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CINEMA EM LÍNGUA PORTUGUESA | 4

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CINEMA

em língua portuguesa | 4

em língua portuguesa

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Cin

ema

Direcção de Pedro Mexia e Gustavo Pacheco

Cento e vinte e quatro anos depois da sessão dos Lumière, já não nos assustamos quando o comboio avança na nossa direcção. Ou será que ainda nos assustamos? Habituámo‑nos às imagens em movimento, mas continuamos assombrados com a sua força visual e emotiva, tão assombrados como em 1895. E porque entretanto tran‑sitámos de uma civilização do verbo para uma civilização da imagem, o cinema e as outras imagens audiovisuais confundem‑se agora com o nosso imaginário. De modo que não sabemos o que vimos ver‑dadeiramente visto ou o que imaginamos por termos visto. Alguns dos textos desta edição confirmam uma evidência: a evidência de que o cinema é, desde a infância, uma das maneiras de conhecer‑mos o mundo. Conhecemos o mundo cinematograficamente, quer dizer, incorporámos na nossa forma mentis uma linguagem, uma imagética, uma gramática, uma suspensão voluntária da descrença.

— Pedro Mexia

Textos de Marçal Aquino, Roberto Bolaño, Duncan Bush,

Manuel S. Fonseca, João Miguel Fernandes Jorge, Jonathan Lethem, Samir Machado de Machado,

Aoko Matsuda, Todd McEwen, João Rosas, Clara Rowland, Jeremy Sheldon, Letícia Simões,

Veronica Stigger, Colson Whitehead

Direcção de imagem de Daniel Blaufuks

Ensaios fotográficos de Inês d’Orey e Letícia Ramos

revista semestral

isbn: 978-989-671-512-0

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Esta é a parte em que procuramos os nossos lugares. Bicos de pés, encolhe a barriga, faz‑te tão plano quanto um ecrã de cinema.

Aqui será demasiado perto? Aquele casaco é um casaco ou é uma pes‑soa? Quando falamos de linha de visão, homem baixo mais homem alto é igual a espectáculo de variedades. As suas pontas espigadas vão afinar as legendas. Quão longe se encontram os carros voadores, se cada assento dispõe do seu próprio suporte para copos? Conquista o apoio de braços através de uma pequenina escaramuça, e instala‑te bem, instala‑te bem, mesmo a tempo de assistires à apresentação de filmes melhores do que aquele que pagaste para ver. Já não havia bilhetes para nenhum bom filme.

Esta é a parte em que o filme começa e ainda é demasiado cedo para te desiludires. Excepto para os bem preparados, que têm sempre um pouco de desilusão ao seu alcance, no caso de vir a ser preciso. Restam segundos preciosos para acreditarmos no encantamento. É o primeiro encontro amoroso do casal, e ela ainda não percebeu que o riso dele a enerva. Na fase da descoberta, ficamos a conhecer os protagonistas. Ele faz sempre papel de mau, há qualquer coisa no seu olhar. Daqui a uns anos, ficará imensamente famoso como apresenta‑dor de um programa infantil: será o tio de todos nós. Como a maioria de nós, estereotipado e nunca escolhido para o papel principal. As pessoas reconhecem‑se a si mesmas nos actores e reconhecem caras

MESMO LÁ À FRENTE

Colson Whitehead

traduzido do inglês por madalena alfaia

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que viram em filmes há muito esquecidos. Não era ele que entrava em? Não era ela que fazia de? Na ponta da língua. Tantos filmes ao longo da vida inteira, como havíamos de nos lembrar? Presta aten‑ção. Pormenores em que quase não se repara serão importantes mais tarde, podem salvar‑nos no último minuto, ajudar‑nos a perceber o sentido.

Esta é a parte em que nada corresponde ao que parece. A parada subiu, por meio de um qualquer mistério, ou imbróglio. Um dispo‑sitivo de catástrofe, ou alguém que disse «Amo‑te». Certo é que tudo ficou mais complexo, e os maus da fita vão agora obrigar‑nos a dar tudo o que temos. Se há alguém capaz deste efeito, são eles. Olhem só para aquilo. O sorriso convencido dele, imagem de marca, e o famoso sorriso dela. Quando eram miúdos, descobriram que certos truques do seu rosto podiam ser transformados em mais guloseimas, abraços longos, brinquedos melhores. Tão acarinhados e tão usados, que se partem aos bocadinhos mesmo sem lhes tocarmos e ficam com os olhos, presos por fios, dependurados. De má vontade receberão fãs e mansões como prendas. Nas entrevistas, agradecem aos mais peque‑nos. Segundo os tablóides, ele é um menino querido, ela teve de se esforçar. A Lâmpada Gigante é uma revista popular entre as traças. Ele conhece tudo o que ela alguma vez fez e, mesmo assim, não são mais próximos do que no dia em que ele a viu pela primeira vez. O começo da carreira. Todos precisamos de um pouco de atenção a espaços.

Esta é a parte em que eles fazem sexo. Acabaram de se conhecer, mas há ali muita química; já tínhamos percebido, por causa do cartaz. Sabem muito pouco um do outro, o que torna tudo realista. A Namo‑radinha da América disputa o próximo close-up com o Homem Mais Sexy do Mundo. A vida resume‑se a quem desempenha melhor o seu papel. É sobre esta cena que toda a gente fala. Sugestões sexuais geriátricas arrastam‑se em andarilhos. Rapazes púberes são sexual‑mente modificados. Fãs para o resto da vida. Dá um sinal. Encontra um pretexto. A ausência de contacto visual ajuda muito. Beija‑me, tonto. A lisonja não te leva a lado nenhum.

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mesmo lá à frente

Esta é a parte da sequência de montagem. O amor deles cresce, fertilizado por editores experientes. Na sala de montagem, a verdade está nos fragmentos. Toda a gente a tirar notas: talvez a vossa relação floresça se atravessarem um campo a correr, de mãos dadas, num dia de sol. Passa os rebuçados, por favor. Um hambúrguer extragrande e uma Coca‑Cola média, obrigado. Ele gosta que as personagens digam coisas que ele próprio nunca diria, e sussurra os diálogos, um eco na quarta fila. Ela gosta que as personagens mostrem emoções que ela nunca sentiu, porque assim fica a saber como se faz, quando e se essa altura chegar. Os críticos tiram notas no escuro. Tudo o que ele pro‑cura é um substituto no grande ecrã para as suas tendências anti‑so‑ciais — será assim tão errado? Aí vem ele com o machado. As pontas dos dedos vasculham o fundo da embalagem de pipocas. As palmas das mãos tapam os olhos. Alguém grita na fila de trás. Os actores fin‑gem não ouvir. Um coro de chius. Que imaturidade, toda esta con‑versa diante do ecrã. Os bebés chorões deviam ser expulsos da sala.

Esta é a parte em que eu e a minha equipa nos dirigimos em slow--motion para a câmara. Serenos e com estilo. Daqui a poucos minutos vamos ultrapassar uma bola de fogo. Depois de a equipa de efeitos especiais trabalhar esta cena, ninguém conseguirá perceber que era apenas um homem numa sala vazia. Hoje em dia, com os compu‑tadores, é impossível saber o que é real e o que não é, uma dezena de extras forma um exército, um teatro vazio acolhe um espectá‑culo esgotado. Quem é esse, aí sentado ao teu lado? Quão forte é a vossa camaradagem? Isso deve doer. Miúdos, não tentem fazer isto em casa. O duplo diz: «Estou sempre a cair de prédios… Não posso explodir, para variar?» Era uma criança desastrada, o que fazia com que este trabalho parecesse perfeito. Ela aponta para o ecrã e diz: «Aquele tipo andou comigo no liceu.» Tristeza impecável do Polícia #2, quando empurra o criminoso para dentro do carro‑patrulha. De vez em quando, somos todos o Polícia #2. Os presumíveis suspeitos estão no banco de trás, algemados, e há um vidro à prova de bala, para nos proteger no caso de eles conseguirem libertar‑se. Continua a dizer para ti mesmo que é só sangue falso.

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Esta é a parte em que eles atiram coisas para o ecrã. Copos de refrigerantes contendo líquido morno, bocados de guloseimas, grãos de ressentimento vindos de baldes extragrandes. Chegou a hora do refill grátis. Os críticos deram o seu melhor, avisaram‑nos dos peri‑gos. Quatro estrelas e meia, três estrelas, dois polegares para cima ou para baixo. Quanto mais complicado é o tema, mais simples deve ser o sistema de classificação. Nada disto estava à vista no trailer. É difícil fugir à conhecida sensação de que não foi para isto que pagámos. Sai e protesta contra as situações inverosímeis, sai e protesta contra o móbil fraco, sai e protesta contra as implícitas suposições acerca da nossa cultura. Aquilo que tens é aquilo que pagaste. Mais valia ter esperado pelo vídeo.

Esta é a parte em que o vilão engendra o seu grande plano. Man‑tém‑te bem junto ao globo, vais poupar tempo. Ele fica com as melho‑res deixas e eu não me importava de saber quem é o seu dentista. Olha bem para o ar daquele esconderijo secreto — parece que custou uma pipa de massa, mas o projector holográfico era usado e os cor‑tinados estavam em saldo. O vilão diz ao corcunda: «Nunca pagues o preço que te pedem.» Claro que há um corcunda. Lembra‑te desta cena nos anúncios publicitários e saboreia o êxtase que antecede a queda. A ambição dos homens é tão pequena, quando comparada com a imensidão da caverna debaixo da terra. Deve ser um tormento aquecê‑la no Inverno.

Esta é a parte do flashback que vai elucidar tudo. A história por detrás da história. Mais depressa do que será revelada ao longo dos anos pelos meus actos e pelas minhas palavras. Mais depressa do que será transmitida nas minhas revelações míseras e confissões par‑ciais. Jesus Cristo. Seis escritores creditados no genérico, e isto foi o melhor que conseguiram fazer. Como se esta cena pudesse com‑pensar o fajuto desenvolvimento de personagens que levei a cabo na primeira metade. Este enredo é como o balão que escapa por entre os dedos gordos da criança e vai à sua vida. É impossível segui‑lo até ao fim. A natureza chama. O que é que vais perder durante a curta via‑gem até ao bar ou à casa de banho? A pista importante ou o relance

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mesmo lá à frente

expressivo por que esperaste a vida inteira. Qualquer coisa que tre‑meluz a três metros de altura no ecrã e que é impossível de interpretar erradamente. Faz um intervalo, segue na direcção da luz de saída e vai atirando pelo caminho uns «com licença» e «obrigado». Quando ela volta, pergunta: «O que é que eu perdi?» Ele sussurra: «Nada.»

Esta é a parte das probabilidades impossíveis e das costas con‑tra a parede. Derrotados em número e em espécie, sem munições, sem passaportes, sem casas de abrigo. Problemas insignificantes de enredo, se comparados com o facto de teres deixado de me amar. Os argumentistas chamam reveses a estas inflexões do destino, mas a perda é uma palavra bruta e funciona em grande escala. Tantos violoncelos — parece‑me que a banda sonora está a tentar dizer‑nos qualquer coisa. Ao fim de noventa minutos de interlúdio cómico, o companheiro finalmente diz algo construtivo: «Tu consegues.» Não é nada de especial, mas a variação no tom é certeira. Panorâmica, zoom, desfoca, fade e corta, é a dança do celulóide, o sortido de ter‑mos técnicos que usamos para se calhar vermos tudo melhor. Qual é a palavra para dirigir a câmara que significa «aponta para qual‑quer lado menos para a minha cara neste momento»? Fundir a negro durante segundos.

E esta é a minha parte favorita. A parte do derradeiro embate entre o bem e o mal. Ainda tenho tempo de reunir as minhas armas antes que me surpreendas com um truque final. Acontece que esta região do país está pejada de ravinas. Fins‑de‑semana, feriados, últi‑mas tentativas, todas as desculpas servem para as pessoas se atirarem dali abaixo. Verdade geológica reduzida a combustível para suspense barato. Contra todas as probabilidades. Ao fim de tantas semanas, esta é a parte que arranca o projeccionista da leitura do seu jornal ou romance barato. A cada exibição, ele tem esperança de que desta vez o desenlace seja diferente, de que desta vez tu e eu fiquemos no chão depois da derrota absoluta, e todas as vezes se desilude. Vê se tens nos bolsos a cavalaria, uma saída de emergência, um adereço de conve‑niência. O que é que se faz quando os finais felizes que nos treinámos a nós mesmos para não esperar afinal chegam no momento‑chave e

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implodem tudo o que sabemos do mundo? Eles encorajam, ou batem palmas, ou transformam‑se em estátuas nas bancadas do estádio. Sim, claro. Eu sabia que isto ia acontecer. Já não se fazem como se fazia dantes. Ainda tens tempo de enxugar os olhos, antes do clarão de luz lá fora. Os imbecis na ponta da fila não se vão embora, daí o engarrafamento. Mas, espera, onde é que vais? Esta é a parte em que procuras o meu nome nos créditos. Espera, onde vais? Tenho a cer‑teza de que o meu nome aparece nos créditos. n

Originalmente publicado na Granta 86, em Julho de 2004.

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A Granta foi composta em caracteres

Plantin e impressa na Guide, Artes Gráficas, em Arcoprint Milk de 85 g e

X ‑Per Premium White 120 g, em Setembro de 2019.

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