo nacional contra o AMI.

    Para uma anlise detalhada do projeto, ver Observatoire de la mondialisation. Lumire sur

    lAMI. Le test de Dracula, LEsprit Frappeur,1998.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    17/22

    outubro - 23

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    um pequeno nmero de pases que a maior parte dos investimentos finan-ceiros efetuado. Mas os grupos industriais dos pases avanados s seinteressam muito seletivamente pelos pases externos OCDE. Cada ano,80% dos investimentos fora da OCDE centraram-se em, no mximo, dez

    pases e em dez anos no se encontra mais que quinze pases na lista.Os pases ditos em desenvolvimento interessam aos grupos industriaisde pases avanados apenas por trs motivos. O primeiro aquele tradicionalde fonte de matrias-primas. Este interesse ainda permanece. Ele continua achave das polticas que afrontam o Oriente Mdio e explica as rivalidadesinterimperialistas com o cortejo de conseqncias nos pases da frica, ricosem minerais estratgicos. Mas, fora o petrleo, minerais estratgicos como ournio e alguns produtos tropicais, principalmente a madeira, os pases situa-dos no centro do sistema tornaram-se bem menos dependentes das fontes de

    matrias-primas situadas em pases perifricos, servindo-se da cincia e datecnologia para substitu-las por produtos intermedirios de criao tecnolgicae industrial. Os grupos se interessam ainda por certos pases de fora da OCDEpelo fato do tamanho do mercado interno deles. Mas eles o fazem em condi-es onde as exportaes feitas pelos grandes grupos industriais por interm-dio de suas filiais de comercializao, tornaram-se a opo preferida, o inves-timento direto no sentido estrito, tornou-se uma soluo secundria. Conti-nuam a ser criadas filiais de produo assim que esta forma de presena

    direta no mercado impe-se em razo da dimenso do mercado e da impor-tncia estratgica regional do pas (a China e o Brasil), em razo da presenaj antiga de rivais mundiais dos quais preciso controlar as estratgias local-mente, ou ainda da existncia de oportunidades locais que no podem serexploradas sem investimento direto. Mas, do contrrio, os nveis de produti-vidade e as reservas de capacidade industrial dos pases capitalistas centraiscondicionam os grupos a preferir a exportao como meio de tirar partido deum mercado. A terceira funo que os pases em desenvolvimento podempreencher de servir em industrias intensas em mo de obra de base paraoperaes de sub-arrendamento fora do local, requerendo um mo de obraindustrial ao mesmo tempo qualificada (ou mesmo muito qualificada), muitodisciplinada e um mercado muito bom. Mas, aqui, ainda, o nmero de pasesque satisfazem estas condies so em nmero tanto mais restrito quanto asnecessidades do capital so limitadas pela fraqueza geral da acumulao.

    Durante vinte anos, assistimos a reapario, nos pases pobres, daspiores calamidades de desnutrio, isto a fome, doenas e pandemias devas-tadoras. Estas calamidades no so naturais, assim como no o so, nos

    pases da OCDE, o aumento do desemprego, das precariedades e dos sem-teto. Elas atingem populaes que so marginalizadas e excludas do crculoda satisfao das necessidades bsicas, portanto bases da civilizao, em ra-

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    18/22

    24 - outubro

    Franois Chesnais

    zo da sua incapacidade de transformar essas necessidades imediatas em de-manda solvente, em demanda monetria. Logo, essa excluso de naturezaeconmica. Em certos casos, ela recente, e em todos pases, se agravouenormemente em relao a situao dos anos 70. Ela o produto direto da

    destruio sob o efeito da desregulamentao e da liberalizao dos cmbios,no simplesmente de empregos, mas de sistemas de produo inteiros queasseguravam antes a reproduo social de comunidades de camponeses, pes-cadores, artesos. neste contexto de marginalizao, seno de excluso detantos pases do sistema mundial de trocas, que se coloca o aumento da fome,das pandemias e das guerras civis em inmeras partes do mundo. A fricaNegra, da qual o sistema rejeita uma grande parte das matrias primas agrco-las produzidas no seio da economia da plantao precedentemente colocadasnas dependncias das produes de vveres, e da qual a mo de obra no

    rene as numerosas qualidades como nos pases da sia e do Sudeste, estnesse caso. O que acontece l, j h quinze anos, no pode ser consideradocomo resultado do acaso. o resultado direto, mediado pela corrupo pol-tica prpria aos governos parasitas do neocolonialismo, da marginalizao damaioria dos pases dos continentes nas trocas mundiais. O contingente tra-duz a a necessidade do capitalismo pervertido. A ONU acaba de reconhe-cer o genocdio ruands como o terceiro genocdio do sculo, aps o dosarmnios e o da Scho.21Ao final de um trabalho minucioso sobre a frica,

    Claude Meillassoux concluiu que o capitalismo restaurou a lei da populao deMalthus: O controle da demografia dos povos explorados, por meiosdemogrficos (controle de nascimento, esterilizao, etc.) encalhou. Umaforma de controle pela fome, pela doena e a morte, mais eficaz e mais cruel,estabelece-se sob pretexto de racionalidade econmica e de ajustamentoestrutural: a lio de Malthus foi entendida.22

    Para a renovao da crtica ao capitalismoOs acontecimentos que marcaram o fim do stalinismo a queda do

    Muro de Berlim e o desmoronamento da antiga Unio Sovitica foram sau-dados como anunciando o fim da histria, no sentido da impossibilidade deuma superao do capitalismo por uma outra forma de organizao das rela-es sociais e de produo e da repartio da riqueza e uma concepo dife-rente da propriedade econmica. Estes acontecimentos produziram-se emum momento no qual as polticas de destruio das instituies polticas e

    21O holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)

    22 Ver Claude Meillassoux, LEconomie de la vie, Cahiers Libres, Lausanne, Editions Page 2,1 9 9 7 .

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    19/22

    outubro - 25

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    sociais do ps-Segunda Guerra Mundial, por meio da via doce da liberalizaoe da desregulamentao, j haviam frutificado. A classe operria industrial eaqueles que se identificavam com uma viso de emancipao social da qual elaseria o suporte foram confrontadas com o desaparecimento de um capitalis-

    mo relativamente comprimido dentro de instituies nacionais, de um capita-lismo cujos pontos fracos eram conhecidos por aqueles que o combatiam.Em seu lugar, houve a emergncia de um capitalismo dominado pelas finan-as. Passo a passo seus estratagemas e seus servidores concebem e criampolticas que visam a reduo em tomos do trabalhador coletivo nas dife-rentes formas onde este tinha tomado forma, tanto por suas prprias lutas,quanto pelo efeito objetivo da organizao produtiva fordista.23

    Stphane Beaud e Michel Pialloux (ver nota 18) retraaram na Peugeoto processo de dissoluo do grupo operrio da grande fbrica, no seio de

    um salariado de fronteiras muito mais suaves, feito de categorias de trabalha-dores cujo capital pode, daqui em diante, facilmente normalizar o trabalhocom a ajuda das tecnologias informatizadas. O capital avanou tanto maisfacilmente quanto os trabalhadores e os assalariados do setor pblico foramencorajados, seno intimados pelos partidos e os sindicatos com os quais elestinham um mnimo de confiana, de adaptarem-se mundializao. O mo-vimento grevista do inverno de 1995 contra as reformas de governo de AlainJupp e o grande apoio popular do qual ele se beneficiou, marcaram um dos

    momentos de resistncia dos trabalhadores a este processo. Mas ele no en-controu os pontos de apoio que lhe permitissem se consolidar. O sindicalismode acompanhamento levantou a cabea e, agora, tomou p nas confernci-as, como a CGT, cuja tradio era oposta a isso. , portanto, amplamente doexterior do movimento operrio oficial que se construiu a resistncia aosprojetos os mais ambiciosos e os mais visveis da mundializao, tais como oAMI e o lanamento da Rodada do Milnio na OMC.

    A crtica da mundializao ainda embrionria e bastante hesitan-te no plano terico. Ela subestima quase sempre o que dever ser feitopara encetar verdadeiramente o poder das finanas24, e ela conduz ainda

    23 Ver, assim, a respeito da cotizao doena-desemprego-velhice, Bernard Friot, Et la

    cotisation sociale crera lempli, Paris, La Dispute, 1998, que escreve : Os trabalhadores,

    quer estejam ocupados, desempregados ou inativos so membros de um trabalhador cole-tivo inscritos em um espao pblico construdo a partir do trabalho formalizado em empre-

    go. Este espao pblico aquele das instituies das diferentes caixas e organismo de

    administrao paritrias que o Movimento de Empresas da Frana (Medef, sucessora doConselho Nacional do Patronato Francs N. do T.) pensa agora estar em condio de

    destrui r .

    24 Este problema levantado em meu opsculo, Tobin or not Tobin? Une taxe internationale

    sur le capital, Paris, LEsprit Frappeur, 1998.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    20/22

    26 - outubro

    Franois Chesnais

    mais freqentemente a iluso de poder encarcerar os FMN em cdigosde boa conduta ou de conduta cidad. O termo neoliberalismo utilizado como se situaes de monoplio mundial no surgissem dasltimas ondas de concentraes, como se a propriedade privada dos

    meios de produo (que so os meios de trabalho de milhes de pessoas)pudesse hoje servir de embasamento para uma forma de capitalismocom cara humana. Um bom nmero de adversrios da globalizaoparece ter interiorizado a idia martelada por Franois Furet e de todosaqueles que se apossaram de seu trabalho sobre a impossibilidade de seconceber uma organizao social de vida material diferente do merca-do. Da mesma forma, o regime de acumulao do capital mundializado considerado pela maioria de seus crticos como sendo injusto pro-fundamente injusto mais vivel.

    O sentido das crises financeirasOra, no penso que ele assim o seja, em razo mesmodessa desi-

    gualdade e injustia. Uma ligao direta pode estabelecer entre os traosdo regime de acumulao, os mecanismos de excluso que ele incorpora eas crises financeiras bancrias ou das bolsas que balanaram a econo-mia mundial no decorrer dos anos 90, quer seja no Mxico em 1995 ou nasia. Estas crises no foram episdios financeiros, devido simplesmente

    negligncia ou cegueira das autoridades monetrias, nem especula-o tomada como uma atividade que se poderia limitar sem ter prejudica-do os mercados financeiros. Estas crises foram uma primeira expressode contradies muito mais profundas. Elas traduzem a impossibilidade deassegurar uma quantidade suficiente de capital para as condies de valo-rizao que lhe so necessrias. Por etapas, a economia capitalista mundi-al v-se confrontada ao retorno brutal do princpio de realidade: antes depoder se apropriar do valor e da mais-valia, necessrio, primeiramente,que eles tenham podido ser criados em uma escala suficiente. O que su-pe que o ciclo do capital tenha podido ser bloqueado, a produocomercializada. Os investidores financeiros e as instituies financeirasinternacionais construram um conjunto de mecanismos com o objetivode fazer afluir em direo aos mercados financeiros um fluxo de riquezaque satisfizesse as exigncias da economia internacional do capital finan-ceiro. Mas eles quiseram ignorar as condies da produo e da realizaodo valor. Estas condies no podem ser satisfeitas de maneira estvelenquanto dezenas ou mesmo centenas de milhes de pessoas de todas as

    parte do mundo so excludas da esfera onde as necessidades individuaise coletivas encontram-se. Deplorando o revs da conferncia de Seattle, odiretor geral do FMI, Michel Camdessus, declarou que seu desafio para

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    21/22

    outubro - 27

    Mundializao: o capital financeiro no comando

    com os pases em desenvolvimento era o acesso aos mercados que te-nham uma demanda solvente, isto , aqueles dos pases da OCDE. Acre-ditando falar em nome destes pases e de uma liberalizao ainda maior docomrcio, o chefe do FMI expressou o impasse total de um sistema cuja

    polarizao extrema faz com que todas as mercadorias afluam em direoaos mesmos mercados, situados ao Norte.As crises financeiras da sia so um anncio que os mecanismos do

    capital liberalizado comeam a pegar gripe. De tais crises sobrevm, quandoos investidores financeiros tomam de repente conscincia do fatos, queseus crditos sobre a atividade produtiva, nascidos de seus investimentosfinanceiros ou de seus emprstimos, poderiam no se materializar. Eles ten-tam, ento, se retirar do mercado, retomando suas posies com o mnimode perdas. Eles destroem, produzindo a liquidez do mercado em seu con-

    junto25, provocando o desmoronamento do conjunto da cadeia de creditos edas dvidas da qual a capitalizao da bolsa foi o piv. Foi o que aconteceuna sia, onde vimos uma espcie de demonstrao, em tamanho real, dotipo de crise que nos espera. A praa ocupada agora pelos mercados dabolsa est suscetvel a dar s crises futuras nos pases da OCDE, um car-ter ainda duvidoso. Uma das causas da preocupao dos defensores daliberalizao, que o presidente do Banco Central dos Estados Unidos (o FED)propaga regularmente, o fato de que os mercados financeiros sados da

    liberalizao e da desregulamentao financeiras so povoados de investido-res que no tm nenhuma memria das crises da bolsa do passado. O grauparticularmente elevado da miopia dos mercados financeiros nascido dalonga fase de altas, pode engendrar comportamentos de pnico. Estes servi-riam de acelerador da crise, reforando as dimenses subjetivas dos meca-nismos de propagao.

    Evocar a perspectiva de uma grande crise quase sempre considera-do como caracterstica da vertente catastrofista que marcou o pensamen-to de Marx. Talvez seja o meu caso. H razes para pensar que ela estinscrita na situao econmica mundial do incio do novo milnio porque aliberalizao e desregulamentao das finanas, como a das trocas, recria-ram as condies. Mas no preciso esta perspectiva para retomar a crticaao capitalismo. Desde que nos coloquemos do lado dos assalariados do fimda escada, dos precrios e dos desempregados, como do conjunto das po-pulaes dos pases ditos pobres a situao j to grave que no neces-srio um agravamento suplementar para encetar este trabalho terico e pr-tico. Estamos em um sistema onde a produo apenas uma produo

    25 Ver neste ponto, o importante trabalho de Andr Orlan j citado.

  • 8/10/2019 Chesnais - Mundializao - o Capital Financeiro No Comando

    22/22

    28 - outubro para o capital e no o inverso,26onde os meios de produo no so o queeles deveriam ser, a saber simples meios para se dar forma, alargando semcessar, o processo de vida da sociedade dos produtores. Estes meios, queso porm os meios de trabalhos da sociedade, so hoje do capital. Eles

    s sero utilizados e ampliados se seus proprietrios (os acionistas financei-ros obnubilados pelo que Keynes chamou de o feitio da liquidez), consi-derando que eles vo tirar desta operao um lucro suficiente, um valoracionrio altura de suas exigncias. Durante alguns decnios aps a Se-gunda Guerra Mundial, quando o capitalismo parecia ter sido domesticado,esta caracterizao foi colocada de lado, perdida de vista. A mundializaodo capital encarregou-se de nos relembrar. Transformou em responsabili-dade de todos ns, estender e ampliar o debate sobre o modo de responderao desafio que ela coloca.

    26 Karl Marx, Le Capital, III/XV.