Christo_ Herois Imoveis

10
Comunicação apresentada no XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de outubro de 2010. 1 Heróis imóveis na pintura indigenista da América Latina * . Maraliz de Castro Vieira Christo Universidade Federal de Juiz de Fora, CBHA Resumo: Estudaremos comparativamente as obras Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, do francês Raimundo Monvoisin, datada de 1859; Os funerais de Atahualpa, do peruano Luis Montero, de 1867; O último Tamoio, do brasileiro Rodolpho Amoêdo, de 1883; e El suplicio de Cuauhtémoc, do mexicano Leandro Izaguirre, de 1893. Nelas são representados mortos ou prisioneiros quatro dos mais resistentes chefes indígenas: o mapuche Caupolicán, o inca Atahualpa, o tamoio Aimberê e o asteca Cuaultémoc. Pintura histórica, indigenismo, arte latino-americana. Abstract: We will study comparatively the works Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles (Caupolicán, Leader of the Araucanians, Prisoner of the Spaniards), by France’s Monvoisin Raymond, dated 1859; Os funerais de Atahualpa (Funeral of Atahualpa), by Peru's Luis Montero, 1867; O último Tamoio (The Last Tamoio), by Brazil’s Amoêdo Rodolpho, 1883; and El suplicio de Cuauhtémoc (The Torture of Cuauhtémoc), by Mexico’s Leandro Izaguirre, 1893. Four of the most enduring Indian chiefs are represented as dead or prisoners in these works: the Mapuche Caupolicán, the Inca Atahualpa, the Tamoio Aimberê, and the Aztec Cuauhtémoc. Historical painting, indigenization, Latin American art. ............................................................................................................................... Importantes representações artísticas de líderes indígenas surgem na América Latina durante o século XIX. * O presente texto foi escrito com base em pesquisa realizada durante o período de pós- doutoramento, desenvolvido com o apoio da CAPES e da FAPEMIG.

description

pintura indigenista américa latina

Transcript of Christo_ Herois Imoveis

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    1

    Heris imveis na pintura indigenista da Amrica Latina*.

    Maraliz de Castro Vieira Christo Universidade Federal de Juiz de Fora, CBHA

    Resumo: Estudaremos comparativamente as obras Caupolicn, jefe de los

    Araucanos, prisionero de los espaoles, do francs Raimundo Monvoisin, datada de 1859; Os funerais de Atahualpa, do peruano Luis Montero, de 1867; O ltimo Tamoio, do brasileiro Rodolpho Amodo, de 1883; e El suplicio de Cuauhtmoc, do mexicano Leandro Izaguirre, de 1893. Nelas so representados mortos ou prisioneiros quatro dos mais resistentes chefes indgenas: o mapuche Caupolicn, o inca Atahualpa, o tamoio Aimber e o asteca Cuaultmoc. Pintura histrica, indigenismo, arte latino-americana. Abstract: We will study comparatively the works Caupolicn, jefe de los Araucanos, prisionero de los espaoles (Caupolicn, Leader of the Araucanians, Prisoner of the Spaniards), by Frances Monvoisin Raymond, dated 1859; Os funerais de Atahualpa (Funeral of Atahualpa), by Peru's Luis Montero, 1867; O ltimo Tamoio (The Last Tamoio), by Brazils Amodo Rodolpho, 1883; and El suplicio de Cuauhtmoc (The Torture of Cuauhtmoc), by Mexicos Leandro Izaguirre, 1893. Four of the most enduring Indian chiefs are represented as dead or prisoners in these works: the Mapuche Caupolicn, the Inca Atahualpa, the Tamoio Aimber, and the Aztec Cuauhtmoc. Historical painting, indigenization, Latin American art. ...............................................................................................................................

    Importantes representaes artsticas de lderes indgenas surgem na

    Amrica Latina durante o sculo XIX. * O presente texto foi escrito com base em pesquisa realizada durante o perodo de ps-doutoramento, desenvolvido com o apoio da CAPES e da FAPEMIG.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    2

    Quatro dentre elas mostram pontos de contato significativos. So elas:

    Caupolicn, jefe de los Araucanos, prisionero de los espaoles, do francs

    Raymond Monvoisin (1790-1870), datada de 1859; Los funerales de

    Atahualpa1, do peruano Luis Montero (1826-1869), de 1867; O ltimo Tamoio2,

    do brasileiro Rodolpho Amodo (1857-1947), de 1883; e El suplicio de

    Cuauhtmoc3, do mexicano Leandro Izaguirre, de 1893.

    So quadros de grande formato e expressiva qualidade tcnica.

    Expostos internacionalmente, receberam crticas positivas, foram premiados e

    adquiridos por instituies oficiais nos pases de origem. Suas imagens

    circularam das mais diferentes formas.

    Uma primeira observao evidente: a imobilidade dos corpos. Nas

    telas, os chefes indgenas so prisioneiros; corpos impedidos de qualquer

    movimento pela morte ou pelas cordas que os prendem. No sculo XIX, heris

    indgenas em luta no so quase representados. Quando aparecem cenas de

    conflito, revelam uma viso oposta: o ndio como selvagem annimo, raa

    degenerada ameaadora do progresso.

    Caupolicn

    Caupolicn, jefe de los Araucanos, prisionero de los espaoles4 obra

    de Raymond Monvoisin (1790-1870), artista francs que trabalhou no Chile

    entre 1843 e 1858 (FIGURA 1).

    Caupolicn era lder dos mapuche, que viviam nos territrios hoje

    conhecidos como Chile e Argentina. Resistiu aos avanos dos colonizadores,

    porm, trado, foi capturado, batizado e executado pelos espanhis, por

    empalamento. Sua luta foi tema do poema pico La Araucana, do espanhol

    Alonso de Ercilla y Zuiga (1533-1594).

    1 Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867. leo sobre tela, 350 x 430 cm. Museu de Arte de Lima, Peru. 2 Rodolpho Amodo, O ltimo Tamoio, 1883. leo sobre tela, 180 x 261 cm. Museu Nacional de Belas Artes. 3 Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtmoc, 1893. leo sobre tela, 294,5 x 454 cm., Museo Nacional de Arte, Mxico-DF. 4 Raymond Monvoisin, Caupolicn, jefe de los Araucanos, prisionero de los espaoles, 1859. leo s/tela, 220 x 277, Museo OHigginiano Y Bellas Artes de Talca, Chile.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    3

    Monvoisin l La Araucana, mas, no enfatiza a coragem do lder

    mapuche nas batalhas ou na morte. O pintor fixa-se na reao da esposa do

    heri, Fresia, ao v-lo prisioneiro5.

    O artista realizou duas verses para o tema. Uma, sob encomenda de

    Manuel Solar Gorostiaga, hoje exposta no Museu Histrico Nacional, e outra

    executada quando de seu retorno definitivo a Paris.

    Na segunda verso, Caupolicn encontra-se em primeiro plano, atado,

    deitado sobre uma espcie de liteira no cho, rodeado por ndios, tambm

    prisioneiros. Do lado esquerdo, sua mulher lhe estende o filho, revoltada por

    ele se deixar capturar vivo, recusando-se a ser me do filho de um covarde.

    No quadro, o gesto de Fresia provoca visvel constrangimento,

    obrigando Caupolicn a abaixar o olhar. Fresia, no os conquistadores, que

    faz de Caupolicn um derrotado.

    O perfil, os cabelos, o brinco, o colo mostra e a instabilidade da criana

    em muito lembram a Medeia, pintada em 1838, por Delacroix, antigo colega de

    Monvoisin no atelier de Guerin, em Paris. Transmudada em Medeia, Fresia se

    universaliza.

    A tela pintada na Frana contrasta com a primeira verso da priso de

    Caupolicn, executada no Chile em 18546. Apesar de assinada pelo artista,

    apresenta composio e tcnica muito inferiores, sugerindo pouco empenho do

    pintor.7 Na composio chilena, Caupolicn est de p, com mos atadas s

    costas, entre ndios e espanhis, enquanto Fresia, de joelhos, em primeiro

    plano, externa sua dor e repulsa. Na tela parisiense, Monvoisin surpreende ao

    inverter as posies de Fresia e Caupolicn, colocando-o em posio inferior

    esposa, ou seja, deitado e imvel, a seus ps.

    Tal desconstruo do heri cantado por Erclla surge no incio da

    segunda metade do sculo XIX, principalmente em discursos liberais, como os

    de Benjamn Vicua Mackenna, como justificativa da pacificao militar dos

    mapuche.

    5 La Araucana, canto XXXIII. 6 Monvoisin, La captura de Caupolicn, 1854. leo s/tela, 297 x 386 cm., Museo Histrico Nacional de Chile. 7 Josefina de la Maza Chevesich, em artigo ainda indito, intitulado Llevando la luz al pas de los ciegos, la llegada de Raymond Q. Monvoisin a Chile en 1843, ressalta exatamente essa variao qualitativa da obra de Monvoisin.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    4

    A segunda verso, hoje no museu de Talca, foi realizada para ser

    exposta no Salon de Paris de 1859, onde recebeu a terceira medalha, e

    oferecida venda ao governo do Chile. Em publicao explicativa das obras

    do Salon, constam trs telas de Monvoisin:8 Casal paraguaio, Caupolican,

    chefe dos araucanos, prisioneiro dos espanhis e Uma chilena prisioneira dos

    ndios das costas da Araucnia (Amrica do Sul.)

    O conjunto dos trs quadros, revela a existncia de trs casais,

    recordando antigas pinturas de castas do perodo colonial: um casal branco,

    entristecido e impotente face ao assassinato dos filhos pelos ndios; um casal

    mestio, composto por um cacique assassino, travestido de campons, e uma

    mulher branca raptada, violentada, me de mestios; por fim, um casal

    indgena, composto por um covarde e uma mulher vingativa. Monvoisin

    explorou o extico e apresentou o povo americano com extremo pessimismo. A

    insero de Caupolicn no conjunto dos casais do Salon de 1859 refora a

    leitura negativa, que o artista apresenta do heri dos mapuche.

    Atahualpa

    Luis Montero (1826-1869) pintou Los funerales de Atahualpa9 em 1867,

    em Florena, sob encomenda do governo peruano (FIGURA 2).

    Atahualpa (1502-1533) foi o ltimo imperador inca, trado e aprisionado

    por Francisco Pizarro. Em troca da liberdade, Atahualpa ofereceu-lhe ouro e

    prata. Pizarro recebeu o resgate, mas no o libertou, condenando-o a ser

    queimado vivo na fogueira. No momento da execuo, o padre Vicente

    Valverde teria conseguido que Atahualpa aceitasse ser batizado para atenuar-

    lhe a pena, transformando-a em morte por garroteamento, aplicada em 26 de

    julho de 1533.

    8 Explication des ouvrages de peinture et dessins, sculpture, architecture et gravure et architecture exposis au Palais des Champe-Elyses le 15 avril 1859. Ministre de la Maison de L`Empereur. Direction gnrale des Muses Impriaux. Exposition publique des ouvrages des artistes vivants pour lanne 1859. BNF. 9 Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867. leo sobre tela, 350 x 430 cm., Museu de Arte de Lima, Peru.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    5

    A exemplo de Monvoisin, Montero no pintou o imperador inca em luta,

    como grande lder, mas seu cadver em poder dos conquistadores. O artista

    baseou-se na leitura de La historia de la conquista del Per, do historiador

    americano William Prescott, publicada em 1847-1848.10 Montero escolheu uma

    cena de forte impacto, dada a estranheza causada pela inteno das mulheres,

    no apenas em resgatar o corpo de Atahualpa e reverenci-lo segundo as

    prprias tradies, mas de acompanh-lo post-mortem. Em oposio ao mundo

    sentimental e primitivo feminino, o pintor criou um espao masculino,

    pertencente aos conquistadores; um mundo da razo e da ordem. Nele,

    contraste maior reside entre conquistador e conquistado, vencedor e vencido,

    Pizarro e Atahualpa.

    A imobilidade natural do cadver reforada pela horizontalidade e pela

    corrente, que ainda lhe prende os pulsos. Vencido e morto, Atahualpa

    encontra-se merc de outras vontades. Trata-se agora de submet-lo ao

    ritual cristo, de conquistar-lhe a alma, ltimo reduto. Montero refora a idia

    de Atahualpa ter sido ingnuo ao extremo para cair na armadilha de Pizarro e,

    por medo de morte ainda mais dolorosa, ter aceitado o batismo.

    Luis Montero ambicionava apresentar a obra na Exposio Universal de

    Paris de 1867. A ausncia de recursos para a viagem at a capital francesa o

    impediu de faz-lo, limitando-se a exp-la em Florena, com grande

    repercusso. O artista planejou exibi-la tambm no Rio de Janeiro, Montevidu

    e Buenos Aires, antes de chegar a Lima.

    Nesses pases a crtica lhe foi muito favorvel, salientando as qualidades

    de grande pintura e o tema escolhido, revelador da crueldade dos

    conquistadores.

    Em 1868, Montero chega apoteoticamente a Lima, premiado pelo

    governo com medalha de honra e vinte mil soles. Adquirida pelo Estado, a obra

    circulou como imagem, reproduzida nas notas de quinhentos soles.

    Roberto Mir Quesada assinalou a identificao de Luis Montero com

    projetos crioulos e liberais de seu tempo, nos quais se reconhece a importncia

    10 William Prescott, Historia de la conquista de Peru, Madrid, 1847-1848, v. 1, 447-448, apud., Roberto Amigo, Tras un Inca, Los funerales de Atahualpa de Luis Montero en Buenos Aires Buenos Aires: Fundacin para la Investigacin del Arte Argentino, 2001, p.17.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    6

    do indgena do passado, a ser, no obstante, superado, objetivando a

    construo de um novo Peru, a partir da herana hispnica11.

    Aimber

    O ltimo Tamoio12, tela exposta no Salon de 188313, pintada por

    Rodolpho Amodo (1857-1947), em Paris, obra singular. Retrata o corpo do

    ndio Aimber devolvido praia e amparado pelo padre Anchieta. O tema

    integra o poema pico A Confederao dos Tamoios, publicado em 1856, por

    Gonalves de Magalhes.

    Gonalves de Magalhes apresenta Aimber como chefe dos tamoios,

    opondo-se aos vis portugueses, descreve batalhas, o ataque de Aimber a

    Piratininga para resgatar a amada Iguau, sequestrada, e muitos outros feitos

    do guerreiro at a morte. Na batalha que levou expulso dos franceses,

    Iguau ferida, morrendo aos ps de Aimber que, ao reagir, fere Estcio de

    S com flecha envenenada. Diante da derrota inevitvel, Aimber toma o

    cadver da esposa nos braos e brada feroz:

    Tamoio sou, Tamoio morrer quero, E livre morrerei. Comigo morra O ltimo Tamoio; e nenhum fique Para escravo do Luso. A nenhum deles Darei a gloria de tirar-me a vida.

    Rpido e cego, meneando a maa, Foi abrindo uma estrada de cadveres Por entre o inimigo, ao mar lanou-se14.

    Nas exposies da Academia Imperial de Belas Artes, os personagens

    indgenas no eram guerreiros em busca da liberdade, antes mulheres

    apaixonadas pelos colonizadores, que por esse amor morreram.15.

    11 Roberto Mir Quesada. Los funerales de Atahualpa. El Caballo Rojo. Suplemento del Diario Marka 13-11-1983, 10-11. Ensaio reproduzido em: Pueblo Indio, n 1, 1985, 37-40 e em: Mrgenes. Encuentro y Debate. Ao VI, N 10-11 Oct. 1993,107-114. 12 Rodolpho Amodo, O ltimo Tamoio, 1883. leo sobre tela, 180 x 261 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil. 13 COLI, Jorge, A Batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relaes com a pintura internacional. Tese de Livre docncia, UNICAMP, 1995. 14 Gonalves de Magalhes, A Confederao dos Tamoios. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, 1994, p. 208.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    7

    Rodolpho Amodo fez surpreendente escolha representando Aimber,

    chefe indgena que no se ops apenas aos portugueses, mas ao futuro Brasil,

    aliando-se ao invasor francs, entre 1554 e 1567, contrapondo-se tambm

    Igreja catlica, por serem os franceses em parte hereges protestantes.

    Como Monvoisin e Montero, Amodo no apresenta Aimber em luta. O

    artista o exibe morto, nos braos da Igreja conciliadora. A colonizao pode ter

    sido cruel, provocando a justa reao de virtuosos guerreiros, mas a civilizao

    crist a todos recebe16.

    Na tela, o padre jesuta Anchieta, responsvel pelas negociaes de paz

    entre ndios e portugueses, acolhe nos braos, solitrio, o corpo de Aimber,

    cujo sacrifcio associado ao cristo, seguindo a iconografia de uma piet17.

    Na verdade, a posio de Anchieta no conflito era ambgua, por permitir aos

    portugueses informaes estratgicas sobre os ndios e objetivar a diviso

    interna da Confederao dos Tamoios18. Para o jesuta, Aimber era o prprio

    demnio, como o considerava em peas teatrais.19

    O jesuta poderia ser protagonista do quadro, caso o artista no o

    tivesse denominado O ltimo Tamoio e imposto a presena realisticamente

    notvel do cadver a atrair todos os olhares.

    Cuauhtmoc

    15 Obras sobre temtica indigenista que participaram das Exposies Gerais no imprio: 1860: Frederico Tirone, Enterro de Atal, Fuga de Atal; 1862: Jules Le Chevel, Paraguass e Diogo lvares Correa; 1866: Victor Meirelles, Moema ; 1879: Firmino Monteiro, Exquias de Camorim, 1884: Augusto Rodrigues Duarte, Exquias de Atal (tambm apresentada na Exposio Universal de Paris, em 1878), Aurlio de Figueiredo, Ceci no banho, Jos Maria de Medeiros, Iracema, e Rodolpho Amodo, O ltimo Tamoio e Marab. LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposies Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Perodo Monrquico. Catlogo de artistas e obras entre 1840 e 1884.Rio de Janeiro: Edies Pinakotheke, 1990. 16 O canibalismo dos tupinambs tornou-se muito conhecido aps a publicao do livro de Hans Staden, Viagens e aventuras no Brasil, 1557. O alemo, contratado pelos portugueses para lutar contra a Confederao dos Tamoios, foi feito prisioneiro e permaneceu vrios meses entre os tupinambs, presenciando rituais antropofgicos, posteriormente narrados em suas memrias. 17 Ver: Ana Maria Tavares Cavalcanti, O ltimo tamoio e o ltimo romntico, Revista de Histria da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Sociedades de Amigos da Biblioteca Nacional, Ano 3, n 26, nov. 2007, p. 64-69. 18 Serafim Leite. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2000, p. 364. 19 ATO II: No 2. ato entram trs diabos, que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem S. Loureno e S. Sebastio e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os diabos, cujos nomes so: Guaixar, que o rei; Aimber e Saraiva, seus criados. Teatro de Anchieta. So Paulo: Edies Loyola, 1977, p. 145, 155.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    8

    No sculo XIX, o aprisionamento de Cuauhtmoc, o ltimo imperador

    asteca, significa o incio de relato pico de martrio e morte, exaltando-se as

    virtudes de um vencido20.

    O livro de William H. Prescott, Histria antigua de Mxico y la de su

    conquista, traduzido para o espanhol em 1844, apresentava a valorizao

    moral de Cuauhtmoc. Aps a independncia do Mxico, intelectuais passaram

    a destacar o mundo pr-hispnico, ensejando, na segunda metade do sculo

    XIX, grande nmero de representaes sobre o perodo. Nos anos oitenta, o

    governo de Porfrio Daz mandara erigir vrios monumentos aos heris

    nacionais, destacando-se o dedicado a Cuauhtmoc, inaugurado em 1887, de

    autoria dos escultores Miguel Norea, Gabriel Guerra e Epitacio Calvo, alm do

    engenheiro Francisco Jimnez. O monumento encimado por grande escultura

    de Cuauhtmoc, em atitude altiva, durante o stio de Tenochtitlan, a cidade

    asteca.21

    Em contraste com a imagem do defensor da cidade, na base do

    monumento encontram-se o relevo de Norea, representando a rendio do

    ltimo imperador asteca a Corts, e, na face oposta, o de Gabriel Guerra sobre

    o suplcio imposto ao heri.

    Esses mesmos temas foram explorados em telas monumentais por

    Joaqun Ramrez (filho), Rendictin de Cuauhtmoc a Corts22, e Leandro

    Izaguirre (1867-1941)23, El suplicio de Cuauhtmoc24, ambas executadas em

    1893, visando participar da Exposio Universal Colombiana de Chicago25

    (FIGURA 3). Na rendio, Cuauhtmoc pede a Corts que o mate. Cortz se

    compromete a respeitar-lhe a vida e a posio hierrquica. No obstante,

    20 Citlali Salazar Torres, Cuauhtmoc: Raza, Resistencia y Territorios, en El xodo. Los hroes en la mira del arte. Mxico, DF: INBA/UNAM, 2010, p. 400-439. Agradeo a Citlali a possibilidade da leitura de seu texto, mesmo antes de publicado. 21 Citlali Salazar Torres, Cuauhtmoc: Raza, Resistencia y Territorios, 400-439. 22 Joaquin Ramrez, La rendicin de Cuauhtmoc, 1893. leo sobre tela, 200 x 350 cm., Palcio Nacional, Mxico. 23 Leandro Izaguire era ento jovem professor de desenho de modelos de gesso da Escola Nacional de Belas Artes. 24 Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtmoc, 1893. leo sobre tela, 294,5 x 454 cm., Museo Nacional de Arte, Mxico-DF. 25 Fausto Ramirez, El suplicio de Cuauhtmoc, In: Catlogo comentado del acervo del Museo Nacional de Arte, Pintura, siglo XIX, Tomo I. Mxico: Instituto Nacional de Bellas Artes, 2002, p. 329-342.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    9

    Cuauhtmoc ser torturado para confessar a localizao de supostos tesouros,

    em flagrante desrespeito palavra empenhada por Corts. A escolha dos dois

    momentos representados enfatiza o destemor e a nobreza dos atos de

    Cuauhtmoc, em contraste com as atrocidades dos conquistadores espanhis.

    A imagem do ltimo imperador asteca sintetizar, a partir de ento, as virtudes

    e o nacionalismo do povo mexicano.

    As obras de Gabriel Guerra e Leandro Izaguirre possuem pontos em

    comum. Ambos representam Cuauhtmoc de perfil, atado a um assento,

    estendendo corajosamente os ps sobre as chamas de um braseiro, enquanto

    olha duramente para o algoz. Seu comportamento contrape-se ao do outro

    nobre asteca, Tetlepanquetzal, submetido a igual tormento, que retrai os ps,

    contorcendo-se de dor e pedindo ajuda.

    Alm da exposio de Chicago, o quadro de Izaguirre esteve presente

    na exposio da Escola Nacional de Belas Artes de 1899, atraindo a ateno

    da crtica, adquirido pelo governo mexicano em 1901 e incorporado ao acervo

    da antiga academia.

    Concluso

    Todas as telas aqui apresentadas figuram chefes guerreiros opositores

    conquista: Caupolicn, Atahualpa, Aimber e Cuauhtmoc. Mortos ou quase.

    H, contudo, variaes.

    Monvoisin e Luis Montero exploraram o estranhamento entre culturas

    diferentes e a encenao teatral, quase operstica, contrapondo a imobilidade

    dos chefes ao destempero feminino na manifestao da dor ou da clera.

    Rodolpho Amodo e Leandro Izaguirre, mais comedidos, revestiram as

    respectivas telas de solene austeridade.

    Cuauhtmoc o nico que reage, enfrentando a tortura e olhando

    frontal e altivamente o algoz. Atahualpa e Aimber esto mortos, enquanto

    Caupolicn abaixa o rosto, constrangido frente s acusaes da esposa. A

    representao do lder mapuche no se coaduna com a figura de um heri.

    As representaes de Aimber e Atahualpa enfatizam a determinao

    dos conquistadores em controlar corpo, alma e memria dos lderes vencidos.

  • Comunicao apresentada no XXX Colquio do Comit Brasileiro de Histria da

    Arte, realizado no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, de 19 a 22 de

    outubro de 2010.

    10

    O caso de Aimber extremo. O ltimo tamoio no se rendeu, no se

    converteu, no se deixou aprisionar e matou o opositor. A frmula encontrada

    para a representao aceitvel deste heri, impossvel a uma nao que se

    projetava branca e crist, consistiu na apropriao do cadver por uma igreja

    conciliadora.

    As telas poderiam ser, em parte, explicadas pela sensibilidade

    oitocentista quanto ao heri vencido26. Na Amrica Latina tal fato parece mais

    evidente na estreita relao entre o civil e o religioso, valorizando-se o martrio.

    Nos quadros analisados representaram-se o ltimo mapuche, o ltimo

    inca, o ltimo tamoio e o ltimo asteca. Est definido o lugar que devem

    ocupar: o passado longnquo. A no-nfase da valentia na luta ou da liderana

    na resistncia e a reiterao da imobilidade, associadas ao fato de estarem

    todos, mortos ou no, no plano horizontal, deixam nu o processo de desmonte

    dos heris.

    Juiz de Fora, inverno de 2010.

    26 Maraliz de C. V.Christo, Pintura, histria e heris: Pedro Americo e "Tiradentes esquartejado", Campinas, Tese de doutoramento em Histria, UNICAMP, 2005.