O render dos Herois

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3 O RENDER DOS HERÓIS, A FÁBULA HISTÓRICA DE CARDOSO PIRES São duas mulheres, uma empunhando a pá do forno, outra a roçadoura na ponta de um longo varapau. Mas a paisagem sinistra, o pavor, o que quiserem, agigantam estas armas a ponto de lhes darem proporções de símbolos, grandes e esguios como lanças de guerreiros. (Cardoso Pires, 1970, p.11-2) Considerada pela crítica a primeira peça da dramaturgia portuguesa de inspiração brechtiana, O render dos heróis (1960), de José Cardoso Pires (1925-1998), apresenta como matéria histórica a revolta popular conhecida como Maria da Fonte, ocorrida em 1846. A origem da revolta esteve ligada ao descontentamento dos camponeses minhotos com as reformas no sistema tributário e principalmente com a proibição da realização de enterros dentro das igrejas, pois “[...] enterrar cristãos em covas, no descampado, aparecia como uma ofensa sacrílega e um atentado à dignidade hu- mana: era tratar pessoas como se fossem animais” (Saraiva, 1988, p.303). O nome “Maria da Fonte” se deve ao fato de

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  • 3O render dOs heris, A fbulA

    hiStricA de cArdoSo pireS

    So duas mulheres, uma empunhando a p do forno, outra a roadoura na ponta de um longo

    varapau. Mas a paisagem sinistra, o pavor, o que quiserem, agigantam

    estas armas a ponto de lhes darem propores de smbolos, grandes

    e esguios como lanas de guerreiros.(Cardoso Pires, 1970, p.11-2)

    considerada pela crtica a primeira pea da dramaturgia portuguesa de inspirao brechtiana, O render dos heris (1960), de Jos cardoso Pires (1925-1998), apresenta como matria histrica a revolta popular conhecida como maria da Fonte, ocorrida em 1846. a origem da revolta esteve ligada ao descontentamento dos camponeses minhotos com as reformas no sistema tributrio e principalmente com a proibio da realizao de enterros dentro das igrejas, pois [...] enterrar cristos em covas, no descampado, aparecia como uma ofensa sacrlega e um atentado dignidade hu-mana: era tratar pessoas como se fossem animais (saraiva, 1988, p.303). o nome maria da Fonte se deve ao fato de

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    um grande nmero de mulheres ter participado da revolta, tendo os primeiros incidentes ocorrido na freguesia de Fonte arcada, em Pvoa de Lanhoso (minho). como eram muitas as mulheres que tomaram parte dos motins iniciais, no se sabe a real identidade de maria da Fonte. a esse respeito, oliveira martins (1895, p.194) comenta que o heri da revoluo minhota devia ser uma mulher; no um homem; devia ser desconhecido, lendrio: antes um nome do que uma pessoa verdadeira.

    de acordo com oliveira marques (1998), historica-mente, a revoluo da maria da Fonte teve duas fases: a primeira foi deflagrada pela revolta popular, com durao de apenas um ms (abril-maio de 1846), tendo como resul-tado a demisso de antnio Bernardo da costa cabral1 do governo; a segunda, chamada Patuleia, bem mais longa e configurada como guerra civil, teve durao de oito meses (outubro de 1846 a junho de 1847), sendo finalizada com a interveno estrangeira apoiada pelo governo de Lisboa. o fim da revolta trouxe como consequncia o regresso dos cabrais.

    as tenses sociais e as mudanas no contexto poltico provocadas pela revolta popular constituem o enredo da pea, o qual abrange, no prlogo, a narrao dos primeiros motins dos revoltosos; depois, nas trs partes seguintes, a propagao da revolta e as consequncias polticas e sociais

    1 antnio Bernardo da costa cabral, nomeado ministro do reino pela rainha em 1842, era o verdadeiro dirigente do governo, presidido pelo duque da Terceira. costa cabral foi um estadista autoritrio e o seu governo estabeleceu no Pas um regime de represso e de violncia, embora a imprensa continuasse livre (oliveira marques, 1998, p.40). segundo oliveira martins (1895, p.268), depois da maria da Fonte e da Patuleia, costa-cabral o conde de Thomar: era mais que um homem: era um systema e um phantasma. antnio Bernardo da costa cabral era apoiado por seu irmo, Jos Bernardo da silva cabral, por isso a designao popular de governo dos cabrais ou cabralismo.

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    do movimento; no eplogo, a interferncia estrangeira de espanhis e de ingleses , juntamente com o retorno dos cabrais figurado na apoteose grotesca.

    a cena de abertura narra o que seria a primeira ao da revolta. um grupo de mulheres, esta com filho no colo, aquela arrastando uma cabra, avana frente do palco, atrs delas vm camponeses de podoa no cinto e arma bandoleira, at que se ouve um toque de cornetim cada vez mais forte, fazendo-os saltar em fuga desvairada:

    na noite de quinze para dezesseis de abril um povo dos confins do alto minho deixou casas, deixou tudo, e espalhou-se pela serrania brbara. Fazia luar, um luar negro, se assim se pode dizer. c em baixo tudo escuro e torvo: carvalhos velhos, torcidos, carvalhos dos tempos do dilvio, urzes e medronheiros pelados e cobertos por uma espcie de ferrugem da terra que lembrava cinza e mundos devastados. depois o rolar das guas nas profundezas das brechas; depois os fossos de silvedo, os labirintos dos lobos e as bocarras dos desfiladeiros tudo tornava a noite medonha e traioeira.

    um pano negro, a serrania. e diante do pano negro aparecem-nos as primeiras figuras em debandada [...]. salta a velha do bordo, foge a outra, desvairada, espanta-se a cabra, e no h quem no procure uma sada [...]. (conta-se que certa mocinha, na nsia do desespero, se quis lanar a um barranco isto : do palco para baixo e que a muito custo foi salva por aquela multido tresnoitada que, bem ou mal, sempre conseguiu escapar ameaa do feroz cornetim). (cardoso Pires, 1970, p.11-3)

    se no fossem as duas referncias ao cenrio um pano negro, a serrania e do palco para baixo , esse texto poderia ser o incio de um romance ou conto. essas duas referncias indicam, entretanto, que estamos diante de texto teatral e, ao mesmo tempo, mostram a construo

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    da cena2 no palco, avisando ao pblico tratar-se de espao fictcio e, por extenso, de obra de fico. a caracterizao dessa cena de abertura condiz com uma possvel funo atual do prlogo, que se presta ao jogo das apresentaes que quebram a iluso e a modalizao das narrativas encai-xadas (Pavis, 2007, p.309). assim, no caso da encenao de O render dos heris, o prlogo constitui certamente texto de um narrador, apesar de no haver nenhuma indicao na pea de como esse prlogo deve ser de fato encenado. da mesma forma que o prlogo, todos os outros textos de mesmo carter narrativo que aparecem geralmente no incio de cada parte ou de cada cena podem ser narrados, na encenao, por uma personagem qualquer que assume o papel de narrador.

    nos quadros cnicos seguintes ao prlogo vemos o co-ronel inocncio matamundos e o sargento sargentanas em plenos poderes na aldeia do Vilar onde decorre a maior parte das aes , na atividade de arrolamento dos bens confiscados e registro de priso de pessoas que se negaram a pagar os impostos devidos ou a receber tropa em suas casas. o coronel matamundos quer saber, por todos e quaisquer meios, a identidade dos cabeas da revolta e que tipo de armas usavam. Pela boca das comadres sabemos que sargentanas, pressionado por seu superior, coronel mata-mundos, e na autoridade de algoz que lhe atribuda, tortura a velha maria Henriques presa por cantar trovas polticas , a fim de que ela se confesse lder dos motins. enquanto isso, guerrilheiros encabeados pelo bacharel alexandre,

    2 assim tambm acontece no antecaptulo do romance O Delfim, de cardoso Pires, em que o narrador-autor-personagem nos d pistas das suas referncias para a escrita do romance anotaes de suas conversas com manuel Palma Bravo e consulta Monografia do Termo da Gafeira. se em O Delfim o leitor convidado a adentrar nos bastidores da fico, ao espectador da pea descortinado o espao do teatro.

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    acampados nas serranias vizinhas, planejam tomar o Vilar. eles tm o apoio de maria ricarda filha do desembargador dr. silveira, um oponente da revolta popular. o ingresso de maria ricarda ao grupo de guerrilheiros se deve ao fato de ela ser noiva de um dos revoltosos, o acadmico, que anda com seus homens a se bater contra as tropas de matamun-dos. do lado dos guerrilheiros est tambm o miguelista padre casimiro, que se dirige ao pblico e se apresenta como padre-soldado na militana da justia. o movimento de revolta cresce cada vez mais e vrias aldeias se levantam pela maria da Fonte.

    Percorrendo quase todas as cenas, alm das duas coma-dres, est o cego. essas trs personagens so os principais comentadores e, por vezes, narradores dos acontecimentos. o cego, personagem essencialmente pica, frequentemente interrompe a sequncia cnica com cantos e poemas e se revela Falso cego na segunda parte da pea: Tanto vi no mundo que me cansei. Tive que me fazer de cego se quis comer as migalhas dos ricos (cardoso Pires, 1970, p.105), diz ele s comadres, insinuando assim que com a propagao da revoluo ele poderia, finalmente, deixar de se fingir de cego.

    um acontecimento ocorrido fora de cena insere na pea um momento de tenso dramtica. Trata-se do assassinato do noivo de maria ricarda, o acadmico. a notcia chega tropa de alexandre, no Vilar, deixando maria ricarda transtornada a ponto de ela escrever uma carta ao pai, dr. silveira, insinuando que cometer suicdio mas isso de fato no acontece, como verificamos na primeira cena da terceira parte.

    a pea no apresenta linearidade dos fatos, e sim quadros de episdios que narram os acontecimentos. os dilogos, na verdade, tambm se propem a contar e as cenas a descrever e a narrar situaes. na primeira cena da terceira parte, enquanto a baronesa de stanley, dr. silveira

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    e maria ricarda conversam, um criado entra e substitui o quadro que figura a rainha d. maria ii pela pintura a leo que representa a cena de so Jorge matando o drago. a substituio do quadro sugere a fragilidade e o enfraque-cimento do poder da rainha devido s revoltas populares que se propagam pelo pas.

    depois de decorrido um tempo de aproximadamente trs meses de revolta, uma Junta formada por dr. silveira, padre casimiro, bacharel alexandre e cavalheiro stanley para um acordo de pacificao do reino. H, no entanto, divergncias entre eles: alexandre quer que se garanta o direito dos populares para convenc-los a largar as armas; padre casimiro v com desconfiana o novo governo de coligao nomeado pela rainha e se recusa a desarmar seus homens; silveira e stanley se aproveitam do movimento popular para salvaguardarem seus interesses prprios de manuteno do poder. com medo de ser desprezado por amigos e inimigos, ou seja, ignorado pelo povo e pelos prprios cabralistas, stanley tem uma ideia fixa: prender maria da Fonte, quem quer que seja ela, a fim de enfra-quecer o partido dos revoltosos. alm do oportunista dr. silveira, stanley consegue levar para o seu partido o padre casimiro, a quem apresenta macdonell segundo stanley, macdonell um representante de d. miguel, encarregado de nomear o padre capelo-mor dos exrcitos de terra e mar. comovido com a nomeao e se deixando levar pela vaidade, o padre casemiro passa a tomar parte nos piqueni-ques regados a champanhe e vinho promovidos pelo gluto macdonell, pelo dr. silveira e por stanley. nesses encontros eles tramam a priso de maria da Fonte, sem nem saber ao certo quem seria ela.

    o grupo de macdonell busca uma mulher qualquer para ser desmascarada a maria da Fonte. como a velha maria Henriques acaba por ser morta em decorrncia das torturas de sargentanas, e como maria ricarda, apesar de

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    ter feito parte da guerrilha, filha do dr. silveira, resta, ento, a maria angelina. Para os propsitos do grupo de macdonell, angelina apresenta as condies ideais, pois se encontra presa na cadeia de Pvoa do Lenhoso, acusada de incendiria, resistncia ao fisco, mancebias... mas os revoltosos invadem a cadeia e a libertam, para desespero de macdonell, que sai s ruas com seus partidrios em busca de uma mulher, qualquer uma, que possa ser apontada como a maria da Fonte: ele [macdonell] e os do grupo deitam uns tais olhos s camponesas, olhos de quem estuda e escolhe, seguem-nas com tanta ateno que elas, desfilando, voltam-se para trs, desconfiadas (idem, p.229).

    os guerrilheiros, mais uma vez chefiados pelo bacharel alexandre, tornam a se impor e se renem no Vilar em mar-cha de despedida, pois pretendem seguir para Lisboa a fim de fortalecer a revoluo. de repente, a marcha da maria da Fonte interrompida pela invaso de tiros e gritos. o Falso cego percebe imediatamente o que est por vir e volta a se fazer novamente de cego. o almirante ingls e o general espanhol representantes da interveno estrangeira, con-sentida pelo governo portugus entram e abrem alas para o cortejo da volta de costa cabral, que vem vestido de bode sobre um andor, encerrando assim a pea com a chamada apoteose grotesca.

    cardoso Pires utiliza os recursos propostos por Brecht para a construo de O render dos heris. alm de narrativa, a pea apresenta ttulos, cartazes, palco quase desprovido de cenrio, entre outros elementos, como veremos a seguir.

    Recursos pico-brechtianos

    cardoso Pires segue a conveno de escrita de texto teatral com as rubricas destacadas em itlico, mas tambm introduz, iniciando cenas ou partes da pea, uma srie de

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    textos narrativos que se sobrepem em importncia aos dilogos das personagens. , pois, na narrao que a pea de cardoso Pires se estrutura fundamentalmente, j que toda ela marcada por esses textos narrativos:

    Temos outra vez as duas comadres.sempre pegadas uma outra, fazem um par muito especial.

    Quando menos se espera aparecem. agora aqui, amanh acol, ora a rondarem um povoado qualquer, ora formigando de ponta a ponta dessa serra, por cima de toda a folha.

    Pode o mundo girar num torvelinho, pode Lisboa trocar, como troca, mil e um governos de entrudo, que aquelas almas limitam-se a abanar a cabea e l vo com o pesado fole a sua cruz, como diriam depois. Para elas, certa como a luz do meio-dia, s uma coisa: o destino de uma maria angelina a que o povo chama a da Fonte. e o resultado est vista: duas velhas carregando um fole de plvora. (cardoso Pires, 1970, p.201)

    o carter narrativo dessa e de outras passagens desse tipo literarizam a cena, revelando uma clara aproximao da pea s tcnicas do teatro pico propostas por Brecht. na encenao pica esses textos narrativos podero constituir a fala de um ator que sai do seu papel de personagem para assumir a funo de narrador. duarte ivo cruz (2001, p.307) chama essas narraes da pea de cardoso Pires de textos de ligao, e explica:

    O render dos heris recria a maria da Fonte e d-lhe a dimenso pica do movimento popular, que alis foi. nota-se o romancista no detalhe e na limpidez das notas de cena e dos textos de ligao, que devem constituir, na dinmica do espetculo, as falas do narrador.

    considerados como parte da encenao na voz de um narrador ou por meio de um outro recurso com a mesma funo, como, por exemplo, a projeo em tela , esses tex-

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    tos de ligao conferem ao espetculo um carter literrio, comentando a ao e produzindo, deste modo, o efeito de distanciamento brechtiano.

    no que se refere ao cenrio, O render dos heris apresenta um principal objeto cnico que o pano negro, frequen-temente manuseado pelas diferentes personagens vista de todos: sargentanas abre o pano da noite e perfila-se: est apresentada a povoao do Vilar, resumida a um largo do cruzeiro (idem, p.17). no palco, o elemento cnico que se-para a aldeia do Vilar que se limita praa ou largo, com um cruzeiro esquerda e a casa do cura direita das vizinhanas e da serrania um pano negro, objeto metafrico que ora desvenda, ora oculta as aes das personagens. sargentanas, ao abrir o pano negro, revela a aldeia do Vilar, tomada pelo reino do coronel matamundos que ali manda e desmanda. cavalheiro stanley, com o gesto de abrir e fechar o pano negro, revela e oculta o espao da cena de piquenique onde ele e seus homens confabulam e tramam. costa cabral faz correr o pano sobre o choro de uma criana e encerra a pea. o pano negro cumpre, portanto, dupla funo: uma, digamos, cenogrfica, que define a orientao pica da encenao; outra metafrica, que mostra ou oculta os bastidores do Poder, re-presentado pelas personagens dos exemplos citados. assim, a aldeia do Vilar, desvendada e ocultada pelo pano negro, concentra em si direta ou indiretamente a representao do espao onde se institui o Poder e tudo o que ele significa. da mesma forma que o microcosmo fictcio da gafeira, espao criado por cardoso Pires em O Delfim, quer representar o macrocosmo portugus, como assinala ana Paula arnaut (2002) na anlise que faz desse romance, assim tambm a aldeia do Vilar, microcosmo fictcio, representa Portugal:

    Vilar letra quer dizer povoado, pouco mais que um lugarejo. embora crescido, com regedor, igreja e padre-mestre, juridicamente aldeia, Vilar um desses lugares abstractos e

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    esquecidos do mundo. no tem correio regular, ao menos de semana a semana, nem largo de feira. Tem um terreiro aca-nhado, com o competente cruzeiro, onde fazem alto as pobres procisses esfiapadas que, no correr do ano, vo cumprindo o calendrio da diocese.

    estamos a ver a Praa: pequena e desnudada; um cruzeiro es-querda, casa do cura direita. e disse. (cardoso Pires, 1970, p.16)

    nesse lugar abstracto e esquecido no mundo que os governantes oprimem o povo; , pois, no Vilar que se instaura a fora do Poder representado inicialmente por matamundos e seus homens, depois pelo retorno dos cabrais.

    no que diz respeito estrutura da pea, cardoso Pires insere ttulos, legendas e letreiros, assim como canes, co-ros e recitaes recursos pico-brechtianos que tm como funo interromper o fluxo da ao.

    cada uma das trs partes da pea introduzida por um ttulo explicativo por exemplo, este entre o prlogo e a primeira parte: Que se passa entre 28 e 30 de abril, nesse mesmo povoado donde partiram os fugitivos e que chama-remos do Vilar e nalgumas serranias no muito longe dali, marcando assim uma cronologia histrica, embora as cenas sejam episdicas, pois cardoso Pires constri a mltipla sincronia da temporalidade presente utilizando cortes e elipses entre cenas (Werneck, 2005, p.226).

    os ttulos, no momento em que so inseridos, repre-sentam um elemento esttico que no pertence diretamente ao e por isso dela se distancia. no havendo no texto uma indicao precisa para o aproveitamento desse recurso na encenao, fica em aberto ou a cargo do encenador o modo como os ttulos sero apresentados no palco.

    um ltimo recurso pico que aqui apontamos a utili-zao da cano em O render dos heris.3 maria Henriques e

    3 Hlder costa (1965, p.231) nos d um relato sobre a composio

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    o Falso cego so as principais personagens responsveis por introduzir nas cenas canes cujas letras, geralmente satricas, apresentam crtica direta ou indireta situao poltica:

    Xcara da visita rainha4

    aprende, rainha, aprendemede agora o teu poder,Tu dum lado o povo doutroQual dos dois h-de vencer.

    se tens armas, no nos temasse as no tens, vai procur-lasao braso dos maus cabraisQue tens nele trs punhais.(cardoso Pires, 1970, p.239)

    com exceo do Falso cego, as personagens que geral-mente se expressam por meio do texto cantado ou recitado so aquelas que de alguma forma esto fragilizadas. assim, o soldado-sentinela de matamundos canta uma pardia do Hino da maria da Fonte quando Vilar est cercada pelos guerrilheiros; matamundos canta quando est foragido com sargentanas pelos campos; os soldados entoam o coro dos soldados prisioneiros o ttulo do coro j diz tudo; maria

    musical na encenao de O render dos heris em 1965: a msica foi de carlos Paredes [...] essa msica leve, alegre, popular, no era realmente o que o dramaturgo, encenador e actores queriam dizer? cremos que sim, e julgamos a colaborao de carlos Paredes um factor importantssimo no triunfo conquistado pelo Teatro moderno de Lisboa.

    4 oliveira martins (1895, p.179), em seu Portugal contemporneo, obra que constitui a base histrica para O render dos heris, cita duas estro-fes da Xcara da visita rainha, cujos versos no correspondem, no entanto, aos que na pea so cantados pelo Falso cego. Parece-nos que cardoso Pires utilizou em sua pea apenas o ttulo da cano citada pelo historiador.

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    ricarda canta quando est de luto e recita quando est presa; maria Henriques entoa canes imorais contra as casas da justia e contra a pessoa dos ministros, no dizer das autoridades, e por isso ela detida.

    em algumas cenas, a cano interpretada coletivamen-te: alm do Bendito canto religioso e do coro dos soldados prisioneiros, o outro momento o da execuo do Hino da maria da Fonte pela tropa que marcha. com a chegada dos espanhis e, em seguida, a entrada do almi-rante ingls, a marcha da maria da Fonte abafada por toques de clarim e ordens de ataque e o que se ouve no lugar do hino uma charanga que toca o rei chegou, uma refe-rncia a costa cabral. a interveno estrangeira apoiada, como j foi dito, pelo governo portugus abafa e reprime a ao coletiva de cantar o hino revolucionrio e violentamente elimina qualquer manifestao de oposio ao Poder, pois quando uma voz perdida grita Viva a maria da Fonte ouve-se um tiro e o rudo de um corpo que tomba.

    na pea, diferentes funes so atribudas utilizao da cano, que pode, por exemplo, abrir ou encerrar uma cena, interromper um dilogo, comentar uma situao apresentada. em todos os casos, a cano sublinha o aspecto narrativo da fbula e suscita o despertar da reflexo crtica por meio do seu contedo ou pela forma como se impe na cena. segundo a proposta de distanciamento brechtiano, a cano deve ser executada em separado, isto , destacada, e no se presta simplesmente a um acompanhamento in-cidental da cena,

    [...] ela [a cano] se desprende facilmente de dimenses psicolgicas, lricas, sentimentais, para assumir um contedo objetivo, ligando-se a algo que est acontecendo, ou a um fato, ou a uma tese, ou a uma lio de carter moral. Por esse cami-nho, a cano oferece possibilidades didticas considerveis. (Bornheim, 1992, p.300)

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    anatol rosenfeld (2006, p.160) nota que a funo da m-sica na esttica brechtiana de teatro pico a de comentar o texto, de tomar posio em face dele e acrescentar-lhe novos horizontes. na pea, as canes so dirigidas diretamente ao pblico ou a outras personagens e ora tm relao direta com a ao, comentando-a, ora no, interrompendo-a.

    dada sua caracterizao pica, a pea de cardoso Pires no concede ao espectador identificar-se com as persona-gens apresentadas. os recursos brechtianos que ela adota tm como principais funes colocar mostra a construo teatral, interromper a sequncia cnica e, com isso, quebrar a quarta parede. os textos narrativos fundamentalmente interrompem os dilogos e comentam situaes de modo a despertar o espectador/leitor para a reflexo sobre o que assiste ou l, tirando-o do deixar-se levar. ao especta-dor de O render dos heris o mecanismo teatral inteira e constantemente desvendado pela constituio do cenrio, construdo ou modificado pelas prprias personagens, desfazendo as possibilidades de efeito de real, lembrando ao pblico que ele est no teatro.

    Infeliz a terra que precisa de heris

    em O render dos heris encontramos algumas das per-sonalidades histricas (duque de Palmela, rainha d. maria ii, d. miguel) que no so exatamente figuradas como personagens presentes na pea, mas so apenas referidas nos dilogos ou aparecem mascaradas e ridicularizadas (antnio Bernardo da costa cabral, Jos Bernardo da silva cabral, duque de saldanha) na apoteose grotesca. a prpria maria da Fonte que nunca ningum soube ao certo quem teria sido (simes, 2004, p.96) tem a iden-tidade incerta em boa parte da pea, pois h trs mulheres que so apontadas pelas outras personagens como sendo

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    a que deu nome revolta popular: maria ricarda, maria Henriques e maria angelina.

    com a referncia s trs marias da Fonte, cardoso Pires desfaz ou desmonta a ideia de uma liderana dos primeiros motins da revoluo e, ao mesmo tempo, confunde as per-sonagens e, de certa forma, tambm o espectador sobre a identidade de maria da Fonte. maria angelina, maria Hen-riques e maria ricarda so, pois, cognomes picos, assim como os vrios nomes pelos quais o narrador do romance O Delfim se refere personagem Toms manuel, como explica o prprio cardoso Pires (1977, p.165-6):

    identificando o heri por sucessivas designaes confere-se-lhe um halo paralendrio de personagem que simboliza o acontecimento e cria-se uma relao mais crtica do leitor para com a narrativa. as mesmas designaes permitem ain-da escalonar os tempos de ao (como fez guimares rosa, que foi estoriador de santos e de bandidos sertanejos) ou os alternar e confundir a bel-prazer (como tentou o escritor-furo da gafeira).

    a incerteza das outras personagens, sugerida nas cenas, sobre quem seria a maria da Fonte alterna-se no decorrer da pea, at que na stima cena da terceira parte ela identificada com maria angelina. a maria da Fonte, no entanto, est lon-ge de ser a personagem central foco de interesse e ateno dos leitores/espectadores ou a representao do heri mtico, assim como tambm est ela distante de ser o tema5 da pea. o heri mtico, de acordo com rosenfeld (1996, p.36),

    a personificao de desejos coletivos. em tempos de crise, esse desejo impregna-se de fora virulenta e projeta a imagem

    5 Em Felizmente h luar!, de sttau monteiro, o general gomes Freire nunca aparece, mas a trajetria dessa personagem histrica o tema da pea.

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    plstica e individual das esperanas em forma de personifica-o. na criao do heri mtico prevalece a crena primitiva de que todos os poderes humanos e naturais podem condensar-se numa s personalidade excepcional. Quando em amplos grupos se manifesta a esperana coletiva com intensidade mxima, eles facilmente podem ser convencidos de que s se necessita da vinda do homem providencial para satisfazer todas as aspiraes.

    nessa descrio no se encaixa a imagem de maria angelina, a da Fonte, pois ela, apesar de fazer parte da guerrilha, no personifica os desejos coletivos; ao contrrio, ela est, na realidade, interessada nos papis que denunciam sua herdade no Brasil. Quando, na cena quatro da segunda parte, ela chega ao Vilar acompanhada pelos guerrilheiros, interpela os soldados e depois o regedor sobre os tais papis. assim, ao ser informada de que os documentos foram para a conservatria da amoreira, vai imediatamente para l e resolve seu problema pessoal, incendiando a conservatria. Trata-se de uma mulher que age com o propsito de resolver um problema pessoal (esconder os documentos que provam sua herana, para no pagar mais impostos ou ter parte de seus bens confiscados; por isso provoca o incndio no tombo da amoreira); sua ao uma reao imposio que sofre do fisco e no uma ao em prol do coletivo com a anulao do individual. alm disso, a maria da Fonte pode ser hero-na entendida como personagem central e heri clssico, mtico no fato histrico, mas no na pea. nesse sentido que cardoso Pires exclui a existncia de heri ou heris, apesar do ttulo de sua fbula histrica.

    O render dos heris traz sintetizado no ttulo o que narra a fbula. nesse quase paradoxo de heris que so rendidos vemos a revoluo completamente reprimida pela apa-rio das figuras do Poder ainda que ridicularizadas na apoteose grotesca que os revoltosos tinham, por algum

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    tempo, derrubado. Por isso os versos de alexandre o neill, escolhidos por cardoso Pires como epgrafe de sua obra, constituem um prenncio que sublinha e enfatiza o sentido j instaurado no ttulo da pea: os heris so/os heris vm/os heris vo....

    o uso do termo no plural (heris) no ttulo da pea traduz um apagamento do indivduo, j que as personagens ou se definem pelo grupo ao qual pertencem guerrilhas (bacharel alexandre, maria angelina, maria ricarda etc.), tropas (matamundos, sargentanas, soldados, sentinela), junta (cavalheiro stanley, dr. silveira, padre casimiro, tambm alexandre) ou se duplicam em personalidades semelhantes, como o caso das comadres, que so duas, a Primeira e a segunda, ou em personalidades aparentemente opostas que se alternam, como a do cego, que se revela Falso cego e depois cego novamente, um anti-heri que se esconde atrs da falsa cegueira para sobreviver.

    no h como deixar de relacionar o ttulo e a epgrafe, assim como determinadas falas principalmente do Falso cego e das comadres, mas tambm de outras personagens s famosas frases da pea Vida de Galileu (escrita entre 1938 e 1939), de Bertolt Brecht: infeliz a terra que no tem heris/no, infeliz a terra que precisa de heris.

    em Vida de Galileu, andrea, assistente de galileu, espera que o mestre no renegue a doutrina do movimento da Terra em uma sesso da inquisio: andrea gritando eles no vo ter a coragem! e mesmo se tiverem, ele no vai renegar. Quem no sabe a verdade estpido e mais nada. mas quem sabe, e diz que mentira, esse um criminoso (Brecht, 1991, p.150). no entanto, depois de falas eufricas de andrea, de Federzoni e do Pequeno monge, quase certos de que galileu no renegar a teoria, ouvem-se ecoar o sino de so marcos e a voz do arauto que l nas ruas a retratao: eu, galileu galilei, professor de matemtica [...] abjuro o que ensinei: que o sol seja o centro do mundo, imvel em

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    seu lugar, e que a Terra no seja centro nem imvel [...] (idem, p.153). ao entrar na sala, galileu ouve andrea dizer em voz alta: infeliz a terra que no tem heris e depois os gritos indignados do rapaz, que faz meno de ir embora. calmo, galileu pede gua e comea a falar: no, infeliz a terra que precisa de heris (idem, 154).

    abordada pelos tericos e comentadores, o fato que o prprio dramaturgo no deixou nenhum registro em que discutisse com profundidade a questo da ausncia ou negao da figura do heri. anatol rosenfeld (1996, p.48) comenta que nas teorias de Brecht no tem uma linha no que se refere ao problema do heri. a afirmao de rosenfeld , de certa forma, reiterada por Bornheim (1992, p.241-2), e embora este ltimo afirme que sem-pre dentro da perspectiva da desconstruo que evolui em Brecht a ideia do heri, admite que o autor alemo nunca escreveu detidamente sobre esse portentoso assunto. ao criticar a encenao de Vida de Galileu dirigida por Jos celso martinez corra, apresentada em Portugal em 1975, o encenador portugus mrio srio (1976, p.94) comenta que o galileu de Brecht o anti-heri, o antirresistente e o contrrio do culto do super-homem. concordamos que na obra dramtica de Brecht est implcita a negao do heri clssico, mtico e inacessvel. na pea de cardoso Pires encontramos essa mesma negao do heri mtico, no que se apontaria um fio de dilogo intertextual com a fala do galileu brechtiano. como no nossa inteno e nem propsito fazer aqui um estudo de dramaturgia comparada, apontamos as semelhanas entre as falas do Falso cego de cardoso Pires e as de galileu, com o propsito de analisar seu sentido apenas em O render dos heris.

    seja nas quadras entoadas pelo Falso cego, seja nas frases entrecortadas que no constituem um dilogo retilneo ou contnuo das comadres, seja nos discursos proferidos pelos representantes do Poder, pela boca de suas personagens,

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    cardoso Pires debate o tema do heri. so diferentes pontos de vista no somente porque so distintas as personagens, mas porque a pea assume a lio de Brecht e estende a reflexo ao pblico, com a proposta de mostrar ao espectador as vrias possibilidades de anlise de uma mesma questo, como exi-ge o processo dialtico. Por exemplo, o desembargador dr. silveira, cidado do poder constitudo, como ele mesmo se define, em um momento de completa embriaguez declara e pergunta: e a histria todos os dias muda de heris [...] e hoje? Quem so os heris de hoje? (cardoso Pires, 1970, p.61-2). sem resposta na cena, a pergunta serve para introdu-zir o assunto e ao pblico que ela indiretamente se dirige. na terceira parte da pea, o miguelista cavalheiro stanley sugere que se desmascare a crendice em maria da Fonte: estamos aqui para destruir heris, e no para criarmos lendas e vti-mas (idem, p.211). e o afirma categoricamente na primeira pessoa do plural, em nome, portanto, do seu grupo. na viso de stanley, desmistificando a maria da Fonte o poder institu-do permanecer garantido. , no entanto, na penltima cena da terceira parte que a questo do heri mais enfaticamente se coloca: nem no mundo h dois mundos/nem no cu h dois senhores/nem existe heri alado/nem verdade de dou-tores, recita o Falso cego, voltado para o pblico, abrindo a cena na qual, dentre as trs mulheres, maria ricarda, maria Henriques e maria angelina, a ltima ser apontada como a maria da Fonte. depois da recitao do Falso cego, o palco inteiro iluminado e veem-se as trs mulheres alinhadas ao fundo, em cenrio que representa o crcere: ao alto, por detrs delas, trs postigos de crcere desenhados a branco no pano negro da noite as grades simplesmente (idem, p.219). ento que o Falso cego se pronuncia e sua fala nos remete frase do galileu de Brecht:

    O Falso Cego:guerra que precisa de heris no guerra. Partido que pro-

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    cura heris no partido. (Pausa de quem esgotou um discurso preparado.) suponhamos um sujeito que abala um belo dia de casa. abala um belo dia de casa, pe a clavina ao ombro e liga-se a outros para fazer a guerra. assanha-se, vende a pele pelo preo da alma, mata mais ou mata menos conforme. isso ser heri? (Nova pausa.) outro subiu ao alto duns penhascos e vira-se c para baixo para os companheiros: meus irmos, notem bem no que eu fao! Vejam como eu encaro a morte! Vem uma bala, zs: leva-o. isso ser heri? Tambm no.

    Segunda Comadre:Tudo porque os heris no morrem, e tudo porque no

    pode haver heris solitrios.

    Falso Cego:Logo, ai do que morre para se fazer de heri [...].(idem, p. 220-1)

    no discurso do Falso cego h uma crtica explcita sociedade que precisa de heris ou mrtires que, em prol de uma causa, pem em risco a prpria vida. cabe, no caso, o comentrio de raymond Williams (2002, p.256) sobre a questo do heri na obra dramtica de Brecht: do mesmo modo que uma sociedade m aquela que necessita de he-ris, assim tambm uma vida m aquela que necessita do sacrifcio. a repetida pergunta isso ser heri? tem j implcita a resposta que, ao fim e ao cabo, nega a existncia e a necessidade do heri.

    de acordo com anatol rosenfeld (1996, p.50), o galileu de Brecht no um heri, j que praticou a cincia como uma espcie de vcio, sem nenhum compromisso para com a humanidade. concordando com a afirmao de rosenfeld sobre galileu, vemos o mesmo acontecer na trajetria da personagem maria angelina que, como vimos, tambm no herona. dentre todas as personagens, o Falso cego se des-taca pela atitude anti-herica, acentuada no seu discurso h

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    pouco citado. irnico, ele quem, cantando trovas e poemas, narra e pe em julgamento as aes de outras personagens e, ainda, analisa de forma satrica a situao social e sua prpria condio, que tambm a de muitos outros. preciso, ento, fingir-se de cego para sobreviver. o Falso cego , na verdade, a representao do anti-heri, pelo seu pensamento e atitude, por tambm negar categoricamente a necessidade ou existn-cia do heri. maria da Fonte, na pea, tambm representa o anti-heri em comparao com a figura mtica da maria da Fonte entronizada nos livros pela histria oficial.

    como aponta maria Helena Werneck (2005, p.229), Jos cardoso Pires tinha como recomendao aos diretores de teatro no encenar O render dos heris em estilo heroico:

    deixar de lado o gnero herico e optar por outra forma, em que tanto caiba o segredar do medo quanto elementos satricos, j se pronunciava como opo esttica desde o Prlogo [...]. Por outro lado, anunciando uma prtica escritural que recria convenes do gnero revista, Jos cardoso Pires pretende enfa-tizar a narratividade pica da cena em O render dos heris.

    as convenes do teatro de revista se fazem notar espe-cialmente na apoteose grotesca, que apresenta caractersticas que se aproximam do distanciamento brechtiano.

    a negao do estilo heroico est posta na pea desde o ttulo at a composio de personagens anti-heroicas, e isso que cardoso Pires, em sua recomendao, espera que se preserve na encenao.

    A apoteose grotesca: satrica e distanciada

    cardoso Pires buscou nos poemas de afonso duarte (1884-1958) e em textos da criao artstica popular o ma-

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    terial para a composio das canes de O render dos heris. as trovas que o cego canta na primeira parte da pea so versos transcritos dos volumes Sibila e Ossadas, de afonso duarte. dos estudos e registros do historiador do sculo XiX oliveira martins (1845-1894)6 foi extrada a base histrica de O render dos heris, pea em que a citao e a aluso so os procedimentos utilizados na composio das canes e, em menor nmero, das recitaes e dos coros de sua fbula histrica. Por meio da linguagem verbal e visual, tais citaes e aluses revelam o carter ideolgico da pea, o qual, por sua vez, define uma clara viso de um mundo de opressores e oprimidos, da impotncia dos homens frente s foras do Poder.

    a caracterizao da apoteose grotesca uma aluso s caricaturas das personagens histricas publicadas nos jornais da poca, principalmente no suplemento Burlesco de O Patriota.7 as caractersticas das personagens histricas do andor de costa cabral, indicadas na rubrica da cena final, so as mesmas das caricaturas do referido jornal descritas por oliveira martins (1895, p.269-70):

    o Suplemento Burlesco, em lithographias toscas e caricatu-ras grotescas, insultava diariamente os cabraes e a sua gente, mostrando que o antigo genio soez da satyra portugueza no se extinguira. aqui vinha o Triumpho do Chibo: um bode (o conde

    6 o livro Portugal contemporneo, de oliveira martins, os poemas de afonso duarte, as contribuies poticas populares publicadas na imprensa do sculo XiX e as caricaturas do suplemento Burlesco so informaes dadas parte, isto , fora do texto da pea, no final do livro O render dos heris.

    7 O Patriota era um jornal de oposio ao cabralismo e, no seu suplemento Burlesco, mostrava frequentemente costa cabral travestido de cabra. cardoso Pires informa que a figurao da apo-teose grotesca foi inspirada em caricaturas da poca publicadas no suplemento Burlesco do jornal O Patriota durante o ano de 1847 (cardoso Pires, 1970).

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    de Thomar) com um sacco aos hombros e o letreiro roubo; o chibo sobre um andor que um cofre, o Thesouro, levado por saldanha e por Jos cabral, o dos conegos, de vestes talares.

    a rubrica da pea descreve de forma semelhante o an-dor de costa cabral:

    Entra o andor de Costa Cabral: uma arca descomunal, a letras garrafais arca do Tesouro e sustentada por quatro varas. a uma vem stanley; a outra um sujeito vestido de cnego com uma legenda ao peito Z (dos cnegos) da siLVa caBraL, rei do norTe; terceira aparece um velho com uma casaca vestida s avessas e um dstico saLdanHa e, por ltimo, um marreco, todo condecorado com cifres de lata [...]. costa cabral vem no cimo do andor, sombra de uma grinalda onde se l: anTnio Bernardo da cosTa caBraL. est vestido de bode, com um rabo terminado em seta como o dos mafarricos; distribui cortesias a torto e a direito. (cardoso Pires, 1970, p.251-2)

    Toda a caracterizao da apoteose, pela deformao das personagens e pela movimentao de cortejo oficial aqui tornado ridculo, a da imagem caricatural da situao po-ltica de Portugal em 1847, quando da volta do cabralismo, mostrando, por meio da stira, uma crtica aos mecanismos ilcitos do Poder. a cena constituda pela movimentao do cortejo: pessoa a pessoa, grupo a grupo, vai-se fazendo vagarosamente o desfile com a imponncia das grandes ocasies (idem, p.249).

    a imponncia dos movimentos obviamente contrasta com a forma de trajar das personagens. instaura-se, pois, a stira. no grupo no est presente a rainha d. maria ii, mas o general espanhol trata de gritar um Viva, la reina! Viva, Portugal! e um Viva de vozes se faz ouvir no palco e fora dele. alm dessa, h apenas mais uma fala do dr. silveira

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    em tom de quem discursa: ordem! sossego nos espritos! sejamos cordatos e saibamos perdoar. no nos julguemos nicos donos da razo porque em toda parte ela digna de se encontrar. no palcio do rico como na choupana do pobre (idem, p.250). no lugar de falas, frases escritas em cartazes carregados pelas personagens, conhecido procedimento brechtiano. o fiscal leva um cartaz no qual est escrito a lei exige desvelo; a Baronesa de stanley leva outro: mes agradecidas, s deus sabe o que sofremos.

    a cena muda no final da apoteose em que as per-sonagens abrem e fecham a boca como se vociferassem ou comentassem, apontando para o Falso cego com o letreiro ao pescoo J vi, agora no vejo , torna-se a representao da represso queles que j viram, isto , queles que, com a revoluo popular, se conscientizaram do regime de represso do governo, como acontece com o Falso cego, mesmo que agora paream no ver.

    no ano seguinte publicao da pea de cardoso Pires, em artigo publicado no Dirio de Notcias, Joo gaspar simes (2004, p.96) afirmava que o esprito que preside concepo de O render dos heris satrico, e relacionava essa caracterstica matria histrica retomada na pea:

    no que se utilize nele [esprito satrico] uma stira maneira queirosiana, mas a stira que um libertino pode se-gregar quando por ventura lana mo de um tema em si mesmo to mitificado que se no pode dizer concretamente onde esto nele os heris, e o que valem, de facto, como heris.

    concretizada completamente na apoteose grotesca, a vertente satrica , de fato, resultante das formas ridculas e grotescas com as quais so caracterizadas as personagens nas cenas finais: em vez de chapu alto [os pares do reino] trazem panelas enfiadas na cabea e, maneira de meda-lhas, uma quantidade de talheres pendurados. no colar

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    da comenda uma perna de frango (cardoso Pires, 1970, p.250). a aluso s caricaturas da poca, configuradas na apoteose grotesca, promove, por meio do esprito satrico, o distanciamento do pblico e, por conseguinte, o despertar da crtica.

    anatol rosenfeld explica que, na esttica do teatro pico, o elemento cmico unido ao didtico tem como resultado a stira. entre os recursos satricos utilizados est tambm o grotesco:

    no preciso dizer que a prpria essncia do grotesco tornar estranho pela associao do incoerente, pela conjuga-o do dspar, pela fuso do que no se casa [...] no grotesco, Brecht se aproxima de outras correntes atuais, como por exemplo do Teatro de Vanguarda ou da obra de Kafka. Brecht, porm, usa recursos grotescos e torna o mundo desfamiliar a fim de explicar e orientar. (rosenfeld, 2006, p.158)

    na figurao da apoteose grotesca de cardoso Pires na qual as caractersticas das personagens se assemelham s mscaras brechtianas8 e atingem somente as classes superiores , o elemento conhecido (a volta dos cabrais) transforma-se em elemento estranho pela caracterizao ridcula das personagens. essa imagem de estranheza que se forma na cena ainda enfatizada pelo fato de ser a per-sonagem de costa cabral, vestida de bode, a que, ao correr o pano negro, mostra, com esse gesto, o funcionamento do teatro, acentuando, pois, o efeito de distanciamento.

    assim, cardoso Pires recontextualiza, de forma alegrica, as caricaturas das figuras polticas do sculo XiX publica-

    8 anatol rosenfeld (2006, p.158-9) cita exemplos de caracterizaes grotescas nas encenaes de Brecht: [...] os soldados e o sargento de Homem Homem apareciam como monstros enormes, mediante o uso de pernas de pau e cabides de arame, acrescentados de gigantescas mos artificiais e mscaras parciais.

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    das na imprensa portuguesa da poca por meio de uma linguagem teatral que produz o mesmo efeito de distancia-mento crtico que a stira implica. consegue criar, a partir da aluso, uma nova expresso artstica para a mesma matria criticada na contemporaneidade do acontecimento que agora passado (histrico).