Ciencia, Tecnologia Capitalismo

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 467 Revista Portuguesa de Filosofia 63 • 2007 467 Ciência, Tecnologia, Capitalismo  e suas Interacções Dialécticas BRENA PAULA MAGNO FERNANDEZ *  R  ESUMO: O presente artigo pretende demonstrar de que modo, ao longo do processo  histórico asso ciado com os ê xitos do método cientíco, s e estabeleceu uma c adeia de inuências recíprocas entre a ciência e o sistema económico capitalista, típica das  sociedade s industriais avançadas. Com efeito, foi nos países onde a ciência atingiu um elevado grau de desenvolvimento que se iniciou o processo de industrialização.  Dado este facto, não deveriam restar dúvidas acerca dos impactos que as acções de um empreendimento vieram a causar sobre o outro, e vice-versa. Assim, o artigo pro-  cura claricar questões como a de saber até que ponto a ciência (enquanto insti- tuição e prática social), ao ser incorporada pelo sistema de produção capitalista,  passa também ela a reecti r interes ses, práticas e valo res tí picos de um sistema funda- mentado na forma mais eciente de produção de mercadorias. Inversamente, porém,  pergunta-se igualmente sobre até que ponto o capitalismo se transforma, no sentido  de incorporar , mediante o proces so de industrializaç ão, cada vez mais uma forma de  organização que se assemelha de modo ex traordinário ao m étodo cient íco.  P  ALA VRAS-C  HA VE: Burocracia; Capitalismo; Ciência e Cultura; Ciência; Ciência e  Poder; Ciênci a e Saber; Ciência e T ecnologia; Cien tifização da indús tria; Deter - minismo tecnológico; Industrialização da Ciência; Ladrière, Jean; McLuhan,  Marshall (1911-1980); Produtividade; Sociedade Industrial; Sociedade; T ecno- logia e Capitalismo; Tecnologia e Sociedade; Tecnologia; Trabalho; Weber, Max (1864-1920).  A  BSTRACT : The present paper argues that, probably due to the long record of achieve- ments of the scientific method, a chain of mutual influences between science and the capitalist economic system was established, which results in the typical process  of the advanced industrial societies. In fact, it was in the countries where science  had reached a high deg ree of develop ment that the process o f industrializati on began. Given this fact, there should be no doubts about the impacts that the actions of one  enterprise had on the other, and vice versa. Hence, the paper investigates issues like R. P. F. 63 • 2007  * Un iver sidade de Sã o Pa ul o Universidade de São Paulo (Brasil). – Segundo a autora, uma versão preliminar deste tra- balho foi discutida num seminário do Grupo de Investigação “Educação, Ciência & Tecnologia” da Universidade de São Paulo. A mesma agradece ao seu supervisor, Prof. Dr. Marcos Barbosa de Oliveira, bem como aos membros do grupo pelas críticas e sugestões feitas, muitas das quais, salienta a autora, foram incorporadas na elaboração desta versão final. A autora agradece também o apoio financeiro do CNPq.

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Ciência, Tecnologia, Capitalismo e suas Interacções Dialécticas

Brena PaulaMagno Fernandez *

 R esumo: O presente artigo pretende demonstrar de que modo, ao longo do processo histórico associado com os êxitos do método cientíco, se estabeleceu uma cadeia deinfuências recíprocas entre a ciência e o sistema económico capitalista, típica das

 sociedades industriais avançadas. Com eeito, oi nos países onde a ciência atingiuum elevado grau de desenvolvimento que se iniciou o processo de industrialização. Dado este acto, não deveriam restar dúvidas acerca dos impactos que as acções deum empreendimento vieram a causar sobre o outro, e vice-versa. Assim, o artigo pro-

  cura claricar questões como a de saber até que ponto a ciência (enquanto insti-tuição e prática social), ao ser incorporada pelo sistema de produção capitalista,

 passa também ela a refectir interesses, práticas e valores típicos de um sistema unda-mentado na orma mais eciente de produção de mercadorias. Inversamente, porém,

 pergunta-se igualmente sobre até que ponto o capitalismo se transorma, no sentido de incorporar, mediante o processo de industrialização, cada vez mais uma orma de organização que se assemelha de modo extraordinário ao método cientíco.

 P alavRas-C have: Burocracia; Capitalismo; Ciência e Cultura; Ciência; Ciência e Poder; Ciência e Saber; Ciência e Tecnologia; Cientifização da indústria; Deter-minismo tecnológico; Industrialização da Ciência; Ladrière, Jean; McLuhan, Marshall (1911-1980); Produtividade; Sociedade Industrial; Sociedade; Tecno-logia e Capitalismo; Tecnologia e Sociedade; Tecnologia; Trabalho; Weber, Max(1864-1920).

 a bstRaCt : The present paper argues that, probably due to the long record o achieve-ments o the scientiic method, a chain o mutual inluences between science andthe capitalist economic system was established, which results in the typical process

 o the advanced industrial societies. In act, it was in the countries where science had reached a high degree o development that the process o industrialization began.

Given this act, there should be no doubts about the impacts that the actions o one enterprise had on the other, and vice versa. Hence, the paper investigates issues like

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  * niversidade de ão �auloniversidade de ão �aulo (Brasil). – Segundo a autora, uma versão preliminar deste tra-balho oi discutida num seminário do Grupo de Investigação “Educação, Ciência & Tecnologia”da Universidade de São Paulo. A mesma agradece ao seu supervisor, Pro. Dr. Marcos Barbosade Oliveira, bem como aos membros do grupo pelas críticas e sugestões eitas, muitas das quais,salienta a autora, oram incorporadas na elaboração desta versão inal. A autora agradecetambém o apoio inanceiro do cnpq.

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the ollowing: how does science (as an institution and as a social practice), rom themoment it was incorporated into capitalism, start to relect interests, practices and

 values that are typical o a system based on the most eicient mode o production o  goods? And conversely: how does capitalism come to incorporate into its industri-

 alization process more and more o a orm o organization which is extraordinarily similar to the scientiic method?

 K  ey W oRds: Bureaucracy; Capitalism; Science and Culture; Science; Science and Power; Science and Industry; Science and Knowledge; Science and Technol-ogy; Technological determinism; Industrialization of Science; Ladrière, Jean;  McLuhan, Marshall (1911-1980); Productivity; Industrial Society; Society;Technology and Capitalism; Technology and Society; Technology; Work; Weber, Max (1864-1920).

A anidade entre o ethos do capitalismo e o espírito da ciência moderna é

uma característica, a um tempo, impressionante e intrigante

. Anal,trata-se aqui de dois empreendimentos cujos objectivos, a princípio,deveriam ser bem distintos: o primeiro é um modo de produção material(baseado na  propriedade privada dos meios de produção, no trabalho assala- riado e na  organização industrial visando o lucro crescente). Já no segundocaso, estamos tratando de um método próprio de investigação da realidade,que teve suas bases e estruturas undamentais lançadas no século XVII, como advento da chamada “revolução cientíca”, e que se caracteriza pela uniãoaté aquele momento inusitada de três elementos: o raciocínio hipotético-dedu-tivo, o tratamento matemático da experiência e o   recurso à experimentação.A semelhança entre as características estruturais de ambos, entretanto, jáhavia sido assinalada pelo historiador William Leiss, em sua conhecida obrado início da década de setenta – The Domination o Nature (972).

Segundo Leiss, tanto a ciência moderna quanto o capitalismo deixam-sereger por imperativos abstractos (a subordinação às leis da natureza e às leisda oerta e demanda, respectivamente). Em ambos os casos uma  nalidadeuniversalista é almejada (a busca, no caso da ciência, do aumento do conhe-cimento pelo conhecimento e, no caso do capitalismo, do acúmulo do capitalpelo capital), o que conduz à supressão de circunstâncias particulares de suaspráticas. Por m, ciência e capitalismo, ao deixarem-se conduzir por lógicasinternas autónomas, exigem que o s interesses humanos imediatos sejam sus-

  �ão nos é possível aqui desenvolver em paralelo uma discussão acerca das peculiaridades�ão nos é possível aqui desenvolver em paralelo uma discussão acerca das peculiaridadesdo desenvolvimento da ciência na antiga União Soviética. Uma análise desse tema – muito com-plexo e ainda extremamente controverso – dependeria, em primeiro lugar, de qual concepção setem a respeito do sistema soviético: undamentalmente, se este equivaleu a alguma orma die-rente de capitalismo (como, por exemplo, um capitalismo de Estado), ou a alguma orma equi-  vocada ou impereita de socialismo, ou ainda a nenhuma dessas alternativas. Essas questões,por si sós, dariam margem a um outro trabalho. Uma reerência clássica sobre esse tema éGraham (972).

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 pensos ou anulados, em prol de sua satisação em um nível qualitativo maiselevado e de longo prazo.

Dadas essas analogias, Leiss adverte-nos que a combinação entre ambos

resultou extrema e particularmente értil para os dois lados e um movimento dialéctico passou a operar: enquanto a ciência moderna aliada à tecnologiapôde promover um grau de controlo sobre os processos naturais impensávelnos sistemas de losoa natural que a precederam, uma economia orientadapara o mercado conseguiu, alicerçada sobre o desenvolvimento cientíco--tecnológico, um nível de abundância material também incomparável a qual-quer outro sistema económico anterior.

Assim, a sociedade capitalista é modelada pelas modiicações cientíicas etecnológicas. Ciência e tecnologia, por sua vez, são modeladas pelas práticas, valores e objectivos de um sistema económico undamentado na máxima e

mais eiciente produção de mercadorias. Essa relação poderosa de reorços,estímulos e inluências recíprocas entre a prática cientíica e o modo de pro-dução económica, em paralelo ao qual essa prática se consolida, é o eixo dadiscussão que esse texto pretende desenvolver.

�osso objectivo é azer um contraponto à concepção segundo a qual atecnologia, utilizando-se do avanço do conhecimento cientíco do mundomaterial (supostamente universal e a-histórico, objectivo e neutro), molda eempurra as sociedades modernas, mediante exigências de eciência e pro-gresso que ela mesma estabelece. �osso oco será, desta orma, tendo comopano de undo uma crítica à corrente do determinismo tecnológico, argumen-

tar que no cerne do processo de intererências recíprocas entre os âmbitoscientíco-tecnológico e industrial capitalista se encontra uma orientação valorativa undamental.

1. Max Weber e o Processo de Racionalização do Mundo Ocidental

O primeiro grande pensador que se ocupou com a questão da  racionali- dade típica do capitalismo, e com suas estreitas relações com os grandes siste-mas cientíico-tecnológicos das sociedades modernas oi Max Weber.

Racionalismo e racionalização não oram particularidades do pensamento

ocidental, tampouco do capitalismo2

. Todavia, oi só no ocidente e na moder-nidade que o capitalismo se desenvolveu, e que o processo de racionalizaçãoconheceu seu ápice na história da humanidade, assinala Weber. Apesar deterem existido embriões de capitalismo em diversas sociedades pré-modernas,tanto no antigo oriente, quanto no antigo ocidente (Babilónia, China, Roma),em parte alguma esses elementos chegaram a se aproximar do tipo de “racio-

  2 A esse respeito, ver, por exemplo,A esse respeito, ver, por exemplo, schLuchter (998, pp. 64 ss.).

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nalização” que caracteriza o desenvolvimento do capitalismo moderno. Eramister para Weber compreender, portanto, o  ethos particular dos primeiroscapitalistas europeus, a im de alcançar, naquele comportamento, precisa-

mente aquilo que altara às outras civilizações.Em A  Ética �rotestante e o Espírito do Capitalismo (905), talvez sua obramais célebre, Weber deende uma hipótese central: havia algo no estilo de vida daqueles que proessavam o protestantismo que engendrou o espírito docapitalismo. Weber assegura que o ascetismo intramundano praticado pelosprotestantes calvinistas (pietistas, metodistas e baptistas) – com seu elevadograu de racionalização – colocou em marcha o espírito do capitalismo, produ-zindo empresários e trabalhadores ideais para a consolidação de uma novaordem social. Esta teria integrado, como nenhuma outra, um número excep-cional de pessoas sintonizadas entre si, para canalizar esorços produtivos(na economia), conorme uma orientação (política) preestabelecida.

O tipo de conduta ética racionalizante proessada pelos diversos segmen-tos do protestantismo teria regulamentado não apenas o âmbito espiritual,mas a vida do indivíduo como um todo, e isso teve, segundo Weber, um papeldecisivo no desenvolvimento do capitalismo. O permanente e necessário auto-domínio, através de uma vontade metódica, teria exercido um eeito raciona-lizador que extrapola os limites individuais e se dissemina para a gestão dosnegócios. Desta orma, os puritanos ter-se-iam tornado particularmente aptospara a organização da actividade empreendedora.

Todos os segmentos do protestantismo, sem excepção, deendiam a ideia

que a Providência Divina reservara uma  vocação para cada ser humano, ouseja, um mandamento de Deus ao indivíduo para que este trabalhasse paraSua glória. Assim, o ascetismo protestante teria criado e sancionado, semprede acordo com Weber, a ideia de “trabalho como vocação” como o únicomeio de se obter a certeza da graça divina, interpretando também a activi-dade empresarial como uma vocação. Haveria, portanto, uma ligação entreas ideias religiosas undamentais do protestantismo ascético e suas máximassobre a conduta económica quotidiana.

A utilidade de uma vocação aos olhos de Deus seria medida primeiramenteem termos morais, depois em termos de bens gerados para a comunidade, e

em termos práticos, pelo critério do lucro. A ética protestante teria conse-guido, desta orma, estabelecer uma conexão coerente entre três elementos:trabalho na vocação, busca de riquezas e a bênção de Deus .

  Seguindo o caminho aberto por Max Weber,Seguindo o caminho aberto por Max Weber, merton (97, p. 22) az um paralelo entrea ética puritana daqueles tempos e a atividade cientíica, airmando que a ciência “era instru-mental, primeiro para as provas práticas do estado de graça do cientista; segundo para aumentaro controlo dos homens sobre a natureza; e terceiro, para gloriicar a Deus. A ciência icava,assim, convocada a serviço do indivíduo, da sociedade e de Deus”.

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Para imprimir ao trabalho o carácter especial de maniestação da glóriade Deus, entretanto, era imprescindível empregar o lucro obtido tão somentepara ns necessários e úteis, revertendo-o novamente ao próprio trabalho,

sob a orma de novos investimentos. Assim, os puritanos teriam sido levadosa uma acumulação incessante de capital, sendo este visto não como um meiopara algum m, mas como um m em si mesmo – sua auto-multiplicação.

O espírito do protestantismo ascético teria, portanto, promovido modica-ções undamentais na passagem da sociedade pré-capitalista para a sociedadecapitalista. Como os protestantes aprovavam e incentivavam o uso racional eutilitário da riqueza – que era desejado por Deus para suprir as necessidadesdo indivíduo e da comunidade – a crença religiosa teria agido poderosamenteem vários sentidos: contra o desrute das riquezas, na restrição ao consumo(em especial o supérfuo) e na quebra das amarras ao impulso de acumulação.As restrições ao gasto desnecessário e a recusa ao luxo teriam possibilitadoo investimento produtivo do capital, pois “quando a limitação do consumo écombinada com a libertação das actividades de busca da riqueza, o resultadoprático inevitável é óbvio: a acumulação de capital mediante a compulsãoascética para a poupança”. (Weber, 905, p. 24).

O ascetismo religioso organizara, assim, a crença em torno a um corpode ideias que involuntariamente resultaram no desenvolvimento de traços depersonalidade extremamente úteis ao comportamento capitalista: ele engen-drou um estilo de vida que inluenciou directamente o espírito do capitalismo,posto que gerou um ambiente mais que propício ao seu desenvolvimento.Surge então uma ética económica tipicamente burguesa:

Com a consciência de estar na plenitude da graça de Deus e visivelmente por Eleabençoado, o empreendedor burguês, desde que permanecesse dentro dos limites dacorrecção ormal, que sua conduta moral estivesse intacta e que não osse questio-nável o uso que azia da riqueza, poderia perseguir seus interesses pecuniários o quantoquisesse, e sentir que estava cumprindo um dever com isso. Além disso, o poder doascetismo religioso punha-lhe à disposição trabalhadores sóbrios, conscienciosos eextraordinariamente activos, que se agarravam ao seu trabalho como a um propósitode vida desejado por Deus. (Weber, op. cit., pp. 27-8)

A racionalização, como Weber a compreende, nascida no ascetismo reli-gioso e extrapolada para o âmbito económico, desenvolve-se nas sociedadesmodernas até que seus laços se tornassem cada vez mais apertados. Ela étambém ruto da especialização cientíica e da dominação técnica, peculiaresà civilização ocidental, que historicamente se desenvolvem antes mesmo dopróprio capitalismo.

Longe de representar um progresso do saber humano no sentido de ummelhor conhecimento de suas condições de vida, entretanto, a racionalizaçãocrescente a que se reere Weber promove justamente o oposto: um progres-sivo distanciamento do homem no que concerne aos conhecimentos mínimosde uncionamento da civilização cientíico-tecnológica.

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A racionalização e a intelectualização crescentes acarretariam, além disso,uma consequência decisiva, sobre a qual Weber insiste com veemência: elasteriam promovido o desencantamento do mundo. Com os progressos da ciên-

cia e da técnica, as ideias ganham coerência sistemática e consistência natu-ralística, os elementos mágicos são expulsos dos sistemas de explicação domundo, o homem deixa de acreditar nos poderes de orças sobrenaturais, nosespíritos e nos demónios, perdendo o sentido do proético e, sobretudo, dosagrado.

Dentre os pais undadores da sociologia, Weber é amiúde apontado comoaquele que com maior nitidez vislumbrou o lado sombrio da modernidade.Segundo sua concepção, o progresso material do capitalismo só poderia serobtido à custa de uma expansão esmagadora da burocracia, destruidora daautonomia e da criatividade individuais. Weber identiica, portanto, tambéma burocracia, tal como a conhecemos actualmente, com o processo de racio-nalização crescente a que oi submetida a sociedade ocidental moderna, eeste processo, por sua vez, com a mecanização e a rotinização opressivasimpostas aos seres humanos.

A vivência quotidiana poderia reter a sua espontaneidade somente dentrodos estreitos limites da gaiola de erro da racionalidade burocrática. A opiniãode Weber com relação a esses conceitos, por ele cunhados ou analisados(e tornados célebres) – desencantamento, secularização, racionalização, auto-ridade racional legal –, encerra também um elemento de ruptura com a posi-ção da ilosoia iluminista 4, a qual imaginou a história da humanidade comoum processo (cognitivo-cientíico-tecnológico e material-económico) linear eascendente, rumo a uma sociedade utura mais justa e próspera.

2. O Determinismo Tecnológico

Weber, entretanto, não poderia ter antecipado (assim como Marx tam-pouco o pôde) o nível a que chegaria a globalização da ordem social, nemque somente a partir dessa perspectiva se poderia conceber o controlo tecno-lógico sobre as sociedades, o homem e a natureza. Analisadas sob este novoenoque, as consequências anteriormente previstas por ele parecem multi-plicar-se e reproduzir-se innitamente.

O termo “determinismo tecnológico”, cunhado pela primeira vez pelosociólogo norte-americano Thorstein Veblen, exprime uma concepção que se vem expandindo desde a Segunda Guerra Mundial, e que implica, de certaorma, uma radicalização da tese weberiana.

Os sociólogos vêem o problema através do aumento da complexidade e da velocidade das mudanças que as tecnologias modernas acarretam sobre as

4 Ver, a esse respeito,Ver, a esse respeito, touraine (992, p. 8).

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sociedades. Segundo eles, essas novas mudanças tecnológicas ultrapassarama habilidade das pessoas e das diversas sociedades para a elas se adaptarem.Para outros, ainda, a tecnologia é vista como uma orça dominante, que

coloca obstáculos para a própria liberdade humana.As tecnologias modernas são apresentadas como autónomas, ou comoorças independentes: seriam auto-controláveis, auto-determináveis e auto--expandíveis. �esse sentido, são compreendidas como algo ora do controlohumano, mudando de acordo com seu próprio momento e moldando invo-luntariamente a sociedade.

De acordo com os deterministas tecnológicos, (como Marshall mcLuhan (962), Jacques eLLuL (954), Lynn White Jr. (962) e Alvin toFFLer (980),entre outros), as tecnologias são consideradas como a causa principal dasmudanças na sociedade e entendidas como a condição undamental de sus-

tentação do padrão da organização social. �ovas tecnologias transormam asociedade em todos os níveis: institucional, social e individual. Os actoreshumanos e sociais passam, logo, a ser vistos como meramente secundários.

Jacques eLLuL (954, p. 5), por exemplo, declarou certa eita que “nãopode haver autonomia humana em ace da autonomia tecnológica”. Esteautor insiste que as tecnologias carregam consigo seus próprios eeitos, inde-pendentemente de como são usadas, já que elas involuntária e automatica-mente colocariam em marcha um número de consequências, tanto positivascomo negativas, não importando como e para que ossem utilizadas. O desen- volvimento tecnológico não seria, a partir dessa perspectiva, bom ou mau.

As sociedades e as pessoas tornar-se-iam simplesmente condicionadas pelosseus sistemas tecnológicos.

mcLuhan (962) sustenta igualmente que as máquinas alteram de maneiraundamental as relações interpessoais, não importando o uso que delas seaça. McLuhan, apesar de reconhecer o ser humano como o modelador dastecnologias, assegura-nos que, uma vez existindo, elas escapam necessaria-mente ao controlo humano, passando a modelá-lo. Surge aí um paradoxo:modernas tecnologias (que oram criadas pelo homem para o domínio danatureza) tornam-se, a partir de um determinado momento da história, tãoabrangentes que impossibilitam o controlo da extensão do seu próprio uso

pela humanidade. É o homem perdendo o controlo do alcance de suas pró-prias criações, idealizadas justamente para o controlo ou, pelo menos, compossibilidade quase que completa de controlo.

A perspectiva adoptada pelo determinismo tecnológico é uma explica-ção de orte infuência weberiana, à qual se acrescenta um elemento novo:uma concepção autoritária e hierárquica das sociedades modernas. Segundoesta abordagem, como dito, a tecnologia e a ciência ordenam as pessoas, osobjectos, os arteactos e os conceitos em redes cada vez mais abrangentes e

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centralizadas. Apesar do seu extremismo, essa hipótese ajuda-nos a deslocara atenção para um conjunto de actos e possíveis conexões causais anterior-mente negligenciadas.

Os críticos desta denição de autonomia tecnológica argumentam, todavia,que, dada a interdependência entre os âmbitos da ciência, da tecnologia eda economia, a tecnologia necessita ser entendida a partir de um sistema deinterligações e interpenetrações mais complexo. Esses autores buscam com-preender, portanto, de que orma os mecanismos tecnológicos estão ligados,por um lado, aos conteúdos da ciência e, por outro e simultaneamente, adeterminadas ordens sociais, políticas e económicas. É a partir dessa abor-dagem que, abaixo, passamos a tratar destas questões.

3. A “Cientiização” da Indústria e a Industrialização da Ciência

Foi nas modernas sociedades industriais que o   crescimento económico,associado à ideia de  progresso, se transormou em base para qualquer pro-  jecto social uturo. A ciência e a tecnologia, num processo ascendente quese inicia no século xvii, com a revolução cientíca, atravessa o Iluminismo(século xviii), e culmina na revolução industrial (século xix), são identicadas,com nitidez da mesma orma crescente, como os actores críticos no processode realização desse ideário de crescimento e desenvolvimento económicos delongo prazo.

A revolução industrial testemunhou, como consequência, uma nova

orma de crescimento, a partir de então extremamente dependente de inova-ções cientíico-tecnológicas. A competição capitalista na Europa encorajouo desenvolvimento de tecnologias que deveriam gerar um incremento naprodutividade do trabalho. Esses desenvolvimentos, entretanto, só puderam  veriicar-se, na intensidade e na velocidade em que ocorreram, porque ascircunstâncias económicas, sociais e institucionais se aiguraram extrema-mente avoráveis.

Mudanças e inovações cientíicas e tecnológicas não poderiam engendrarseus eeitos em contextos políticos e culturais que não estivessem preparadospara absorvê-los e incorporá-los, i.e., em contextos que não estivessem em

condições de colocar em movimento aquelas mudanças e transormaçõesestruturais/institucionais que ossem necessárias para o seu pronto estabe-lecimento.

Tal como propôs Max Weber, o mesmo   processo de racionalização quenorteou o desenvolvimento das sociedades modernas teria possibilitado,num primeiro momento, a disseminação e consolidação da ciência e de todauma cosmovisão cientíca, e depois, sob a infuência do ascetismo protes-tante, impulsionado um  ethos empreendedor essencialmente capitalista.

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Vericando-se que oi nos países onde a ciência atingira seu máximo desen- volvimento que se iniciou o processo de industrialização, não deveriam restardúvidas acerca dos proundos impactos que a estrutura de organização de um

empreendimento veio a causar sobre o outro, e vice-versa. É precisamentesobre a natureza de tais imbricações e impactos mútuos que a partir de agoranos debruçaremos.

3.1. A “Cientifzação” da Indústria

Uma análise prounda das relações entre ciência e tecnologia, por umlado, e as culturas, por outro, é-nos oerecida por Jean Ladrière, em sua obraOs Desaos da Racionalidade: O Desao da Ciência e da Tecnologia às Culturas ,de 977. Em seus primeiros capítulos, Ladrière dedica-se a mostrar comoa ciência e a tecnologia de base cientíca somente passam a constituir-se

enquanto tais quando incorporam uma perspectiva objectivante que logradesvincular-se do histórico e do particular. Assim, ambas, em certa medida,rompem com o âmbito da cultura em que oram originadas:

Se, por um lado, a ciência, enquanto sistema particular de representação, e a tecnolo-gia, enquanto sistema particular de acção, não passam de subcomponentes da cultura,por outro, desvinculam-se dela para constituir sistemas amplamente autónomos, eminteracção com a cultura, embora opondo-se a ela como o universal ao particular, oabstracto ao concreto, o construído ao dado, o anónimo ao vivido, o sistémico ao exis-tencial. (Ladrière, 977, p. 4).

A ciência, analisada sob  o seu aspecto de método particular de aquisi-ção do saber, deixa-se impulsionar por dois objectivos, um cognitivo e outropragmático. Esses objectivos correspondem, respectivamente, a duas linhasde pensamento que coexistiram no século xvii: a primeira, que remonta àtradição platónico-pitagórica, enatizava a busca de um entendimento mate-mático do mundo (Galileo), enquanto que a segunda insistia na necessidadede realização de experiências e na aplicabilidade prática das teorias (Bacon).

A ciência moderna encontra-se, desta orma, associada a uma dupla orçamotriz: a busca do conhecimento pelo conhecimento, segundo a qual a apreen-são justa de um saber cada vez mais abrangente constitui a nalidade últimada actividade cientíca, e a busca do conhecimento pelo poder que este últimopode trazer sobre as coisas, bem como sobre os próprios seres humanos.

Importante é enatizar que, para Ladrière, essa dupla ascendência da ciên-cia continuou inegavelmente a marcar também seu devir, nos séculos subse-quentes, porém com pesos distintos. Se tanto a ciência quanto a tecnologiatendem a ormar sistemas cada vez mais auto-controlados, autónomos, eindependentes da esera cultural (como percebemos da citação acima), poroutro lado, por permanecerem inexoravelmente ligados a ela, seus eeitos,resultados e métodos retroagem, desestabilizando e reorganizando o destinodas culturas.

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�esse momento interessa-nos resgatar algumas refexões muito interes-santes que dizem respeito especicamente às semelhanças estruturais entre alógica do empreendimento cientíco e a lógica do empreendimento industrial

capitalista.Um aspecto particularmente notável nas modernas economias industriaisé que elas parecem requerer uma expansão perpétua. Por uma parte, issopode ser explicado como refexo da lógica interna ao próprio capitalismo.Por outra, essa tendência pode também ser entendida como um refexo dométodo cientíco, que, extrapolando seus limites originários, passaria a exer-cer infuência sobre a lógica da produção industrial. Discutiremos os doisângulos da questão.

De acto, as economias industriais reivindicam uma expansão continuada,tanto no âmbito produtivo, quanto no âmbito de seus mercados consumi-

dores, e isso em grande medida em unção do papel da  competição na dinâ-mica do capitalismo.

O empresário capitalista, como condição mesma de sua sobrevivência nomercado, é movido por incrementos em sua lucratividade, e uma das ma-neiras de se aumentar os lucros aueridos é vendendo produtos a preços ine-riores àqueles praticados pela concorrência directa.

Historicamente, existem duas ormas clássicas de se reduzir os custos deprodução (e, consequentemente, o preço nal dos produtos): a primeira delasé pagando menores salários, e a segunda, introduzindo inovações tecnológicasde orma a produzir quantidades maiores de bens, com um número menor de

trabalhadores. Como existe um limite (social e político, inclusive) à queda dossalários, a partir do momento em que os trabalhadores conseguiram organi-zar-se em sindicatos, a orma de redução de custos que tomou maior impulsooi a segunda, e é essa que nos preocupa particularmente neste momento.

O empreendedor bem sucedido será, deste modo, aquele que conseguirincorporar alguma inovação tecnológica, de orma a tornar a sua produçãomais rápida e económica, o que lhe possibilitará chegar ao mercado com a vantagem de um produto mais barato.

Quando o processo de introdução de alguma inovação tecnológica sedissemina para todo o agregado produtivo, resulta que uma quantidade maior

de todos os bens poderá ser produzida utilizando uma quantidade menorde trabalho, se comparada aos níveis anteriores à introdução da inovação.Em termos técnicos, diz-se que houve um incremento na   produtividade dotrabalho.

Se considerarmos que os salários representam a orma dominante derenda, e que incrementos na produtividade do trabalho tendem a gerardesemprego crescente, tem-se então que um número menor de consumidoresdaquele mercado estará em condições de adquirir aquilo que oi produzido.

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Existe, desta orma, uma necessidade sistemática de expansão dos mercados consumidores que consiga absorver a expansão da produção acarretada peloaumento da produtividade do trabalho, de modo a compensar o desemprego

crescente, também desencadeado no processo. Essa necessidade de expan-são é normalmente satiseita por três vias: a incorporação de novos mercadosconsumidores, o aumento do consumo  per capita e o incremento dos gastosgovernamentais.

É, portanto, também uma das unções vitais das empresas capitalistassuscitar necessidades ou “pseudo-necessidades” possíveis, ainda não ormu-ladas (e, de acto, ainda não existentes), necessidades estas susceptíveis deresponder a demandas diusas, virtuais, que podem vir a tornar-se explícitas,de orma a aumentar o consumo per capita.

Esse ciclo industrial, no qual inovações tecnológicas geram incrementos

na produtividade do trabalho, aumento na produção, no desemprego e nanecessidade de expansão dos mercados consumidores echa-se e torna a reini-ciar-se: é o chamado “crescimento económico” e costuma ser altamente valo-rizado nas sociedades modernas.

Assim, a primeira semelhança (ou infuência) entre a lógica estruturalcientíca e a lógica capitalista pode ser assim ormulada: da mesma ormacomo a ciência básica constitui um empreendimento cuja nalidade própriaé, por natureza, expansionista – ornecer conhecimentos cada vez mais exten-sos, precisos e conáveis, sem se perguntar sobre a utilidade desses conheci-mentos –, a industrialização, a partir de determinado ponto, escapa do âmbito

da produção voltada a atender demandas concretas, palpáveis, em mercadosexistentes, para criar suas próprias possibilidades de expansão.Essa expansão, agora, especialmente a partir da segunda metade do

século xx, opera num nível de abstracção inimaginável em épocas pré-moder-nas, pré-cientícas e pré-capitalistas. Esta é a nalidade universalista (e acres-centemos: necessariamente expansionista) a que se reeria Leiss (972, p. xix),e à qual zemos reerência no início do texto.

Há que se atentar, portanto, para o acto de que, quanto mais uma empresaaumenta em magnitude, em porte e em poder, mais ela perde em especici-dade e ganha, ao contrário, em generalidade e, por conseguinte, em abstrac-

ção. Ora isso signica dizer que os processos e os modelos de organização egerência industrial se tornam tão complexos a ponto de não mais poderemprescindir de um elevado grau de abstracção. Abstracção esta, note-se, que étípica da actividade cientíca 5. Esta é a primeira infuência crucial da eseracientíco-tecnológica sobre a esera económica:

  5 A analogia estrutural entre a orma de organização da empresa industrial e da ciência jáA analogia estrutural entre a orma de organização da empresa industrial e da ciência jáhavia sido analisada na célebre obra de Lukács  História e Consciência de Classe (92) – ondelemos, por exemplo, o seguinte a esse respeito ( op. cit., p. . Grios no original): “A dierença

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[...] à medida que se desenvolve a actividade económica, ela tende a racionalizar-se,utilizando directamente (e não somente no nível das tecnologias que emprega) métodosde organização e de gestão inspirados no método cientíco. Isto signica que, cada vezmais, ela tende a xar-se previamente objectivos e a criar as condições para os atingir

mediante os meios mais racionais, levando-se em conta, por um lado, as previsões quepodemos azer com base nas inormações e nos métodos de análise disponíveis, e, poroutro, as coerções de ordem material e de ordem social que a ela se impõem. (Ladrière,977, p. 85).

Ao ormular um projecto com grau de generalidade muito elevado, alémdisso, “uma empresa coloca um problema tecnológico cuja solução não existenecessariamente, em todo caso, não de modo completo, no momento em queo projecto é ormulado” (Ladrière, 977, p. 86). Deste modo, nessa demandaque é direccionada à tecnologia, é a própria actividade económica, e não aactividade cientíca, que suscita as questões às quais a pesquisa tecnológica

é chamada a responder. Esta é a segunda imbricação crucial entre as eserascientíco-tecnológica e a económica.Um terceiro ponto central nesta discussão tem a ver com o acto de o indus-

trialismo, a um só tempo, se expressar por intermédio de um processo de pro-dução material e pelo desenvolvimento de uma cultura. Constitui, portanto,uma totalidade social que engloba não apenas o  desenvolvimento externo demétodos de produção de bens e serviços, como também a necessidade de cria-ção de um  desejo subjectivo de adquirir cada vez mais (mcLauGhLin, 99).

Ocorre, portanto, como é sabido, que o processo de industrialização acar-reta consequências culturais de longo-prazo. As sociedades industriais deram

origem a culturas que atribuem elevado valor ao consumo material ou, dito deoutro modo, a lógica da industrialização parece necessitar engendrar, lado-a--lado com seu projecto de expansão ilimitada, também um ethos consumista.

Se, por um lado, as sociedades modernas passam a depender crescente-mente da produção industrial baseada na aplicação de resultados cientícos– tanto no que toca à utilização do método propriamente dito, quanto no quese reere à demanda directa que é eita à tecnologia –, no sentido inverso,a produção dos resultados cientícos, em si mesma, transorma-se numaenorme, onerosa e poderosa indústria. A interpenetração da ciência e daindústria caracteriza-se, undamentalmente, além disso, pela dissolução das

ronteiras que marcavam distintos estilos de trabalho, com seus respectivoscódigos de conduta e ideais.

entre as atitudes do trabalhador relativamente à máquina particular, do empresário em relaçãoao tipo dado de evolução do maquinismo e do técnico em relação ao nível da ciência e darentabilidade das suas aplicações técnicas é uma dierença puramente quantitativa e de grau , e não uma dierença qualitativa na estrutura da consciência.”

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2.2. A Industrialização da Ciência

O historiador Jerome ravetz, em sua importante obra de 97 – cientiic Knowledge and its ocial �roblems – adverte-nos que essa nova situação e asimplicações por ela acarretadas demandam uma nova compreensão de ciên-cia (crítica), que deverá desenvolver-se em coerência com uma nova ilosoiada ciência, uma nova ilosoia da natureza, bem como com um re-exame dopapel e do lugar do homem nestes novos contextos.

O carácter do conhecimento cientíico, da sociologia e da ética da ciên-cia, assim como a aplicação da ciência e da tecnologia ao bem-estar humano,ter-se-iam tornado tão intimamente conectados, que um estudo adequado dequalquer um desses tópicos requereria, no mínimo, uma boa dose de inor-mação sobre os outros. �essa obra, Ravetz pretendeu construir uma estruturaconceptual, de orma que cada uma dessas questões pudesse ser discutida em

relação às demais.Segundo a sua abordagem, a “ciência industrializada” do presente deve

ser dierenciada da “ciência académica” (das gerações mais antigas, masque ainda domina o imaginário colectivo) em primeiro lugar, em termos daintensidade de capital agora necessário para o empreendimento cientíico,e depois, em unção das novas relações sociais criadas dentro do mundo daciência.

As mudanças mais signicativas com relação ao processo de industriali-zação da ciência começaram a ser vericadas com maior clareza, na verdade,no período entre as duas guerras mundiais, em particular com o surgimentodos grandes laboratórios, nos Estados Unidos.

A primeira característica determinante nesse estágio oi o acto de a acti-  vidade cientíca se ter tornado crescentemente capital-intensiva, exigindoinvestimentos gigantescos tanto em termos de capital humano – altamenteespecializado –, quanto no que se reere à necessidade de equipamentos einstrumentos de última geração. Esse processo originou o enómeno que viriaa tornar-se conhecido como a “Big Science” 6.

Parcialmente, essas transormações podem ser explicadas como decor-rência das expectativas quanto aos resultados das pesquisas, que se tornaram,a partir de então, extremamente mais ambiciosas, não apenas em termos deescala, como também da rapidez de resultados esperada.

  6 saLomon (994, p. 4) ilustra esse processo de consolidação da  Big cience de orma inci-siva, apresentado números: todo o orçamento ederal dos Estados Unidos para Pesquisa e Desen- volvimento não passava de bilião de dólares, em 99. Já em 945, só o projeto Manhattam,responsável pela produção das três primeiras bombas atômicas, consumiu 2 biliões de dólaresao longo de três anos. O projeto Apollo, que enviou o homem à lua, custou algo em torno de 5biliões por ano, ao longo de dez anos. Por im, os gastos americanos com I&D em 989 somaram5.50 milhões de dólares, dos quais 50% oram inanciados por ontes públicas.

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Acrescente-se a isso a constatação de que as ligações entre ciência básicae tecnologia se tornaram, nesse período, tão estreitas e imediatas, que osavanços em ambos os lados passaram a depender de uma progressiva inter-

dependência. Com o advento da  Big cience, um duplo movimento é engen-drado: as tecnologias evoluem em direcção a uma complexicação e sos-ticação sem precedentes na história, o que torna a actividade tecnológicacontemporânea crescentemente dependente dos descobrimentos teóricos daciência, bem como de sua metodologia.

Este enómeno ainda não se vericava necessariamente, por exemplo,quando do advento da revolução industrial, quando as teorias cientícasmuitas vezes seguiam as realizações técnicas: a máquina a vapor, por exemplo,oi desenvolvida por James Watt em 769, ao passo que as leis da termodinâ-mica, que a explicam, só oram estabelecidas por Carnot, Clausius, Maxwell

e outros quase um século depois. Exemplos mais recentes mostram umcaminho em sentido inverso, como no caso da energia atómica e suas aplica-ções bélicas.

Por outro lado, também a prática e a inovação cientícas passam a deman-dar inovações e apereiçoamentos tecnológicos constantes, como condiçãomesma de sua possibilidade de reutar ou corroborar teorias. Para que se rea-lizassem progressos teóricos, portanto, passou a ser necessário que houvesseuma articulação prounda entre o estado das teorias, por um lado, e o estadodas tecnologias de experimentação e de observação, por outro.

O segundo grande marco no processo de “industrialização da ciência”

(ravetz

, 97;saLomon

, 994), oi que os sistemas de avaliação, controloe gestão das actividades, típicos da indústria, passam a ser paulatinamenteincorporados às actividades cientícas, incluindo aqui as universidades.O pesquisador académico “imparcial” e “desinteressado” é transormadonuma espécie de “empreendedor cientíco”, permanentemente preocupadoem alcançar metas de reconhecimento académico, segundo o critério da“máxima produtividade”.

Essas transormações, segundo a análise de Salomon, não ocorreram semacarretar grandes estragos: elas colocaram em cheque valores tradicionalmentetidos como inerentes à actividade cientíca e expuseram o pesquisador a con-

fitos de interesses, uma vez que a pesquisa agora necessariamente estaria vinculada a comprometimentos políticos, ideológicos e comerciais, o que osdistanciaria cada vez mais da tão almejada “neutralidade da ciência”. Umadas consequências mais visíveis desse processo, a nível prossional, seria amultiplicação das unções do cientista, inclusive do académico:

A industrialização da ciência também alterou e multiplicou os papéis do cientista atéque ele se tornasse, simultaneamente: na universidade, um proessor, um adminis-trador e um cientista-investigador; nas várias agências governamentais, um contra-tante de pesquisas, um assessor para propostas de pesquisa, um conselheiro ocial para

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projectos em andamento, um conselheiro militar ou diplomático, um especialista emproblemas estratégicos, [...]; na indústria comercial, um consultor privado de rmas eum homem de negócios produzindo equipamentos de sua própria invenção. (saLomon,994, p. 40).

Esta concepção eminentemente prática da actividade cientí-ca (que az um contraponto à ideia de ciência enquanto umamera rede de enunciados), chama a atenção para as relações depoder – económico e político – que, segundo deendem seus pro-ponentes, necessária e inerentemente circulam no interior desselabor.

Os autores que tratamos acima, entretanto, não excluem a objectividadedo conhecimento cientíco. A ideia central, neste caso, é que actores externos,como normas culturais, ideologias sociais, concepções losócas, políticas,económicas e culturais são elementos que co-determinam não a estruturaconceptual a partir da qual os enómenos serão abordados cienticamente,mas sim as escolhas das teorias e tecnologias que serão posteriormente desen- volvidas e aplicadas, em detrimento de outras. Trata-se, nesse caso, portanto,de destacar a interacção e co-determinação dialéctica entre contexto histó-rico-económico-social e ciência, enraquecendo, portanto, o carácter cienti-cista e determinista de entendimento do mundo, tão cara à visão ortodoxa dalosoa da ciência.

3. Considerações fnais

Os críticos da denição de autonomia tecnológica argumentam, como vimos acima, que, dada a interdependência entre os âmbitos da ciência, datecnologia e da sociedade (com particular destaque para seus aspectos econó-micos), a tecnologia é comandada pela sociedade e, portanto, sujeita ao con-trolo humano. A sociedade deveria ser entendida não em unção daquelasteorias e tecnologias que é capaz de criar, mas sobretudo em unção daquelasque escolhe desenvolver e utilizar, em prejuízo de outras possibilidades, tam-bém viáveis (saLomon, 992).

Enatizamos também que se estabeleceu uma ligação muito próxima deinfuências recíprocas entre ciência e o sistema económico capitalista, que

é própria das sociedades industriais avançadas. A ciência natural modernae a ordem social capitalista possuem uma origem histórica comum, e suacombinação oi de grande valia para o êxito de ambos os empreendimentos:o casamento entre ciência e técnica tornou o conhecimento uma instânciadirectamente inserida no modo de produção económica, que transorma anatureza e a própria sociedade. Simetricamente, a pujança económica geradapelo capitalismo dotou a ciência de um “poder de ogo” anteriormente inima-ginável, que acelerou seus eitos, ou a possibilidade de acesso a eles. Vimostambém que a necessidade do crescimento económico contínuo está no

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âmago da dinâmica industrial moderna.

Os rumos tomados pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia nasmodernas sociedades capitalistas, portanto, de acordo com o último eno-

que aqui abordado, seria uma questão para além da cega e incessante apli-cação de uma lógica objectiva: não estaríamos tratando de um sistema linear,automático e determinístico, mas antes de sistemas de interacções mútuas,que oram construídos e seguem sua marcha baseados num consenso socialacerca de objetivos e valores.

Esse tipo de interpretação recusa as imagens tradicionais que se tem sobrea tecnologia como mera derivação da ciência aplicada (ou como um conjuntode instrumentos), decorrentes dos ideários intelectualistas, que undamentamo entendimento de que a ciência básica, undamental ou pura representa umacompreensão objectiva e neutra dos enómenos do mundo.

As questões aqui tratadas – de orientação (valorativa) global das socie-dades modernas e suas retroacções sobre a orientação da actividade cientí-ca e de suas implementações tecnológicas – remetem-nos, deste modo, parauma visão essencialmente crítica. Trata-se aqui, undamentalmente, de umprocesso de interacções dialécticas entre os três domínios abordados – ciên-cia, tecnologia e capitalismo –, como o título do trabalho já antecipa.

Se as propostas de autores como Ladrière, Ravetz e Salomon procedem,somos levados a uma conclusão comum: a ciência e a tecnologia são, a um sótempo, controláveis (pelo homem) e portadoras de valores tipicamente capi-talistas, dentre os quais podemos citar, apenas para lembrar alguns dos mais

importantes, o crescimento económico virtualmente ilimitado, a transerênciaacrítica de tecnologias dos países desenvolvidos para os países periéricos e aintegração da economia mundial.

�ão obstante, é preciso que que claro, uma vez mais, que o cerne daquestão não recai sobre a produção do conhecimento enquanto tal, mas simsobre a inecácia que tem prevalecido, até ao presente, na criação de ormasinstitucionais (democráticas) que permitam o exercício do controlo humanosobre as escolhas tanto dos projectos, quanto dos desenvolvimentos tecnoló-gicos que têm sido privilegiados nas últimas décadas, e que acarretam, muitoamiúde, como sabemos, consequências indesejáveis, neastas e, nos piores

casos, desastrosas em termos ambientais, sociais e económicos.

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