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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

CIBORGUE: A MENTE ESTENDIDA DE ANDY CLARK

Suely Fernandes Molina

SO CARLOS 2007

CIBORGUE: A MENTE ESTENDIDA DE ANDY CLARK

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

CIBORGUE: A MENTE ESTENDIDA DE ANDY CLARK

Suely Fernandes Molina

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Joo de Fernandes Teixeira

SO CARLOS 2007

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SUELY FERNANDES MOLINA

CIBORGUE: A MENTE ESTENDIDA DE ANDY CLARK

Dissertao apresentada Universidade Federal de So Carlos como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, em 07 de novembro de 2007. Avaliao: ____________

BANCA EXAMINADORA:

Presidente ______________________________________________ Prof. Dr. Richard Theisen Simanke Universidade Federal de So Carlos

1. Examinador __________________________________________ Prof. Dr. Luis Carlos Petry Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

2. Examinador __________________________________________ Profa. Dra. Josette Maria A. de Souza Monzani Universidade Federal de So Carlos

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Agradecimentos

Ao Prof. Joo de Fernandes Teixeira, orientador amigo, pela competncia, confiana, sugestes, bibliografia, incentivo e acompanhamento. Fora do escopo, em decorrncia do imprevisto, agradecimentos pela pacincia, perseverana e compreenso das dificuldades de ordem orgnica e suas conseqncias existenciais. Ao Prof. Luis Carlos Petry, pela acuidade na leitura e sugestes, que muito contriburam para a minha evoluo. Profa. Josette Maria A. de Souza Monzani, pelas sugestes e pela delicadeza. Ao amigo Jos Antonio Rodrigues Porto, pela crtica do primeiro produto. Ao Huno, que esteve muito perto desde o incio, no s com o apoio de filho, mas com competncia, a qual, guardadas as propores das especificidades das reas de pesquisa de cada um, me fez ver que ele j foi mais longe. A quem acompanhou os meus primeiros passos, pelo exemplo vivo de dedicao intelectual, pelo incentivo incessante, pelas sugestes, pela disponibilizao de bibliografia, pelo acolhimento em belos lugares de Atena; pelo inestimvel impulso. Aos amigos e famlia, que respeitosamente me apoiaram. Aos meus filhos, de cuja existncia minhas aes dependem.

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Ao meu neto (a), a caminho, que me trouxe alegria em tempos de tenso. Ao tempo, que me devolveu o desejo e a crena no futuro.

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RESUMO

O tema do ciborgue, da mistura dos organismos com as mquinas, tem sido bastante explorado nos dias atuais. Neste texto, o tema volta a ser discutido, primeiramente, atravs de um breve panorama histrico e, em seguida, atravs de uma quebra de paradigma, proposta pelo filsofo da mente Andy Clark, conhecida como Mente Estendida ou Externalismo Ativo: no necessrio que o humano porte implantes, chips, submeta-se a transplantes ou use computadores vestveis para que ganhe o estatuto de ciborgue. O ser humano , naturalmente, ciborgue, pois incorpora, desde sempre, ferramentas que ampliam sua mente. Portanto, h uma redefinio do conceito de mente, que a liberta dos limites da caixa craniana e a estende at os limites da ao humana, abarcando corpo, crebro e mundo. Ao crebro dado o papel de controlador dessa mente material, de cuja existncia ela depende.

Palavras-chave: Filosofia Filosofia da Mente Externalismo Ativo Cognio Estendida Ciborgue Mente e Crebro Mente Estendida

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ABSTRACT

The cyborg theme, concerning the combination of organisms and machines, has been extensively explored recently. In this text, the theme is once again discussed, first, through a brief historical overview and, then, through a shift in the paradigm, proposed by the philosopher of mind Andy Clark, known as Extended Mind or Activ Externalism: its not necessary for a man to have implants or chips in his body, to receive a transplant or to use wearable computers to gain the status of cyborg. The human being is naturally a cyborg, because it has always incorporated tools that extend the mind. Therefore, there is a redefinition of the notion of mind, which frees it from the limits of the skull and extends it to the limits of human action, involving body, brain and world. The brain carries the fate of controlling this material mind, upon which its existence depends.

Keywords: Philosophy - Philosophy of Mind Activ Externalism Extended Cognition Cyborg Mind and Brain Extended Mind

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SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................10 1 - CIBORGUE: UMA CONTEXTUALIZAO.................................................................16 1.1 - A origem: componentes exgenos para estender as funes humanas.......................21 1.2 - Nos dias atuais: variantes no uso do termo ciborgue..................................................38 O ciborgue na robtica e na inteligncia artificial...........................................................42 O ciborgue na medicina...................................................................................................47 O ciborgue na arte...........................................................................................................49 O ciborgue no cinema......................................................................................................52 O ciborgue na literatura...................................................................................................57 O ciborgue na filosofia....................................................................................................59 2 - O CONCEITO DE MENTE ESTENDIDA EM ANDY CLARK.....................................66 2.1 Antes da descoberta: o percurso at a mente estendida .............................................68 A linguagem como geradora de plasticidade mental e como ferramenta de conhecimento...................................................................................................................68 Aes epistmicas como pensamentos (extenses dos processos cognitivos para alm do corpo)...............................................................................................................................70 Reflexes sobre a sutil fronteira entre usurio e instrumentos e sobre a utilizao do ambiente nos processos cognitivos..................................................................................72 Quatro conseqncias da utilizao do entorno para a mente e o crebro......................75 2.2 Aps a descoberta: a explicao cientfica da mente estendida.................................78 Do externalismo de Putnam e Burge ao externalismo ativo...........................................78 Os argumentos que sustentam o externalismo ativo: paridade e complementaridade....82 Argumento da paridade...................................................................................................83 Argumento da complementaridade.................................................................................85 Quem somos e onde estamos?.........................................................................................96 CONCLUSO.........................................................................................................................98 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................102

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INTRODUOImaginemos a situao de um intelectual que sempre leva consigo seu laptop. Nele esto anotados os esboos de suas novas idias, alguns artigos j prontos para publicao, mais da metade de um novo livro, que vem sendo desenvolvido h cerca de quinze meses, as fotos dos ltimos cinco anos (desde que substituiu sua velha cmera por uma digital) das comemoraes familiares e dos encontros acadmicos, uma imensa bibliografia, levantada durante toda a sua vida acadmica, seu currculo completo, com nada menos do que 43 pginas, toda a sua produo intelectual dos ltimos 30 anos, sem falar de sua agenda de compromissos e endereos. Aquele computador uma importante ferramenta de trabalho e um grande auxiliar no desenrolar de sua vida pessoal, uma vez que carrega uma quantidade de informaes tamanha que se torna impossvel, ou no mnimo deveras trabalhosa, a recuperao em caso de perda. Em dado momento, exatamente o que ocorre: o laptop perdido. Somente a o intelectual pde avaliar que j havia passado dez meses desde a ltima execuo de uma antiquada e trabalhosa rotina de back-up, e que durante esse tempo ele havia pensado mil vezes em no s executar a rotina, mas substitu-la por uma mais eficiente, utilizando novas tecnologias de hardware e software. Mas sua agenda, sem folga, fez com que o tempo voasse e que providncias importantes fossem procrastinadas. claro que a situao no envolvia apenas a perda de um computador, que poderia ser substitudo na primeira loja do bairro, mas, sobretudo, a perda de informaes de suma importncia, que somente uma pequena parcela 10

poderia ser extrada de sua memria biolgica. Para o intelectual, esse acidente seria comparvel perda de memria decorrente de um derrame cerebral com seqelas de difcil reparao. A histria acima parece fico, mas s o parcialmente. Faz parte da imaginao somente o contedo do laptop, porm o acidente descrito foi baseado em um fato real, cujo protagonista foi o filsofo Andy Clark. O prprio filsofo conta que teve dois tipos de acidente cerebral. Um, biolgico, que o deixou at hoje com a viso turva em um dos olhos, e outro, quando perdeu seu laptop, que no possua back-up, pois as conseqncias dessa perda foram semelhantes s conseqncias oriundas de um real acidente vascular no crebro. Tomando por base esse exemplo, propomos a seguinte questo: a mente humana, tal qual a do filsofo, est limitada caixa craniana ou pode ir alm, abarcando outros instrumentos que a auxiliam no desempenho de suas funes, tal como aquele pequeno computador? O que motivou a formulao de tal questo foi a teoria que Clark desenvolveu sobre a natureza humana, cuja bibliografia, poca pouco conhecida no Brasil, foi sugerida pelo orientador desta pesquisa, o professor Joo de Fernandes Teixeira. Trata-se de uma corrente bastante atual da Filosofia da Mente, conhecida como Externalismo Ativo. No entendimento dessa filosofia, prprio do ser humano o acoplamento de tecnologias cognitivas capazes de ampliar os potenciais humanos, aqueles conhecidos como naturais. A fala colocada em destaque como uma tecnologia a mais remota delas dada a apropriao que o aparelho fonador fez de partes de outros sistemas do corpo no decorrer da evoluo da espcie. Nos manuais de anatomia e fisiologia pode-se ver que o aparelho fonador composto por rgos do aparelho digestivo e respiratrio (Cf. Tortora, 2000). Sua natureza suplementar vem sendo ressaltada tambm por vrios estudiosos, entre eles a pensadora da cultura contempornea Lucia Santaella, a qual afirma, em Culturas e Artes do Ps-Humano (2003: 211-212), que no obstante sua pretensa naturalidade, a fala j um tipo de sistema tcnico, quase to artificial quanto um

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computador, que (...) para se realizar teve de roubar parte do funcionamento dos rgos naturais da respirao e deglutio. Andy Clark afirma, em seu livro Natural-Born Cyborgs, que ns existimos apenas como coisas pensantes que somos, graas a uma complexa dana de crebros, corpos e muletas culturais e tecnolgicas (2003: 11). Dessa forma, buscar a compreenso dessas intrincadas relaes entre humanos e aparatos culturais e tecnolgicos, no presente e futuro tecnolgico que se abre a ns, nos pareceu, primeira vista, ser uma tarefa fundamental, da mesma forma que os seculares mitos sobre as criaturas artificiais tambm poderiam nos ajudar a encontrar respostas interessantes. Porm, com a pesquisa ainda insipiente e uma quantidade enorme de dvidas, nossa opo foi perseguir o caminho desse filsofo, partindo de sua mais incisiva afirmao poca, que ser analisada ao longo deste trabalho: somos todos naturalmente ciborgues. Ciborgues? Quem no sabe o que ciborgue? Afinal, j faz parte da realidade e do imaginrio humano... Porm, quando falamos em cincia, necessrio um pouco de aprofundamento no conceito. Assim, fizemos um pequeno levantamento do uso do termo ciborgue, que vem ampliando vertiginosamente seus sentidos nos ltimos anos. A pesquisa abrangeu algum levantamento histrico registrado pelo MIT- Massachusetts Institute of Technology, bem como a leitura de alguns autores que teorizam sobre esse novo sujeito, o ciborgue, designado mais comumente, nesse universo intelectual, como ps-humano ou ps-biolgico. Tambm foi abarcado o universo cientfico, de onde foram selecionados ciborgues no campo da medicina, da robtica e da inteligncia artificial. O ciborgue na arte, cinema e literatura no podiam deixar de ser considerados, pois essas compem as principais reas que popularizam o termo e o imaginrio a ele vinculado. Na filosofia que nosso principal objeto de estudo no contexto atual o foco maior foi na designao dada ao termo por Andy Clark, apresentada na segunda parte deste trabalho. Porm, para a contextualizao do ciborgue nessa rea do saber, tambm foi disponibilizado um breve levantamento histrico, baseado, sobretudo, em escritos de Joo Teixeira. 12

Com um panorama sobre os sentidos do ciborgue, pudemos imergir no conceito de Mente Estendida, apresentado por Clark como a caracterstica do humano que o torna naturalmente ciborgue. Essa apresentao se deu no apenas em publicao atravs de editora do MIT como tambm atravs de publicaes em revistas, pginas da web e entrevista a rdio, material com o qual trabalhamos. E muito provvel que tenha sido a forma da apresentao da idia que nos levou a pensar que ele divulgava sua concluso maneira de um eureka". A idia de que a mente humana localiza-se dentro do corpo biolgico est entranhada no senso comum tal como o est a idia da separao entre mente e crebro ou esprito e matria da herana cartesiana. Esse um paradigma que Clark vem tentando romper. Quando estamos produzindo, por exemplo, um trabalho acadmico, somos vtimas desse preconceito de que os processos mentais ocorrem exclusivamente dentro da caixa craniana. Temos a ntida idia de que a produo de nossa monografia depende exclusivamente do nosso crebro, de que dele depende todo o material que ser gerado. Grande equvoco, diria Clark. Na verdade, alm da maior parte das idias armazenadas em nossa memria no serem prprias, a estrutura, forma e vazo do produto final depender muito do modo complexo como o nosso crebro interagir com as vrias tecnologias. Essas tecnologias incluem, no caso de uma monografia, livros, artigos armazenados em meio digitalizado, seja no nosso computador, seja em um servidor, cujo acesso se d atravs da Internet, caneta, papel onde efetuamos anotaes de idias que poderiam ser esquecidas (note-se, nossa memria foi estendida e contamos com essa extenso integralmente: com nossas anotaes em sulfite e com nossas anotaes margem dos textos lidos), e, tambm, o dicionrio Babylon (Translation @ a click, 2007), um software inteligente, prtico e rpido, que muito nos auxilia na leitura dos textos em outros idiomas. Portanto, o crebro biolgico no a fonte nica do nosso trabalho final. Sua funo, sem dvida, crucial. maneira de um programa boot da inteligncia humana, ele carrega os componentes biolgicos e no biolgicos da mente e acopla as atividades de soluo de problemas a uma variedade de recursos carregados. Se o crebro parar, tudo pra, mas se ele contar s com o que est dentro da caixa craniana, dispensando qualquer auxlio tecnolgico, 13

veremos que, dentro do paradigma clarkiano, o homem no seria realmente humano. Em oposio Descartes, Clark minimiza a racionalidade humana afirmando, entre outras coisas, que o crebro humano bom no frisbee e mau na lgica (1997: 61). Conforme veremos, o crebro um dos componentes (indispensveis) da mente e a dinmica entre ele e o mundo que permite ao humano ser bom na lgica. Em seu entendimento, a capacidade do crebro limitase a operaes bsicas de reconhecimento de padres, mas a interao crebro e mundo gera processos cognitivos capazes de resolver problemas complexos. A partir da interao com o mundo e da criao de tecnologias, o homem foi capaz de criar representaes fsicas de fcil manipulao nos processos cognitivos. Um exemplo fornecido por Clark (ibid.: 62) a operao aritmtica de multiplicao do nmero 7222 pelo nmero 9422. Para a soluo, seriam necessrios alguns aparatos tecnolgicos, como uma calculadora ou um papel e uma caneta. Portanto, seriam necessrias ajudas externas que permitissem que o problema, inicialmente complexo, pudesse ser transformado em uma srie de problemas simples, como por exemplo, no caso da multiplicao proposta, a soluo comearia com a operao das duas unidades, 2 x 2, e o armazenamento dos resultados parciais. Tais tecnologias criadas passam a fazer parte do aparato mental do humano no momento em que a linha entre a tecnologia e o homem se atenua; e esse momento ocorre na medida em que essas tecnologias (chamadas transparentes) criadas pelo homem, automaticamente, ativamente, continuamente, a ele se readaptam. Clark trabalha com o conceito de Mente Estendida, ou seja, a mente naturalmente estendida alm dos limites do corpo, englobando tambm o mundo. Portanto, trata-se de uma mente material, que tambm se diferencia da res cogitans cartesiana. Decorrentes desse conceito, vrias dvidas surgiram: se a mente se estende fora da pele, como definir a localizao espacial humana? E se ela se estende no mesmo espao-tempo de outras criaturas humanas, tambm possuidoras de extenses, onde comea um indivduo e onde termina o outro? 14

Melhor ainda: como possvel uma individualizao? E, anterior a tudo isso, uma dvida mais bsica: o que so extenses? Para Clark, a caracterstica que torna o humano verdadeiramente humano exatamente a sua realidade ciborgue, ou seja, ter a mente estendida. E a explicao dessa mente feita atravs do externalismo que ele advoga, junto com David Chalmers, o Externalismo Ativo, teoria exposta com rigor na segunda parte deste trabalho. Desta forma, apresentamos, aqui, o resultado do percurso descrito, e, ao final, a conotao sui generis que o filsofo d ao termo ciborgue em comparao babel de conotaes ora existentes. Por fim, devido ao fato de a maior parte das obras consultadas serem escritas em idioma ingls, advertimos o leitor que todas as tradues foram feitas pela prpria autora, que solicita complacncia com as imperfeies ocasionalmente existentes. Advertimos, tambm, que dada a grande quantidade de documentos utilizados para este texto procederem da web, optamos por apenas referenciar o documento no corpo do texto, maneira de indicaes de bibliografia impressa, e colocar os endereos eletrnicos nas referncias bibliogrficas.

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1 - CIBORGUE: UMA CONTEXTUALIZAO

O termo ciborgue, j incorporado pela lngua portuguesa e muito popular na significao da convergncia do humano com as tecnologias, muito conhecido por sua veiculao nos meios artsticos, nos meios acadmicos e no nosso cotidiano, especialmente em nossa fico literria e filmogrfica. Dois bons exemplos so oferecidos pelos seriados americanos, produzidos e exibidos entre 1974 e 1979: Ciborgue, O Homem de Seis Milhes de Dlares e A Mulher Binica (The Six Million Dollar Man and The Bionic Woman) (Cf. Binicos, 2006). Esses seriados foram inspirados no livro Cyborg, de Martin Caidin (1972). Trata-se da histria de um astronauta que, tendo sofrido um acidente em um vo experimental, teve partes de seu corpo substitudas, tornando-se uma criatura meio-rob, meiohomem, com potencialidades fsicas muito superiores s dos demais humanos. Tambm a Mulher Binica tornou-se uma criatura fisicamente mais potente, aps ter partes de seu corpo substitudas em conseqncia de um acidente de praquedas. No mundo acadmico e artstico, esse tema tem aparecido, mais atualmente, associado chamada cultura do ps-humano, na qual os limites entre seres humanos e mquinas encontram-se esmaecidos pela enorme profuso de prteses e pela crescente associao entre mquinas e organismos vivos. Santaella, em seu livro Culturas e Artes do Ps-Humano (2003:181), diz que o humano, como tradicionalmente tem sido definido, encontra-se sob interrogao. Ela afirma que a crescente implementao de extenses tecnolgicas fez emergir a 16

conscincia de um novo estatuto do corpo, motivando a proliferao de novas propostas de nomes e definio para o humano. Vejamos algumas (Cf. Santaella, 2003: 191-2 e 1999: 33-4): 1988 Hans Moravec, em seu livro Mind Children (Moravec, 1988), usa a expresso ps biolgico para significar a liberao do pensamento da escravido de um corpo mortal; 1989 Jean Claude Beaune, em um estudo sobre autmatas, The Classical Age of Automata (Beaune, 1989), chama de autmata biociberntico e informtico a uma nova espcie de criatura viva, dotada de inteligncia semi-autnoma e de capacidade de adaptao; 1990 Stelarc, artista australiano, em Das Estratgias Psicolgicas s Ciberestratgias: a Prottica, a Robtica e a Existncia Remota (Stelarc, [1990] 1997), fala da necessidade de utilizar estratgias psevolucionistas para reprojetar o corpo, biolgicamente obsoleto; 1993 Gareth Branwyn diz, em The Desire to Be Wired (Branwyn, 1993), que ser necessrio formatar o corpo humano para que ele possa responder s exigncias e possibilidades de uma era pshumana; 1994 Francesco Antinucci (1994 apud Santaella, 2003, p. 192), no artigo Il Corpo della Mente, se refere a corpo biomaqunico; 1995 Ollivier Dyens, artista e professor no Canad, pressagia, em Lmotion du Cyberspace, uma outra espcie de corpo para o futuro: um corpo que est se tornando meta-orgnico, ou seja, uma mistura do orgnico com o eletrnico, o informtico e o telemtico; enfim, um ciborgue cognitivo (Cf. Dyens, 1995); 1995 - David Tomas, artista canadense, em seu artigo Psychasthenic Assimilation and the Cybernetic Automaton (Tomas, 1995) anuncia o futuro de uma outra espcie de corpo. Atravs de uma nova lgica de assimilao psicastnica entre as formas de vida mticas, mecnicas, cibernticas e sintticas, criada uma nova posio subjetiva e atua

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como uma prtica rebelde na formao de novos corpos, os autmatos cibernticos; 1995 Roy Ascott, artista e professor ingls, que trabalha com ciberntica e telemtica, no artigo Back to Nature II (Ascott, 2003), refere-se conscincia emergente, que se expande para alm do organismo humano, como ps-humana ou ps-biolgica; 1995 Robert Pepperell, artista e escritor ingls, com a publicao de The Posthuman Condition (Pepperell, 2003), aplica o termo pshumano para apontar a profunda interconexo que existe entre todas as coisas da natureza organismos e tecnologias e que tem implicaes para a viso tradicional da condio humana e para alguns dos mais velhos problemas da filosofia. Um dos captulos do livro um interessante manifesto do ps-humano, The Posthuman Manifesto, cuja sntese est disponvel na web (Cf. Pepperell, 2007). 1996 Nancy Katherine Hayles (1996 apud Santaella, 2003, p. 192) leva o termo ps-humano mais adiante, ao significado de transhumano, ou seja, mais que humano, pois considera que ps-humano representa a construo de um corpo como parte de um circuito integrado de informao e matria, incluindo componentes humanos e no-humanos.

Parece claro, a partir da lista apresentada, que em um curto perodo do final do sculo XX surgiram vrios termos com o objetivo de significar a expanso do humano, sobretudo devido mistura com algo de natureza no biolgica. Porm, toda a condio para o surgimento da necessidade de termos mais precisos para definir esse novo humano estava posta. Concordando com Donna Haraway, a relao entre o natural e o artificial apresentava ambigidades insustentveis, como se pode ver em seu importante Manifesto Ciborgue (Haraway 2000: 46):As mquinas do final do sculo XX tornaram completamente ambgua a diferena entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distines que se costumavam aplicar

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aos organismos e s mquinas. Nossas mquinas so perturbadoramente vivas e ns mesmos assustadoramente inertes.

A perturbao e o susto, referidos por Haraway como reaes diante do inusitado, podem confirmar a imposio desse novo sujeito busca de definies. Como o prprio ttulo do manifesto indica, Haraway optou pelo uso do termo ciborgue, propondo uma leitura progressista e feminista da imagem do ciborgue, com o fim de reivindicar a existncia de corpos ps-humanos, livres das amarras e submisses ao gnero (masculino/feminino). Porm, ela no apenas deu preferncia ao termo ciborgue como tambm foi quem verdadeiramente o notabilizou (Cf. Santaella, 2007), atravs de seu ensaio, o Manifesto Ciborgue: cincia, tecnologia e feminismo-socialista no final do sculo XX (2000), o qual ficou amplamente conhecido por seu questionamento das dicotomias ocidentais entre mente e corpo, natureza e cultura, organismo e mquina. Para finalizar a lista de termos aparentados ao ciborgue aqui apresentada, deve ser acrescentado o adjetivo biociberntico, que vem sendo utilizado por Santaella desde 1998, conforme ela prpria afirma em Os Sentidos do Ps-humano (Santaella, 2007). Tal como nesse texto, a autora explica as razes de sua escolha tambm em Corpo e Comunicao (2004: 54), preferencialmente transcrito aqui por ser um livro j publicado:O sentido que dou a essa palavra biociberntico similar ao de ciborgue, que, como se sabe, nasceu da juno de cyb(ernetic) + org(anism), cib(erntico)+org(anismo). Entretanto, prefiro o termo "biociberntico", de um lado, porque "bio" apresenta significados mais abrangentes do que "org", de outro lado, porque "biociberntico" expe a hibridizao do biolgico e do ciberntico de maneira mais explcita, alm de que no est culturalmente to sobrecarregado quanto ciborgue com as conotaes triunfalistas ou sombrias do imaginrio flmico e televisivo.

A vizinhana sinonmica do termo ciborgue extensa. Trazer a escolha de Santaella em suas prprias palavras nos pareceu importante, entre outras razes, por tratar-se da anlise de uma comunicloga e semioticista que, com sucesso, h anos vem se dedicando identificao dos rumos que a cultura vem tomando. Portanto, nos cabe esclarecer que, apesar de estarmos convencidos da propriedade do termo biociberntico, por duas razes esta pesquisa ser 19

conduzida utilizando o termo ciborgue: primeiro, porque um termo mais comumente encontrado nos atuais estudos filosficos da mente e, segundo, porque o filsofo Andy Clark, cujo pensamento o principal objeto do presente estudo, o adota. Avanando mais um passo na contextualizao do ciborgue, vamos rastrear um pouco de sua histria.

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1.1 - A origem: componentes exgenos para estender as funes humanas

Na origem, o termo ciborgue se referia aos componentes exgenos utilizados para estender as funes humanas. Foi atravs da publicao do artigo Cyborgs and Space (Clynes M.E. e Kline N.S., 1960) que o mundo recebeu e incorporou o termo cyborg. O artigo foi baseado na palestra Drugs, Space and Cybernetics, ministrada pelos cientistas Manfred Clynes (que verdadeiramente inventou o termo) e Nathan Kline, em um simpsio sobre os aspectos psicofisiolgicos do vo espacial, na Escola de Medicina e Aviao da Fora Area de Santo Antonio, Texas. Esses cientistas trabalhavam no Hospital Estadual de Rockland, Nova Iorque, e, inspirados por uma experincia realizada na dcada de 1950 com um rato, a quem havia sido acoplada uma bomba osmtica que lhe injetava doses controladas de substncias qumicas, eles apresentaram a idia de conectar um sistema de monitoramento e regulagem das funes fsico-qumicas tambm ao ser humano. O objetivo seria possibilitar que os astronautas se dedicassem apenas s atividades relacionadas com a explorao humana do espao, sem a necessidade de monitorar o ambiente por causa das condies ambientais requeridas para a sobrevivncia do organismo humano. Eles propuseram a utilizao de equipamentos de medida fisiolgica, com emisso de sinais de feedback corporais, com o objetivo de regular automaticamente o metabolismo, a respirao, as funes cardacas, entre outras funes biolgicas. O artigo de Clynes e Kline, originalmente divulgado pelo peridico Astronautics (1960), foi publicado em The Cyborg Handbook, cujo excerto apresentado abaixo (1995: 30-31):Quais so alguns dos equipamentos necessrios para a criao de sistemas de auto-regulao homem-mquina? Essa auto-regulao precisa funcionar sem o benefcio da conscincia, de forma a cooperar com os controles homeostticos autnomos do prprio corpo. Para o complexo organizacional exogenamente extenso, funcionando

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inconscientemente como um sistema hemeosttico, ns propomos o termo cyborg. O ciborgue deliberadamente incorpora componentes exgenos, estendendo a funo de controle, de auto-regulao do organismo, com o fim de adapt-lo a novos ambientes. Se o homem est no espao, alm de pilotar seu veculo, ele precisa continuamente checar as coisas e fazer ajustes para manter-se vivo, ento ele se transforma em escravo da mquina. O propsito do Ciborgue, assim como seu prprio sistema homeosttico, providenciar um sistema organizacional no qual tais problemas so resolvidos automaticamente e inconscientemente, deixando o homem livre para explorar, criar, pensar e sentir.

interessante notar que os cientistas optaram por modificar os astronautas ao invs de construir ambientes artificiais, semelhantes aos terrestres, para que eles pudessem sobreviver. Para esse fim, visaram tornar automtico e inconsciente o casamento entre o sistema ciberntico e o orgnico, tal como o o equilbrio homeosttico biolgico. Porm, to somente examinar o momento histrico e as condies em que o termo foi criado no basta para a contextualizao do ciborgue, cuja variedade de significaes est prxima da equivocidade. Tambm importante lembrar que apesar do termo ter sido cunhado em 1960 no significa que a incorporao de componentes exgenos para ampliar as funes humanas date da mesma poca. Ao resgatar a histria do ciborgue, alm da grande quantidade de conotaes triunfalistas ou sombrias do imaginrio literrio, flmico e televisivo aludido por Santaella (2004: 54), encontramos, tambm, importantes registros histricos apontando fatos ocorridos muitos sculos antes, que sero expostos a seguir. Uma importante fonte de informao sobre o casamento do homem com a tecnologia so os registros da Computao Vestvel (Wearable Computing), publicados na pgina web do MIT- Massachusetts Institute of Technology, de onde foi extrada a seguinte definio de Computao Vestvel (Wearable, 2006):At a atual data1, computadores pessoais (personal computers - PC) no merecem esse nome. A maioria das mquinas fica sobre as mesas e interagem com seus donos apenas durante uma pequena frao do dia. Notebooks menores e mais rpidos tornaram a mobilidade um problema menor, mas o mesmo ultrapassado paradigma do usurio persiste. A computao vestvel espera acabar com esse mito de como um computador deve ser usado. Um computador de uma pessoa1

No h, na pgina web fonte da citao, a data em que a definio foi escrita, porm, acreditamos que tenha sido antes de 1997, ano em que as atualizaes pgina cessaram.

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deveria ser vestido, tal como os culos e as roupas o so, e deveria interagir com o usurio conforme a situao do contexto. Com monitores acoplados cabea, dispositivos de entrada de dados facilitada, redes locais e pessoais sem fio, e uma poro de outros aparelhos de sensibilidade e comunicao contextual, o computador de vestir pode funcionar como um assistente inteligente, seja ele um Agente de Lembrana (RA-Remembrance Agent), uma Realidade Aumentada (KARMA-Knowledge-based Augmented Reality for Maintenance Assistance) ou cooperativas intelectuais.

importante observar que, apesar dessa definio de computao vestvel apresentada pela citada pgina web referir-se especificamente a computadores na sua significao mais usual, a lista dos vestveis (wearables) que acompanha a definio disponibiliza informaes muito anteriores inveno da mquina de Turing2. Portanto, embora o ttulo da pgina web que serviu de guia para o nosso trabalho seja Computao Vestvel, acreditamos ser mais apropriado, em alguns casos, o termo equipamento de vestir ou vestvel. Navegando nessa pgina web (Cf. Wearable Computing, 2006), podese ver que os equipamentos utilizados no corpo para aumentar ou medir performances humanas, tornando-os ciborgues, j existiam desde o sculo XIII. interessante notar que os registros trazem no somente computadores e nem tampouco somente implementos fsicos, mas tambm idias, sejam elas projetos cientficos ou fices literrias, inclusive roteiros cinematogrficos. Os dados histricos que sero descritos na seqncia, cobrindo o perodo de 1268 at 1997, sero baseados nos tpicos registrados na pgina web, porm, trouxemos o resultado de outras pesquisas para complementar as informaes neles registradas. Abrindo a breve histria dos Computadores de Vestir, o MIT cita Roger Bacon um importante cientista da idade mdia, tambm vtima da igreja por seus trabalhos cientficos inovadores , o qual props, em 1268, o uso de lentes para propsitos ticos. Esse o registro mais antigo na histria dos culos. O registro seguinte data de 1665. Nesse ano, Robert Hooke cientista ingls que trabalhou com Boyle e que disputou com Newton a autoria da lei da2

A Mquina de Turing um modelo abstrato de qualquer computador, descoberto pelo matemtico ingls Alan Turing, na dcada de 1930. A esse tipo de computadores estamos atribuindo a significao mais usual da palavra computadores. Para maiores detalhes sobre o funcionamento da Mquina de Turing, consultar O que Inteligncia Artificial, de Joo de Fernandes Teixeira (1990).

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inverso quadrada da gravitao teorizou sobre a ampliao dos sentidos atravs do acrscimo de rgos artificiais aos naturais. Parece-nos interessante trazer, aqui, as suas prprias palavras, escritas no prefcio do livro Micrographia (Hooke, [1665] 2003):O prximo cuidado a ser tomado com relao aos Sentidos a suplementao de suas debilidades com instrumentos e, dessa forma, a adio de rgos artificiais aos naturais, o que, em um deles, vem sendo realizado h muitos anos, com prodigiosos benefcios para todos os tipos de conhecimento (...). E como os culos de grau tm melhorado nossa viso, ento no improvvel que sero encontradas muitas invenes mecnicas para melhorar nossos Sentidos de audio, olfato, paladar e tato.

No extrato apresentado, importante notar que Hooke faz referncia e exalta os benefcios do que Roger Bacon tinha proposto quinhentos anos antes. Seu objetivo seria encontrar solues equivalentes, criando outros rgos artificiais para suprir as deficincias dos demais rgos dos sentidos humanos, tal como a viso tinha os culos como extenso de seus limites. Aproximadamente cem anos depois, em 1762, John Harrison (Cf. Navegao, 2007), um artfice ingls que viveu de 1693 a 1776, inventou o primeiro cronmetro marinho para determinar a longitude de um navio. Durante os anos das grandes exploraes, o problema da longitude foi o maior dos desafios cientficos. A longitude de um navio s era possvel ser estimada se o navio navegasse pela costa, sem perder a terra de vista. Porm, esse tipo de rota, alm de limitar as exploraes, tambm deixava a embarcao sujeita a choques com rochas e a ataques de piratas. O governo da Inglaterra ofereceu uma enorme recompensa para quem descobrisse um mtodo para resolver o problema. Um artfice ingls, John Harrison, encontrou uma soluo mecnica: um relgio que poderia manter-se preciso no mar, ou seja, o primeiro cronmetro marinho capaz de determinar, com quase total preciso, a longitude de um navio. Recentemente, Dava Sobel, escritora americana sobre tpicos da cincia, publicou o livro Longitude: The True Story of a Lone Genius Who Solved the Greatest Scientific Problem of His Time (Longitude: A Verdadeira Histria de um Gnio Solitrio que Resolveu o Maior Problema Cientfico de seu Tempo) (Sobel, 1996), cujo ttulo j denota a importncia da

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descoberta. A mesma autora disponibiliza na web o texto A Brief History of Early Navigation (Uma Breve Histria do Incio da Navegao) (Sobel, 2007). Saltando do sculo XVIII para o XX, a pgina web do MIT (Cf. Wearable Computing, 2006) cita Vannervar Bush, cientista e inventor, que, em 1945, props a idia de um Memex MEMory indEX, instrumento individual e porttil para armazenamento e recuperao de informaes (livros, registros e comunicados) de modo flexvel e rpido, e que funciona como um suplemento da memria. Em seu artigo sobre o Memex, As We May Think, ele diz textualmente que o Memex um apndice pessoal para suplementar a memria do indivduo (Bush, 1945: 4). Sua concepo do Memex tinha como pano de fundo um conceito de funcionamento no linear da mente. Na histria das novas tecnologias de informao e comunicao, Bush passou a ser considerado o responsvel pela concepo do hipertexto a partir da publicao do referido artigo. O termo hipertexto foi cunhado anos depois, em 1965, por Theodor Holm Nelson (2007). Em 1960, mesmo ano em que a palavra Cyborg foi cunhada, Morton Heilig, cineasta americano, patenteou um HMD (Head-Mounted Display). Tratavase de um dispositivo semelhante a uma televiso ou a um monitor de computador, estereofnico, para ser vestido na cabea, de forma que a pessoa pudesse assistir a um espetculo sem perceber o ambiente que a cercava. Dois anos mais tarde, Heilig patenteou o Sensorama Simulator, instalado em cinemas da poca, composto por cadeiras com vibrao, culos especiais, som estereofnico, controle de temperatura ambiente e equipamento para gerar odores, conforme o tema do filme. Com isso, Heilig pretendia estimular todos os sentidos do pblico para que ele entrasse tambm na trama cinematogrfica. Embora seu invento no tenha tido sucesso comercial, ele foi o precursor da imerso do usurio em um ambiente artificial, pois conseguiu criar uma iluso de realidade atravs de um filme em 3D e movimentos mecnicos. Os conceitos desenvolvidos por Heilig so considerados, hoje, parte da histria da realidade virtual. (Cf. Heilig, 2007). Em 1966, o cientista americano Claude Shannon, considerado o pai da teoria da informao (GRAHAM, 2002), acompanhado do estudante Ed Thorp, divulgou a criao do primeiro computador para ser vestido no corpo humano, que havia sido criado cinco anos antes. Tratava-se de um computador analgico cuja 25

finalidade era antecipar o resultado da roleta nos cassinos. Tinha o tamanho de um mao de cigarros e possua quatro botes. Um recoletor de dados utilizava os botes para indicar a velocidade da roda da roleta, e o computador enviava ondas, via rdio, ao fone de ouvido do apostador, para informar o resultado previsto para a roleta, conforme a velocidade captada. Os detalhes do sistema foram publicados, posteriormente, na Review of the International Statistical Institute (Shannon, 1969). O histrico do feito foi relatado pelo escritor americano William Poundstone, em Fortune's Formula: The Untold Story of the Scientific Betting System that Beat the Casinos and Wall Street (Poundstone, 2005), livro cuja resenha est disponvel na web (Berlekamp, 2005). Nesse mesmo ano, Ivan Sutherland, cientista americano considerado o pai da computao grfica, iniciou a construo, na Universidade de Harvard, de um capacete de visualizao 3D (HMD-Head Mounted Display), com imagens geradas por computador, incorporando um sistema de rastreamento da posio da cabea. Esse trabalho considerado por muitos como o marco inicial da imerso em ambiente virtual e incio da realidade virtual. A construo do HMD foi baseada em seu projeto de 1965, The Ultimate Display (Sutherland, 1965). Ainda em 1968, Douglas Carl Engelbart, cientista americano, criou o NLS (oN Line System), um computador pessoal que inclua teclado, processador de textos, hipermdia, mouse, acesso Internet (no na sua forma atual), entre outras caractersticas. A demonstrao pblica desse sistema on-line, que Engelbart vinha desenvolvendo desde 1962, no Augmentation Research Center, Stanford Research Institute, Califrnia, com uma equipe de dezessete pesquisadores, foi feita atravs de um vdeo de 90 minutos, na Fall Joint Computer Conference, em So Francisco. Breves extratos do vdeo original podem ser encontrados na Internet. (Engelbart, 2007). Registrado na pgina web do MIT (Cf. Wearable Computing, 2006) est o invento de Alan Lewis, em 1972. Tratava-se de um computador digital para a comunicao entre o tomador de apostas e o apostador, visando informar o resultado previsto para o jogo. Tal como os sistemas de Thorp e Shannon, acima citados, era utilizada uma ligao por rdio.

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C.C.Collins desenvolveu, em 1977, uma cmara ttil, na forma de um casaco, para ajudar os deficientes visuais. A teoria relativa ao invento foi comunicada durante a Fourth Conference on Systems & Devices For The Disable (Collins et al, 1977). Em 1978, dois estudantes da Universidade da Califrnia em Santa Cruz, Doyne Farmer e Norman Packard, dupla conhecida por Eudaemonic, projetaram e construiram outra mquina para predizer a parada da roleta, instalada em sapato e que gerava ondas de rdio a partir de movimentos do dedo do p. Eles desenvolveram um software para calcular as equaes envolvidas no movimento da roleta, considerando a posio, velocidade e desacelerao da bola, porm tiveram muitos problemas de ordem tcnica, tais como, a diferena entre o movimento das diversas roletas e a interferncia dos sons prprios do cassino no aparelho inventado. poca, ainda era permitido o uso de computadores nos cassinos, da haver polmica sobre serem os dois cientistas trapaceiros ou no. O escritor americano Thomas A. Bass escreveu um conto, intitulado The Eudaemonic Pie (Bass, 1992) sobre esse fato. No ano seguinte, a Sony, empresa japonesa de eletrnicos, criou o walkman, um reprodutor de cassete para ser usado no corpo. Anos depois, esse aparelho foi adaptado para reproduzir os ento surgidos compact disc (CD), que possuem qualidade muito superior. O advento da internet e a criao de mtodos para compactao de msicas em formato digital (conhecidas genericamente por MP3) fizeram com que, nos dias atuais, os MP3 Players, cujo modelo mais procurado o iPod, lanado no mercado pela empresa Apple em 2001, substitussem seus antecessores. Steve Mann, quando ainda estudava em uma escola secundria, desenhou um computador, montado em uma mochila, para controlar o flash dos sistemas fotogrficos. O projeto foi concludo em 1981. So vrios os artigos escritos por Mann (Cf. Mann, 1997; 1998; 1998a), os quais permitem concluir que ele antecipou a concepo do laptop, lanado no mercado somente no final da dcada de 80. Mann nasceu no Canad, pesquisador na Universidade de Toronto, mas desenvolve projetos tambm no MIT.

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A pgina web do MIT (Cf. Wearable Computing, 2006) cita Keith Taft, que, em 1983, comercializava computadores para contar cartas de baralho, operados pelo dedo do p. Do campo da literatura, a pgina web do MIT (Cf. Wearable Computing, 2006) cita o escritor americano Willian Gibson, que vive atualmente no Canad, autor de fico cientfica, cujo primeiro romance, Neuromancer (Gibson, [1984] 2003), o precursor de um novo gnero de fico cientfica, conhecido como ciberpunk. A literatura ciberpunk, da qual Gibson considerado pai, tem uma viso muito pessimista do futuro, predizendo o aparecimento de corporaes capitalistas multinacionais e mostrando os efeitos negativos dos incrementos de novas tecnologias aos humanos. Embora se considere que o ciberpunk est ultrapassado enquanto gnero literrio, as idias que Gibson apresentou nos seus romances se alastraram para outros contextos, tanto artsticos como sociolgicos ou tcnicos. A srie dos filmes Matrix, foi inspirada em sua novela. (Cf. Matrix, 2006) No campo da cinematografia, a referida pgina web do MIT (Cf. Wearable Computing, 2006) cita o filme Terminator (Cf. Terminator, 2006), lanado em 1984 e conhecido no Brasil como O Exterminador do Futuro. O exterminador, protagonista cujo nome T-800, possui uma cobertura de pele humana sobre um esqueleto artificial e dotado de inteligncia tambm artificial. So interessantes as cenas que mostram o ponto de vista do ciborgue T-800, cuja expresso se d atravs de textos e informaes grficas exibidas em uma tela, que o seu olho. Dois anos depois, o artista e cientista americano Steve Roberts construiu a Winnebiko II, uma bicicleta reclinada, com um computador a bordo e um teclado simples, alm de outras caractersticas. As especificaes tcnicas das vrias verses da bicicleta computadorizada, criadas ao longo de 13 anos e com as quais o cientista rodou um total de 17.000 milhas por seu pas, encontra-se no texto Welcome to Computing Across America! (Roberts, 1986). Esse invento lhe permitia, enquanto andava de bicicleta, teclar e fazer interface com a Internet, via rdio. Em 1990, a empresa Olivetti desenvolveu um sistema ativo de insgnias, usando sinais infravermelhos para comunicar a localizao das pessoas. Isso permitia o rastreamento da posio de uma pessoa e seu registro em um

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banco de dados central. Os identificadores mediam 55x55x7mm, pesavam 40g e eram produzidos com baixo custo. Em 1991, Doug Platt props um computador, do tamanho de uma caixa de sapatos, baseado em um PC286. O computador era dotado de uma tela, um teclado de Palmtop, uma unidade de disquete e um dispositivo que possibilitava prend-lo cintura. (Cf. Wearable Computing, 2006) No mesmo ano, Mark Weiser props, em seu artigo The computer for the 21st century, publicado na revista Scientific American (Weiser, 1991), a idia de Informtica Onipresente, ou seja, um mundo em que a maioria dos objetos cotidianos teria dispositivos informticos embutidos. Sob a influencia do plano de Doug Platt, a partir de 1993, Thad Starner, professor no Instituto de Tecnologia da Gergia, em Atlanta, comeou a carregar constantemente seu computador. (Cf. Starner, 2007) Em 1993, a empresa americana BBN Technologies terminou o sistema Pathfinder, um computador para ser usado no corpo, com GPS- Global Positioning System e sistema de deteco de radiao. Tambm em 1993, Thad Starner escreveu a primeira verso do RARemembrance Agent: A continuously running automated information retrieval system, software desenvolvido no MIT. O RA era uma memria associativa automatizada, que recomendaria os arquivos pertinentes de uma base de dados, baseando-se nas notas que estavam sendo escritas em um computador usado no corpo. Uma outra verso do sistema foi escrita em parceria com o cientista Bradley Rhodes (Starner e Rhodes, 2006). No mesmo ano, Steve Feiner, Blair MacIntyre e Dore Seligmann desenvolveram, na Universidade de Columbia, o KARMA- Knowledge-based Augmented Reality for Maintenance Assistance, mais conhecido como realidade aumentada. O objetivo era fornecer instrues de manuteno, como por exemplo, esquemas grficos com instrues de como mudar a bandeja de papel em uma copiadora laser. O sistema, executado em um nico computador do escritrio, utilizou sensores atados aos objetos do mundo fsico, visando determinar sua situao. (Cf. Feiner, S., et al, 1993)

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Em 1994, Mik Lamming e Mike Flynn desenvolveram um sistema pessoal de gravao batizado como Forget-Me-Not. Era um dispositivo usvel no corpo, que gravaria as interaes com as pessoas e dispositivos, guardando essa informao em uma base de dados para consultas posteriores. A comunicao entre os equipamentos instalados nos diversos ambientes era feita atravs de transmissores sem fio (wireless) e as informaes registradas versavam sobre quem estava presente no ambiente, quem estava falando ao telefone e que objetos estavam no local. Permitia consultas do tipo: Quem veio ao meu escritrio enquanto eu falava ao telefone em dado momento?. (Cf. Lamming e Fflynn, 1994). Ainda em 1994, Edgar Matias e Mike Ruicci, da Universidade de Toronto, construram um sistema para uso em uma s mo, half-QWERTY, atravs da modificao de um computador Palmtop HP 95LX e de um teclado. Com o teclado e os mdulos de visualizao atados aos antebraos do operador, um texto poderia ser elaborado aproximando os pulsos e digitando. O sistema foi selecionado para a comercializao pela LGElectronics. (MATIAS et al, 1994). No mesmo ano, a DARPA- Defense Advanced Research Projects Agency iniciou o Programa de Mdulos Inteligentes, desenvolvendo produtos como computadores, rdios, sistemas de navegao, interfaces humano-computadores etc., para uso comercial e para o exrcito. (Cf. Wearable Computing, 2006). Ainda nesse ano, Steve Mann, citado anteriormente por seus feitos no incio dos anos 1980, desenvolveu o Wearable Wireless Webcam, que transmitia imagens de uma cmara fotogrfica para a Internet. As imagens eram transmitidas ponto-a-ponto, da cmara para uma estao base SGI- Reality Engines on the Internet, via freqncia de televiso. Elas eram processadas pela estao base e exibidas em uma pgina da web, quase em tempo real. Nesse mesmo ano, o cientista e artista teorizou sobre o conceito de Realidade Mediada (Cf. Mann, 1994), como sendo o processo tecnolgico pelo qual o usurio do Wearable Webcam pode sobrepor os objetos virtuais vida real, podendo remov-los ou alter-los. Nos dias atuais, Steve Mann define o humano como ciborgue devido a integrao homem- tecnologia (Mann, 2001, p. 93). Em 1996, a DARPA patrocinou o seminrio Wearables in 2005, que reuniu industriais, universidades e militares visionrios para trabalhar no tema 30

comum de orientar a informtica ao indivduo. No mesmo ano, a Boeing organizou a conferncia Wearables, com o mesmo fim. Em 1997, a Creapole cole de Cration et de Design e o cientista do MIT, Alex Pentland, produziram, em Paris, uma Mostra de Moda de Roupa Inteligente (Smart Clothes Fashion Show). O objetivo era prever o casamento iminente da moda com os computadores para vestir. Como ltimo item registrado na pgina web do MIT (Cf. Wearable Computing, 2006) est o Primeiro Simpsio Internacional de Computadores Vestveis (ISWC 1997- First International Symposium on Wearable Computers), organizado pelo IEEE (Institute of Electrical and Electronics Engineers, Inc.) e patrocinado pelas instituies CMU (Central Michigan University), MIT (Massachusetts Institute of Technology) e Gergia Thech (Georgia Institute of Technology). O simpsio versou sobre temas acadmicos, com textos publicados sobre variados assuntos, desde sensores at as novas aplicaes para os computadores de vestir (Cf. ISWC1997, 1997). Os dados histricos dos equipamentos de vestir listados acima, que para elaborao utilizamos a seqncia dos tpicos registrados pelo MIT, nos levaram a reflexes, as quais sero discutidas nos prximos pargrafos, algumas oriundas do prprio contedo da informao e outras oriundas das inferncias que essas informaes nos possibilitaram fazer. Tambm, a ampliao da pesquisa sobre esses registros, atravs de consultas a documentos fonte, a maior parte deles encontrada na web (conforme indicaes bibliogrficas), nos permitiu ver o quanto so valiosos e, ao mesmo tempo, incompletos esses registros, a comear pelas atualizaes, que foram encerradas com o Primeiro Simpsio Internacional de Computadores Vestveis, ocorrido em 1997, conforme j indicado. Os simpsios continuaram a ocorrer anualmente, sediados, na maior parte das vezes, em diferentes estados americanos, tendo sido sediado por duas vezes na Sua e uma no Japo (Cf. ISWC, 2007). O evento de 2007 est programado para a primeira semana de outubro, em Boston. O programa preliminar prev duas conferncias plenrias, sendo que a de abertura do simpsio versar sobre robtica de vestir e a abertura dos trabalhos no dia seguinte tratar de interfaces entre computador e crebro (Cf. ISWC2007, 2007). 31

Por que essa atualizao da pgina foi interrompida aps ter coberto 730 anos de histria? So vrias as possibilidades de inferncia, porm nenhuma delas podendo ser validada no mbito deste trabalho. Isso no significa, entretanto, que elas no possam ser aqui expostas. O primeiro pensamento que nos ocorre que o nosso cotidiano est repleto de pequenas extenses ou equipamentos de vestir tais como: luvas para tirar pratos quentes de fornos, tnis visando diferentes modalidades esportivas, prteses dentrias para garantir a capacidade de triturao dos alimentos ou para melhorar a esttica facial, equipamentos para mergulho, casacos para enfrentar baixas temperaturas, bons, bengalas, seios de silicone etc. , o que nos faz imaginar o quo exaustiva seria uma lista completa, pois nela seria necessrio incluir desde nossos vesturios mais bsicos at as prteses mais sofisticadas, utilizadas hoje pelas vrias especialidades da medicina. Outra constatao que a cobertura dos 730 anos de histria possui uma concentrao de registros a partir da segunda guerra mundial. Entre a proposta de correo das disfunes do sentido da viso, feita por Roger Bacon (1268), at a proposta de suplementao das debilidades dos outros sentidos, feita por Robert Hooke (1665), passaram-se quase 400 anos. De Hooke a John Harrison (1762), que desenvolveu o primeiro cronmetro capaz de ser usado para precisar longitudes, transcorreram-se aproximadamente 100 anos. O quarto registro dos computadores de vestir na pgina web do MIT j salta para o ps-guerra, em 1945. Como sabido, o desenvolvimento cientfico provocado pelas necessidades blicas e de proteo aos soldados, impostas pelas primeira e segunda guerras mundiais, bem como a utilizao de vidas humanas para pesquisas laboratoriais, trouxe um desenvolvimento tecnolgico exponencial para o mundo. Porm, tambm no difcil concluir, a partir da breve histria dos equipamentos de vestir apresentada, que nela apenas foram selecionados os fatos que representaram um salto na histria desses equipamentos. A partir das dcadas de 1980 e 1990, com o alto desenvolvimento cientfico, sobretudo da inteligncia artificial, robtica e nanotecnologia, bem como com o investimento americano em pesquisas sobre o crebro, vrias ramificaes foram surgindo. Alm disso, as recentes descobertas na rea da biologia e as possibilidades de interseo entre ela e a robtica, por exemplo, tm provocado o surgimento de novos projetos e a 32

delimitao de novas reas. O refinamento da especializao possibilitou o surgimento contnuo de novas frentes de pesquisa e desenvolvimento cientfico aparentados aos vestveis ou ao ciborgue, mas que hoje esto filiados a novas reas, com novos nomes. Atualmente, basta fornecer alguns argumentos de busca e um click no Google para encontrar vrios programas de pesquisa e desenvolvimento tecnolgicos, distribudos por diversos centros de pesquisas cientficas do mundo, com projetos desenvolvidos com a participao de centros de vrios pases, em mtua cooperao. No prprio MIT h programas de desenvolvimento tecnolgico em torno da biomecnica, bio-robtica, biomecatrnica, prottica, orttica, biotrajes e exoesqueletos (Cf. Biomecatrnica, 2007), nenhum deles registrados na pgina web dos computadores de vestir. Embora suas produes, na maior parte das vezes, resultem em equipamentos de vestir, elas j criaram vida prpria. Esses prprios programas de desenvolvimento tecnolgico serviriam de exemplo para o que anteriormente dissemos sobre o termo ciborgue estar prximo equivocidade. Ora a prottica e a orttica so colocadas como aplicaes da biomecatrnica, ora elas so aludidas como tendo autonomia. confusa, tambm, a diferena entre biotrajes e exoesqueletos, pois h, certamente, exoesqueletos que so biotrajes e vice-versa. Sem dvida, a biomecnica, a biorobtica, a biomecatrnica, a prottica, a orttica, os biotrajes e os exoesqueletos so ou podem produzir computadores de vestir, que tambm produzem ciborgues, ou seja, aumentam as potencialidades ditas naturalmente humanas. Porm, no faz parte do escopo deste trabalho tentar precisar essas classificaes, embora seja importante registrar a extenso do assunto, sua complexidade e sua novidade, que suscitam, a cada dia, novas idias e novos rumos cientficos e tecnolgicos. Assim sendo, apenas a ttulo ilustrativo, vejamos, resumidamente, do que essas reas tratam. Os exoesqueletos (Cf. Inovao Tecnolgica, 2007) combinam o sistema de controle de msculos humanos com msculos artificiais. So equipamentos para vestir, altamente ergonmicos, manobrveis e que permitem a agilidade humana sem significativas redues. Foram projetados, inicialmente, para auxiliar soldados a carregarem mochilas pesadas, porm podem auxiliar mdicos, bombeiros, equipes de resgate, pessoas com deficincias na musculatura, bem 33

como facilitar atividades de lazer, tal como acampamento selvagem. No Japo est sendo desenvolvido um exoesqueleto (Cf. Digital Drops, 2007), que uma espcie de rob que pode ser vestido por uma pessoa. Sua funo aumentar em at dez vezes o potencial de levantamento de peso por humanos. O exoesqueleto interpreta o que os msculos esto fazendo, e reage a esses impulsos. Um exoesqueleto j foi testado por dois alpinistas profissionais, que carregaram duas pessoas com deficincia em locomoo at o topo de uma montanha sua (Cf. Digital Drops, 2007). J os biotrajes objetivam proteger o ser humano, aumentando a capacidade de sua pele. Um projeto em desenvolvimento projeto EVA-ExtraVehicular Activity (Cf. Eva, 2007), voltado especificamente para pesquisas visando as atividades extraveiculares dos astronautas, objetiva prov-los de uma segunda pele para facilitar as atividades executadas em gravidades baixas ou mesmo em superfcies extraterrestres, tal como a lua ou marte. O objetivo reduzir a energia gasta pelo astronauta e diminuir o risco de despressurizao, alm de outros perigos inerentes ao tipo de atividade que exercem. H, tambm, um projeto em desenvolvimento, pelo Institute for Soldier Nanotechnologies do MIT, que tem por objetivo criar uniformes militares capazes de bloquear armas biolgicas. (Cf. Uniformes Militares, 2006). A biomecatrnica a aplicao da mecatrnica que uma disciplina que utiliza as tecnologias da mecnica, eletrnica e tecnologia da informao (TI) para fornecer produtos, sistemas e processos melhorados para resolver problemas de sistemas biolgicos, em particular o desenvolvimento de novos tipos de prteses e rteses. Biotrajes e exoesqueletos tambm so produzidos atravs do uso dessa tecnologia. (Cf. Biomecatrnica, 2007a). A bio-robtica integra a robtica com o sistema nervoso, conseguindo, por exemplo, gerar prteses que funcionam com maior agilidade e integrao do que as prteses mecnicas. A biomecnica uma cincia que investiga o movimento sob aspectos mecnicos, suas causas e efeitos nos organismos vivos. Suas concluses so vastamente utilizadas pelas demais reas citadas.

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Enfim, aps o panorama apresentado, com mais fundamento caminhamos em direo idia de que o desenvolvimento cientfico e tecnolgico tomou rumos de forma tal que a definio de computao vestvel apresentada anteriormente (Cf. Wearable, 2006) tornou-se insuficiente para abarcar as produes cientficas e tecnolgicas que visam aumentar as potencialidades humanas. Para corroborar essa idia, trouxemos uma nova definio, apresentada por Steve Mann na palestra principal do Simpsio Internacional de Computadores para Vestir de 1998 (International Symposium on Wearable Computers-ISWC 1998), intitulada Computadores de Vestir como um Meio para Reforo Pessoal (Wearable Computing as Means for Personal Empowerment):Um computador de vestir um computador que se subsume no espao pessoal do usurio, controlado pelo usurio, e possui constncia, tanto operacional quanto interacional, isto , est sempre ligado e acessvel. Ele um aparelho que sempre est com o usurio e pelo qual o usurio pode sempre introduzir comandos e executar uma quantidade deles, mesmo enquanto caminha ou realiza outras atividades. O aspecto mais notvel dos computadores em geral (vestveis ou no) sua reconfigurabilidade e generalidade, isto , suas funes podem ser criadas para variar extensamente, dependendo das instrues providas para a execuo do programa. Com o computador de vestir (WearComp) isso no diferente, ou seja, o computador de vestir mais que um relgio de pulso ou uns culos de grau comuns: ele tem as funcionalidades completas de um sistema de computador, mas, alm de ser um computador com todas as caractersticas, est tambm inextricavelmente entrelaado com um dispositivo para vestir. Isso o que distancia o computador de vestir dos outros aparatos vestveis como relgios de pulso, culos de grau comuns, rdios portteis etc. Ao contrrio desses outros aparatos de vestir, que no so programveis (reconfigurveis), o computador de vestir to reconfigurvel quanto um computador desktop comum ou um mainframe. (Mann, 1998a).

Essa definio de Steve Mann distingue, entre os vestveis, o que um aparato ou equipamento e o que um computador. Para precisar sua idia, Mann prope uma definio formal em termos de trs modos bsicos de interao mquina-homem e seis atributos fundamentais da mquina para que haja uma sinergia humano-mquina. Com o objetivo apenas de fornecer uma noo da definio de Mann, resumimos, abaixo, os modos e os atributos por ele propostos (Mann, 1998a): So modos bsicos de interao mquina homem: Constncia o computador deve estar sempre pronto para interagir com o usurio;

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Acrscimo o computador deve servir para aumentar o intelecto ou os sentidos do usurio;

Mediao o computador precisa se misturar ao usurio.

So atributos fundamentais da mquina para que haja uma sinergia humano-mquina: No monopolizadora no monopolizar a ateno do

usurio; No restritiva permitir que o usurio faa outras coisas

simultaneamente; Observvel possibilitar que o usurio veja os

processos a qualquer tempo; Controlvel possibilitar o controle pelo usurio a

qualquer tempo; Atenta ao ambiente, ou seja, multimodal, multisensria; Comunicativa sempre disponvel para ser usada como

meio de comunicao.

Em sntese, a computao vestvel possibilita uma nova forma de interao humano-computador, compreendendo um pequeno computador usado no corpo humano, programvel, que est sempre ligado e sempre pronto e acessvel. Desse modo, a nova estrutura computacional difere daquela dos portteis (handhelds), laptops e assistentes digitais pessoais (PDAs). A capacidade de estar "sempre pronto" (always ready) conduz a uma nova forma de sinergia entre humano e computador, caracterizada pela adaptao de longo prazo, devido constncia da interface entre os dois. (Mann, 1998a).

Porm, nos dias atuais o termo ciborgue no se limita mais aos componentes exgenos para extenso das funes humanas, conotao que mais exploramos at aqui. Se ele nasceu da juno entre o homem e a mquina, hoje podemos v-lo aplicado no s a essa juno, mas a qualquer dos dois lados, o da 36

mecanizao e eletrificao do humano e o da humanizao e subjetivao da mquina (Silva, 2000:14). Portanto, para que possamos contextualizar o tambm complexo ciborgue dos dias atuais, cabe-nos um pouco mais de pesquisa, embora sem a pretenso de exaurir o tema.

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1.2 - Nos dias atuais: variantes no uso do termo ciborgue

No tpico anterior, exploramos o conceito de ciborgue como extenso das funes humanas atravs do acoplamento de componentes exgenos. Com tal significao, percorremos as variedades dos equipamentos e computadores de vestir. primeira vista, o termo ciborgue remete mistura entre humanos e tecnologias, porm, essa viso um tanto parcial. O prprio ciborgue que inspirou Clynes e kline era um rato, apelidado de Rose, pelo fato de a ele estar acoplada uma bomba osmtica de Rose-Nelson, inventada nos anos 1950 por S. Rose e J. F. Nelson (1955). A foto de Rose faz parte do artigo publicado no Astronautics (Clynes e Kline, 1995: 30), e mesma fotografia que Haraway se refere (Haraway,1995, apud Clark, 2003: 15), conforme o seguinte comentrio de Clark:(...) hora de concluir que o primeiro ser chamado de ciborgue no um monstro de fico e nem mesmo um humano com um marca-passo (apesar de que eles tambm so ciborgues dessa categoria simples), mas um rato branco de laboratrio arrastando um desajeitado apndice uma bomba osmtica de Rose, que lhe foi implantada. Esse rato foi introduzido no trabalho de 1960 por Clynes e Kline como um dos primeiros ciborgues e a fotografia, como Donna Haraway maravilhosamente comentou pertence ao lbum de famlia do Homem".

Rose, o ciborgue branco, j nos indica que h muito mais a explorar sobre o termo ciborgue. Visando abarcar todas as possibilidades de mistura entre seres vivos e tecnologias, ou seja, abarcar grande parte do que hoje nomeado pela palavra ciborgue, propomos um esquema, na tentativa de organizar o pensamento. Considerando que o ciborgue, de alguma forma, uma construo tecnolgica imagem e semelhana dos organismos inteligentes, e considerando que tanto a inteligncia quanto o corpo3 podem ser naturais (biolgicos), artificiais3

Cabe pontuar, antes da exposio do esquema, que a discusso aqui no versa sobre as questes da separao entre mente e corpo, que vem ocupando a filosofia desde Descartes. Embora o esquema possa levar a esse

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ou mistos (partes naturais e partes artificiais), propomos este esquema exposto na seqncia:

Atravs da combinao desses elementos, chega-se s seguintes possibilidades:

1. Corpo natural sem inteligncia 2. Corpo artificial sem inteligncia 3. Corpo misto sem inteligncia 4. Inteligncia natural sem corpo 5. Inteligncia artificial sem corpo 6. Inteligncia mista sem corpo 7. Corpo natural com inteligncia natural 8. Corpo natural com inteligncia artificial 9. Corpo natural com inteligncia mista 10. Corpo artificial com inteligncia natural 11. Corpo artificial com inteligncia artificial 12. Corpo artificial com inteligncia mista 13. Corpo misto com inteligncia naturalequvoco, apenas esto sendo seguidas as conotaes do termo ciborgue, que por si s envolve a mistura de substncias.

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14. Corpo misto com inteligncia artificial 15. Corpo misto com inteligncia mista

Na anlise das combinaes desses elementos, exclumos, de sada, as inteligncias sem corpo e os corpos sem inteligncia, pois a um corpo sem inteligncia chamamos apenas objeto e uma inteligncia sem corpo no pode ter sua existncia comprovada dentro dos atuais limites da cincia4. Assim sendo, exclumos as combinaes de 1 a 6, que poderiam nem ter sido listadas como combinaes possveis, j que no h a mistura entre o corpo e a inteligncia. Pode-se levantar a objeo de que a quinta combinao, Inteligncia artificial sem corpo, pudesse causar alguma polmica, pois seria possvel argumentar que todo o mundo virtual seria uma inteligncia artificial sem corpo. Entretanto, faz-se imprescindvel a presena de um suporte material para a manifestao de toda e qualquer inteligncia e, nesse sentido, o mundo virtual constitudo por bases de dados fsicas, alimentadas e consultadas pelo homem, ou seja, por inteligncia natural. Trata-se de inteligncia natural, da mesma maneira que o quando expressada em papel ou atravs da fala, por exemplo. No temos conhecimento, mesmo no imaginrio literrio ou flmico, da existncia de um ciborgue oriundo da fuso de um dos elementos parcialmente ou totalmente natural com outro totalmente artificial. Ou seja, parece impossvel5 que uma inteligncia parcialmente ou totalmente natural se exera em um corpo totalmente artificial, da mesma forma que parece impossvel que um corpo parcialmente ou totalmente natural sobreviva com uma inteligncia totalmente artificial. Portanto, as combinaes 8 (Corpo natural com inteligncia artificial), 10 (Corpo artificial com inteligncia natural), 12 (Corpo artificial com inteligncia mista) e 14 (Corpo misto com inteligncia artificial) tambm devem ser descartadas. As combinaes 9 (Corpo natural com inteligncia mista), 11 (Corpo artificial com inteligncia artificial), 13 (Corpo misto com inteligncia natural) e 15 (Corpo misto com inteligncia mista) j foram vastamente representadas pelo

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Nosso trabalho limita-se a considerar as manifestaes da inteligncia explicadas pela cincia. As manifestaes religiosas e espiritualistas no foram objeto de pesquisa. 5 No se trata da afirmao de uma impossibilidade lgica, mas apenas de no termos encontrado casos ilustrativos para essas combinaes.

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homem, na maior parte das vezes atravs do imaginrio literrio e ou flmico, e carregam, de forma generalizada, o nome de ciborgue. A combinao 7 (Corpo natural com inteligncia natural) caracteriza o ser vivo na sua constituio biolgica. Esse ser totalmente natural, segundo o raciocnio proposto, no seria um ciborgue. Porm, exatamente essa discusso que levaremos adiante neste trabalho: ser essa realmente a combinao que melhor caracteriza o homem? Por ora, a manteremos como sendo a mais adequada, mas a ela acoplaremos outras trs possibilidades de combinao, j categorizadas acima como ciborgue, mas que acreditamos serem tambm adequadas para a caracterizao do ser humano. Trata-se das combinaes 9 (Corpo natural com inteligncia mista), 13 (Corpo misto com inteligncia natural) e 15 (Corpo misto com inteligncia mista). No difcil inferir que estamos diante de uma situao de impasse: como combinaes consideradas prprias do ciborgue podem ser sugeridas como prprias, tambm, do homem? Silva nos d uma primeira indicao sobre a dificuldade de estabelecimento das fronteiras entre o humano e o maqunico:Os ciborgues vivem de um lado e do outro da fronteira que separa (ainda) a mquina do organismo. Do lado do organismo: seres humanos que se tornam, em variados graus, artificiais. Do lado da mquina, seres artificiais que no apenas simulam caractersticas dos humanos, mas que se apresentam melhorados relativamente a esses ltimos. (Silva, 2000: 13-14)

Identificamos, entre as combinaes selecionadas, a utilizao do termo ciborgue para trs tipos diferentes de juno: os organismos acrescidos de implantes tecnolgicos ou substncias qumicas para suprir limitaes ou expandir capacidades que sua natureza no possui (Combinaes 9, 13 e 15); os robs, seres ou objetos mecnicos ou eletrnicos, dotados de alguma inteligncia (Combinao 11); e os andrides, que combinam elementos biolgicos manipulados geneticamente ou no, e que podem ser programados, tal como os robs (Combinaes 9 e 15). Especialmente a combinao 11 (Corpo artificial com inteligncia artificial) tem aparecido na fico s vezes como rob e s vezes como andride, dependendo da sua forma se assemelhar ou no humana.

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As combinaes 9 (Corpo natural com inteligncia mista), 11 (Corpo artificial com inteligncia artificial), 13 (Corpo misto com inteligncia natural) e 15 (Corpo misto com inteligncia mista) j foram vastamente representadas pelo homem, na maior parte das vezes atravs do imaginrio literrio e ou flmico, e carregam, de forma generalizada, o nome de ciborgue. Essas vrias nuances do ciborgue podem ser encontradas nas pesquisas cientficas, sobretudo nas tecnolgicas. A Inteligncia Artificial e Robtica (Combinaes 11 e 15) exploram bastante o ciborgue gerado por essas pesquisas, tanto quanto o geram. J a medicina e a farmacologia, sem discutir o status do ciborgue, vm contribuindo muito para o seu desenvolvimento. (Combinaes 9, 13 e 15) O conceito de ciborgue tambm vem sendo muito explorado pela arte, pela literatura e pelo cinema (Combinaes 11 e 15), que, alm de promoverem a antecipao do que est por vir, s vezes popularizam e disseminam idias antes impensveis, preparando o imaginrio coletivo para enfrentar e dominar a tcnica, ou simplesmente para conviver com ela. Por fim, na sua busca da essncia humana a filosofia tambm trata do ciborgue, que precisamente o objeto deste estudo. Para as trs naturezas de ciborgues identificadas acima os robs, os organismos expandidos e os andrides selecionamos alguns exemplos, distribudos atravs das reas identificadas, ou seja: Robtica e Inteligncia Artificial, Medicina, Arte, Cinema, Literatura e Filosofia.

O ciborgue na robtica e na inteligncia artificial

A robtica e a inteligncia artificial so produtores de ciborgues, embora no tenham essa misso especfica. Para caracterizar essas duas reas, normalmente entrelaadas, h inmeros exemplos interessantes. Optamos por trabalhar com alguns dos j selecionados por Joo Teixeira, e complementar o panorama com algumas ocorrncias posteriores s suas publicaes. Em Mentes e Mquinas (1998: 138), Teixeira descreve trs robs desenvolvidos no laboratrio de R. Brooks, no MIT: Allen, Herbert e COG. O primeiro deles consegue se locomover, 42

inclusive correr, registrar a distncia percorrida e parar ao se defrontar com obstculos. Tambm pode se mover aleatoriamente ou com propsito determinado. Nesse caso, ele fornece a informao da sua distncia em relao ao alvo a ser atingido, que pode ser monitorada. Nas palavras de Teixeira (1998: 138-139), Allen praticamente no tem estados internos e no se lembra de quase nada. Tampouco gera representaes daquilo que est acontecendo no mundo nem regras do tipo simblico. Todos os seus comportamentos esto gravados no seu hardware. Embora Allen seja um rob muito simples, ele executa movimentos e possui informaes atribudas a organismos inteligentes, podendo, portanto, ser enquadrado na categoria ciborgue. O segundo agente autnomo Herbert (idem: 139-140), um rob mais complexo, que identifica objetos a uma distncia de 3 a 4 metros e que, alm de locomover-se (possui rodas), pode manipular objetos atravs de um brao. Herbert tambm evita obstculos e possui uma gama de 15 comportamentos diferentes ao pegar objetos que consegue reconhecer, que so os semelhantes a latas de refrigerantes. Os comportamentos diferentes so arbitrrios, pois no h comunicao interna entre os mdulos que geram seus diferentes comportamentos, a no ser supresso e inibio; Herbert usa o mundo como modelo. Teixeira descreve (1998: 140):A arquitetura de Herbert apresenta vrias vantagens. No se sabe nunca o que ele vai fazer no momento seguinte, sua ao organizada de maneira oportunista. Se Herbert est se movendo para pegar uma lata de refrigerante e algum coloca uma em sua mo, ele pra de se mover e volta para o lugar onde se encontrava inicialmente. Isto significa que Herbert facilmente adapta seu comportamento s mudanas do meio ambiente. Mais do que isto: ele capaz de localizar latas de refrigerantes sobre escrivaninhas cheias de papis e outras coisas, embora no tenha nenhuma representao interna de uma escrivaninha.

Portanto, com mais propriedade do que Allien, Herbert pode ser classificado como ciborgue. O terceiro rob citado por Teixeira o humanide Cog, em desenvolvimento no MIT (Cog, 2006), motivado pela hiptese de que a inteligncia humanide requer interao dos humanides com o mundo. Com forma e capacidade quase humanas, foi projetado para interagir com o mundo e aprender 43

de forma semelhante cognio humana, tentando simul-la ou replic-la. Se o projeto for bem sucedido, Cog poder sentir e pensar como um ser humano, e o homem ter conseguido fazer as mquinas aprenderem como ele. Seu crebro nada mais do que uma rede de muitos microcomputadores de ltima gerao. Diz Teixeira (1998: 141):O aspecto mais interessante do COG que ele no ser desde o incio um adulto. Ele est sendo projetado para passar por um perodo de infncia artificial, onde aprender com a experincia e se ambientar com o mundo. Ele nascer com um software de reconhecimento facial e este item ser fundamental para o seu desenvolvimento. Mais do que isto, o COG ter uma me, a ser escolhida entre as estudantes que trabalham no projeto. COG reconhecer a sua me e far de tudo para que ela no saia de seu lado, como faz uma criana. Tudo o que no for desde o incio estabelecido como inato, mas for aprendido com a experincia, ser programado como inato na segunda verso do COG, o COG-2. Assim sendo, as vrias verses do COG percorrero os milhes de anos de evoluo do homem em poucos anos de laboratrio.

Atravs de divulgao pela mdia, o mundo vem conhecendo outros robs, alm de acompanhar o desenvolvimento do projeto COG. Foi anunciada a construo, por um grupo de cientistas japoneses, de uma mulher andride, Repliee Q1(Cf. Repliee Q1, 2005), que pode piscar, mexer a cabea, mexer as mos e mover o peito simulando o movimento respiratrio. Esse andride considerado um dos maiores avanos da robtica da atualidade e foi apresentado na Exposio Universal de Aichi, em Junho de 2005. Ele foi construdo em silicone flexvel, que se assemelha pele humana, e possui trinta e um mecanismos localizados na extremidade superior do corpo, que o possibilita interagir com as pessoas e responder ao toque. Sua programao permite que ele siga o movimento de um humano ou que aja de forma independente. O professor Hiroshi Ishiguru, da Universidade de Osaka e projetista do andride, afirmou que ele pode confundir um humano por cinco a dez segundos, mas que esse tempo poder ser estendido em at 10 minutos, atravs de aperfeioamento tecnolgico. E afirma que as pessoas esquecem sua natureza andride quando esto interagindo com ele e, inconscientemente, reagem como se o andride fosse uma mulher. A mesma equipe j havia construdo o andride Repliee R1, com aparncia de uma menina japonesa de cinco anos de idade. Ele fazia sinais com o

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brao e se movia em nove direes diferentes. Possua sensores debaixo da pele do brao que lhe permitiam reaes diversas, conforme as presses impingidas. Da Europa dos sculos XVII a XIX, algumas criaturas de mecnica complexa para a poca ainda so lembradas, tais como os autmatos de Vaucanson, os autmatos de Jaquet-Droz, as cabeas faladoras do abade Mical, a mquina enxadrista do baro von Kempelen, os autmatos com pndulo dos irmos Maillardet, a tocadora de harmnico de Kintzing, o autmato escritor de von Knauss, os autmatos das mgicas de Robert-Houdin, os autmatos pigmeus de Stvenard, entre outros (Cf. Autmatos Ancies, 2006). Sobre o Pato de Vaucanson, por exemplo, Teixeira (2000: 37) lista as suas capacidades, quais sejam, esticar o pescoo, bicar, engolir, digerir e expelir um gro, porm, afirma que no se sabe ao certo se o pato foi construdo ou se permaneceu em projeto. Supe-se, apenas, que ele date das imediaes de 1750. Na Sua de 1733, os irmos Droz teriam construdo trs bonecos: um escrivo, um desenhista e uma tocadora de instrumentos musicais. Os bonecos podiam mover os clios, os braos e inclinar o peito para a frente. O escrivo podia fazer frases sobre uma folha de papel, o desenhista teria a capacidade de fazer cinco desenhos e a tocadora executaria cinco melodias. (Teixeira, 2000: 38) A criao mais importante desse perodo foi a inveno de Wolfgang von Kempelen (1734-1804), nascido na Hungria, que apresentou, em 1769, uma mquina de xadrez mecnica, conhecida poca como Turco. Tratava-se de uma mquina que jogava xadrez com humanos. Seu mecanismo consistia em uma caixa com um homem enxadrista escondido dentro, que movia as peas atravs de ims e que conhecia o jogo do adversrio porque a exigncia da mquina era que o adversrio falasse sua jogada em voz alta. Ou seja, a mquina era uma farsa. Porm, ela causou muito impacto na poca, pois sua farsa demorou a ser descoberta. Em oposio ao Pato de Vaucanson e aos autmatos de Jaquet-Droz, que simulavam habilmente movimentos do corpo, a mquina de von Kempelen parecia ser dotada de razo. Ela causou bastante impacto na poca, tanto que Edgar Allan Poe lhe dedicou um ensaio, O Jogador de Xadrez de Maezel, publicado em 1836, no qual afirma que a mquina de xadrez de Kempelen de longe a mais maravilhosa das invenes da humanidade (Poe, 1978:1). Poe escreveu, tambm, 45

um conto, Von Kempelen e sua Descoberta (Poe, 1994), publicado logo aps sua morte, em 1849. A possibilidade de a mquina ser ou no um autmato foi discutida por vrios intelectuais da poca. Johann Lorenz Boeckmann, em 1785, ao argumentar contra a capacidade racional da mquina, deixou aberta a possibilidade de que ela pudesse ser um autmato. Boeckman escreveu:Uma mquina capaz de fazer muitos movimentos sozinha, em outras palavras, atravs de sua organizao interna (mesmo se ns quisessemos considerar essa possibilidade por um segundo) teria que ser construda de uma maneira surpreendente, com trabalho e habilidade infinitos. (Boeckmann apud Glaeser e Strouhal, 2005: 4)

Porm, no mesmo ano, outro estudioso dos autmatos, Friedrich Nicolai (1736-1811), estava convencido do contrrio, de que a razo e a considerao so atributos eminentemente humanos:Nenhum homem de razo pode aceitar a possibilidade de uma maquina jogar xadrez por meio de um mecanismo interno, ou seja, que ela possa tomar para si uma ao que requer razo e considerao. (Nicolai apud Glaeser e Strouhal, 2005: 5)

Outro intelectual, Johann Phillipp Ostertag, professor em Regensburg, no pde excluir a possibilidade de a mquina ser uma entidade intelectual com uma ntida percepo sobre as regras do jogo (Ostertag apud Glaeser e Strouhal, 2005: 4). Enfim, a Turca, aps muitas apresentaes pela Europa (1783-84, 181825) e Estados Unidos (1826-38), foi destruda em um incndio no Pearls Museum, na Filadlfia, em julho de 1854. Em 1880, com a farsa desvendada, ainda surgiram questes sobre como o enxadrista se escondia na mquina e como ele a controlava. (Glaeser e Strouhal, 2005). Segundo Teixeira, a Turca de von Kenpelen impressionou bastante os filsofos tambm. (Teixeira: 2003). Embora no tenhamos notcia de que La Mettrie (1709-1751) tenha conhecido a mquina de Kenpelen, ela poderia preencher seu sonho, qual seja, de que o pensamento e a fala seriam possveis tanto em animais quanto em autmatos (Cf. La Mettrie [1748], 1996). Entre 1770 e 1836, a mquina de von Kempelen foi uma das sensaes tecnolgicas do mundo. (Glaeser e strouhal, 2005). Em sua breve histria da Inteligncia Artificial, Teixeira (1990: 16) esclarece que a idia de construo de criaturas artificiais ou mquinas pensantes 46

antiga, porm os registros so confusos em termos de separao entre mito e realidade. Os ciborgues trazidos neste tpico perfazem os mais os conhecidos como reais.

O ciborgue na medicina(...) o ps-biolgico se refere a processos reais, que sinalizam a emergncia de uma era mida (moist) que est nascendo da juno do ser humano molhado (wet) com o silcio seco (dry), e que se instalar especialmente a partir do desenvolvimento das nanotecnologias as quais, bem abaixo da pele, passaro silenciosamente a interagir com as molculas do corpo humano. (Ascott (2003) apud Santaella, 2007, no prelo).

Ascott se referiu mistura das nanotecnologias com as molculas do corpo no tempo futuro do verbo: passaro a interagir. Porm, o futuro chegou. Os avanos da medicina tm sido exponenciais. Silva nos d alguns exemplos que nos remetem mistura ciborgue na medicina (2000: 14):Implantes, transplantes, enxertos, prteses. Seres portadores de rgos artificiais. Seres geneticamente modificados. Anabolizantes, vacinas, psicofrmacos. Estados artificialmente induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepo, a imaginao, a teso. Superatletas. Supermodelos. Superguerreiros.

Esses exemplos abrangem no s a medicina e farmacologia, mas tambm todo o tipo de drogadio. Valeria destacar na medicina a rea de diagnstico, que tambm proporciona ao homem o estatuto de ciborgue. Uma quantidade grande de exames acopla equipamentos tecnolgicos ao ser humano, de forma invasiva ou no, que permitem ver, medir, apalpar, etc, fazendo aquilo que o sentido humano no alcana, substituindo os antigos toques mdicos. E, interessante notar, tais tecnologias no estendem somente os sentidos do mdico para permitir uma maior preciso no diagnstico, mas muitas vezes estendem tambm o paciente. Darlene Menconi assinou uma reportagem na revista Isto, Quase um homem binico, mostrando os mais recentes chips e prteses eletrnicas 47

desenvolvidas para recuperar funes biolgicas e substituir rgos danificados. Abaixo, algumas dessas tecnologias para suprir deficincias de partes do corpo humano (Isto, 2000): Crebro chip implantado no crebro dispara sinais eltricos controlados. Indicado para reduzir tremores do mal de Parkinson e diminuir crises epilpticas. Ouvido Implante eletrnico no ouvido interno estimula nervo auditivo convertendo ondas sonoras em sinais eltricos. Nariz Com sensores minsculos, nariz binico detecta odores de mercrio, monxido de carbono e outros compostos qumicos. Ainda em fase de teste. Lngua Sensores qumicos detectam sabores, cido, doce, salgado ou amargo, mudando de cor de acordo com o gosto. Ainda em estudos preliminares. Voz Eletrodo implantado no crebro permite que pacientes com dificuldade de fala possam comunicar-se usando os olhos para movimentar o mouse e as clulas cerebrais para acionar teclas do computador. Corao Aparelho com dimetro de um lpis faz as vezes de uma vlvula para bombear o sangue no lugar do corao de quem sofreu infarto ou passou por cirurgia cardaca. Brao Feito de fibra de carbono e coberto de borracha siliconada para imitar a pele, brao binico recebe sinais eltricos do crebro e traduz comando em movimento das articulaes. Pele Fabricada em laboratrio, ajuda na recuperao de queimados. Pesquisadores agora criam nervos e veias artificiais. Coluna Vertebral Implante de irdio e platina capta os sinais nervosos emitidos pelo crebro e estimula o movimento dos msculos ligados espinha. Msculo Feitos de fibra sinttica, cozida e fervida em soluo qumica, os msculos artificiais tm elasticidade e rigidez. Perna Prtese eletromecnica com sensores de presso no calcanhar e na ponta do p imita a sensao de peso e resistncia do solo.

Os exemplos citados pela revista trazem tecnologias atuais, utilizadas pela medicina, que transformariam o homem em ciborgue. De fato, a medicina e a farmacologia so campos frteis de exemplos de tecnologias ciborgues, a comear pelas mais simples, tais como as dos medicamentos que eliminam dores de cabea, passando por prteses e rteses de vrias naturezas, funcionais ou 48

estticas (Prtese e rtese, 2005), pelos instrumentos cirrgicos que estendem o alcance e aumentam a preciso do trabalho mdico (Instrumentos Cirrgicos, 2005), pelos aparelhos de monitorao de pacientes (monitorao de presso arterial, presso venosa central, controle da oxigenao perifrica do corpo, controle da amplitude do movimento torcico, controle da temperatura, controle da freqncia e do ritmo cardaco) e de infuso (bombas para injeo de lquidos no corpo, que podem ser reguladas para liberar de 0,1ml a 999ml de medicamento lquido por hora, de maneira bastante precisa) (Monitorao e Infuso, 2005), e chegando at os aparelhos para respirao artificial, que trabalham soprando a quantidade de ar e oxignio necessrios, programados em conformidade com as condies fsicas de sade, faixa etria e tamanho do paciente, e que pra automaticamente somente se o pulmo conseguir realizar sozinho o trabalho de expulso do ar. Nos casos em que o ser humano capaz de respirar, embora de maneira insuficiente, o aparelho pode ser programado de modo a apenas completar o processo respiratrio. (Ventiladores, 2005). Cabe salientar que os exemplos citados representam uma parcela nfima do universo ciborgue na medicina. Porm, como o objetivo deste trabalho apenas contextualizar o ciborgue, passemos para outra rea.

O ciborgue na arte

Sobretudo nos dias atuais, em que a tcnica, as tecnologias e os conhecimentos da biologia tm ampliado exponencialmente as ferramentas de trabalho para o processo criativo e tm aumentado, tambm exponencialmente, os horizontes possveis para os rumos da cultura, a arte tem buscado explicar no s o momento da cultura hoje, bem como tem ousado explicar ou sugerir o momento seguinte. O artista, hoje, no mais cria o belo e aguarda que a crtica o aprecie e os intelectuais teorizem sobre sua criao: sua arte, na maior parte das vezes, j uma crtica e uma teoria da prpria arte e da cultura. O desvelamento da produo artstica, seja ela elaborada atravs de performances corporais, instalaes ou virtualidades, tem sido feito no to somente por crticos do belo, mas por 49

estudiosos da comunicao, da cultura, das novas mdias e dos novos materiais. As produes artsticas do sculo XXI que nos interessam aqui, ou seja, as que misturam o orgnico com o tecnolgico, consideram no somente a influncia do tecnolgico sobre o humano, mas tambm o inverso. Em 1995, por exemplo, Diana Domingues, artista brasileira e terica da arte, foi a curadora de um evento internacional, A Arte no Sculo XXI: A Humanizao das Tecnologias, que teve algumas das comunicaes publicadas sob sua organizao (Domingues, 1997), e em cuja introduo Domingues desenvolve o tema A Humanizao das Tecnologias pela Arte (Idem, 1997: 15-30). So muitos os vieses da arte que tangenciam o ciborgue: arte transgnica, cibercenas, cibercenrios, arte digital, realidade virtual, multimdia, hipertexto, robtica, prottica, artes visuais, design digital, cinema, holografia, telepresena, avatares etc. Da mesma forma, h uma variedade de perfis intelectuais que hoje fazem arte: artistas-crticos da cultura, artistas-bilogos, artistas-informticos, artistas-comuniclogos, artistas-cibernticos, artistas-tericos, artistas-engenheiros, artistas-fsicos, artistas-cientistas, artistas-tecnlogos etc. Dos artistas que trabalham o tema da cultura do ps-humano (ou seus sinnimos), o qual embute em si o tema do novo estatuto do corpo, citamos alguns: Francesco Antinucci (italiano); Oliver Dyens (canadense), David Tomas (canadense), Roy Ascott (ingls), Robert Pepperell (ingls), Stelarc (australiano), Ligia Clark (brasileira), Tnia Fraga (brasileira), Suzete Venturelli (brasileira), Victria Vesna (americana), Eduardo Kac (brasileiro, radicado nos EUA), Bia Medeiros (brasileira), Ken Goldberg (americano), Diana Domingues (brasilei