Ciências da educação e pedagogia

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Ciências da educação e pedagogia 1 Philippe Meirieu “É verdade que as ciências da educação trazem, cada uma em seu campo, a colheita de fatos verificáveis. Mas a pedagogia não é, exatamente, a ciência da educação. Ela é uma prática da decisão concernente a esta última. A incerteza é seu prêmio. Incerteza conjetural, aumentada pela mobilidade vertiginosa das referências contemporâneas; mas incerteza essencial desde que o conhecimento e a ação sejam conjugados numa teoria da prática.” (Daniel Hameline e Jacques Piveteau. Prefácio ao livro de Neil Postman, Ensinar é resistir (Paris: Le Centurion, 1981, p. 6). A relação entre as ciências da educação e a pedagogia não é simples e a reflexão sobre essa relação é cada vez mais importante. Somente esta reflexão bem conduzida pode nos permitir superar as polêmicas estéreis que são desenvolvidas, desde alguns anos, em torno dessa questão e que, apesar de absorverem uma energia considerável, contribuem muito largamente para ‘embaralhar as cartas’ no campo educativo. O que é o pedagogo? Sabe-se que o pedagogo era, na Grécia antiga, o primeiro dos escravos; aquele que tinha a confiança do mestre, já que deveria cumprir uma missão particularmente delicada: acompanhar a criança à escola. Mas ele não agia somente para decidir o itinerário para levar à classe (as classes não existiam ainda, ao menos tal como nós as conhecemos - elas não têm mais que dois séculos!). Sua responsabilidade era de outra 1 Disponível em <http://www.meirieu.com/index.html>. Tradução livre. 1

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Ciências da educação e pedagogia1

Philippe Meirieu

“É verdade que as ciências da educação trazem, cada uma em seu campo, a colheita de fatos verificáveis. Mas a pedagogia não é, exatamente, a ciência da educação. Ela é uma prática da decisão concernente a esta última. A incerteza é seu prêmio. Incerteza conjetural, aumentada pela mobilidade vertiginosa das referências contemporâneas; mas incerteza essencial desde que o conhecimento e a ação sejam conjugados numa teoria da prática.” (Daniel Hameline e Jacques Piveteau. Prefácio ao livro de Neil Postman, Ensinar é resistir (Paris: Le Centurion, 1981, p. 6).

A relação entre as ciências da educação e a pedagogia não é simples e a

reflexão sobre essa relação é cada vez mais importante. Somente esta reflexão bem

conduzida pode nos permitir superar as polêmicas estéreis que são desenvolvidas,

desde alguns anos, em torno dessa questão e que, apesar de absorverem uma

energia considerável, contribuem muito largamente para ‘embaralhar as cartas’ no

campo educativo.

O que é o pedagogo?

Sabe-se que o pedagogo era, na Grécia antiga, o primeiro dos escravos;

aquele que tinha a confiança do mestre, já que deveria cumprir uma missão

particularmente delicada: acompanhar a criança à escola. Mas ele não agia somente

para decidir o itinerário para levar à classe (as classes não existiam ainda, ao menos

tal como nós as conhecemos - elas não têm mais que dois séculos!). Sua

responsabilidade era de outra importância, porque o pedagogo devia escolher as

disciplinas a serem ensinadas à criança (esgrima ou matemática? Natação ou

poesia?), assim como os preceptores encarregados de ensinar. Na realidade, de

acordo com seus mestres, ele decidia o tipo de homem que se queria formar, o

equilíbrio dos saberes que deveriam ser ensinados, bem como os métodos e

pessoas que lhe convinham melhor2.

1 Disponível em <http://www.meirieu.com/index.html>. Tradução livre.2 Pode ser que haja algum exagero no papel desempenhado pelo pedagogo na Grécia. Mas, se é

possível que a exatidão histórica da descrição seja contestada por alguns, todos reconhecem que essa apresentação tem o mérito de constituir uma imagem forte e chamar à reflexão. Ela investe a pedagogia, como dito por Daniel Hameline, sob o signo do guia: “Todo o educado, de qualquer sorte, é uma pessoa deslocada que, sob a conduta de outro deve deixar um lugar para ganhar outro”. (Enciclopédia universal, artigo pedagogia, tomo 17, Paris, 1992, p. 725).

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Vê-se que uma tal ‘função pedagógica’ não é, atualmente, tornada desusada,

na medida em que se agita sempre - mais que nunca? - de saber qual homem nós

vamos formar e como nós podemos conseguir isso. Pois, se há um fenômeno maior

que caracteriza a modernidade, é o acabamento das grandes ‘teorias de referência’

que permitiram fundar a educação. Com efeito, quando existe, numa sociedade,

uma ‘verdade revelada’, reconhecida consensualmente ou imposta por um poder

qualquer - que esta verdade seja da ordem mitológica, teológica, filosófica ou política

- sabe-se ‘a quem e como educar as crianças’. Isso é tão pouco discutido que alguns

originais como Durkheim, no século 19, qualificava de perigosas utopias. Mas,

atualmente, ‘onde o céu é visto’, onde as grandes explicações histórico-filosóficas do

mundo (como o marxismo) não funcionam mais, onde a economia das nossas

sociedades liberais não são mais capazes de assegurar a inserção de todos e a

restauração do laço social pelo emprego, a questão de saber ‘a quais valores, a

quais saberes e por quais métodos ensinar as crianças’, tornou-se uma questão

maior para as instituições públicas e uma questão privada a qual se vê confrontado

todo educador e a qual ele deve, necessariamente, responder - ao menos

implicitamente - desde que tenha ‘uma criança sobre seus braços’. Salvo a nos

precipitarmos nos novos ‘sistemas de pensamento’ suscetíveis de nos aportar as

respostas todas prontas - tentação que não cessa de renascer e do que as múltiplas

formas de ‘integralismos’ é um signo inquietante - nós somos ‘condenados à reflexão

pedagógica’, mesmo que não tenhamos alguma ideia sobre o que queremos para

nossas crianças.

O que caracteriza os escritos pedagógicos?

Mas, para avançar sobre esta via e nos ajudar na reflexão, afirmo que

dispomos, essencialmente, de ‘tratados de pedagogia’ que emanam, sobretudo, de

filósofos, aos quais se ajuntaram ‘ensaios pedagógicos’. Estes foram redigidos, na

maior parte, por homens engajados e militantes, homens preocupados com

dificuldades educativas do quotidiano e que nos dizem da sua revolta relacionada às

injustiças cometidas para com a infância, de sua inquietude sobre os meios

perigosos ou insuficientes postos à sua disposição para educar os ‘pequenos

homens’, de sua preocupação de respeitá-los e prover-lhes ‘alimentação intelectual’

e afeição necessárias ao seu desenvolvimento. Para simplificar e clarificar um pouco

as coisas, podemos chamar esses homens de pedagogos.

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Se considera, em geral, Rousseau como o primeiro dos pedagogos da época

moderna. Parece ser possível pensar que Rousseau é, sem dúvida, o primeiro a

haver insistido sobre a necessidade de acompanhar as crianças no seu

desenvolvimento, de estimular sistematicamente sua curiosidade e de por a situação

de construir, ele mesmo, os conhecimentos mais que receber passivamente. É

verdadeiro, também, porque Rousseau compreende o laço profundo que une

‘pedagogia’ e ‘política’, métodos educativos e construção da democracia. Ele foi

capaz de devolver ao indivíduo a capacidade de se emancipar de toda forma de

tutela e associar-se livremente com outros no seio de um ‘pacto social (não se nega

que uma primeira versão do contrato social existe já no Emílio). Mas Rousseau é um

teórico da educação que inscreve suas especulações educativas numa filosofia

coerente sem, no entanto, executá-las ele mesmo. Foi preciso a ação de seu

discípulo suíço Pestalozzi, para vermos como alguns se bateram concretamente

para por em prática suas ideias, conseguir teorizar e comprometer-se a descrever

suas dificuldades.

Assim, Pestalozzi, ao tentar educar os órfãos de Stans (o exército bonapartista

havia arrasado a cidade e matado a maior parte dos adultos quando Pestalozzi,

adepto das ideias da revolução francesa, aceita abrir um orfanato), como Dom

Bosco, ao recuperar ‘crianças das ruas’, ou Korczak, ao recolher crianças judias do

gueto de Varsóvia, pode seguir o mesmo traço de um discurso pedagógico

emanente de práticos que se envolviam com a rude tarefa de ‘educar sem obrigar’,

de desenvolver as personalidades autonomamente e de dar as ferramentas

necessárias para se integrarem na sociedade, despertar as inteligências dos

moleques e de socializar todos.

Isso também se pode perceber no discurso mais contemporâneo, de Freinet e

Montessori: a mesma preocupação em propor métodos e atitudes educativas que

permitam à criança crescer livremente por meio da associação a seus semelhantes,

numa relação nova em que a violência e arbitrariedade não regeriam mais as

relações entre os homens. Esse discurso é, muito largamente, o discurso

conveniente, geralmente generoso, percebido bem pelos intelectuais

contemporâneos como particularmente ingênuo, pleno de ‘bons sentimentos’ e

mesmo de boas intenções (daquelas que se diz que ‘o caminho para o inferno está

pavimentado’). Se não são, evidentemente, discursos científicos, mas sim ‘discursos

literários’, os textos que fazem somente apelo à emoção, que diabolizam os

nomeados ‘métodos tradicionais’, são discursos que servem, um pouco, para

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registrar uma época e que tentam ganhar a adesão do leitor a fim de que, como o

autor, acabam por achar ‘insuportável a injustiça feita à infância’ e o leva com ele

para combater.

Seguramente, os pedagogos propuseram ferramentas, inventaram o ‘material

pedagógico’; mas eles o fizeram sempre numa perspectiva global e suas

ferramentas não são simples tecnologias; são meios a serviço de um fim que não

cessa de relembrar e mostrar sempre que eles devem se encarnar nas atitudes

profundas do educador, sem as quais as ferramentas não serão mais que cascas

vazias ou pior, perigosos instrumentos de domesticação.

Ao se tentar estudar ‘os sistemas pedagógicos’ que são propostos, se observa

que se sobressaem várias arquiteturas ‘teórico-práticas’ estranhas, que articulam

sempre, mais ou menos explicitamente, três pólos: 1) um pólo de finalidades: que

reenvia a um projeto geral de educação, a uma imagem de homem ideal, da

sociedade perfeita; 2) um pólo de estágios objetivos: que reenvia a um conjunto de

dados, sobretudo variados, emprestados às ciências humanas (da psicologia em

particular) e, enfim; 3) um pólo de instrumentos: que propõem ferramentas e

prescreve os métodos. O aspecto compósito dá, evidentemente, um aspecto um

pouco curioso às doutrinas pedagógicas: elas escapam da filosofia pura (ela se

define como coleta de uma verdade fundada na sensatez), e das pesquisas

cientificas ‘duras’ (que se interessam, particularmente, pelas provas). Mas também

elas não são simples ‘receitas’ que permitiriam agir ‘com segurança’. Sobre o plano

literário não são, com algumas exceções, grandes êxitos estéticos: o caráter

compósito do discurso lhe dá um status de ‘verdade média’, que pertence mais a

uma retórica específica, que pode ser definida como ‘convicção ponderada’.

A emergência das ciências da educação marcam a morte da pedagogia?

No que lhes concerne, as ciências da educação foram objeto de uma

institucionalização universitária relativamente recente e, no momento em que foram

reconhecidas, alguns, como Gilles Ferry, num artigo estrondoso de 1967, não deixa

de afirmar que elas marcavam ‘a morte da pedagogia’: “A substituição pedagogia

pelas ciências da educação, se não for uma concessão puramente formal da

linguagem anglo-saxã, significa, de todo o modo, o abandono de especulações

normativas em proveito de estudos positivos de um campo de pesquisas orientadas

sobre a compreensão do fato educativo.” (L’éducacion nationale, n. 820, mars 1967.)

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Pensava-se na época, com efeito, na esteira dos grandes psicólogos do início

do século, que imaginavam ser possível substituir o discurso geral e generoso sobre

a educação por um verdadeiro discurso científico. Nos primeiros tempos, se

considerava que o discurso devia se apoiar exclusivamente sobre a psicologia, que

nos entregaria a chave do conhecimento do desenvolvimento das crianças, nos

permitiria saber exatamente o que convinha fazer para os ensinar. Foi a época em

que a ‘psicopedagogia’ dominava o que alguns consideravam como a ciência da

educação. Ferdinan Buisson, autor do famoso ‘dicionário’, havia afirmado: “Eu não

hesitaria em definir a pedagogia simplesmente como a ciência da educação.” Após

ele e como ele, outros sonharam em ‘fundar’ uma verdadeira ciência da educação. E

assim como alguns (Binet, Claparède ou Bouchet) falaram de pedagogia científica,

outros, como Dottrens, de ‘pedagogia experimental’, e outros também, como

Debesse, evocaram a constituição de uma verdadeira ‘ciência pedagógica’, todos

carregavam o desejo de desobstruir a educação das incertezas, dos tateamentos

dos educadores, de métodos aleatórios e de debates ideológicos estéreis para

estabelecer o convinha fazer, em verdade, para o bem ‘ensinar as crianças’.

Percebeu-se, no entanto, muito depressa, que sozinha a psicologia não

permitia compreender o conjunto os elementos que contam no desenvolvimento da

criança: descobriu-se a importância da sociologia, da antropologia, da linguistíca, da

economia ou da história. Os departamentos de ‘ciências da educação’ foram então

criados, entre 1967 e 1970, com a perspectiva de reunirem-se em torno de um

objeto de trabalho comum - a educação - com especialistas que emanavam de

diferentes disciplinas ‘científicas’ já constituídas. As pesquisas feitas nesses

departamentos deviam permitir um aporte plural e mais completo das realidades

educativas, graças à colaboração de pesquisadores de formação pluridisciplinar. As

pesquisas deviam se submeter à administração da prova, garantia de sua

cientificidade.

As ciências têm o monopólio da elaboração de ferramentas da

inteligibilidade da ‘coisa educativa’?

A pedagogia não tem então mais o direito de cidadela? Se o afirma, ela poderá

dizer que não se reconhece como ‘ciência’ capaz de fornecer ferramentas de

inteligibilidade do mundo e dos homens. Mas isso é verdadeiramente possível? Não

se deve aceitar a ideia que Rimbaud nos abre o mundo tanto Newton, Saint-John

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Perse quanto Durkheim, Picasso quanto Heisenberg e Mozart quanto que Freud?

Sim, sem nenhuma dúvida.

Mas os textos pedagógicos não estão à altura, a olhos vistos, da qualidade de

inspiração, da força estética das grandes obras artísticas. É verdadeiro dizer que,

sob certos aspectos, eles são medíocres. É preciso, portanto, abandoná-los ou

dedicar-se a melhorá-los? Isso é, aos meus olhos, em grave erro, pois a pedagogia,

enquanto discurso literário, ou melhor, enquanto ‘retórica de verdades educativas

medianas’, como disse Daniel Hameline, nos aporta indiscutivelmente as

ferramentas para uma compreensão ativa da coisa educativa: ela nos devolve às

contradições com respeito a nossas crianças e estudantes e aborda essas

contradições que, sem cessar, se reinstauram nas teorias e práticas. Ela nos permite

viver de maneira menos solitária e com mais lucidez ‘o metier impossível’ do qual,

precisamente, falava Freud para designar educação?

As doutrinas pedagógicas encontram também o seu valor, paradoxalmente, na

sua fragilidade, no seu caráter de bricolagem obstinada, na sua vontade de pensar

em conjunto acerca das dimensões que, geralmente, são pensadas em campos

diferentes e sem conexões. Depois que este aspecto compósito e estrangeiro pôde,

legitimamente, aparecer como uma ‘desvantagem vantajosa’ e olhar belos discursos

homogêneos produzidos noutros locais, desviou-se dessa para um trunfo maior:

assumiu-se como complexidade das realidades com as quais o educador deve

compor simultaneamente sua ação.

Simultaneamente ... a grande dificuldade e a legitimidade de ‘uma retórica das

verdades medianas’ que nada tem haver com uma ‘sofisticação medíocre de

aproximações: enquanto que a segunda cultiva o compromisso sedutor para não

causar dificuldades às pessoas, a primeira aceita as contradições com o seu lote de

inquietudes e, às vezes, de sofrimento. Pois, na distinção e partilhas as quais se

entregam os especialistas, quando distribuem o direito de pensar num tal ou qual

registro, esquecem a necessidade de agir no quotidiano, no aperto, na dificuldade do

momento, de exigências múltiplas e contraditórias, ao exercer o julgamento para se

centrar sobre o que estimam importante, sem para tanto, excluir o resto ou negar por

decreto a sua existência.

Simultaneamente ... tudo é, me parece, querer compreender a realidade da

pedagogia. A simultaneidade não é a justaposição de diferentes pontos de vistas,

nem mesmo o esforço para pensar em conjunto diferentes dimensões de um

problema. Ela é, também menos, a dedução mecânica de uma solução por adição

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de elementos combinados. A simultaneidade é a ação em ação, quando é preciso

ter todas a exigências ao mesmo tempo, agir no instante porque compreende um

pouco do que se passa ... sabendo que não compreende tudo o que se passa mas

que deve, ele mesmo, procurar obstinadamente compreender e sem, em nome da

prévia compreensão, prorrogar indefinidamente à ação. Assumir a simultaneidade é

aceitar que os imperativos contraditórios possam se apresentar; que eles têm, cada

um, sua justificação e sua lógica, mas que eu devo ‘fazer com eles’, sob o risco de

empobrecer a relação educativa ou de perder o que ela comporta da aventura

propriamente humana.

Essa é uma das manifestações essenciais das contradições que expressa, de

maneira um pouco estranha e, geralmente mal compreendida, o que se pode

nomear como ‘astúcia pedagógica’. Com efeito, no dizer dos pedagogos, não se

pode deixar de ser surpreendido por essa dupla vontade, constantemente afirmada -

aquela de organizar as situações de aprendizagem diferentemente: por um lado, as

variáveis aleatórias para que a criança aprenda de ‘forma segura’ e, por outro,

aquelas de fazer de maneira que aprenda ‘por si mesmo’, segundo as próprias

regras e em desenvolvimento progressivo de sua autonomia. Respeitar as regras do

desenvolvimento pessoal supõe por em lugar situações extremamente obrigatórias

e, por isso mesmo, completamente artificiais. Aqui, pelo menos um paradoxo, mas

que é, na realidade, a linha essencial da inventividade pedagógica: obrigar para

respeitar. Obrigar e respeitar ... numa tensão sem nenhuma dúvida difícil de viver e

que não se resolve jamais sobre o plano puramente especulativo, mas que se sente

no cotidiano da gestão coletiva dos êxitos e fracassos, nos tateamentos, nas

negociações, incertezas e no aleatório das situações pedagógicas; na inventividade,

sobretudo.

É porque as ciências da educação produzem iluminações particularmente

precisas sobre as realidades educativas, que a pedagogia permite pensar a questão

do ‘passar ao ato’ em educação, o ir e vir interrogativo entre os fins e os meios. Ela

se esforça, como diz Daniel Hameline, para percorrer os canais de finalidades às

práticas obstinadamente e nos dois sentidos. Sem imaginar, todavia, que as práticas

são contidas nos fins como a noz na casca, nem dedutíveis de iluminações

científicas, como o crê o prejulgado aplicacionista: as práticas pedagógicas fazem

apelo à criação individual e coletiva, criação por certo esclarecida, avaliada

lucidamente; mas criação, irredutível a tudo o que lhe ‘seja’ próprio.

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Os discursos pedagógicos, por serem cheios de rupturas estilísticas e de

mudança de registros em que as referências filosóficas coabitam com experiências

pessoais, com apoios científicos, com proposições de ferramentas, com vôos

proféticos e com apelos à racionalidade... são os discursos em que nada, por

definição, funda-se em ‘verdade’ e que não nos fornecem, em nenhum caso, uma

‘segurança a todo risco’ contra a aleatoriedade da ação, os conflitos internos e

externos, as incertezas das situações e as necessidades de agir eu mesmo no meio,

de julgar, sem ser jamais certo agir com ‘segurança’. Compreende-se também

porque se fala, plagiando a bela fórmula de Milan Kundera, de ‘insustentável leveza

da pedagogia’.

Nessa perspectiva, um dos grandes méritos da pedagogia é de nos explicar,

bem ou mal, porque o fracasso é, na atualidade, fundamentalmente inscrito no

coração das práticas educativas: porque nós nos situamos entre o ‘desejo de toda

maestria’ e o de dar liberdade a outro - esta tensão é essencial. A pedagogia nos

entrega, nos seus melhores textos e experiências as mais fecundas, essa nostalgia

de tudo aplanar e que poderá bem ser uma ‘paz dos cemitérios’, bem como nos

permite esperar entrever o que pode se constituir, talvez, a chave da modernidade:

inteligência nas contradições.

Enfim, a pedagogia jamais dirá o suficiente - e, em particular, aos didaticistas e

tecnocratas da educação - que os instrumentos não são mais que ferramentas e que

precisam, sem cessar, se referir aos fins que visam. Ela nos diz também que nada

se faz, em educação, sem adesão a valores e, todavia, no melhor dos seus textos,

ela contribui para nos dar a coragem de buscar todos as manhãs o caminho da

classe com interesse e mesmo com alegria.

Diga-se, também, que assim definida, a pedagogia pode ser perigosa, na

medida em que ela parece excluir toda a racionalidade e reenviar unicamente à

sentimentalidade e aos afetos. É preciso que esta crítica mostre, verdadeiramente,

que nenhuma afetividade na atividade científica interfere no exercício da

racionalidade. Aquelas e aqueles que pregam uma única racionalidade e fazem com

uma tal fogosidade - e todavia uma tal raiva - que nos demonstrem eles mesmos,

vigorosamente, o contrário. São, no entanto, belos jogadores e aceitam reconhecer

uma questão fundamental!

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Como o militante pedagógico pode ser deferenciado dos outros

militantes?

Pois resta a necessidade de não se deixar arrebatar por um entusiasmo

pedagógico ingênuo sem exercer o espírito crítico, com o risco de passar depois à

cegueira e ao fanatismo. É lá onde, precisamente, interroga a literatura pedagógica

que o trabalho das ciências da educação pode ser fecundo. É importante para o

militante pedagógico sair-se bem para diferenciar-se de todos os outros militantes.

Para que se deferencie e não balance para um ceticismo, ou a fortiori, para o

fatalismo, é preciso ler e reler os pedagogos. E, para que não reste patética ameaça

que ainda prende convicções ao primeiro degrau, ela [a leitura dos pedagogos]

deve, sem cessar, nos impregnar de aportes científicos e nos deixar interrogar para

pensar filosoficamente em educação. Assim, o diálogo entre a pedagogia e as

ciências da educação poderá nos brindar belos dias diante dos quais nos

felicitaremos. É preciso tudo fazer para prosseguir, na exigência recíproca e na

dignidade, afim de que a empresa educativa persista no círculo humano.

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