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CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA

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CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA

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NOTA DA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Para aprimorar a experiência da leitura digital, optamos por extrair desta ver-são eletrônica as páginas em branco que intercalavam os capítulos, índices etc. na versão impressa do livro. Por este motivo, é possível que o leitor perce-ba saltos na numeração das páginas. O conteúdo original do livro se mantém integralmente reproduzido.

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CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA

v L A D I M I R S A F A T L E

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Sobre CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA

Durante algum tempo acreditou-se que o esgotamento de modos de pensar e de formas de vida nos levaria, necessariamente, a realidades sociais renovadas. Como se após a queda viesse a redenção. Mas o que dizer quando nenhum acontecimento vem após a crise, quando certa estabilidade parece desenhar-se em meio à desagregação de padrões normativos? O pior de todos os mundos não seria um mundo em decom-posição que teria perdido a força de instaurar novas realidades? Este livro visa compreender melhor tal fenômeno de “estabilização na decompo-sição”. Para tanto, procura retomar de maneira sistemática a idéia de que nossas sociedades capitalistas avançadas conseguiram organizar-se a partir de uma raciona-lidade cínica. Aqui, “cinismo” não significa simplesmente um modo de distorção em relação a princípios morais, mas descreve um impasse maior na maneira hegemônica de compreender racionalidade como normatividade, ou seja, racionalidade como processo de constituição de valores e critérios normativos de julgamento intersubjeti-vamente partilhados. As conseqüências desse impasse podem ser sentidas em dimen-sões da vida social aparentemente autônomas entre si, como política, sexualidade, artes e processos de socialização. Para analisá-las, procurou-se construir uma pers-pectiva onde psicanálise lacaniana, teoria sociocultural adorniana e filosofia hegelia-na pudessem fornecer um quadro conceitual renovado.No entanto, se “cinismo” é o nome da decomposição de valores e critérios norma-tivos que pareciam ser o saldo mais valioso de nossas expectativas modernas de ra-cionalização social, então ele traz necessariamente consigo a falência de certa forma de crítica. Pois quando vivemos sob o regime de racionalidade cínica, não é mais possível pensar a crítica como indicação de déficits de adequação entre situações sociais concretas e ideais normativos. Esta sempre foi, como dizia Deleuze, uma crí-tica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar normas e casos. E talvez tenha chegado a hora de dizermos claramente: a crítica de juizado de pequenas causas chegou ao fim.

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência.”– Walter Benjamin

Vladimir Safatle é professor do Departamento de Filosofi a da Universidade de São Paulo e um dos coordenadores do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Fi-losofia e Psicanálise (Latesfip/ USP). Foi professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII. É autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006), Lacan (Publifolha, 2007), organizador de Um limite tenso: Lacan e a filo-sofia (Unesp, 2003), e coorganizador de O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de filosofia e psicanálise (Autêntica, 2004), Sobre arte e psicanálise (Escuta, 2005) e Ensaios de música e filosofia (Humanitas, 2006).

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BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.

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Copyright desta edição © Boitempo Editorial, 2008

Coordenação editorial Ivana Jinkings

Editores Ana Paula Castellani João Alexandre Peschanski

Assistente editorial Vivian Miwa Matsushita

Preparação de texto Mariana Echalar

Revisão Leticia Braun

Capa Guilherme Xavier

Editoração eletrônica Silvana Panzoldo

Produção Marcel Iha

É vedada, nos termos da leis, a reproduçao de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.

Este livro atende às normas do acordo ortográfico em virgor desde janeiro de 2009.

1a edição: agosto de 20081a edição revista: agosto de 2011

Coordenação editorial Ivana Jinkings

Editores Ana Paula Castellani e João Alexandre Peschanski

Assistentes editoriais Guilherme Kroll, Livia Campos e Mariana Tavares

Preparação de texto Mariana Echalar

Revisão Vivian Miwa Matsushita

Capa e editoração eletrônica Silvana de Barros Panzoldo (capa sobre projeto gráfico de Andrei Polessi; foto: Stockxpert)

Produção Ana Lotufo Valverde e Marcel Iha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

S134c

Safatle, VladimirCinismo e falência da crítica / Vladimir Safatle. - São Paulo : Boitempo, 2008. 216p.(Estado de sítio)

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7559-118-5

1. Ideologia. 2. Capitalismo. I. Título. II. Série.08-1805. CDD: 140 CDU: 140

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Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

I

Dialética, ironia, cinismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Was ist Zynismus? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

Sobre um riso que não reconcilia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

II

Por uma crítica da economia libidinal . . . . . . . . . . . . . . 113

Sexo, simulacro e políticas da paródia . . . . . . . . . . . . . . 147

O esgotamento da forma crítica como valor estético . . . 179

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Sobre este livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213

SumárIo

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Quando a claridade diz: eu sou a escuridão, disse a verdade.Quando a escuridão diz: eu sou a claridade, não mente.

Heiner Müller

A Bento Prado Júnior,que me deu muito mais que um começo

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Há várias pessoas a quem me sinto no dever de expressar gratidão por partilhar comigo opiniões e análises importantes para a realização deste livro. Em primeiro lugar, a Paulo Eduardo Arantes, que aceitou publicar este volume em sua coleção, assim como acompanhou com comentários sempre relevantes seu processo de feitura. A verdadeira influência é algo que se impõe silenciosamente e só se revela a posteriori. Ao ver o livro pronto, percebi o quanto devia a Paulo Arantes.

Agradecimentos devem ser expressos aos meus alunos da Universidade de São Paulo e do Collège International de Philosophie, que seguiram cursos nos quais pude desenvolver partes desta pesquisa. Devem ser citados os membros do Cenedic, que tiveram a generosidade de discutir comigo dois capítulos, os membros do Latesfip/USP, com os quais desenvolvi pesquisas importantes para a elaboração deste livro, assim como os amigos Bruno Haas, Pierre Magne, Filipe Marti, Barbara For-mis, Jean-Paul Olive, Antonia Soulez, Monique David-Ménard, Alenka Zupancic, Cristina Alvarez, Jorge de Almeida, Ruy Fausto, Maria Rita Kehl, José Leon Crochik, Christian Dunker, Scarlett Marton, Isleide Fontenelle, Philippe Van Haute e Douglas Barros. Todos eles colabora-ram, cada um a sua maneira, para o encaminhamento de certas questões. Da mesma forma, o CAEPM, instituição que subvencionou uma pes-quisa sobre modificações na retórica de consumo aproveitada neste livro, deve ser aqui lembrado. Por fim, dedico este trabalho a Sandra, minha mulher, e a Valentina, que um dia talvez leia este livro e compreenda por que, como ela mesmo diz, seu pai ri tão pouco.

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Introdução

quando não houver mais nadapara desmascarar...

Bertolt Brecht, A decisão

“A transparência como obstáculo.” Durante certo tempo, pareceu plausível transformar tal boutade em título deste livro. Ela faria alusão, principalmente, a uma afirmação de Adorno sobre o regime de fun-cionamento da ideologia na contemporaneidade: “Hoje, a sociedade, injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente”1. Seria uma forma de insistir na peculia-ridade de um certo modo de transparência e esclarecimento hegemônico em nossas sociedades “pós-ideológicas”, sociedades que aparentemente não fariam mais apelos à reificação de metanarrativas teleológicas en-quanto fundamento para processos de legitimação de estruturas de racionalização social. Seria uma forma de afirmar que essa transparên-cia advinda depois de uma longa noite de desconhecimento ideológi-co teria se transformado no próprio cerne da opacidade constitutiva de nossa realidade partilhada. Seria, enfim, uma forma de dizer que, sim, devemos reconhecer o esgotamento do potencial analítico de categorias como reificação, alienação da falsa consciência na dimensão da aparência, mas não se segue daí que todo esforço de crítica da ideologia esteja tacitamente condenado à obsolescência. Ao contrário, o desafio consiste em compreender como a ideologia permanece mes-mo cortada de sua rede classicamente definida de causas e efeitos.

1 Theodor Adorno, Soziologische Schriften I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 467. As cita-ções de Hegel, Adorno e Freud são geralmente o resultado do cotejamento dos originais alemães com traduções em outras línguas (inglês, francês e, em alguns casos, espanhol e português). Quando foram utilizadas as traduções disponíveis em português, as referên-cias estão indicadas nas notas.

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Assim, um subtítulo possível seria: “Teoria da ideologia em sociedades pós-ideológicas”.

O título acabou sendo, no entanto: “Cinismo e falência da crítica”. O objeto de análise não mudou, mas seu quadro de compreensão alar-gou-se; isso a ponto de o livro ver-se obrigado a girar em torno de uma dessas categorias genéricas que, em uma primeira abordagem, parecem ter o dom de nada explicar: cinismo. No entanto, o uso extensivo que fazemos atualmente do termo “cinismo” para caracterizar certas distor-ções em relação a expectativas normativas indica, de maneira difusa, uma percepção acertada. Este livro gostaria de mostrar de que modo o cinismo deve ser compreendido como categoria maior para a análise das dinâmicas de racionalização em operação nas múltiplas esferas de inte-ração social no capitalismo contemporâneo. Trata-se ainda de mostrar como tal compreensão implica, ao mesmo tempo, reconhecer um pro-cesso de esgotamento do que convencionamos chamar de “crítica” e admitir a possibilidade de vislumbrar os fundamentos de uma forma ainda embrionária de crítica renovada.

Quando definimos o cinismo como modo de racionalização das múl-tiplas esferas de interação social, devemos inicialmente lembrar que tal multiplicidade pode ser unificada através de um conceito que se mostra-rá operacional no decorrer deste livro, a saber, a noção de “forma de vida”. Chamamos de “forma de vida” um conjunto socialmente partilhado de sistemas de ordenamento e justificação da conduta nos campos do traba-lho, do desejo e da linguagem. Tais sistemas não são simplesmente resul-tados de imposições coercitivas, mas da aceitação advinda da crença de eles operarem a partir de padrões desejados de racionalidade. Pois toda forma de vida funda-se na partilha de um padrão de racionalidade que se encarna em instituições, disposições de conduta valorativas e hábitos.

Nesse sentido, trata-se de demonstrar como “cinismo” é a categoria adequada para expor a normatividade interna da forma de vida hege-mônica no capitalismo contemporâneo. Falar de forma “hegemônica” implica, nesse contexto, admitir que, mesmo não sendo aquela que numericamente cobre a maior parte dos casos, ela tem a força de deter-minar a tendência de desenvolvimento de todas as demais. Tal hegemo-nia vem do fato de essa forma de vida implementar modos de conduta e valoração que realizam a normatividade intrínseca ao processo de re-produção material da vida na fase atual do capitalismo.

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Mas há momentos em que chamar de gato um gato não significa muita coisa. A princípio, parece que ganhamos muito pouco ao afirmar que “cinismo” é o nome correto para um certo modo de funcionamen-to de padrões de racionalidade em sociedades ditas pós-ideológicas. Até porque não há nada evidente nesse uso relativamente peculiar do termo. Normalmente, vemos o cinismo como um problema de ordem moral vinculado à distorção de procedimentos de justificação da ação. O cíni-co seria aquele que distorceria procedimentos de justificação ao tentar conformá-los a interesses que não podem ser revelados. Estaríamos, assim, diante de uma entre várias tentativas da imoralidade de travestir--se de moralidade. Como uma entre outras máscaras da insinceridade, o cinismo não deveria nos colocar dificuldades suplementares. Ele pode-ria ser isolado graças ao esclarecimento progressivo de critérios norma-tivos de enunciação que teriam a força de transformar-se em instrumen-to privilegiado de encaminhamento da crítica.

Esse modo de compreensão, no entanto, passa ao largo das questões realmente importantes. Ele é, no fundo, uma maneira de esvaziar pro-blemas maiores que a reflexão sobre o cinismo pode nos revelar. Pois devemos chamar de “cinismo” um problema geral referente à mutação nas estruturas de racionalidade em operação na dimensão da práxis. Há um modo cínico de funcionamento dessas estruturas que aparece nor-malmente em épocas e sociedades em processo de crise de legitimação, de erosão da substancialidade normativa da vida social. Isso nos coloca diante de uma hipótese maior: a partir de um certo momento histórico, os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na modernidade capitalista começaram a realizar-se (ou, ao menos, come-çaram a ser percebidos) a partir de uma racionalidade cínica. Este é o ponto central, e ele foi bem salientado quando começamos a falar de razão cínica (Sloterdijk). Ou seja, se há uma razão cínica é porque o cinismo vê a si mesmo como uma figura da racionalidade. Para o cínico, não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico. E, enquanto processo de racionalização, o cinismo pode aparecer como posição discursiva em várias esferas da vida social (e não apenas no campo dos julgamentos morais).

É claro que isso nos deixa diante de uma tarefa fundamental: indi-car as coordenadas históricas que produziram tal situação. Neste ponto, uma ressalva deve ser feita. Não se trata apenas de indicar o momento

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em que as sociedades capitalistas começaram a passar por uma crise geral de legitimação, mas compreender como elas foram capazes de legitimar-se através de uma racionalidade cínica, e com isso estabilizar uma situação que, em outras circunstâncias, seria uma típica e insustentável situação de crise e anomia. Como veremos, isso faz toda a diferença.

Que nosso momento histórico seja caracterizado por uma crise de legitimidade, eis algo que certos diagnósticos de época não cessaram de repetir. Por exemplo, foi tendo em vista tal situação que vários auto-res insistiram, a partir de problematizações referentes a tradições distin-tas de pesquisa, que o capitalismo contemporâneo se pautava por um “modelo de desenvolvimento paradoxal”2 vinculado às consequências da efetivação de um “novo espírito do capitalismo”3, distinto do ethos descrito pelos estudos clássicos de Max Weber4.

A noção de “paradoxo”, usada para descrever a natureza da dinâmica de organização das formas de vida sob os imperativos do capitalismo contemporâneo, é precisa. Devemos entender por paradoxo “uma estru-tura contraditória específica [...]. Uma contradição é paradoxal quando, através da concretização almejada de uma intenção, reduz-se justamente a probabilidade dessa intenção concretizar-se. Em casos bem específicos, a tentativa de concretização de uma intenção produz condições que vão de encontro a essa intenção inicial”5. O paradoxo deriva do fato de uma concretização aparentemente contrária à intenção que a gerou poder ser adequada a essa mesma intenção. O aspecto importante aqui é a identi-ficação de um regime de contradição cuja denúncia não pode mais servir para desqualificar a concretização (paradoxal) da intenção. Tal denúncia deixa, assim, de ser o motor da crítica (como é o caso, por exemplo, em

2 Axel Honneth, La société du mépris (Paris, La Découverte, 2006), p. 276.3 Ver Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme (Paris, Gallimard,

1998).4 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo, Companhia das

Letras, 2004).5 Axel Honneth, La societé du mépris, cit., p. 286. Veremos que não é por acaso que uma

dinâmica relativamente convergente de compreensão do paradoxo é fornecida por Gilles Deleuze em Logique du sens (Paris, Minuit, 1969). Mesmo que Deleuze não compreenda o paradoxo como “estrutura contraditória específica”, é na desarticulação dos modos de indexação entre intenção e concretização que ele se fundamenta. Que esse fenômeno apareça no cerne do funcionamento das formas hegemônicas de vida no ca-pitalismo não será a maior das ironias.

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situações de contradição performativa), já que a realização paradoxal da intenção é, de certa forma, realização legítima.

Gostaríamos de mostrar como esse desenvolvimento paradoxal está ligado à proliferação do que devemos chamar de “estruturas normativas duais”. Essa noção foi exaustivamente trabalhada por Slavoj ŽiŽek6 a fim de descrever o impacto social da compreensão de Jacques Lacan a respeito da maneira como os sujeitos eram socializados por meio da internalização simultânea de duas estruturas normativas que, embora contrárias entre si, articulavam-se em relação de profunda complementaridade. De um lado, a lei simbólica que visa normatizar, de maneira relativamente explícita, os modos de interação social e de constituição de ideais de autorregulação; de outro, a lei do supereu que visa impor, de maneira implícita, imperativos de conduta atualmente pautados por exigências de satisfação irrestrita. ŽiŽek compreendeu, na peculiaridade desse processo de socialização a par-tir de normatividades contrárias, a chave para o funcionamento de uma forma de vida que parece seguir sistemas de normas e valores que se invertem no momento mesmo de sua aplicação, sistemas em que lei e transgressão são enunciadas, ao mesmo tempo, como imperativos. Como veremos, o nome mais adequado para esse fenômeno é cinismo.

Diagnósticos hegelianos

Usar o termo “cinismo” para descrever tais situações paradoxais é adequado por remeter-nos necessariamente a um diagnóstico da mo-dernidade esboçado pela primeira vez de maneira sistemática por Hegel. Lembrar de Hegel neste contexto é fundamental para mostrar que as discussões a respeito do cinismo não devem restringir-se a um diagnós-tico sociológico relativo aos impasses do capitalismo contemporâneo, pois suas raízes encontram-se na percepção do esgotamento de padrões de racionalidade normativa e valoração que se confundem com uma

6 Por exemplo, em Slavoj ŽiŽek, Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992). A noção de “estrutura normativa dual” é uma peça maior do processo de autocompreensão do sistema de racionalização de países periféri-cos e teve sua descrição canônica fornecida por Roberto Schwarz, “As ideias fora de lu-gar”, em Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas Cidades, 1977), p. 13-28. As condi-ções de sua generalização nas formas hegemônicas de vida no capitalismo avançado é, no fundo, o problema que gostaríamos de estudar.

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certa história da modernidade filosófica. Aqui, crítica social e crítica da razão se entrelaçam.

Hegel foi o primeiro a compreender que a modernidade, por sua força de erosão de formas tradicionais de vida, podia abrir espaço para a indeterminação e para o esvaziamento de toda substancialidade normati-va do social. Um esvaziamento cuja estetização mais perfeita seria a ironia que nega toda possibilidade de a subjetividade autêntica pôr-se em uma determinidade socialmente reconhecida. Para Hegel, a ironia não era um mero tropo retórico, mas forma de vida ligada aos impasses da individua-lidade romântica e resultante de distorções das exigências de autonomia, autenticidade e desencantamento próprios à razão moderna7.

No entanto, Hegel compreendeu também que uma figura avan-çada da ironia poderia aparecer como ironização absoluta das condutas e valores que procuram normatizar a vida social a partir de critérios de justificação intersubjetivamente partilhados. Ironização que consisti-ria exatamente no movimento paradoxal de realizar um valor através de sua aplicação a casos que normalmente lhe seriam contrários. E Hegel, como veremos no primeiro capítulo deste livro, descreve tal processo por meio do comentário de um texto que, a sua maneira, inscreve-se no interior de um longo debate a respeito dos desdobra-mentos da absorção pelo Iluminismo do impulso crítico produzido pelos móbiles do cinismo grego. Trata-se de seu comentário canônico de O sobrinho de Rameau, de Diderot. Ou seja, tudo se passa como se esse processo sistematizado por Hegel, que visava descrever os impas-ses de uma normatividade cuja dimensão procedural tendia a ser as-

7 Podemos dizer que as dimensões estético-expressiva, prático-moral e cognitivo-instru-mental da razão articulam-se com os três sistemas presentes em toda forma de vida (trabalho, desejo e linguagem). Assim, uma forma de vida racional foi normalmente compreendida como aquela que pauta o mundo do trabalho por exigências de autenti-cidade vindas do campo estético-expressivo e que procuram realizar-se como reconheci-mento social da individualidade. Por sua vez, pauta o desejo por exigências de autono-mia prático-moral normalmente pensadas a partir da dominação instrumental da natureza (interna e externa), assim como pauta a linguagem por exigências de desencantamento compreendidas como desvelamento de estruturas causais de implicação entre fenôme-nos. É claro que todos esses três aspectos foram objetos sistemáticos de críticas na filo-sofia contemporânea. Exigências de autenticidade foram compreendidas como interna-lização de práticas disciplinares, a autonomia apareceu como modo de entificar processos de dominação da natureza e o desencantamento apareceu como projeção narcísica do Eu sobre o mundo dos objetos.

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sombrada pelo fantasma da indeterminação, fosse agora padrão hege-mônico de normatização social.

A princípio, esse diagnóstico hegeliano parece convergir em larga medida com descrições sociológicas que caracterizaram o risco maior da modernidade como sendo a tendência à generalização de situações de anomia e indeterminação em razão da consciência da impossibilidade de garantir a substancialidade de formas tradicionais de vida8. Nesse sentido, devemos entender por anomia “os efeitos de um enfraqueci-mento das normas e das convenções tácitas reguladoras de expectativas mútuas que conduz a uma degradação dos vínculos sociais”9. Como se as exigências modernas de reconhecimento da autonomia individual, da autenticidade que critica hábitos e costumes tradicionais e de uma linguagem desencantada só pudessem ser pagas com a moeda do cres-cimento angustiante da indeterminação e da anomia, produzindo assim o que entendemos atualmente por crise de legitimidade. No entanto, essa convergência é apenas parcial, pois Hegel é imune ao pathos con-servador da crença na substancialidade ética de formas tradicionais de vida. O que faz com que a regulação da anomia e da indeterminação por estruturas institucionais seja, para ele, um problema maior por não poder ser resolvido através de alguma dinâmica de retorno aos “tempos carregados de sentido”.

O certo é que, partindo desse esquema hegeliano, podemos com-preender o cinismo como disposição de conduta e de valoração capaz de estabilizar e interagir em situações de anomia. Como se o cinismo fosse capaz de transformar o “sofrimento de indeterminação”10 norma-tiva em motivo de gozo. A sua maneira, o objetivo deste livro é com-preender como tal gozo é possível.

O prazer da indeterminação

Desde o início dos anos 1970, teóricos do que hoje convencionamos chamar de “pós-estruturalismo”, como Jean-François Lyotard e a dupla

8 Ver o clássico Émile Durkheim, Le suicide (Paris, PUF, 2003).9 Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme, cit., p. 504.10 Tal como Axel Honneth o descreve em Sofrimento de indeterminação (São Paulo, Esfera

Pública, 2006).

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Gilles Deleuze e Félix Guattari, compreenderam que o capitalismo e suas formas hegemônicas de vida tendiam a organizar-se de maneira cínica em virtude de sua tendência interna de fragilizar continuamente as formas e as normas que ele mesmo enunciava11. Um pouco como se um dos aspectos fundamentais do diagnóstico hegeliano da modernidade vol-tasse pelas mãos dos antípodas do hegelianismo (uma ironia bem ao gosto da dialética), mas agora na forma de teoria do capitalismo avan-çado. A sua maneira, Jacques Lacan também partilhava a perspectiva de seus contemporâneos, basta atentarmos no sentido de suas notas sobre o que ele chamava de “discurso do capitalista”.

Na verdade, essa teoria pós-estruturalista do capitalismo foi capaz de tematizar uma etapa na qual o impacto do desenvolvimento da so-ciedade de consumo, com sua tendência a alargar de maneira cada vez mais indefinida o fluxo contínuo de equivalências, levou os processos de socialização do desejo no interior do capitalismo a não mais depen-derem da repetição normatizadora de padrões positivos de conduta, ideais e estereótipos.

Deleuze e Guattari diziam que a função do socius era codificar o desejo. Maneira de insistir que todo vínculo social impõe um modo de ser do desejo; que, por exemplo, não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo; e que esses modos de ser do desejo estariam li-gados a uma forma de inscrição, de codificação, de submissão a códigos de inteligibilidade. No entanto, o desenvolvimento exponencial da sociedade de consumo mostrou que “o capitalismo é a única máquina social que se construiu como tal sobre fluxos descodificados, substi-tuindo os códigos intrínsecos por uma axiomática de quantidades abstratas em forma de moeda”12. O que pode ser entendido como afir-mação de que o capitalismo não procurava mais impor conteúdos normativos privilegiados, mas socializar o desejo através de sua dester-ritorialização violenta, da fragilização de seus próprios códigos, da flexibilização das identidades que ele mesmo produz. Como se os códigos

11 Ver, por exemplo, Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe (Paris, Seuil, 1971), p. 294, e especialmente p. 298, em que se lê: “O capitalismo não necessita mais de crença algu-ma e é apenas da boca para fora que o capitalista se aflige com o fato de que atualmente não se crê mais em nada”.

12 Ibidem, p. 163.

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fossem enunciados para serem descodificados. Maneira de absorver, no interior do próprio modo de funcionamento do capitalismo, a tendên-cia de generalização de situações de anomia. Maneira ainda de dizer que os códigos são enunciados para serem anulados, um pouco como aquele que sempre ironiza as proposições que enuncia. Tanto Lyotard quanto Deleuze e Guattari foram extremamente atentos para a manei-ra como essa desterritorialização do desejo operada pelo capitalismo e pelo desenvolvimento exponencial da sociedade de consumo revelava uma articulação profunda entre dinâmica pulsional e modos de repro-dução econômica. Articulação que expunha, por sua vez, a importân-cia de se refletir sobre o capitalismo a partir de uma economia libidinal capaz de compreender a racionalidade econômica a partir do tipo de promessa de satisfação libidinal que as formas de vida no capitalismo eram capazes de realizar.

De uma maneira bastante peculiar, tais fatos não escaparam a al-guém que pensava problemas relativamente próximos em outra chave: Theodor Adorno. Anos antes, ele fornecera os fundamentos de uma teoria da ideologia e das produções culturais no capitalismo tardio com base na tendência das formas hegemônicas de vida de se organizarem a partir da ironização de seus próprios valores e normas, como se o diagnóstico hegeliano a respeito da ironia romântica acabasse por ser reaproveitado no interior de uma teoria geral da ideologia na fase terminal do capitalismo13. Maneira de compreender uma teoria da ideologia não mais dependente dos móbiles clássicos da reificação e da falsa consciência, e isso a fim de transformá-la em esquema de análises de disposições de condutas, análise capaz de nos explicar como sujeitos são levados a ver como racionais certos modos de subjetivação de vínculos sociais.

Levando em conta essa caracterização, feita por Lyotard e pela dupla Deleuze e Guattari, da natureza cínica do capitalismo contem-porâneo enquanto espaço da desterritorialização contínua e da fragi-lização de códigos, podemos nos perguntar sobre o regime de ideologia capaz de criar uma disposição de conduta adequada a tal situação. Talvez a melhor maneira de responder a essa pergunta seja recuperando

13 A esse respeito, ver principalmente o texto de Theodor Adorno, “Beitrage zur Ideologie-lehre”, em Soziologische Schriften I, cit., p. 467.

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algumas elaborações compatíveis com essas que podemos encontrar em Adorno. É a partir daí que poderemos construir uma teoria reno-vada da ideologia.

Essa teoria tem duas fontes maiores. A primeira é a reflexão ador-niana sobre a ideologia e seus produtos culturais. Ela é o objeto maior do terceiro e do último capítulo. A segunda é uma teoria social psica-naliticamente orientada, mediada principalmente pelas reflexões sobre processos de socialização e individuação presentes na obra de Jacques Lacan. Como veremos, todos os dois se depararam com a centralidade de fenômenos ligados à constituição hegemônica de uma racionalidade cínica. Por tal razão, este trabalho gostaria de atualizar o impulso que um dia animou o que foi chamado de freudo-marxismo, mesmo que, em nosso caso, trate-se de um freudismo renovado por Lacan e de certa tradição marxista mediada pela experiência intelectual adorniana. Em vez de justificar a pertinência dessa aparente bricolagem intelectual, é preferível deixar que o resultado fale por si.

Por outro lado, esse modo de análise permitiu a constituição de hipóteses relativas às coordenadas históricas responsáveis pela tendência à homogeneização de várias esferas de valores por meio de uma racio-nalidade cínica. Se não se tratou de recorrer diretamente a considerações demoradas sobre a economia política, foi em razão da crença na neces-sidade de atualizar e reler o que um dia foi chamado de “economia libi-dinal”, ou seja, a maneira como o modo de socialização de categorias aparentemente particularistas, como o desejo e a pulsão, pode nos fornecer a chave para a compreensão da lógica de funcionamento das dinâmicas de racionalização em operação nos múltiplos núcleos de interação social. Veremos melhor, no capítulo “Por uma crítica da eco-nomia libidinal”, como tal perspectiva pode funcionar.

Formas de vida em mutação

Se voltarmos os olhos para a noção de forma de vida como conjunto de sistemas de ordenamento e justificação nos campos do trabalho, do desejo e da linguagem seremos obrigados a descrever como a estrutura paradoxal da racionalidade cínica é atualmente capaz de organizar as dis-posições hegemônicas de cada um desses campos. De fato, tal objetivo foi

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perseguido por este livro. O que nos leva a esperar que, ao final, seja possível compreender melhor o que vincula modificações aparentemente autônomas em nossos modos de agir, desejar e usar a linguagem.

A fim de fornecer um quadro esquemático das modificações em questão, podemos afirmar que no campo do desejo nos interessa princi-palmente o impacto do esgotamento de um processo de socialização do desejo e de constituição de sexualidades com base na repressão e no recalcamento. A psicanálise lembra-nos como os sintomas resultantes de operações de repressão e recalcamento eram sobretudo formações que visavam construir compromissos a respeito de disposições afetivas contraditórias referentes à mesma representação mental. Lembremos de que maneira, para Freud, os sintomas apareciam geralmente como ín-dices do que ele chamava de “conflito de ambivalência”, quer dizer, como índices de uma contradição interna na determinação do valor de uma representação. Por exemplo, a respeito do processo de produção dos sintomas histéricos, ele dirá: “Um sintoma histérico só se origina quan-do duas realizações de desejos opostos [gengesätzliche Wunscherfüllun-gen], cada um tendo sua fonte em sistemas psíquicos diferentes, vêm concorrer em uma mesma expressão”14.

Lacan percebeu a tendência de generalização de modos de sociali-zação do desejo que não operavam mais a partir dessa forma clássica do conflito, mas constituíam representações mentais “paradoxais”. Para tan-to, ele partiu da reflexão sobre a maneira como perversos organizavam sua relação com a lei social. Em razão das modificações profundas pelas quais passou a função paterna e os processos de identificação social, tal dinâmica perversa tendia a tornar-se hegemônica. Aqui, perversão não deve ser compreendida simplesmente como estrutura nosográfica mar-cada pelo “desvio” em relação à norma sexual, maneira de conservar traços fundamentais da polimorfia da sexualidade. Pois a incidência de comportamentos ligados à polimorfia da sexualidade não é condição suficiente para determinar um diagnóstico de perversão. Da mesma forma, não há diferença entre fantasmas neuróticos e cenários perver-sos, já que não há fantasmas exclusivos dos perversos (o que Freud já havia demonstrado em “Bate-se em uma criança”). “O fantasma perverso

14 Sigmund Freud, “Die Traumdeutung”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. II, p. 575.

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não é a perversão.15”Mas se o acesso compreensivo aos fantasmas per-versos não nos fornece a estrutura da perversão é porque esta é fundada em uma relação particular do sujeito com a lei social. Relação peculiar por basear-se em modos de seguir as injunções da lei sem, com isso, produzir disposições de conduta normalmente conformes à lei. Pode-mos dizer que isso é possível porque a perversão se funda na consciência da ausência de fundamentos substanciais para as expectativas normati-vas no campo da sexualidade e na estruturação do núcleo familiar.

Nesse nível, o cinismo seria solidário da transformação da perver-são, e não mais da neurose, em saldo necessário de nossos processos de socialização. Resultado necessário quando aceitamos que os processos de socialização na contemporaneidade tendem a não passar mais pelo agenciamento de contradições através da repressão e do recalcamento com suas estruturas de denegação (Verneinung)16, mas por meio da acei-tação de estruturas normativas duais. Veremos isso de maneira mais sistemática sobretudo no quinto capítulo.

Já no campo do trabalho temos um processo estruturalmente simi-lar através do esgotamento da ética do trabalho com suas noções de ascetismo, repressão do prazer polimórfico e de estabilidade de fun-ções, que produz uma fixidez identitária no interior do mundo do trabalho. Tal esgotamento abriu espaço para o advento de um “novo espírito do capitalismo” mais adaptado à dinâmica paradoxal de uma racionalidade cínica.

15 Jacques Lacan, Séminaire VI, sessão de 24/6/1959.16 Na verdade, foi a partir da ampliação de tal problemática que este volume nasceu. Em

meu primeiro livro, A paixão do negativo: Lacan e a dialética, foi questão de mostrar como uma prática clínica importante na constituição do horizonte de reflexão do século XX era obrigada a recorrer à ontologia a fim de orientar seus critérios de racionalidade. Esse recur-so à ontologia não era feito mediante o ancoramento da práxis em uma teoria normativa sobre os modos de ser, mas sim do reconhecimento da existência de formas de negação que têm dignidade ontológica. Daí se tratar de uma “ontologia negativa”, que tinha relações profundas com o que podemos encontrar na dialética hegeliana e na teoria estética adorniana. Sendo assim, da mesma forma como a dialética hegeliana encontrava uma relação complexa de proximidade e distância em relação a processos de ironização que pareciam ser capazes de pôr uma “negatividade infinita absoluta” (para usar as palavras de Kierkegaard sobre a ironia) que tendia a confundir-se com o movimento dialético, a clínica lacaniana deparou-se com uma dinâmica de perversão que parecia aproximar-se insidiosamente de aspectos reguladores do final de análise. Isso apenas demonstrava como os dois haviam se deparado com processos fundamentais que demonstram a natureza e a perenidade dos diagnósticos sociais próprios à dialética e a seus desdobramentos.

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Sabemos como, em Max Weber, a ideia de espírito do capitalismo remete ao conjunto de motivos éticos que inspiram ações favoráveis à acumulação de capital e justificam, do ponto de vista subjetivo, a racio-nalidade econômica do processo insaciável de autovalorização do capi-tal. No entanto, podemos dizer que cada fase do capitalismo exige um ethos específico, que deve responder por sistemas de motivações dos atores sociais. A última dessas mudanças de ethos foi sentida de maneira evidente quando se tornaram claras as consequências do desenvolvi-mento da sociedade de consumo a partir dos anos 1970.

Tal modificação permitiu ao capitalismo anunciar o advento de uma nova forma de trabalho aparentemente capaz de realizar aspirações de autonomia, liberdade e criação. Adorno costumava dizer que “a iden-tidade é a forma originária da ideologia”17, e isso a fim de salientar, entre outras coisas, o caráter repressor das exigências de identidade e conformação próprias aos processos de socialização no capitalismo. No entanto, tudo se passou como se tal crítica à identidade fosse absorvida pelo discurso a respeito do setor mais avançado do mundo do trabalho. Noções como “flexibilização” e “maleabilidade” apareceram como chaves para abrir um mundo em contínua reengenharia, em que as estruturas hierárquicas e as funções fixas eram abandonadas em prol de estrutu-ras em rede que exigiam trabalhadores aparentemente capazes de arti-cular conhecimentos diversos, várias identidades, assim como absorver exigências de mobilidade e contínua inovação18.

17 Theodor Adorno, Negative Dialektik (Frankfurt, Suhrkamp, 1975), p. 151.18 Paulo Eduardo Arantes descreveu de maneira extensa o caráter ideológico desse novo dis-

curso da flexibilização no artigo “A fratura brasileira do mundo”, publicado em Zero à es-querda (São Paulo, Conrad, 2004), mostrando seus vínculos orgânicos com uma certa “brasilianização” do núcleo central do capitalismo. Por sua vez, Luc Boltanski e Eve Chia-pello, ao analisarem a literatura para managers dos anos 1990, podem afirmar: “O manager é o homem das redes. Ele tem por qualidade primeira a mobilidade, a capacidade de des-locar-se sem deixar-se aprisionar pelas fronteiras – sejam elas geográficas ou derivadas de pertencimentos profissionais ou culturais –, pelas diferenças hierárquicas, pelas diferenças de status, de papel, de origem, de grupo, assim como a capacidade de estabelecer um contato pessoal com outros atores, normalmente muito distantes social ou espacialmente” (Le nouvel esprit du capitalisme, cit., p. 123). Essa mobilidade e desterritorialização do manager não deixa de mimetizar a mobilidade daqueles que não tinham lugar fixo no in-terior da estratificação social (como os malandros, a boêmia artista etc.). Basta lembrarmos aqui a descrição canônica da “dialética da malandragem” fornecida por Antonio Candido. No fundo, tal semelhança de família indica como o capitalismo conseguiu trazer para o centro do mundo do trabalho a fragilização das identidades.

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No entanto, foi necessário o desenvolvimento de processos de controle capazes de se moldarem a esse crescimento aparente da au-tonomia de indivíduos e equipe no interior do “novo mundo do tra-balho”. Gilles Deleuze compreendeu isso claramente ao reconhecer que a verdadeira dinâmica do capitalismo levava à dissolução de es-truturas disciplinares como o Estado, a família etc. Em seu lugar, encontramos estruturas peculiares de controle: “Os controles são uma modulação, como um molde autodeformante que muda continua-mente de um instante a outro, ou como uma peneira cujas malhas mudam de um ponto a outro”19. Ou seja, não mais instituições nor-mativas próprias a uma sociedade disciplinar, mas dispositivos de controle que absorvem, no interior de sua própria dinâmica, a mul-tiplicidade e a flexibilização.

De nossa parte, diremos que esses processos de controle são decal-cados do mundo do consumo. Um pouco como se a organização das identidades no interior do mundo do trabalho derivasse atualmente da dinâmica de “liberação” oferecida pelo mundo do consumo. Pois a as-piração à flexibilidade de identidade e à multiplicidade de atividades acopla-se perfeitamente à plasticidade dos modos de ser disponibiliza-dos pela forma-mercadoria. Precisaremos, pois, descrever de maneira clara o modo de controle em operação no mundo do consumo, mostrar como se articulam identidades flexíveis e práticas de controle. Esse mo-vimento, que será feito sobretudo no quarto capítulo, visa descrever o regime de funcionamento de estruturas normativas duais enquanto dis-positivo social de controle. Como veremos, esse é um campo funda-mental para a compreensão do que poderíamos chamar de ontogênese das capacidades práticas dos sujeitos em formas de vida organizadas a partir de uma racionalidade cínica. Desta forma, será possível mostrar como a articulação contemporânea entre mundo do trabalho e mundo do consumo visa à constituição disciplinar de sujeitos que orientam seu modo de agir a partir de uma lógica de anulação paradoxal de contra-dições e de amaciamento de contrários exigida pela racionalidade das sociedades capitalistas contemporâneas.

Por fim, no campo da linguagem encontramos o esgotamento de um certo regime de crítica da ideologia ligado às temáticas da falsa

19 Gilles Deleuze, Pourparlers (Paris, Minuit, 2003), p. 242.

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consciência e da reificação. Regime este que serviu de base para as aspi-rações da forma crítica na estética modernista.

Lembremos a esse respeito que a reflexão sobre a linguagem é in-dissociável da tematização de seus regimes de distorção. Em que condi-ções a linguagem não preenche suas funções descritivas (em sua relação com a referência), expressivas (em sua relação com a intencionalidade do falante) e performativas (em sua relação com a criação ou modifica-ção de situações partilhadas)? Essa questão é uma peça-chave para a configuração do que entendemos por crítica da ideologia.

Por exemplo, chamamos de erro distorções da linguagem em sua função descritiva. Descrever de maneira distorcida uma referência im-plica normalmente problemas de recognição ou confusão entre sentido literal e indireto de uma proposição. Nos dois casos, não identifico de maneira adequada, ou seja, erro ao tentar identificar palavras e coisas. Por sua vez, chamamos de ilusões a distorção que consiste em estender a potencialidade descritiva da linguagem para campos nos quais não posso determinar objetos da experiência, como é o caso das ilusões transcendentais kantianas.

Chamamos de insinceridade distorções da linguagem em sua rela-ção com a intencionalidade. Pois aqui a linguagem aparece como más-cara para a expressão da intencionalidade do falante, como, por exem-plo, nos casos de hipocrisia e má-fé. Chamamos ainda de mal-entendido situações nas quais a distorção entre intencionalidade e expressão é fru-to da inabilidade do falante ou do ouvinte.

Esse quadro sumário serve para nos lembrar como a estrutura retórica da crítica da ideologia esteve normalmente vinculada ao desvelamento do erro, da ilusão ou da insinceridade. Ou seja, trata-se de revelar aquilo que a consciência é incapaz de apreender sem abalar sua forma de vida, aquilo que ela necessariamente reifica ou luta desesperadamente para não saber.

Podemos dizer que esse modelo de crítica se orientou pela identifi-cação de déficits de realização de critérios normativos referentes a valores partilhados de maneira intersubjetiva. Assim, quando a crítica aparecia, por exemplo, como denúncia da inautenticidade de nossas formas de vida, da hipocrisia das justificativas para as ações do poder ou do caráter repressivo de normas e leis desprovidas de legitimidade, ela procurava normalmente identificar déficits de realização de critérios normativos

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que deveriam regular nossos usos da linguagem. Déficits que aparece-riam sob a forma do erro, da ilusão ou da insinceridade.

No entanto, esse modelo de crítica é impotente diante de um regi-me de distorção cada vez mais hegemônico, que poderíamos chamar de distorções performativas. Nesse caso, a linguagem produz performances que não deveria produzir, como no caso dos sintomas (que indicam a existência de duas regras de conduta linguisticamente estruturadas con-trárias que constituem uma mesma representação mental), ou não pro-duz performances que deveria produzir, mesmo estando perfeitamente adequada em relação aos critérios normativos partilhados de maneira in-tersubjetiva. Essa distorção performativa paradoxal ou esse bloqueio de força perlocucionária deve ser chamado de cinismo. Maneira de insistir que o cinismo só pode ser alçado à condição de lógica de racionalização social quando a linguagem passou por um processo peculiar de desagre-gação. Como sempre, é no campo da estética que primeiramente senti-mos as desagregações da linguagem. Por isso, este livro termina com uma reflexão sobre o processo de interversão da forma crítica em forma cínica no interior da estética musical do fim do século XX.

Diante da generalização de tais distorções performativas, resta à crítica partir do esgotamento dos próprios critérios e padrões normati-vos. Desse modo, ela pode ganhar a forma da exposição da situação de anomia, de indeterminação paradoxal que se tornou indissociável da estrita aplicação de tais padrões. Pois a crítica não pode ser simplesmen-te guiada por exigências de realização de ideais normativos de justiça e consenso que já estariam presentes em alguma dimensão da vida social. A crítica não pode ser apenas a comparação entre situações concretas determinadas e normas socialmente partilhadas. Esta é, no fundo, uma crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar normas e caso. Antes, a verdadeira crítica deve ter a força de voltar-se contra nossos próprios critérios de justiça e consenso, já que ela se per-gunta se nossa forma de vida não é mutilada a ponto de orientar-se por valores resultantes de distorções patológicas.

No entanto, esse outro modelo de crítica encontrará um problema suplementar de difícil equação a partir do momento em que os modos de justificação social incorporarem situações de anomia. De fato, foi o que ocorreu quando o sistema capitalista foi capaz de se justificar não mais a partir da referência a padrões normativos de justiça (embora tais

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padrões possam ainda funcionar de maneira regional, no mais das vezes de maneira retórica), mas a partir da promessa de modos de satisfação e gozo ligados à anomia, à indeterminação, à ironização. Nesse momen-to, só resta à crítica ser crítica dos modos de satisfação que legitimam nossas formas de vida. Ou seja, ser clínica da economia libidinal do ca-pitalismo avançado, embora ainda não esteja claro o que isso possa vir a ser, afinal.

Desse modo, este livro procura analisar um dado social como o cinismo a partir da articulação de uma tripla perspectiva que visa fazer convergir crítica da razão, teoria da ideologia e análise das modificações das dinâmicas de socialização e individuação nas sociedades capitalistas contemporâneas. É possível que tal perspectiva tenha sido responsável pelo movimento ziguezagueante que o texto é, por vezes, obrigado a assumir. Mas talvez este seja o preço a pagar quando se acredita na solidariedade profunda entre fenômenos próprios a esferas aparente-mente autônomas entre si. Preço que aparece quando se acredita em proposições “absurdas”, como a que pressupõe uma certa convergência estrutural entre, por exemplo, nossos modos de constituir regimes de sexualidade e problemas vinculados à organização formal de experiên-cias hegemônicas no campo da música contemporânea. No entanto, tais pressuposições foram aparecendo de maneira cada vez mais irrecu-sável. Elas levaram o livro a procurar constituir-se a partir da ideia de que, no horizonte, não deve haver distinções entre crítica social, crítica da razão e análise das produções culturais. Daí essa necessidade de pro-curar o ponto de indistinção entre filosofia, psicanálise, teoria social e estética. De qualquer forma, não há como negar um certo desconforto, já que poucas vezes o autor se sentiu de maneira tão visível na posição pascalina de quem diz ter uma certeza que é incapaz tanto de provar completamente quanto de simplesmente abandonar. Por isso, ele é o primeiro a reconhecer a existência de lacunas no projeto aqui apresen-tado. Elas servirão como motor de desenvolvimentos futuros.

Dividir em categorias

Mas para que este livro possa começar, faz-se necessária uma precisão semântica. A pragmática da linguagem cotidiana usa o termo “cinismo”

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em acepções diversas e nem sempre convergentes. O banqueiro que procura mascarar seus interesses particulares de classe invocando valores universais é normalmente chamado de cínico, da mesma maneira que o ex-diretor do Banco Central ao assumir abertamente que a universa-lização constitucional do acesso à saúde é legítima e desejável, mas in-felizmente deveria ser cortada da Constituição por ser racionalmente impraticável nos próximos decênios. No entanto, no primeiro caso, o enunciado mascara a verdade presente no nível da enunciação, enquanto no segundo não há operação alguma de mascaramento, nem precisaria, pois o julgamento é absolutamente bem formado. Essas economias de discurso, por sua vez, não participam, por exemplo, da lógica própria àquele que age legitimando ironicamente sua conduta a partir de valo-res que ele mesmo julga falsos, porém “necessários”, ou àquele que ostensivamente ridiculariza e ignora valores que consideramos funda-mentais. Mas, novamente, o uso cotidiano da fala não deixa de caracte-rizar tais posturas como cínicas.

Isso nos leva a uma necessidade prévia de sistematização daquilo que poderíamos chamar de atos de fala de duplo nível. Trata-se de atos de fala que tiram sua força performativa da distinção entre a literalidade do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação ou, ainda, de atos de fala que conservam sua força performativa apesar dessa distinção entre letra e sentido. Podemos então propor, como exercício de esclare-cimento semântico, a constituição de uma taxionomia de atos de fala de duplo nível. Taxionomia que visa dar conta das relações entre literalidade do enunciado e sentido da enunciação nos casos em que essas duas instâncias são diferentes.

A princípio, parecem existir seis grandes categorias de atos de fala de duplo nível: a má-fé, a hipocrisia, a metáfora, os atos de fala indire-tos, a ironia e o cinismo. Cada uma dessas categorias pode admitir subdivisões. Assim, ao falarmos de ironia em um sentido geral, pensa-mos em um ato de fala que coloque em evidência certa lógica estrutural comum entre o chiste, o sarcasmo, a persiflage, a derrisão, a ironia me-lancólica, entre outros. Mesmo no caso do cinismo, seremos obrigados a levar em conta ao menos dois casos relativamente distintos de cinismo. De qualquer forma, dessas seis categorias propostas, duas têm um inte-resse apenas subsidiário em relação ao cerne de nossa discussão: os atos de fala indiretos e a metáfora.

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Feitas tais colocações, podemos organizar os atos de fala de duplo nível a partir de uma polaridade entre má-fé e hipocrisia, de um lado, e ironia e cinismo, de outro.

Má-fé e hipocrisia são atos de fala cujo sucesso depende de uma operação de mascaramento, já que pressupõem que o Outro não é capaz de desvelar a clivagem entre o valor ao qual o enunciado aspira e o inte-resse que anima a enunciação. Nesse sentido, tanto má-fé quanto hipo-crisia devem aparecer como casos típicos de insinceridade. Elas são figuras de um falar e de um agir que se organizam como arte da camuflagem de clivagens. A exposição da clivagem anula a força perlocucionária do ato.

Exemplo clássico de hipocrisia é alguém que manda tropas para invadir um país e justifica tal ação com valores universais, como demo-cracia e liberdade, quando sua verdadeira intenção é animada por inte-resse geoeconômicos evidentes. Basta lembrarmos aqui do que Hegel dizia a respeito da hipocrisia (Heuchelei): “[Ela] prova seu respeito pelo dever e pela virtude tomando-lhes a aparência [Schein] e utilizando-os como máscara [Maske] para sua própria consciência, assim como para a consciência alheia”20. Ou seja, a hipocrisia é uma das múltiplas másca-ras da insinceridade dos que escondem a particularidade do interesse por meio da universalidade do dever; máscara que cai mediante uma crítica capaz de desvelar os verdadeiros interesses por trás da aparência de uni-versalidade, confrontando assim o “texto ideológico” com o “texto re-calcado” ao pontuar os nós sintomais nos quais se lê a contradição performativa entre os procedimentos de justificação e o domínio da ação. Como vemos na citação hegeliana, esse mascaramento para o Ou-tro pode ser acompanhado de um não querer saber que indica uma certa forma de auto-hipocrisia ou de mentira para si.

Foi Sartre quem tematizou à exaustão, e de maneira mais adequada, essa mentira para si, cujo nome correto é “má-fé”21. Lembremos, por exemplo, do que ele diz a respeito de conteúdos mentais inconscientes (como conteúdos latentes de sonhos, crenças não conscientes, aconte-cimentos traumáticos, lembranças denegadas, sentimentos latentes,

20 G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes (Hamburgo, Felix Meiner, 1988), p. 434.21 Esse encaminhamento sartriano do problema da má-fé passa ao largo do uso corriquei-

ro do vocábulo. Pois ao falar: “Ele agiu de má-fé”, o senso comum refere-se a um ato de fala que deve ser compreendido como hipocrisia (insinceridade em relação ao Outro).

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lapsos etc.): eles são inicialmente o resultado de um não querer saber que deve ser compreendido como figura da má-fé. Pois, como tais conteú-dos mentais são produtos de um processo de recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo: para que exista recalcado, faz-se ne-cessário um certo gênero de consciência do processo de recalcamento. Como dirá Sartre:

Eu devo saber muito precisamente essa verdade [a verdade dos conteúdos mentais conscientes] para escondê-la de mim mesmo de maneira cui-dadosa – e isso não em dois momentos diferentes da temporalidade –, o que a rigor permitiria restabelecer um semblante de dualidade – mas na estrutura unitária de um mesmo projeto.22

Devemos nos perguntar: de que forma a consciência operacionaliza tal divisão. Como Sartre nos lembra, a má-fé é, antes de mais nada, uma fé, ou seja, trata-se de uma questão de crença: “O problema essencial da má-fé é um problema de crença. Como podemos crer de má-fé em con-ceitos que forjamos expressamente para nos persuadir?”23. Mas lembre-mos que é da própria natureza da crença operar sobre o vazio da dúvida que insiste diante da certeza subjetiva. Se dizemos, por exemplo: “Eu creio que ela me ama”, escutamos, sob a afirmação, a certeza aterradora de que se trata apenas de uma crença, de que nada me garante totalmente que ela me ama. Assim, tomar consciência da crença é necessariamen-te destruir a imediaticidade da crença, já que toda verdadeira crença não passa de uma aposta. Dessa forma, a má-fé apareceria como uma fuga da consciência em direção à crença, fuga de quem usa a imediaticidade a fim de mascarar para si mesmo o caráter frágil da aposta.

Tal característica permite a Sartre insistir no fato de que a má-fé não pode ser confundida com o cinismo. Pois a má-fé é, acima de tudo, estratégia de permanência na crença, enquanto o cinismo, como vere-mos, não pode ser compreendido exatamente como uma questão de crença, porque pode pôr os dois momentos que a má-fé não é capaz de articular, o saber e a negação do saber, sem que um anule necessaria-mente o outro.

22 Jean-Paul Sartre, L’être et le néant (Paris, Gallimard, 1943), p. 83.23 Ibidem, p. 103.

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Hipocrisia e má-fé foram caracterizadas como atos de fala baseados no mascaramento da clivagem entre a literalidade do enunciado e o sentido da enunciação. Elas apareceram como máscaras da insinceridade que se sustentam por meio de regimes de desconhecimento da verdade presente no nível da enunciação. Mas o que dizer de outros atos de fala de duplo nível, como a ironia e o cinismo?

De todos esses atos de fala, a discussão a respeito da ironia é aquela que até hoje despertou maior interesse e diversidade de abordagem. Mas devemos partir do problema da existência de uma lógica comum de enunciação entre os regimes distintos de ironia, como o sarcasmo, a persiflage, o chiste, a derrisão, a ironia melancólica, entre outros. A fim de estabelecer um traçado geral, podemos tomar a definição clássica de ironia fornecida pela retórica de Quintiliano: a ironia é questão de eiro-neuesthai, ou seja, de pensar outra coisa do que se diz. Três séculos de-pois, Aelius Donatus, em sua Ars Grammatica (que serviu de base para os estudos retóricos até a Renascença), continua a formular a ironia enquanto tropo no qual o sentido real é oposto ao sentido aparente (tropos per contrarium quod conatur ostendens). Essa fórmula seguirá inalterada até o romantismo e, mesmo após o romantismo, continuará servindo de fundamento para uma reflexão mais ampla sobre as estru-turas da ironia, na medida em que carrega atrás de si considerações sobre o modo tangencial como o sujeito se vincula ao seu dizer.

No entanto, nota-se claramente que as definições clássicas privilegiam a definição da ironia como uma figura da retórica. Trata-se de perceber a ironia sobretudo como uma forma de alegoria: uma dentre as múltiplas ma-neiras de dizer algo e dar a entender outra coisa, desconectando a rela-ção usual entre signo e sentido. Definição relativamente imprecisa por fornecer, na verdade, uma qualificação genérica de todo uso figurado da linguagem24. Não será apenas dessa maneira que os modernos com-preenderão a ironia, para quem ela era, no fundo, a descrição de uma forma de vida.

De qualquer forma, essa definição retórica da ironia nos coloca diante de um peculiar ato de fala de duplo nível. Pois estamos em face de um processo de erosão do enunciado que tira sua força do reconhecimento

24 Ver, a esse respeito, Paul de Man, Blindness and insight (Londres, Routledge, 1983), p. 209.

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de uma inadequação entre as dimensões da literalidade do enunciado e da intenção presente no nível da enunciação. Se colocarmos a questão sobre o que diz a ironia em sua construção formal, veremos que se trata de dizer que as descrições de objetos presentes no nível do enunciado são inadequadas, donde se segue a necessidade de erodir o enunciado falan-do de maneira irônica. A ironia diz, pois, que para apreender o real do objeto visado pelo enunciado, faz-se necessário torcer a língua, produ-zindo enunciações que se autoanulam.

Mas lembremos que, contrariamente à hipocrisia e à má-fé, a ironia não procura esconder tal inadequação. Para funcionar, a ironia deve mostrar que o sujeito nunca está lá para onde o seu dizer aponta. Dessa forma, ela pode afirmar-se não exatamente como uma operação de mas-caramento, mas como uma sutil operação de revelação da inadequação entre enunciado e enunciação. Sem essa possibilidade de revelação da inadequação para o Outro, a ironia seria um mero mal-entendido. Nesse sentido, se a hipocrisia e a má-fé expulsam o Outro, a ironia pede o reco-nhecimento deste. Ou seja, a ironia é um modo muito particular de abertura ao reconhecimento intersubjetivo, tal como veremos com o cinismo. Pois, para além do vínculo social que dá corpo à ordem jurídica, o riso irônico funda e fornece as coordenadas do espaço comum destes que partilham olhares que dizem tudo que as palavras não afirmam.

Esse ponto foi insistentemente lembrado em discussões contempo-râneas a respeito da ironia. Embora a ironia apareça como ato de fala que anula a imediaticidade do contexto partilhado no uso ordinário da linguagem, ela não implicaria uma abolição completa da pressuposição de contextos de orientação para a determinação do sentido. Se assim fosse, estaríamos diante de uma perpétua indeterminação dos processos de significação, o que pode explicar por que a ironia foi recuperada como posição subjetiva maior por teóricos da pós-modernidade. Con-tra tal risco, temos posições como as de John Searle, para quem “a iro-nia, como a metáfora, não requer nenhuma convenção, extralinguística ou de qualquer outra espécie. Os princípios de conversação e as regras gerais de realização dos atos de fala são suficientes para prover os prin-cípios básicos da ironia”25. Ou seja, a possibilidade de compreensão da

25 John Searle, Expressão e significado (São Paulo, Martins Fontes, 1995), p. 176. Lembre-mos também aqui do que fala Simon Critchley a respeito do riso como estrutura inter-

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Introdução • 33

ironia já indicaria, assim, a realização de um espaço comum pressupos-to por sua própria dinâmica de ato de fala. Possibilidade que indicaria a partilha de um background e, principalmente, a literalidade essencial do sentido, ou seja, esse princípio de expressibilidade que demonstraria como toda significação poderia ter uma expressão exata na linguagem ordinária. Como se a posição irônica fosse uma mera posição parasitária em relação aos usos comuns da linguagem. Mas veremos de que forma o cinismo tende a problematizar exatamente esse modo de fundamen-tação do sentido. Para compreender melhor esse ponto, teremos de dar dois passos para trás.

subjetiva de reconhecimento e pressuposição de contextos partilhados: “Essas minúscu-las explosões de humor que chamados de ‘piadas’ nos colocam diante de um mundo comum, familiar, de práticas partilhadas, de um background de sentidos implícitos em uma cultura” (On humour, Londres, Routledge, 2002, p. 16).

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I

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dIalétIca, IronIa, cInISmo

Mas nessa vertigem na qual a verdade do mundo só se manifestano interior de um vazio absoluto, o homem encontra também

a irônica perversão da sua própria verdade...

Michel Foucault, História da loucura

Um campo de batalha

O tamanho da virulência indica o tamanho do combate. Essa frase vale sobretudo para a natureza do que está em jogo no combate entre a dialética hegeliana e a ironia romântica. No fundo, Hegel sente a ironia como uma sombra sempre pronta a se deixar confundir com o corpo da dialética. E lá onde a proximidade é grande, a violência da crítica deve ser ainda maior.

De fato, há um movimento complexo de proximidade e distancia-mento entre dialética e ironia. A análise desse movimento fornece uma perspectiva privilegiada de compreensão de certos problemas, estraté-gias e riscos que a dialética deve abordar a fim de assegurar um conceito positivo de razão.

Por um lado, dialética e ironia partilham a consciência a respeito do advento de uma modernidade disposta a problematizar tudo aquilo que poderia apresentar-se como fundamento substancialmente enraizado. Espírito de época para o qual “não somente está perdida [verloren] para ele sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo”1. Tal como no caso da recuperação hegeliana da dialética, a ironia, enquanto modo privilegiado de estetização de sujeitos não substanciais, volta normalmente à cena quando nos confrontamos com realidades históricas em crise de legitimação, incapazes de responder

1 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito (Petrópolis, Vozes, 1992, 2 v.), par. 7; Phä-nomenologie des Geistes (Hamburgo, Felix Meiner, 1988), p. 7. Modificamos a tradução da Fenomenologia do Espírito quando julgamos necessário.

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às expectativas de validade com aspirações universalizantes, mas que não têm a sua disposição uma nova legalidade: “Para o sujeito irônico a realidade perdeu toda a sua validade; ela se tornou para ele uma forma incompleta que incomoda ou constrange por toda parte. O novo, por outro lado, ele não possui. Apenas sabe que o presente não corresponde à ideia”2. Diante de uma realidade que não responde mais a expectativas de validade, abre-se sempre, para o sujeito, a negatividade da ironização absoluta das condutas ou, para falar com Hegel, da Vereitelung conscien-te-de-si de tudo que é objetivo. Abre-se ao sujeito a possibilidade de mostrar que essa realidade não pode ser tomada a sério, devendo a todo momento ser invertida e pervertida (sério no sentido de adequação en-tre expectativas de validade e determinidades efetivas).

É por essa razão que mesmo Hegel (principalmente em seus co-mentários sobre Solger, já que as críticas a Schlegel sempre serão bastante contundentes) reconhece que a ironia pode aparecer como uma espécie de figura “larvar” da dialética. Sendo um processo de internalização de clivagens, de inversão de determinações fixas e de formalização de expe-riências de negatividade, a dialética partilha com a ironia certos traços estruturais. Dialética e ironia são modos de enunciar e apresentar a con-tradição entre efetividade e conceito (daí por que o conceito parece sem-pre ser invertido pela efetividade), entre caso e condições normativas de justificação. Comentadores como Ernst Behler chegaram mesmo a ver-se autorizados, a partir daí, a afirmar que, por exemplo:

A proximidade da ironia de Schlegel com a própria posição de Hegel parece estar vinculada à estrutura da dialética hegeliana, que aparece animada também por um constante sim e não, uma construção e uma suspensão permanentes [resultantes dos usos da contradição], um alter-nar entre autocriação e autodestruição, uma “negatividade” inerente.3

Quando fez tal afirmação, Behler certamente tinha em vista a pre-sença, tanto na dialética quanto na ironia, da Verkehrung (inversão) como modo de manifestação do esgotamento de determinações fixas e

2 Sören Kierkegaard, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates (Petrópolis, Vozes, 1991), p. 226.

3 Ernst Behler, Irony and the discourse of modernity (Seattle, University of Washington Press, 1991), p. 88.

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aparentemente substanciais. O uso da Verkehrung com suas passagens incessantes no oposto configura o primeiro nível da negatividade dialé-tica. Tais passagens também animam o culto romântico ao paradoxo e à contradição que estão no cerne da recuperação da ironia, assim como no recurso ao Witz enquanto figura privilegiada da ironia4. É nesse sentido que há, na ironia, certa estetização da inadequação às determi-nações fenomenais que a aproxima necessariamente da dialética.

Por outro lado, dialética e ironia reconhecem certa transcendência negativa como modo de posição de sujeitos não substanciais. Em Hegel, a primeira posição da subjetividade é a transcendência do para-si em relação a toda e qualquer determinidade empírica. Não se trata aqui de compreender a transcendência simplesmente como essa ilusão própria ao uso da razão e sempre presente quando procura aplicar um princípio efetivo para além dos limites da experiência possível. Hegel quer, na verdade, insistir na solidariedade entre a subjetividade e um ato de transcender que deve ser compreendido como negação capaz de pôr a não adequação entre o ser do sujeito e os objetos da dimensão do em-pírico, como apresentação de uma não saturação do ser do sujeito no interior do campo fenomenal. Tal transcendência não estabelece prin-cípio efetivo algum para além da experiência possível. O que explica por que devemos compreendê-la como transcendência negativa 5.

A esse respeito, lembremos que, principalmente a partir do ro-mantismo alemão, a ironia será compreendida não apenas como um tropo da retórica, mas como manifestação privilegiada da força de autorreflexão própria ao sujeito moderno, ou seja, dessa capacidade dos sujeitos de tomarem a si mesmos como objeto de reflexão e, com isso, transcender, colocar-se para além de todo contexto determinado. De certa forma, isso estaria presente na capacidade do sujeito irônico de nunca estar lá para onde seu dizer aponta, nessa clivagem necessá-ria ao ato de fala irônico entre o sujeito do enunciado e a posição do sujeito da enunciação.

4 Lembremos do que diz Friedrich Schlegel: “Uma ideia é um conceito perfeito e acabado até a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de dois pensamen-tos conflitantes que engendra continuamente a si mesmo” (O dialeto dos fragmentos, São Paulo, Iluminuras, 1997, p. 66).

5 Essa questão foi abordada de maneira mais adequada em Vladimir Safatle, O amor é mais frio que a morte: reconhecimento e indeterminação na fenomenologia hegeliana (no prelo).

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Nesse sentido, podemos lembrar aqui como Schlegel já definia a ironia romântica: “bufonaria realmente transcendental”6. Transcendental é usado aqui em um sentido “não constitutivo”, já que o termo indica-ria essa disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado. Tal necessidade de elevação acima de todo con-dicionado da qual fala Schlegel pode explicar por que: “Para poder es-crever bem sobre um objeto, é preciso já não se interessar por ele; o pensamento que deve exprimir com lucidez já tem de estar totalmente afastado, já não ocupar propriamente alguém”7. Escrever bem, ou seja, escrever de forma irônica, pressupõe um desinteresse construído por meio da desafecção dos objetos. Desafecção que demonstra como o sujeito não reconhece nenhuma resistência vinda do objeto. Ao contrá-rio, se toda descrição de objeto pode ser ironizada é porque o objeto como polo de resistência se dissolveu. Daí Hegel, pensando em Schle-gel, poder falar da “dissolução [Auflösung] irônica do determinado e do que é em si substancial”8.

No entanto, apesar dessas proximidades aparentes, Hegel não can-sa de insistir, com toda virulência, nas diferenças estruturais entre dia-lética e ironia. Até porque, para ele, a ironia e suas figuras não seriam mais do que a estetização de um impasse maior nos processos de racio-nalização da dimensão prática. Em suma, podemos dizer que, para Hegel, a problematização irônica do fundamento das expectativas de validade só pode produzir certa ironização geral das condutas, que é figura da perpetuação da crise de legitimidade, maneira de conservar sub specie ironiae o que não tem mais legitimidade no interior das esferas sociais de valores, reduzindo a dimensão dos fenômenos a um jogo negativo de

6 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, cit., p. 27. Mesmo teóricos contemporâneos da ironia insistem nessa compreensão. “Ironia é transcendental”, dirá Claire Colebrook, “ela apresenta o sujeito como fundamento ausente que nos permite pensar ou represen-tar qualquer história ou natureza” (Irony, Londres, Routledge, 2003, p. 141).

7 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, cit., p. 25. Essa frase deve ser compreendida juntamente com a afirmação de Paul de Man sobre a ironia: “A linguagem irônica divi-de o sujeito em um eu empírico que existe em um estado de inautenticidade e um eu que existe apenas na forma de uma linguagem que afirma o conhecimento dessa inau-tenticidade. Isso não é necessariamente feito em uma linguagem autêntica; conhecer a inautenticidade não é a mesma coisa que conhecer a autenticidade” (Blindness and insight, Londres, Routledge, 1983, p. 214).

8 G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), v. I, p. 99.

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aparências. Não seria por outra razão que “Hegel erige o momento inexpressivo da seriedade em princípio de estilização”9.

Por sua vez, a negatividade irônica é vista por Hegel como um blo-queio por não poder passar ao segundo nível da negatividade dialética (Aufhebung); esse nível que, em vez de acomodar-se com o jogo infinito de paradoxos e de passagens, no contrário próprias à Verkehrung, procura produzir um modo de negação que conserva o objeto negado. Ou seja, a ironia seria, ao menos segundo Hegel, uma “dialética bloqueada”10.

Por fim, a bufonaria transcendental própria à subjetividade irônica indica, para Hegel, uma impossibilidade de reconhecimento de si na efetividade, um “jogo infinitamente leve com o nada”11, como dirá mais tarde Kierkegaard, mas não sem deixar de lembrar que haveria três tipos de nada: o nada especulativo (esforço criador do concreto), o nada mís-tico (um nada para a representação, mas rico em conteúdo para um pensar não representativo) e o nada irônico (que parece almejar o nii-lismo da repetição indefinida do indeterminado). Podemos mesmo di-zer que esse jogo infinitamente leve da subjetividade irônica prenuncia o advento de uma subjetividade “flexível”, pensada fundamentalmente como jogo de máscaras e fragilização de identidades fixas.

Neste ponto, vale a pena salientar que tais discussões sobre a relação complexa entre dialética e ironia têm uma estranha atualidade. Pois é possível que Hegel tenha percebido, através dos móbiles que levaram à recuperação da ironia pelo romantismo alemão, a estetização de um processo geral de interversão das aspirações normativas da modernida-de, fracasso que só atualmente se mostrou em toda a sua extensão atra-vés das discussões a respeito do que chamamos de racionalidade cínica. Nesse sentido, trata-se aqui de insistir no fato de que certa compreensão dialética dos processos de ironização presentes em determinados mo-mentos da recuperação filosófica da ironia tende a se colocar no ponto de indistinção entre ironia e cinismo.

9 Paulo Eduardo Arantes, Ressentimento da dialética (São Paulo, Paz e Terra, 1996), p. 33.10 Neste livro, utilizamos tanto inversão (Verkehrung) como interversão (umschlagen) como

termos que descrevem movimentos, em larga medida, simétricos, caracterizados princi-palmente pela passagem incessante dos opostos devido ao vínculo, necessário para o entendimento, entre determinação de identidades e posição de relações de oposição.

11 Sören Kierkegaard, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, cit., p. 233.

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É certo que a hipótese de Hegel como crítico da razão cínica pode parecer o mais profundo contrassenso. No entanto, ela ganha plausibi-lidade se formos capazes de mostrar que o modo pelo qual Hegel com-preende a dinâmica de ironização geral das condutas já prefigura os debates da contemporaneidade a respeito do cinismo como figura do esclarecimento. Não se trata absolutamente de, com isso, afirmar a so-lidariedade entre o que compreendemos hoje por cinismo e o que esta-va em jogo na recuperação romântica da ironia. Trata-se de afirmar tal solidariedade no interior do texto hegeliano. Isso explica muito sobre a maneira como Hegel compreende os impasses possíveis da racionaliza-ção da dimensão prática na modernidade, mas não necessariamente serve como análise interna da extensão dos problemas relativos à ironia romântica a partir das expectativas de seus teóricos.

De qualquer forma, o quiasma entre ironia e cinismo pode ser derivado do texto hegeliano. Para tanto, devemos adotar uma estraté-gia que não passa exatamente pelo comentário das posições explícitas de Hegel a respeito da ironia romântica. Pois uma leitura atenta da Fenomenologia do Espírito mostra um momento instrutivo a respeito da relação crítica entre dialética e processos de ironização da efetivi-dade. Faz-se necessário, pois, levar às últimas consequências o fato de que um dos momentos mais significativos a respeito dessa relação crítica é dado pelo comentário hegeliano, presente na Fenomenologia do Espírito, sobre O sobrinho de Rameau12: estetização desse momento em que o Iluminismo se depara, em sua aurora, com um processo geral de interversão de suas expectativas normativas por meio da ironização cínica de condutas e valores que aspiram à validade in-condicional, racional e universal. Interversão capaz de abrir a anomia de uma “profundeza sem fundo onde desvanece toda a firmeza e

12 Este trabalho reconhece sua dependência em relação aos comentários sobre o recurso hegeliano ao Sobrinho de Rameau, tais como encontramos principalmente em Paulo Eduardo Arantes, Ressentimento da dialética, mas também em Rubens Torres Filho, Ensaios de filosofia ilustrada (São Paulo, Iluminuras, 2005). Como seria supérfluo e tedioso indicar todos os momentos em que este trabalho se apoiou nas elaborações dos dois autores, já que tal recurso é uma constante, optou-se por indicar logo de início essa relação fundamental de dependência que perpassa as ideias aqui apresenta-das. Dependência que, no caso de Paulo Eduardo Arantes, é resultado natural de uma velha relação de admiração.

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substância”13. Devemos, assim, mostrar como o comentário de O so-brinho de Rameau cristaliza um movimento de crítica (partilhado também pela dialética hegeliana) a certos modos de realização de ex-pectativas normativas da razão moderna.

Essa operação não é impossível se lembrarmos que o texto de Di-derot é, a sua maneira, um momento inaugural do advento da consciên-cia das interversões das aspirações do Esclarecimento. Como dirá Fou-cault, o texto de Diderot marca o retorno de uma desrazão que habita o cerne da razão; o que, no nosso caso, pode ser compreendido como resultado de um movimento de suspensão dos processos de racionaliza-ção da dimensão prática, que é, ao mesmo tempo, resultado da afirma-ção desses mesmos processos. Podemos mesmo dizer que O sobrinho de Rameau ocupa uma função que, posteriormente, a tradição dialética (Adorno, Lacan) irá procurar em Sade: expor os mecanismos de inter-versão da moralidade esclarecida. O uso de dois textos literários da aurora do Esclarecimento não é um mero acaso. Trata-se de insistir que problemas identificados no despertar do intrincado processo de auto-certificação da sociedade burguesa ainda ressoam (ou talvez seja melhor dizer: só agora ressoam em toda a sua extensão).

O momento cínico do Espírito

Se reconstituirmos a economia do texto hegeliano, veremos que seu comentário a respeito da peça de Diderot na Fenomenologia do Espírito se encontra em um lugar bastante sintomático. Primeiro, ele aparece no interior da seção “Espírito”. Durante a redação da Fenomenologia, essa seção foi paulatinamente se transformando no centro de gravidade do livro. Uma transformação bem ilustrada pela própria modificação do título: de Ciência da experiência da consciência para Fenomenologia do Espírito. De fato, podemos dizer que apenas aqui, nessa que é a seção mais extensa do livro, Hegel apresentará algo como um conceito posi-tivo de razão capaz de realizar o projeto da consciência de ter a certeza de ser toda a realidade. Esse conceito positivo está vinculado a uma racionalidade fundada na descrição do movimento de rememoração

13 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 519.

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histórica dos processos de formação das estruturas de orientação do julgamento e da ação da consciência14. Rememoração capaz de interna-lizar a luta da consciência para realizar a razão por meio da racionalização de estruturas de práticas sociais adequadas a aspirações universalizantes. Daí as figuras da seção “Espírito” serem figuras de um mundo, ou seja, claramente articuladas com momentos sócio-históricos e pensadas no interior de uma progressão histórica em direção à tematização do pro-cesso de constituição da modernidade.

Grosso modo, podemos dizer que tal rememoração conhece três grandes movimentos. O primeiro diz respeito à tentativa de recupera-ção do mundo grego como alternativa para os impasses e cisões da modernidade. Tentativa de recuperação de uma “razão ética”, para usar-mos uma expressão de Robert Pippin, que terminará na impossibilida-de trágica de sua realização (tal é o sentido do comentário hegeliano de Antígona). Lembremos, a esse respeito, como foi particularmente forte para a geração de Hegel, principalmente após a crítica rousseaunianista à inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir uma alternativa à modernidade através do recurso a formas de vida e modos de socialização próprios a uma Grécia antiga idealizada e para-digmática. Nesse sentido, não é estranho que a reflexão hegeliana sobre a eticidade comece a partir de uma discussão a respeito da pólis grega, ou melhor, a respeito da maneira como os modernos compreendiam o poder absoluto de unificação que imperava na pólis. Pois a questão fundamental aqui “não está vinculada aos detalhes históricos da vida grega per se, mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos

14 Nesse sentido, devemos admitir o Espírito hegeliano a partir de uma leitura desinflacio-nada do ponto de vista metafísico. Vale a pena, neste ponto, seguir a definição de um comentador de Hegel que viu claramente isso: “Espírito é uma forma de vida autocons-ciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu várias práticas sociais a fim de refle-tir a respeito do que ela toma por legítimo/válido [authoritative] para si mesma no sen-tido de saber se essas práticas podem dar conta de suas próprias aspirações e realizar os objetivos que elas colocaram para si mesmas [...]. Espírito não denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas uma relação fundamental entre pessoas que mediam suas cons-ciências-de-si, um meio pelo qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram como vá-lido para si mesmas” (Thomas Pinkard, Hegel’s phenomenology: the sociality of reason, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 9). Na verdade, a leitura adorniana do conceito hegeliano de Espírito já aponta para esse ponto (ver, por exemplo, o capí-tulo “Weltgeist und Naturgeschichte. Exkurz zu Hegel”, em Theodor Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1975).

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de seus contemporâneos [de Hegel] pode, em seus próprios termos, contar como alternativa genuína para a vida moderna”15. Daí Heidegger compreender claramente que, para Hegel, “a filosofia dos gregos [e suas formas de vida] é a instância de um ‘ainda não’. Ela não é ainda a con-sumação, mas, contudo, é unicamente concebida do ponto de vista desta consumação que se definiu como o sistema do idealismo especulativo”16.

O segundo grande movimento no interior desse processo de reme-moração histórica, que visa fundamentar reflexivamente um conceito positivo de razão enraizado em práticas sociais, diz respeito à aquisição moderna da certeza do absoluto dilaceramento da consciência, devido exatamente à impossibilidade de realização da eticidade, ou seja, à im-possibilidade de indexação não problemática entre estruturas normati-vas de validade e disposições intencionais singulares. É a partir desse problema de fundo que devemos compreender o sentido desse longo trajeto, presente em toda a subseção “O mundo do espírito alienado de si”, que parte da análise da ética aristocrática da honra e passa pelas relações da aristocracia com a monarquia absoluta a fim de demonstrar como a modernidade adquire a consciência do absoluto dilaceramento da consciência e da absoluta ruína da eticidade nas relações sociais de lisonja e cortesia que marcaram a vida aristocrática pré-Revolução Fran-cesa, donde se segue a importância, dada por Hegel, do comentário do texto de Diderot, O sobrinho de Rameau. As duas últimas subseções desta parte, “O iluminismo” e “A liberdade absoluta e o terror” visam dar conta da tentativa e do desdobramento do esforço revolucionário moderno de recuperação de uma “razão ética”.

Por fim, temos a tematização da recompreensão da estrutura da subjetividade por meio do advento do idealismo alemão. Dessa forma, Hegel tenta colocar em marcha a ideia de que as expectativas e aspira-ções de autonomia, autenticidade e autocertificação da modernidade depositadas na Revolução Francesa seriam realizadas pelo idealismo ale-mão. Pois a guinada em direção à moralidade presente na última sub-seção da seção “Espírito” não significa simplesmente um recolhimento em direção à interioridade da subjetividade enquanto espaço possível

15 Thomas Pinkard, Hegel’s phenomenology, cit., p. 137.16 Martin Heidegger, Hegel e os gregos (São Paulo, Duas Cidades, 1971), p. 50.

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de reforma moral. Trata-se, na verdade, de insistir que, através da pro-blematização da moralidade, o idealismo alemão teria aberto as portas para a compreensão de que o fundamento das práticas e dos processos de racionalização que queiram realizar as aspirações modernas está na cons ciên cia-de-si, no sentido de que apenas uma problematização do conceito de consciência-de-si pode fornecer a reformulação dos princí-pios lógicos que guiam a ação dos sujeitos na realização de instituições e práticas sociais à altura das expectativas próprias à modernidade. A guinada em direção à moralidade permitirá a Hegel demonstrar a au-sência de vínculos entre subjetividade e princípio de identidade, abrin-do caminho, com isso, para a realização de um conceito de eticidade capaz de dar conta das aspirações de reconhecimento de sujeitos não substanciais.

No entanto, é no interior do segundo momento, ou seja, no inte-rior dessa reflexão sobre o dilaceramento absoluto da consciência em relação a estruturas normativas que aspiram à validade universal que Hegel introduz considerações importantes sobre a linguagem em sua função expressiva. Pela primeira vez em toda a Fenomenologia do Espí-rito, Hegel apresenta claramente a linguagem como elemento de reco-nhecimento. São tais considerações que servirão de preâmbulo para o comentário de O sobrinho de Rameau, com sua estetização das relações de lisonja. Diz Hegel:

Com efeito, a linguagem é o Dasein do puro Si como Si [das Dasein des reinen Selbsts, als Selbsts], pela linguagem entra na existência a sin-gularidade sendo para si da consciência-de-si, de forma que ela é para os outros [...]. Mas a linguagem contém o Eu em sua pureza, só ex-pressa o Eu, o Eu mesmo. Esse seu Dasein é, como Dasein, uma obje-tividade que contém sua verdadeira natureza. O Eu é esse Eu, mas é igualmente universal. Seu aparecer é ao mesmo tempo sua exterioriza-ção [Entäusserung] e desaparecer e, por isso, seu permanecer na univer-salidade [...], seu desaparecer é, imediatamente, seu permanecer.17

Após ter afirmado, na seção anterior da Fenomenologia, que a lin-guagem era uma exteriorização na qual o indivíduo não se conservava

17 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 508; Phänomenologie des Geistes, cit., p. 335.

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mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso, ou seja, que a linguagem é o Dasein do Si como Si. No entanto, essa contradição é apenas aparente, pois a linguagem perde seu caráter de pura alienação quando compreendemos o Eu não como interioridade, mas como aquilo que tem sua essência no que se autodissolve. Ao falar do Eu que acede à linguagem como um universal, Hegel serve-se do caráter de dêitico de termos como Eu, isto, agora etc., tal como fora o caso na seção dedicada à certeza sensível. “Eu” é uma função genérica de indicação a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao tentar dizer esse Eu particular, a consciência diz apenas a estrutura de significante puro do Eu, essa mesma estrutura que o filósofo alemão chama de “nome como nome”. Uma estrutura que transforma toda tentativa de referência-a-si em referência a si “para os outros” (referência através do universal social da linguagem) e como um Outro (já que implica alienação da particularidade). Por isso, o Eu enquanto indivi-dualidade só pode manifestar-se como o que está desaparecendo em um Eu universal. Essa era a maneira hegeliana de introduzir uma temática fundamental a respeito da necessidade da despossessão de si, do sacrifí-cio das representações naturais do si mesmo enquanto condição para a formação da consciência-de-si. Alienação formadora que já fora tema-tizada por ocasião das considerações hegelianas sobre o trabalho. A esse respeito, Hegel chega a afirmar que o verdadeiro processo de formação é o sacrifício que “só é completo quando chega até a morte”, sacrifício no qual a consciência se abandona “tão completamente quanto na mor-te, porém mantendo-se igualmente nessa exteriorização”18. Uma morte cuja melhor formalização é essa linguagem formadora da despossessão de si, linguagem da morte das “ilusões do imediato”.

O ponto determinante consiste no fato de Hegel reconhecer em O sobrinho de Rameau, e em sua ironia que tudo dilacera, uma das figura-ções possíveis de força formadora da linguagem. Reconhecimento inu-sitado, pois obriga-nos a afirmar que a experiência do sobrinho de Ra-meau tem um conteúdo de verdade. Como se seu cinismo fosse, no final das contas, momento fundamental no interior do processo doloroso de formação da consciência-de-si. Mas esse conteúdo, como veremos, não

18 Ibidem, par. 507; ibidem, p. 333.

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é fiel a sua forma (irônica). Por isso, tal experiência deverá nos levar para além dela mesma.

A configuração dessa experiência estetizada por O sobrinho de Ra-meau ficará mais clara se levarmos em conta que o texto de Diderot funciona, a seu modo, como momento inaugural do advento da cons-ciência das interversões das aspirações modernizadoras do Esclareci-mento. Como dissemos anteriormente, foi Foucault quem compreendeu isso claramente. Em História da loucura, ele não teme afirmar que o texto de Diderot cortava um longo movimento de exclusão ao mostrar a desrazão a aparecer no coração mesmo das operações da razão, ao mostrar uma certa maneira de ser irracional por seguir a razão até o ponto em que ela confessa seu contrário, em que ela se desfaz na “pan-tomima do não-ser”. Daí uma afirmação como “a aventura de O sobrinho de Rameau conta a instabilidade necessária e a reviravolta [retournement] irônica de toda forma de julgamento que denuncia a desrazão como lhe sendo algo exterior e não essencial”19. Mas o que seria essa desrazão que é, ao mesmo tempo, o mundo racional e “este mesmo mundo separado de si apenas pela tênue superfície da pantomima”20?

Certamente, Foucault compreende O sobrinho de Rameau como um caso privilegiado do que ele chamará posteriormente de “transgres-são” da linguagem. Uma transgressão cuja figuração possível poderá ser descrita como o ato de “submeter uma palavra, aparentemente conforme ao código reconhecido, a um outro código cuja chave é dada nessa própria palavra; de maneira que esta se desdobra no interior de si mesma”21. Uma palavra que, ao mesmo tempo, segue o código e o trans-gride, anulando com isso toda possibilidade de submeter, de maneira segura, a mensagem ao código. A enunciação, ao mesmo tempo, preenche e não preenche exigências normativas de validade. No entanto, o que isso poderia querer dizer exatamente? Esse ponto ficará claro se voltar-mos nossos olhos para o eixo da peça de Diderot, a saber, o movimento especular entre os dois protagonistas da peça, movimento marcado pela partilha problemática a respeito da determinação do sentido da expe-riência cínica.

19 Michel Foucault, Histoire de la folie (Paris, Gallimard, 1972), p. 434.20 Ibidem, p. 439.21 Idem, Dits et écrits I (Paris, Gallimard, 1994), p. 444.

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Dois cinismos

Há uma complexa história que envolve a recuperação dos motivos do cinismo antigo pelo Iluminismo francês. Uma recuperação que se inscreve no interior do movimento de confrontações a respeito do lega-do e das múltiplas recepções do cinismo. Essa recuperação do cinismo pelo Iluminismo, que chegou a transformar Diógenes em herói popular na iconografia da Revolução Francesa, deve ser compreendida no qua-dro de constituição dos móbiles da crítica iluminista. A parresia cínica, palavra autêntica com seu sarcasmo em relação aos preconceitos sexuais, religiosos, morais, políticos e à autoridade, aparecerá como ponto de orientação da crítica no Iluminismo. Por outro lado, a autarkeia, figura privilegiada da crença na autonomia do indivíduo, assim como o cosmo-politismo cínico e um certo naturalismo, funcionarão como horizontes reguladores para a ação iluminista em suas aspirações críticas.

Se voltarmos à Grécia, veremos o cinismo como uma filosofia eudemonista, fundada na crítica ao convencionalismo da moral que guia o nomos e na tentativa de recuperação de uma autenticidade do agir que apela para o recurso à physis. Ou seja, o cinismo visava fornecer a figura privilegiada de uma crítica ao nomos e à cultura por meio do programa de retorno à uma moral naturalista que toma a animalidade como padrão regulador da conduta. Conhecemos, por exemplo, a anedota que diz: “Tendo visto um dia um rato que corria sem se preocupar em encontrar uma morada, sem temer a obscuridade e sem desejo algum de tudo que transforma a vida em algo agradável, Diógenes tomou-o como modelo e encontrou remédio em seu despo ja mento”22. Isso per-mite ao cínico fundar a ideia de virtude na simplicidade dos costumes, na limitação das necessidades e, principalmente, na negação direta do vínculo aos objetos sensíveis. Para o cinismo, a virtude era uma questão de apatia e desafecção, ou seja, indiferença absoluta em relação aos objetos. Indiferença que encontramos, por exemplo, na afirmação de Antístenes presente no Banquete, de Xenofonte: “E se, por acaso, meu corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor (αϕροδισιασαι), a primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais

22 Diógenes Laércio, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres (Paris, Flammarion, 1965), v. II, p. 14.

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me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razão de que ninguém consente em ter comércio com elas”23. Dessa forma, o retorno à physis pode fundamentar a autarkeia dos que se reconciliam com o curso de um mundo estabelecido para além das exigências da polis 24.

No entanto, essa crítica cínica a uma cultura compreendida como de-gradação da natureza foi percebida, em várias ocasiões, como entificação de um discurso amoralista. Isso fez com que os próprios cínicos, principalmen-te por ocasião da recuperação romana, se dedicassem à separação entre um “falso” e um “verdadeiro” cinismo (basta lembrar o combate de Luciano contra os falsos cínicos). Uma explicação possível para essa duplicidade na recepção do cinismo pode ser fornecida se atentarmos em certos problemas na fundamentação de toda moral naturalista.

Nesse sentido, lembremo-nos do significado de fundar a autarkeia cínica pela posição da apatia. Fundar a dominação de si na negação direta dos vínculos privilegiados a objetos sensíveis equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade. Digamos que a liberdade cínica não é “liberdade de fazer determinadas ações”, mas principalmente “li-bertação em relação a certos objetos e paixões”. Esse conceito negativo de liberdade nos mostra como a physis, enquanto plano de imanência que permite a orientação da ação virtuosa, aparece principalmente como a negação do nomos. Para que a physis fornecesse um princípio positivo e autônomo de orientação da ação, seria necessário algo como uma filosofia da natureza como base para a filosofia moral, mas isso

23 Xenofonte, The banquet (Cambridge, MA, Harvard University Press, 1997), cap. IV, 38.24 Lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício mais complexo do que pode

parecer, pois falta um acesso direto aos textos. Os textos canônicos de contato com o pensamento cínico são recensões feitas por terceiros, à parte os textos de um cínico menor, Teles. Nesse sentido, o sexto livro de Vie, doctrine et sentences des philosophes il-lustres, de Diógenes Laércio, ainda é a grande referência; mas ele, por sua vez, é uma recensão de anedotas de domínio público e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os textos cínicos a que temos acesso hoje são principalmente da fase romana do cinismo, que se inicia a partir do século I d.C., como, por exemplo, os escritos de um sofista, Dion Crisostomos, de Favorinus, além das sátiras de Luciano (nas quais Menipo e Di-ógenes aparecem frequentemente como protagonistas) e dos discursos do imperador Juliano. Esse estado das fontes impede um estabelecimento mais preciso dos contornos da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O estudo do cinismo, contraria-mente ao estudo do platonismo, seja inseparável do estudo de sua recepção” (R. Bracht Branham e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics: the cynic movement in Antiquity and its legacy, Berkeley, University of California Press, 1996, p. 14).

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falta ao cinismo. Várias anedotas dão conta dessa orientação moral como negação simples do nomos. Lembremo-nos, por exemplo, da de-claração de Diógenes a respeito de seu hábito de sempre entrar no teatro pela porta de saída: “Eu me esforço para fazer na minha vida o contrário de todo mundo”25. Mas, se a physis é apenas o Outro da vida social, então ela será apenas uma abstração capaz de englobar disposições mui-tas vezes contraditórias entre si, pois variáveis de acordo com a modifi-cação subjetiva da perspectiva de avaliação do que pode se pôr como negação simples do nomos. Impasse que Hegel tinha em vista ao lembrar que: “Diógenes no seu tonel está condicionado pelo mundo que procura negar”26, ou seja, a verdadeira essencialidade de sua conduta é fornecida por aquilo que aparece como limite à sua dominação de si. Essa varia-bilidade das perspectivas de avaliação implica instabilidade na determi-nação dos preceitos morais. O que abre as portas para uma infinita e inútil discussão entre “falso” e “verdadeiro” cinismo.

O fato é que essa discussão a respeito de um falso e de um verda-deiro cinismo atravessou a recepção medieval e renascentista do legado cínico. O elogio da pobreza, da autarkeia, e a crítica ao caráter heterô-nomo das obrigações morais da vida social foram motivos para a recu-peração do cinismo pela filosofia moral do cristianismo medieval (Eras-mo, Morus). No entanto, não foram poucos os teólogos cristãos que compreenderam como simples figura do amoralismo a crítica cínica com sua ausência de vergonha (verecundia) e seu desprezo pelas regras sociais. A possibilidade de aproximação entre a moralidade cristã e o cinismo chegou mesmo a ser determinada, em alguns casos, como heresia (vide o caso dos Turlupins). Não deixa de ser desprovido de interesse recordar ainda que tal dicotomia na recepção do cinismo che-gou até a contemporaneidade. Basta nos lembrarmos do projeto de Peter Sloterdijk de recuperar o pretenso potencial disruptivo da crítica cínica aos costumes e à moral, a fim de contrapô-lo ao cinismo próprio à ideologia do capitalismo contemporâneo. No entanto, essa contrapo-sição simples talvez passe ao largo da verdadeira questão.

25 Diógenes Laércio, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, cit., p. 30.26 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 524; Phänomonologie des Geistes, cit.,

p. 345.

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Diógenes e a lanterna de Diderot

Como não poderia deixar de ser, essa clivagem continuou como pano de fundo para a recuperação do cinismo pelo Iluminismo francês. No entanto, nas mãos de Diderot, ela será usada de maneira bastante específica, ou seja, para tematizar uma possibilidade sempre aberta de interversão do trabalho crítico do Esclarecimento em seu contrário, interversão da crítica em preservação do que deveria ser descartado.

Foi dito anteriormente que a recuperação do cinismo fora impor-tante para a constituição dos móbiles da crítica iluminista. No entanto, essa aproximação entre Iluminismo e cinismo não foi um processo sim-ples, já que também se inscrevia em uma economia de desqualificação das Luzes pelos anti-iluministas. Nesse sentido, a posição ambígua de Voltaire e de Rousseau (que chegou a ser chamado por Kant de Diógenes sutil em razão de sua moral de forte inspiração naturalista e por Frede-rico da Prússia de membro da seita de Diógenes em razão de seu modo de criticar a cultura) em relação ao cinismo pode ser explicada. Já D’Alembert tinha uma preferência bem conhecida pelo cinismo, no qual ele reconhecia o ideal de autonomia. “Todo século”, dirá ele, “e sobretudo o nosso, precisa de um Diógenes.27”

No entanto, é Diderot quem ocupa um lugar especial nessa discus-são, não apenas pelas afinidades evidentes de sua escrita com a sátira menipeia, mas sobretudo por sua reflexão a respeito da herança cínica nas aspirações críticas do Iluminismo. De fato, o sarcasmo cínico dian-te das imposturas do poder aparece para Diderot como método e a mo-ral naturalista aparece como um certo horizonte de reconciliação. O que pode explicar por que o artigo da Enciclopédia dedicado aos cínicos termina com um elogio a esses “entusiastas da virtude”, capazes de “transportar para o meio da sociedade os costumes do estado de natureza”28. Mas Diderot compreendeu, na aurora das Luzes, que uma crítica inspirada nos móbiles do cinismo grego poderia nos levar a um impasse. Nesse sentido, O sobrinho de Rameau é, sem dúvida, um

27 Citado por Jean D’Alembert em Essai sur la societé des gens de lettres et des grands, dis-ponível em <http://membres.lycos.fr/almasty/dalessai.htm>.

28 Denis Diderot e Jean D’Alembert, Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (Paris, Veyrier, 1965), v. IV, p. 198.

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documento central. Pois podemos lê-lo como o exemplo mais claro da afirmação de Niehues-Pröbsting:

No cinismo, o Iluminismo descobre o perigo de uma razão pervertida, razão a transformar-se em irracionalidade, razão a frustrar-se por suas expectativas muito exaltadas. O Iluminismo conscientiza-se dessa ameaça por sua afinidade com o cinismo. A reflexão sobre o cinismo providen-cia uma peça necessária de autorreconhecimento e autocrítica.29

Notemos, no entanto, que a peculiaridade de Diderot é não orga-nizar o embate entre falso cinismo e crítica inspirada no “verdadeiro” cinismo a partir da figura da exterioridade indiferente. Diderot procura criar uma situação na qual nos deparamos não apenas com uma perver-são da crítica, mas com uma interversão da crítica através de sua própria realização. Ou seja, não se trata apenas de mostrar a inefetividade de uma moralidade que procura orientar-se a partir da aplicação de critérios normativos abstratos, expondo assim o caráter formal dos valores que guiam a crítica ilustrada. Trata-se de mostrar que o fundamento de tal moralidade pode acomodar-se a disposições absolutamente contrárias umas às outras, sem que isso seja alguma forma de “contradição perfor-mativa”. Atentemos para a peça a fim de compreendermos do que trata esse modo de interversão.

A estrutura da peça é bem conhecida. Dois personagens encon-tram-se no Café Regence, perto do Palais Royal: um (eu) é honnête homme e filósofo esclarecido com aspirações moralizantes; outro (ele) é Jean-François Rameau, músico medíocre, inconstante, amoral, sobri-nho do grande Jean-Phillipe Rameau e figura sempre presente nos salões da nobreza em razão de seu infinito poder de bajulação. A peça inteira é um grande diálogo entre os dois, no qual é questão da vida dos salões parisienses, das querelas musicais da época e, principalmente, do modo como o sobrinho realiza de maneira invertida todos os argumentos

29 Heinrich Niehues-Pröbsting, The modern reception of cynicism, em R. Bracht Branham e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics, cit., p. 333. Como dirá também Torres Filho a respeito da peça de Diderot: “A Ilustração morde sua própria cauda e gera seu Outro, mas sem que esse Outro, por ser gerado por ela, lhe seja necessariamente dócil” (Ensaios de filosofia ilustrada, cit., p. 69).

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morais do filósofo esclarecido30. Daí o texto da peça ser todo construído a partir da dinâmica de espelhamento contínuo.

Esse espelhamento indica um confronto perpétuo articulado em solo comum, já que tanto a posição do sobrinho quanto a posição do filósofo são articuladas sob a égide do cinismo. O sobrinho chega a dizer, no início da peça, que “estaria melhor entre Diógenes e Frinéia, pois sou atrevido como o primeiro e frequento com gosto a casa dos outros”31. No fim da peça, o filósofo procura inverter a direção e con-vocar o cinismo para servir de base de crítica ao amoralismo cínico do sobrinho: “Há um ser dispensado da pantomima. É o filósofo [cínico] que nada tem e nada demanda”32. Como se, novamente, um falso e um verdadeiro cinismo estivessem postos em rota de confrontação. O que corrobora aquilo que havia sido escrito no capítulo da Enciclopédia de-dicado ao cinismo: “Os falsos cínicos foram um populacho de bandidos travestidos de filósofos, e os cínicos antigos, pessoas muito honestas que não merecem senão uma censura à qual geralmente não se encoraja: é a de terem sido entusiastas da virtude”33.

No entanto, não é apenas sobre a compreensão do cinismo que se funda tal espelhamento. Vários outros pontos aparecem na peça a fim de reforçar a noção do sobrinho como certa imagem invertida do filó-sofo. Ele tem a mesma formação que o filósofo esclarecido (lê Teofrasto, La Bruyère e Molière). Os dois partilham o mesmo ceticismo em relação aos valores estabelecidos da vida social. “Defender a pátria?”, pergunta, por exemplo, o filósofo. “Vaidade. Não há mais pátria. De um polo a outro, eu só vejo tiranos e escravos”34, responde Rameau. Acrescente-se a essa lista o mesmo desprezo em relação à moral sexual e aos valores religiosos. Proximidades ainda mais acentuadas se lembrarmos que vá-rias afirmações e posições de Rameau são partilhadas pelo próprio

30 Até porque, como nos lembra Peter Bürger, o problema central do livro consiste em saber “se há realmente uma fundamentação racional da moralidade que não entre em conflito com os interesses do agente individual” (The decline of modernism, University Park, PA, Pennsylvania State University Press, 1992, p. 78).

31 Denis Diderot, Le neveu de Rameau (Paris, Flammarion, 1983), p. 49.32 Ibidem, p. 129.33 Denis Diderot e Jean D’Alembert, Encyclopédie..., cit., v. IV, p. 198.34 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 75-6.

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Diderot em outros escritos, como é o caso dos julgamentos musicais de Rameau contra seu tio. É tal espelhamento que leva Diderot a afirmar: “Ó louco, arquilouco, como é possível que na sua cabeça ruim se en-contrem ideias tão justas misturadas com tanta extravagância”35.

De maneira esquemática, podemos dizer que a peça começa a par-tir da defesa, feita por Rameau, de exigências de autenticidade através da procura pela satisfação irrestrita e da consequente crítica à tentativa de avaliar a existência a partir de valores morais. O filósofo procura contrapor-se, tentando fundamentar valores morais de aspiração uni-versalizante. Rameau passa à crítica ao filósofo fazendo profissão de fé realista e afirmando que a consciência imersa nas condições cotidianas de interação social não regula a ação a partir de tais valores. O filósofo reconhece a excepcionalidade da conduta virtuosa. Coisa de gente bizarra, chega a dizer. Isso abre as portas para que Rameau lembre: “Você crê que a mesma felicidade é feita para todos. Que visão estranha!”36. Em vez de tentativas de universalização de uma moralidade que, ao ser aplicada à vida social, só serve como máscara para interesses particulares, melhor seria zombar dessas determinações normativas que a razão procura enunciar. O filósofo tenta salvar o fundamento de valores morais ao insistir na existência de uma hierarquia entre prazeres sensíveis e prazeres da virtude. Ao que Rameau replica novamente, mos-trando que os prazeres sensíveis não implicam perda da autonomia e da autenticidade. Não se é mais autônomo guiando a conduta a partir da virtude e rebaixando os prazeres sensíveis.

Dessa forma, o filósofo é obrigado a afirmar: “Havia em tudo isso muita coisa que se pensa, pelas quais se conduz, mas que não se diz. Ele reconhecia vícios que outros têm, mas não era hipócrita. Não era nem mais nem menos abominável que eles, mas apenas mais franco e mais consequente, e algumas vezes profundo em sua depravação”37. Ou seja, não se tratava de hipocrisia no caso de Rameau. O que não deve nos surpreender. Afinal, a hipocrisia é uma das múltiplas máscaras da insin-ceridade dos que escondem a particularidade do interesse por meio da universalidade do dever; máscara que cai mediante uma crítica capaz de

35 Ibidem, p. 69.36 Ibidem, p. 75.37 Ibidem, p. 119.

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desvelar os verdadeiros interesses por trás da aparência de universalidade. No entanto, isso não pode dar conta da posição de Rameau, fundada toda ela na franqueza da enunciação da verdade, nessa “franqueza fora do comum”38 que faz tremer o filósofo por não ver seguir-se dessa enunciação a reorientação da conduta que normalmente poderíamos esperar.

Nada pode dizer-lhe [a consciência simples e honesta do filósofo] que ele mesmo [Rameau] não saiba e não diga [...], essa consciência [o fi-lósofo], enquanto supõe contradizer o conteúdo do discurso do espí-rito, apenas o resumiu de uma maneira trivial, carente de pensamento [gedankenlos].39

Como nos lembra Rubens Torres Filho: “O cínico adere a seu dis-curso a tal ponto que não mente: não fala contra a verdade, pois não fala em nome dela; não é moral nem imoral, pois não opera sobre o pressu-posto dessa distinção, não é hipócrita: não esconde seu ser verdadeiro, pois não é nada, ‘no fundo’, não tem nenhuma essência”40. À sua maneira, Diderot já nos coloca, na aurora das Luzes, diante de uma “falsa consciência esclarecida”, alguém que fala como um aufklärer e age como uma falsa consciência, clivagem que levou Hegel a ver aqui o exemplo supremo de uma “consciência dilacerada”, mas sem a tragédia de uma consciência infeliz.

Devemos insistir na ideia de que essas confrontações entre Rameau e o filósofo não são meras contraposições. Podemos falar, nesse caso, em interversão, porque as duas posições, longe de serem simplesmente con-trárias, fundamentam seus critérios de julgamento e crítica no mesmo solo. De certa forma, os dois partilham a temática cínica da crítica ao nomos em nome da recuperação da physis. Eles falam em nome do mesmo fundamento, embora a partir de leituras conflitantes. “O que é uma boa

38 Ibidem, p. 62.39 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 523; Phänomenologie des Geistes, cit.,

p. 346.40 Rubens Torres Filho, Ensaios de filosofia ilustrada, cit., p. 58. Donde se segue também o

diagnóstico de Paulo Eduardo Arantes: “O vazio, a vaidade tantas vezes salientada por Hegel, da consciência dilacerada do sobrinho, que carece da experiência perversa – a nos fiarmos na tradução de Verkehrung por perversão, proposta por Hyppolite – da vacuidade de todas as coisas para forrar sua própria consciência, espelha-se no formalismo discur-sivo, bem falante da raciocinação” (Ressentimento da dialética, cit., p. 35).

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educação”, diz Rameau, “a não ser aquela que conduz a todas as for-mas de gozo, sem perigo e sem inconveniente”41. Nesse caso, a physis aparece como espaço de retorno a um gozo dos sentidos impossibili-tado pela moralidade: “Beber bom vinho, engalfinhar-se com belas mulheres, dormir em leitos bem macios: o resto é vaidade”42. Como se o sobrinho apenas atualizasse esta crítica ao nomos que Cálicles faz, diante de Sócrates:

Aquele que quiser viver corretamente sua vida deve, de um lado, dei-xar suas paixões serem as maiores possíveis e não mutilá-las; ser capaz, por outro lado, de pôr a serviço dessas paixões as forças de sua energia e inteligência. Em suma, dar a cada desejo a plenitude da satisfação [...]. Sensualidade, licença, liberdade sem reservas: eis a virtude e a felicidade! Quanto ao resto, quanto a essas belas convenções humanas que estão em oposição com a natureza, isso é apenas falatório e não tem valor algum.43

Contra essa physis que legitima uma ética do excesso e do gozo, o filósofo procura retomar a moral naturalista cínica articulada a partir da apatia e da dominação de si. E, de fato, esse cinismo, o sobrinho parece desconhecer. O filósofo dirá: “Há um ser dispensado da pantomima [e da lisonja]. É o filósofo [cínico] que nada tem e nada demanda [...]. Diógenes zombava das necessidades”44. Pois, como sabemos, o recurso cínico à physis significa “restrição”, restringir o desejo àquilo que é pres-crito pela natureza. Mas o filósofo ver-se-á obrigado a entrar continua-mente em contradição em razão do caráter absolutamente abstrato, a respeito do qual já falamos anteriormente, dessa natureza negativa. Isso o leva, em vários momentos, a abraçar as posições do próprio Rameau: “Eu não desprezo os prazeres dos sentidos”, dirá o filósofo.

Tenho também um palácio e ele é embelezado por iguarias delicadas e um vinho delicioso. Tenho um coração e olhos, e amo ver uma bela

41 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 121.42 Ibidem, p. 75.43 Platão, “Gorgias”, em Oeuvres complètes (Paris, Gallimard, 1950), Bibliothèque de la

Pléiade, 492C.44 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 130.

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mulher. Amo sentir em minhas mãos a harmonia e a delicadeza de sua garganta, pressionar seus lábios contra os meus, alimentar a volúpia em seus olhos e esgotá-la entre meus braços.45

Como se o filósofo ilustrado mostrasse com isso a consciência de que a fundamentação da crítica em uma moral naturalista só pode nos levar a uma constante interversão. É nesse sentido que devemos com-preender a colocação de Hegel:

Esse espírito [próprio ao sobrinho de Rameau] é essa absoluta e uni-versal inversão e alienação [Verkehrung und Entfremdung] da efetividade e do pensamento; a pura cultura. O que neste mundo se experimenta é que não tem verdade nem as essências efetivas do poder e da riqueza, nem seus conceitos determinados, bem e mal, ou a consciência do bem e a consciência do mal, a consciência nobre e a consciência vil; senão que todos esses momentos se invertem, antes, um no outro, e cada um é o contrário de si.46

Essa absoluta e universal inversão e alienação da efetividade é fruto de um certo descompasso do fundamento consigo mesmo, formalismo do fundamento que faz com que toda tentativa de articulação entre Ideia e efetividade seja, por sua vez, marcada pela experiência da inade-quação e da indeterminação. Como se os problemas nos modos de in-dexação entre fundamento e efetividade fossem figuras da instabilidade do próprio fundamento. É o reconhecimento e a implementação dessa instabilidade do fundamento que produz a passagem da ironia, pensada como exercício regional de estilização do bloqueio na efetivação da Ideia, para o puro e simples cinismo.

Em virtude dessa indeterminação no próprio fundamento, Diderot pode estetizar, através de O sobrinho de Rameau, um movimento de ironização resultante da inversão de nossos modos de indexação entre critérios normativos e consequências da ação, sem que isso implique

45 Ibidem, p. 77.46 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 521; Phänomenologia des Geistes,

cit., p. 343. Ou ainda: “O conteúdo do discurso que o espírito profere de si mesmo e sobre si mesmo é, assim, a inversão de todos os conceitos e realidades, o engano univer-sal de si mesmo e dos outros. Justamente por isso, o descaramento de enunciar essa impostura é a maior verdade” (ibidem, par. 522; ibidem, p. 344).

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necessariamente uma contradição performativa, ou seja, uma contradição entre aquilo que faço e que aquilo que digo. Ironização significa, assim, ruptura entre expectativas de validade e determinações fenomenais, ruptura que é uma contradição posta que visa aparecer como contradição resol-vida. Contradição resolvida no realismo cínico de quem diz: “Estive um dia à mesa de um ministro espirituoso do rei de França, bem, ele nos demonstrou, claro como um e um são dois, que nada era mais útil ao povo que a mentira, nada mais nocivo que a verdade”47. Essa inversão dos modos de indexação entre critérios normativos e consequências da ação é uma perspectiva privilegiada de abordagem do problema con-temporâneo que definimos como “cinismo”.

Mas, dito tudo isso, qual será exatamente a crítica de Hegel? Ela está sintetizada da seguinte forma:

Enquanto conhece o espiritual pelo lado da desunião e do conflito [Widerstreits] – que o Si unifica em si –, mas não o conhece pelo lado dessa união, sabe muito bem julgar o substancial, mas perdeu a capa-cidade de apreendê-lo [zu fassen]. Essa vaidade necessita, pois, da vai-dade de todas as coisas para proporcionar-se, a partir delas, a consciência do Si: ela mesma, portanto, produz essa vaidade e é a alma que a sustém [...]. Esse Si é a natureza dilacerada em si mesma [die sich selbst zerreissende Natur] de todas as relações e o dilacerar consciente delas [...]. Naquela vaidade todo conteúdo se torna um Negativo, que não se pode mais apreender [gefasst] positivamente. O objeto positivo é só o puro eu mesmo, e a consciência dilacerada é, em si, essa pura igual-dade-consigo-mesma [selbstgleichheit] dessa consciência-de-si que a si retornou.48

Há dois elementos importantes aqui. Por um lado, Hegel afirma que a consciência conhece a efetividade como espaço de desunião e inversão constante de determinidades. Ela se vê diante de uma realidade incapaz de responder a expectativas de validade com aspirações univer-salizantes e por isso passa à “dissolução irônica do determinado e do que

47 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 50.48 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 526; Phänomenologie des Geistes, cit.,

p. 347-8.

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é em si substancial”49. No entanto, essa consciência não apreende o que conhece, pois não vê o conflito, que permite a inversão de tudo em seu contrário, como o resultado de uma desarticulação dos princípios de orientação do pensar da própria consciência. De certa forma, como nas críticas hegelianas ao ceticismo, a consciência não leva tal enunciação da contradição e do conflito suficientemente longe. Pois ela continua a julgar a efetividade a partir de critérios “naturalizados” de determinação do sentido de operações como a contradição, a identificação e a identi-dade. A dissolução da determinidade é feita em nome de uma noção de identidade que só tem realidade reguladora. Tal como no ceticismo, o cinismo é continuação do princípio de identidade por outros meios. E, neste ponto, Hegel recorre novamente a sua crítica padrão contra a ironia. Crítica que consiste em afirmar que a negatividade da dissolução irônica das determinidades é feita graças à posição do Eu como único objeto positivo.

Uma das maneiras de compreendermos o que Hegel tem em vista poderia ser lembrando que a crítica à inautenticidade de toda determi-nação social exige a entificação de um conceito não problematizado de autenticidade. De qual posição de exterioridade a crítica pode denun-ciar a inautenticidade da totalidade do existente? Resposta hegeliana: de uma posição que conserve o Eu como subjetividade autêntica, como unidade imediata e autoidêntica.

No entanto, tais colocações soam aparentemente estranhas. Pois não é certo que o sujeito irônico conserve certa autoidentidade própria ao Eu para além da dissolução de toda substancialidade. Ao contrário, se voltarmos os olhos mais uma vez para o cinismo grego, já veremos aí uma aparente problematização da noção de autoidentidade. Sabemos que a parresia cínica enquanto prática de formação daquele a quem o falar da verdade se endereça estava absolutamente indissociada do riso. Pois o falar franco cínico é solidário dos usos corrosivos do sarcasmo, do escárnio, da sátira, da paródia e da diatribe. O humor aparecia como a maneira correta de dizer aquilo que é da ordem da verdade, humor que inverte designações e esvazia significações. O que explica por que as formas da transmissão filosófica dos cínicos estavam todas vinculadas

49 Idem, Vorlesungen über die Ästhetik, cit., v. I, p. 99.

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a modos humorísticos. Sabemos, por exemplo, que Crates e Menipo deram à sátira (a ponto de falarmos de sátira menipéia como gênero) uma função central como modo de escrita filosófica. Podemos dizer que Diógenes eleva o chiste e os jogos de palavras a regimes privilegiados de enunciação da verdade. Assim, se é certo, como diz Foucault, que a parresia é indissociável de uma prática de formação daquele a quem o falar da verdade se endereça, então devemos tirar as consequências do fato desse processo de formação dar-se pelas vias do riso.

Nesse sentido, Bakhtin chega a ver, na forma humorística dos filósofos cínicos, as primeiras marcas do humor popular contra as instaurações do gênero épico: “É precisamente o humorista que des-trói o gênero épico, e geralmente destrói toda distância hierárquica”50. No entanto, nesse processo de destruição, até mesmo a fixidez da imagem de si, imagem construída no gênero épico por meio da iden-tificação com uma missão simbólica que deve ser assumida pelo su-jeito, é abalada. Isso permite que o sujeito “adquira a iniciativa ide-ológica e linguística necessária para mudar a natureza de sua própria imagem”51 continuamente.

Esse é um dado que encontramos no próprio sobrinho de Rameau. “Nada é mais dessemelhante dele mesmo do que ele mesmo”, dirá o filósofo. “Trata-se de um composto de altivez e baixeza, de bom-senso e desrazão. É necessário que as noções de honesto e desonesto estejam estranhamente embaralhadas em sua cabeça.52” Ou seja, Rameau forne-ce uma imagem dilacerada de si, imagem irônica que não se acomoda a nenhum princípio de identidade. O próprio Hegel verá aqui as marcas de uma ironização absoluta que não é outra coisa que uma linguagem do dilaceramento de si, na qual:

uma só e mesma personalidade [Persönlichkeit] é tanto sujeito quanto predicado. Mas esse juízo idêntico é, ao mesmo tempo, o juízo infini-to; pois essa personalidade está absolutamente cindida, e o sujeito e o predicado são pura e simplesmente entes indiferentes que nada têm a

50 Mikhail Bakhtin, The dialogical imagination: four essays (Austin, University of Texas Press, 1980), p. 23.

51 Ibidem, p. 38.52 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 46.

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ver um com o outro, a ponto de cada um ser a potência de uma per-sonalidade própria.53

Maneira hegeliana de afirmar que as determinações atributivas do predicado estão cindidas em relação à ideia que se aloja na posição de sujeito. É isso que Hegel tem em vista ao afirmar que o ser para-si se põe como objeto enquanto Outro. Em um contexto diverso, isso po-deria ser a própria realização do conceito de Espírito, até porque essa cisão é consciente-de-si, ela não se dá mais às costas da consciência. A infinitude da distância entre sujeito e predicado poderia ser manifes-tação de uma “negatividade infinita absoluta”, que encontra enfim uma determinidade. No entanto, de uma forma muito peculiar, Hegel age como quem diz que essa cisão absoluta é apenas nostalgia de uma unidade bloqueada; unidade que continua a orientar os julgamentos da consciência.

Natureza e música

Neste ponto, podemos retornar ao texto de Diderot pela última vez. Pois o texto desenvolve-se em direção a uma certa reconciliação inusitada que pode dizer muito a respeito do problema que Hegel tem em mente. Depois de uma longa série de confrontações, Rameau e o filósofo encontram, quase no fim da peça, um terreno de concórdia. Ele está presente no campo dos julgamentos estéticos. Trata-se da dis-cussão a respeito da música. Isso a ponto de o filósofo afirmar: “Como é possível que com um tato tão fino, uma sensibilidade tão grande para as belezas da arte musical, você seja tão cego para as belas coisas em moral, tão insensível aos charmes da virtude?”54. Podemos mesmo dizer que as digressões sobre música não são extemporâneas ao emba-te central do texto, mas revelam um fundamento não problemático presente no solo estético. No entanto, esse terreno da crítica estética fica como promessa não realizada na efetividade da vida social. O fi-lósofo gostaria de fundar julgamentos morais a partir da natureza,

53 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, cit., par. 526; Phänomenologie des Geistes, cit., p. 345.

54 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 116.

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recorrendo, com isso, à transformação de julgamentos estéticos em base para a racionalização de julgamentos morais. Pois, através da estética, a ordem natural aparece como conceito normativo.

Lembremos como, ao falar da música italiana, o sobrinho dirá: “Que verdade! Que expressão!”55. Mais à frente, ele advertirá: “Creia em tudo o que disse, pois é a verdade”56. E ainda: “O verdadeiro, o bom, o belo têm seus direitos”57. Que o vocabulário da expressividade da ver-dade saia da boca deste antifilósofo cínico, eis algo que deve surpreender. Ainda mais que, durante toda a digressão sobre a música, os polos se invertem no interior da peça. Ao perguntar: “Qual é o modelo do músico quando ele faz um canto?”, o filósofo reconhece sua inabilidade para responder à questão e ouve atentamente a intervenção segura do sobrinho, que dará uma aula sobre “a verdade em música”, pois é do “canto verdadeiro”, do “sublime” que será questão em sua intervenção.

E o que diz o sobrinho? Diderot serve-se dele aqui para dar vazão a sua posição a respeito da querela que contrapunha Jean-Phillipe Rameau e os defensores da ópera italiana, como Rousseau e Grimm. Grosso modo, trata-se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da teoria fisicalista do som – harmonia que abria as portas para uma polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo que seria extramusical – e, de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseaunianista que Dahlhaus caracterizou bem:

Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical de Rousseau.58

55 Ibidem, p. 106.56 Ibidem, p. 107.57 Ibidem, p. 109.58 Carl Dahlhaus, L’idée de la musique absolue (Genebra, Contrechamps, 1997), p. 49.

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Para Rousseau, tratava-se de, pela defesa da centralidade da melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo en-tre música e expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isso lhe permitia vincular a música a uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por recuperar o elo entre natureza e cultura59. De maneira surpreendente, é a esta vertente que o sobrinho de Rameau se vinculará (neste sentido, contra seu tio): a verdade da procura da autenticidade que se perdeu no interior das práticas sociais. Lembremos por exemplo o que diz Rameau sobrinho a respeito da ques-tão “qual é o modelo da música e do canto?”: “É a declamação [...], quanto mais essa declamação for forte e verdadeira, quanto mais o canto que a ela se conforma cortá-la em um maior número de pontos, mais o canto será verdadeiro e belo”60.

Estas não parecem palavras de um cínico desencantado. Mas elas nos revelam que o impulso cínico de ironização absoluta das condutas pode conviver com uma nostalgia da verdade e da identidade como expressão imanente que se guarda na arte. Talvez isso nos permita ver no cinismo não exatamente um amoralismo, mas uma espécie de hipermoralismo que reconhece sua impossibilidade de realizar-se no campo da convi-vência social e que, com isso, pode voltar-se, por exemplo, para uma hipermoralização da arte. O rousseaunianismo musical do sobrinho de Rameau, aliado ao seu “naturalismo” moral (resultante, na verdade, da

59 Lembremos o que diz Rousseau: “Quando pensamos que, de todos os povos da terra, de todos que têm uma música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmo-nia, acordes, achando essa mistura agradável; quando pensamos que o modo durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma te-nha conhecido essa harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o uníssono ou outra música que a melodia; que as línguas orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram esses povos voluptuosos e apaixonados em direção a nossa harmonia; que sem ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos; que com ela a nossa tenha efeitos tão fracos; que, enfím, estava reservado aos povos do Norte, cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem essa grande descoberta e defini-la como princípio de todas as regras da arte; quando, digo eu, levamos tudo isso em consideração, é muito difícil não desconfiar que toda a nossa harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais sensíveis às verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural” (Dictionnaire de musique, Paris, Actes Sud, 2008, p. 54).

60 Denis Diderot, Le neveu de Rameau, cit., p. 106.

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transformação das relações do capitalismo em “história natural”), expõe, na dissociação de polos, o caráter contraditório do recurso à natureza positiva enquanto fundamento da norma social. É essa contradição que impulsiona a negatividade de Rameau. Uma negatividade que, por formalizar-se como ironização, tende a realizar-se apenas como esteti-zação da impossibilidade de identidade.

Essa hipóstase de exigências de autenticidade do agir individual em uma época marcada pela consciência da desagregação da substância normativa social leva ao impasse de uma indeterminação constante estetizada sob a forma da ironização. Tal situação se torna explosiva em uma sociedade, como a nossa, em que “o individualismo romântico se tornou projeto generalizado e em que as coerções morais foram ampla-mente decompostas”61. No entanto, como veremos no próximo capítu-lo, de nada adianta procurar substituir o apelo à autenticidade do agir individual pela crença no potencial conciliador de critérios normativos assegurados intersubjetivamente.

61 Axel Honneth, “Patologias da liberdade individual”, Novos Estudos, n. 66, jul. 2003, p. 87.

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WaS ISt ZynISmuS?

Não é quando é perigoso dizer a verdadeque ela raramente encontra defensores,

mas sim quando é enfadonho.

Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano

Sobre a noção de razão cínica

Uma discussão sobre as configurações contemporâneas do cinis-mo não tem como deixar de levar em consideração certos modos de encaminhamento que nortearam o projeto deste livro, que, para o bem ou para o mal, funcionou como catalizador do debate: Crítica da razão cínica, de Peter Sloterdijk. Nele, o autor parte da famosa frase usada por Marx a fim de traçar os contornos do desconheci-mento ideológico: “Eles não sabem, mas o fazem”. Uma certa leitu-ra da afirmação nos levaria à ideia de que se trataria do desconheci-mento da consciência em relação à estrutura social de significação que determina o significado objetivo da ação. Ela não sabe o que realmente faz, e isso em virtude de sua posição de suporte (Träger) de determinações estruturais de reprodução da vida material que a ultrapassam. Ela erra em uma errância que indica a distância entre o que lhe aparece e o que determina os modos do aparecer. Conhe-cemos todos essa temática da alienação da falsa consciência no do-mínio das relações reificadas e da aparência socialmente necessária. Alienação que indicaria, entre outras coisas, a incapacidade de com-preensão da totalidade das estruturas causais historicamente deter-minadas que suportam a reprodução das relações sociais em todas as suas esferas de valores.

No interior dessa leitura, o papel da crítica seria abrir espaço para a apropriação autorreflexiva dos pressupostos determinantes da ação. Apropriação que, por sua vez, pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime

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de relações não reificadas que garantam a transparência da totalidade dos mecanismos de produção de sentido. A crítica vira “descrição das estrutu-ras que, em última instância, definem o campo de toda significação possível”1. Uma das figuras dessa crítica poderia ser, por exemplo, uma certa Erinnerung capaz de desvelar a história do desenvolvimento do processo real de produção que deveria ser interiorizada pela consciência de classe. Pensemos, por exemplo, em Lukács quando este afirma que “a existência da burguesia pressupõe sua incapacidade de chegar à com-preensão clara de seus próprios pressupostos sociais”2. Ou seja, a auto-crítica da burguesia seria Erinnerung, rememoração e interiorização de seus pressupostos; o que permitiria o estabelecimento das condições para a ultrapassagem das ilusões burguesas e a reorientação da ação a partir de um processo de historização reflexiva.

Levando tal esquema em conta, Sloterdijk pode afirmar ser o cinis-mo algo como uma ideologia reflexiva ou, ainda, uma falsa consciência esclarecida. Posições resultantes de um tempo que conhece muito bem os pressupostos ideológicos da ação, mas não encontra muita razão para reorientar, a partir daí, a conduta. A noção de ideologia reflexiva, ou seja, de ideologia que absorve o processo de apropriação reflexiva de seus próprios pressupostos é astuta por descrever a possibilidade de uma posição ideológica que porta em si mesma sua própria negação ou, de certa forma, sua própria crítica. Já o termo aparentemente contraditório falsa consciência esclarecida nos remete, como vimos no capítulo ante-rior, à figura de uma consciência que desvelou reflexivamente os móbi-les que determinam sua ação “alienada”, mas mesmo assim é capaz de justificar racionalmente a necessidade de tal ação. A crítica, por não poder fazer apelo à dimensão de uma verdade recalcada pela construção ideológica (já que tudo é posto pela consciência), perde sua eficácia para modificar predisposições de conduta. Daí a noção de que o cinismo “é a consciência infeliz modernizada sobre a qual a Aufklärung agiu ao mesmo tempo com sucesso e em pura perda”3. É nesse sentido que

1 Bento Prado Jr., Alguns ensaios (São Paulo, Paz e Terra, 2000), p. 210.2 Georg Lukács, História e consciência de classe (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 417.3 Peter Sloterdijk, Critique de la raison cynique (Paris, Christian Bourgois, 1987), p. 28.

Por sinal, essa é uma boa definição da consciência dilascerada que encontramos no ca-pítulo anterior.

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Sloterdijk pode dizer que, no cinismo, “eles sabem o que fazem, e con-tinuam a fazê-lo”. Como se houvesse uma profunda distorção performa-tiva no cerne dos usos cínicos da linguagem.

O cinismo aparece assim como elemento maior do diagnóstico de uma época na qual o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo ideológico. Até porque, como veremos, neste ínterim, o poder aprendeu a rir de si mesmo, o que lhe permitiu “revelar o segredo de seu funcio-namento e continuar a funcionar como tal”4. Tais colocações demons-tram como a problemática referente ao cinismo nos leva ao cerne de uma reflexão sobre os modos de funcionamento da ideologia em socie-dades ditas “pós-ideológicas”, ou seja, sociedades que aparentemente não fariam mais apelos à reificação de metanarrativas teleológicas en-quanto fundamento para processos de legitimação e validade de estru-turas da ação racional.

A obsolescência do mascaramento ideológico é um fenômeno mais complexo do que a simples aceitação tácita de que a força prescinde de toda necessidade real de justificação. O recurso constante, em situações contemporâneas de afirmação da força, a critérios normativos e a valores partilhados, mesmo que feitos de maneira meramente retórica, demons-tra como as aspirações de legalidade continuam sendo peças funda-mentais da lógica interna do poder. A obsolescência do mascaramento ideológico apenas indica que, de uma certa forma, talvez da única forma “realmente” possível, as promessas de racionalização e de modernização da realidade social já foram realizadas pela dinâmica do capitalismo. Foram realizadas de maneira cínica; o que significa que, de uma forma ou de outra, elas foram realizadas.

Nesse sentido, não devemos perder de vista que o estudo do que poderíamos chamar de razão cínica é um setor privilegiado dos modos de articulação das expectativas emancipatórias da razão com uma teoria do poder. Pois o cinismo é fundamentalmente um regime peculiar de funcionamento do poder e da ação social que procura dar conta de exigências partilhadas de legitimidade intersubjetivamente fundamen-tadas. Um regime que, na aurora do capitalismo, podia ainda aparecer

4 Slavoj ŽiŽek, “Fétichisme et subjectivation interpassive”, Actuel Marx, Paris, PUF, n. 34, 2003, p. 100.

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como modo restrito de relação às expectativas normativas da razão apenas em classes “ociosas” e “desterritorializadas”5, como vimos no capítulo anterior a respeito do sobrinho de Rameau. No entanto, esse mesmo regime foi capaz de, na fase atual do capitalismo, transformar-se, de maneira cada vez mais visível, em modo hegemônico de relação à nor-ma. Há uma história do cinismo marcada pela passagem de uma eco-nomia restrita a uma economia generalizada. Essa história ainda precisa ser contada.

De qualquer forma, quando falamos que o cinismo é um regime peculiar de relação à norma, devemos lembrar do sentido maior do que está em jogo na noção de “relação”. Foucault, ao insistir na existência de uma problemática vinculada aos modos de subjetivação, problemá-tica necessariamente presente em todas as análises dos modos de sujei-ção a normas, códigos, leis e valores, abriu um campo profícuo de refle-xão. Lembremos, por exemplo, sua insistência no fato de que:

Dado um código de ações e para um tipo determinado de ações (que podemos definir por seus graus de conformidade e divergência em relação a esse código), há diferentes maneiras de “conduzir-se” moral-mente, diferentes maneiras de o indivíduo agente operar não apenas como agente, mas como sujeito moral dessa ação.6

De fato, toda ação (e não apenas as ações que visam ser validadas no campo moral) comporta uma relação significante aos critérios nor-mativos aos quais ela se refere, mas há várias formas de posicionar-se em relação a uma regra que seguimos. Em certos casos, alguns desses posicionamentos podem ser contrários entre si, sem que isso implique contradição em relação aos critérios tacitamente aceitos. Ou seja, a di-mensão procedural da lei não condiz com uma visão unívoca de sua dimensão semântica. Até porque não podemos retirar a ambiguidade da dimensão semântica (principalmente em seu nível referencial) ape-nas por meio de procedimentos hermenêuticos. Como veremos, esse é um fenômeno absolutamente relevante para nossa discussão a respeito do cinismo.

5 A esse respeito, ver sobretudo Paulo Eduardo Arantes, “Paradoxo do intelectual”, em Ressentimento da dialética (São Paulo, Paz e Terra, 1996).

6 Michel Foucault, Histoire de la sexualité II (Paris, Gallimard, 2000), p. 37.

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Um problema de sinceridade?

Levando em conta tais discussões a respeito do desconhecimento ideológico na dimensão do saber e dos problemas de consistência em relação à regulação entre ação e critérios normativos, é possível apresentar uma primeira definição operacional do cinismo – definição que guiará nossos primeiros passos. Pois a ausência de desconhecimento implica, entre outras coisas, a crença na possibilidade de um certo “dizer sobre a verdade”, uma certa enunciação de valores e critérios que não exige reorientação posterior do sistema de condutas. Dessa forma, o cinismo pode ser visto como uma certa enunciação da verdade, mas uma enun-ciação que anula a força perlocucionária que poderíamos esperar desse ato de fala. Na verdade, o desafio do cinismo consistiria em compreen-der atos de fala nos quais a enunciação da verdade anula a força perlocu-cionária da própria enunciação.

Nós nos sentimos normalmente reconfortados com a promessa de que a verdade nos libertará, ou seja, de que a luz advinda com a enun-ciação da verdade será capaz de portar um acontecimento que reconfi-gura o campo da efetividade. No entanto, o cinismo coloca-nos diante do estranho fenômeno da usura da verdade 7, de uma verdade que não só é desprovida de força performativa, mas também bloqueia tempora-riamente toda nova força performativa. Em uma formulação feliz, Slo-terdijk nos lembra que “há uma nudez que não desmascara mais e não faz aparecer nenhum ‘fato bruto’ sobre o terreno no qual poderíamos nos sustentar com um realismo sereno”8. Ela é importante por nos lem-brar que não há, no cinismo, operação alguma de mascaramento das intenções no nível da enunciação. Não se trata de um caso de insince-ridade ou de hipocrisia. Ao contrário, mesmo que haja clivagens entre a literalidade do enunciado e a posição da enunciação, essa clivagem é, tal como na ironia, claramente posta diante do Outro. Assim como na ironia, no cinismo o Outro percebe que o sujeito não está lá para onde seu dito aponta.

Mas poderíamos afirmar que, se o cinismo é o que assim aparece, então não se trata de um problema tão relevante. Pois a figura de uma

7 Tomo emprestada essa expressão de Bruno Hass.8 Peter Sloterdijk, Critique de la raison cynique, cit., p. 30.

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enunciação da verdade que anula a força perlocucionária da própria enun-ciação é uma velha conhecida, que tem a idade dos cretenses mentiro-sos. Pensemos, por exemplo, em uma antiga piada judia contada por Freud: “Em uma estação ferroviária da Galícia, dois judeus se encon-tram em um trem. ‘Aonde você vai?’, pergunta um. ‘A Cracóvia’, é a resposta. ‘Vejam só que mentiroso’, levanta-se o primeiro. ‘Se diz que vai a Cracóvia, é porque quer me fazer acreditar que vai a Lemberg. Só que sei bem que você vai realmente a Cracóvia. Então, por que mente?”9. Estamos aí diante de um caso claro de enunciação da verdade que pro-duz um efeito de mentira, invertendo, com isso, o próprio valor da ver-dade e retirando, assim, sua força perlocucionária. Esse efeito inverte o valor da verdade ao sustentá-la.

No entanto, todo o problema vem do fato de o segundo judeu, este que diz ir a Cracóvia, não ser um enunciador legítimo. Se quisermos utilizar um conceito aristotélico maior para a retórica, diremos que seu ethos não é adequado à enunciação da verdade, já que ele é reconheci-damente um mentiroso. É por saber-se reconhecido como um menti-roso que o segundo judeu pode ser cínico e inverter o valor da enuncia-ção da verdade. Ele sabe que o outro levará em conta a distinção entre o que é dito e a maneira disjuntiva com que o enunciador se vincula ao dizer. Assim, ele pode mentir ao dizer a verdade, como poderia tam-bém dizer a verdade ao mentir. Nesse sentido, casos como esse nos lembram que a verdade não é simplesmente um problema de descrição adequada de estados de coisas, mas é também um problema de respeito a critérios normativos de enunciação. Pois poderíamos ler esse exemplo freudiano como um caso clássico de transgressão de um critério funda-mental de enunciação, levantado há muito por John Austin, ou seja, “é apropriado que a pessoa que profere a promessa [ou a justificação] tenha uma determinada intenção, a saber, a intenção de cumprir com a palavra”10. Como o próprio Freud nos lembra, a respeito de sua piada: “Trata-se de verdade quando se descrevem coisas tais como elas são, sem preocupar-se em saber como o auditor compreenderá o que é dito?”11.

9 Sigmund Freud, “Der Witz und seine beziehung zum Unbewussten”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. VI, p. 127.

10 John Austin, Quando dizer é fazer (Porto Alegre, Artes Médicas, 1983), p. 38.

11 Sigmund Freud, “Der Witz und seine beziehung zum Unbewussten”, cit., v. VI, p. 128.

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A resposta é trivialmente negativa, já que a enunciação da verdade não é simplesmente um problema de adequação semântica ou de correção sintática, mas fundamentalmente um problema de consistência de con-textos de enunciação.

No entanto, vale a pena notar que essa noção de insinceridade como estado intencional prévio ao ato traz alguns problemas. Pois ela só é aces-sível por meio do estabelecimento de contradições performativas, ou seja, ela só aparece como efeito de um ato de fala. Como o próprio Habermas nos lembra: “Que alguém pense sinceramente o que diz é algo a que só se pode dar credibilidade pela consequência de suas ações, não pela indi-cação de razões”12, ou pela certeza de intenções, diremos nós. Isso nos leva a colocar a questão de saber se não deveríamos simplesmente abandonar o vínculo entre estado intencional e sinceridade em prol de uma noção de sinceridade como efeito de discurso. Pois o recurso à sinceridade parte do pressuposto de uma identidade imediatamente acessível entre a inten-cionalidade e a forma geral do ato, como se, em última instância, a cons-ciência pudesse ter a convicção legítima de possuir a representação da efetividade adequada à intenção de sinceridade.

Na verdade, a noção de sinceridade como condição fundamental de produção do sentido está necessariamente vinculada àquilo que os teóricos dos atos de fala chamam de “princípio de expressibilidade”13, com sua definição de que sempre haverá um conjunto de proposições intersubjetivamente partilhadas capaz de ser a exata formulação de um determinado estado intencional. Essa sólida identidade é resultado de uma certa pressuposição. No momento em que se engaja em um ato de fala intencionalmente orientado, o sujeito sempre pode, de direito mas nem sempre de fato, partir da pressuposição prévia de saber o que quer dizer e como deve agir socialmente para fazer o que quer dizer. Em situações de performatividade, o sujeito teria assim uma representação

12 Jürgen Habermas, Consciência moral e agir comunicativo (Rio de Janeiro, Tempo Brasi-leiro, 1989), p. 79.

13 Por “princípio de expressibilidade” entende-se que “para qualquer sentido X e qualquer falante S, não importa o que S queira dizer (intenções a expor, desejos de comunicação em uma sentença etc.) com X, é possível haver alguma expressão E, de maneira que E seja a exata expressão ou formulação de X. Simbolicamente: (S) (X) (S significa X → P [∃ E] [E é a expressão exata de X])” (John Searle, Speech acts, Cambridge, Cambridge University Press, 1969, p. 20).

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prévia e fundamentada não apenas do conteúdo intencional de seu ato de fala, mas também das condições de satisfação de tal conteúdo. Esse último ponto é o mais complexo. Por ser a fala, antes de mais nada, um modo de comportamento governado por regras e por meu conhecimento sobre o falar uma língua envolver necessariamente o domínio de um siste-ma de regras de ação social, seguiria daí que o sujeito que fala teria sempre, de direito e previamente, a possibilidade de saber como tal sistema de regras determina a produção do sentido da ação em geral e dos atos de fala em particular.

No entanto, podemos lembrar que isso já demonstra como o estado intencional de sinceridade é indissociável da repetição de um sistema de disposição de conduta. Partindo desse reconhecimento, podemos dar um passo a mais e ver, naquilo que chamamos de “sinceridade”, simplesmen-te o modo de repetição de tal sistema socialmente codificado. Sistema naturalizado na forma de “background”, o que levaria para outro campo o sentido de proposições que veem o background como:

um alicerce de capacidades mentais que, em si mesmas, não consti-tuem estados intencionais (representações), mas, não obstante, for-mam as precondições para o funcionamento dos estados intencionais. O Background é “pré-intencional” no sentido de que, embora não seja uma forma ou formas de Intencionalidade, é, não obstante, uma pre-condição ou um conjunto de precondições de Intencionalidade.14

É verdade que, contra a tentativa de restringir a sinceridade à mera repetição de sistemas socialmente codificados de significação de disposições de conduta, teríamos defesas astutas de um conceito in-tencional de sinceridade como a apresentada por Austin. Segundo ele, sem o recurso aos estados intencionais para a definição da significação do ato, nunca poderíamos estabelecer com segurança uma diferença entre “estar em um certo estado” e “fingir estar em um certo estado”. Por exemplo, dois ladrões são surpreendidos tentando serrar uma gra-de e, para disfarçar, fingem estar serrando uma árvore. Mas para que a simulação fique mais convincente, eles começam realmente a serrar uma árvore. Por que podemos dizer que, mesmo serrando a árvore,

14 John Searle, Intencionalidade (São Paulo, Martins Fontes, 2002), p. 198.

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eles estão fingindo serrar uma árvore? De certa forma, porque a sin-ceridade é uma questão de estado intencional. Daí Austin poder dizer que “a essência do fingimento é que meu comportamento público tenciona esconder [disguise] alguma realidade, geralmente algum comportamento real”15. Ou seja, reencontramos aqui, novamente, um conceito intencional de sinceridade.

Mas podemos também insistir em outro ponto: só sei que estou diante de um caso de insinceridade porque posso estabelecer contradi-ções entre um comportamento público e algo que Austin chama de “comportamento real”, e que nada mais é que uma forma de compor-tamento socialmente pressuposta como índice de um estado intencional determinado. Ou seja, dessa contradição entre consequências do ato e expectativas socialmente naturalizadas nasce o julgamento sobre a sin-ceridade. Não há aqui nenhum recurso a algo para além de expectativas de comportamento socialmente naturalizadas.

Por exemplo, se estivéssemos diante de ladrões que passam anos serrando as árvores em volta da casa sem nunca tentar novamente serrar-lhe a grade, poderíamos começar a nos perguntar se estamos realmente diante de um caso de fingimento, já que nossas expectativas sociais não aceitam como plausível que alguém passe anos fingindo para roubar uma simples casa. Na verdade, poderíamos nos perguntar se os ladrões austinianos realmente “sabem o que fazem”, até porque o fingimento poderia ser apenas uma crença que funcionaria para encobrir, para o próprio sujeito, um outro “estado intencional” (algo como: “creio que estou fingindo à espera do melhor momento para o roubo, mas estou na verdade usando o fingimento para adiar indefinidamente uma ação que não quero fazer”). Há situações em que aquilo que me aparece como meu estado intencional é tão opaco para mim quanto aquilo que me aparece como estado intencional de um outro.

Isso poderia nos levar a afirmar que a intenção de sinceridade no sentido psicológico do termo só pode ser dada se obedecer a condições externas de adequação. Trata-se de uma questão de comportar-se de certa maneira, já que o próprio estado intencional seria fundamental-mente uma disposição de comportamento. Dessa forma, para fazer a

15 John Austin, Philosophical papers (Oxford, Oxford University Press, 1961), p. 210-1.

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partilha entre sinceridade e fingimento, deveríamos poder apelar para um experimentum crucis 16, ou seja, uma ação não problemática no que diz respeito ao estabelecimento de seu sentido. Mas não é certo que ações dessa natureza existam em situações de julgamento de modos de aplicação de valores complexos, como veremos a seguir.

Modelos de colônias internas

Aqui devemos lembrar que, mesmo que alguns casos de cinismo sejam similares ao problema descrito através do exemplo freudiano, há uma classe de situações realmente determinantes que não servem como exemplo de desrespeito a critérios normativos de enunciação. E são tais exemplos que realmente nos interessam. Para que o cinismo seja um problema realmente relevante (e não apenas um problema vincu-lado à análise do comportamento social dos sujeitos em certas reali-dades em crise de legitimação), devemos mostrar a recorrência de casos de enunciação da verdade que anulam a força perlocucionária da própria enunciação sem, contudo, transgredir os critérios normativos de enunciação e justificação.

Nesse sentido, em vez de tentar afastar o cinismo por alguma forma de apelo à dimensão da intencionalidade, devemos compreender o ci-nismo como um problema de indexação. Trata-se fundamentalmente de mostrar como valores e critérios normativos que aspiram à validade universal podem indexar situações e casos concretos que pareceriam não se submeter a tais valores e critérios. Trata-se, pois, de problematizar os sistemas pressupostos de aplicação entre Lei normativa, valores e casos, de mostrar que a indexação entre a significação da Lei e a designação do caso não passa pelo esclarecimento semântico da Lei. Como se pudés-semos produzir uma espécie de “torção da Lei pelo aprofundamento de suas consequências”17. Por isso, perderemos o foco da questão trazida pelo cinismo se insistirmos em compreendê-lo como um simples caso de contradição performativa. Ao contrário, o cinismo nasce da tentati-va de mostrar que condições transcendentais normativas de julgamento

16 Ver Gilbert Ryle, The concept of mind (Londres, Penguin Books, 2000), p. 166.17 Ver Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch (Paris, Minuit, 1969), p. 77.

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podem ser seguidas, mas suas designações “normais” podem ser inver-tidas sem contradição entre ato e julgamento.

Podemos fornecer um modelo para essa maneira de encaminhar o problema do cinismo. Podemos partir das exigências de validade de uma norma moral com expectativas universais de validade como o princípio de tolerância. Podemos também afirmar que, na significação do princí-pio, já encontramos, aparentemente, a designação de um modo de ação: o respeito ao outro em sua singularidade. Ou seja, o princípio e sua prá-tica procedural já portariam em si algo como uma validade semântica.

Mas “em certas situações especiais”, para defender o princípio de tolerância, eu posso ser levado a ser intolerante com aqueles que são contra o princípio de tolerância. Em defesa da tolerância, eu posso ser levado a expulsar os intolerantes da minha comunidade. Dessa forma, posso continuar sendo tolerante na dimensão dos critérios normativos, mesmo sendo intolerante na dimensão da ação.

Por sinal, esse foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto dias antes da eleição que o levaria ao poder neste que é o país formalmente mais tolerante do mundo. Sua própria figura era um exemplo maior do que procuramos apreender. Tratava-se de um populista de direita cujas características pessoais e opiniões eram em grande parte politicamente corretas: era homossexual assumido, tinha boas relações com imigrantes, um senso inato para a ironia etc. No entanto, o núcleo de seu discurso era: “Os Países Baixos alcançaram um alto grau de tolerância e liberdade. Não podemos perder tudo isso dei-xando que árabes intolerantes venham para cá. Em nome da tolerância, devemos então ser intolerantes com os intolerantes. Nós já fomos muito tolerantes com a intolerância”. Exemplo didático desse cinismo que problematiza ao extremo a indexação entre significação da Lei e desig-nação do caso.

Seria reconfortante imaginar que tais formas de inversão seriam obra apenas de esquizofrênicos sociais que se travestem em radicais de extre-ma direta. No entanto, isso está longe de ser o caso. Poderíamos conti-nuar arrolando exemplos estruturalmente semelhantes, como as decla-rações do ex-primeiro-ministro trabalhista e atualmente consultor do JPMorgan, Tony Blair, a respeito do “dever de integração” que recai sobre os ombros de todo muçulmano que resolveu emigrar para a Grã--Bretanha – uma discussão sobre a integração motivada pela eterna

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querela sobre o uso de véus em lugares públicos. “Nossa tolerância”, dirá Blair, “é parte do que faz da Grã-Bretanha a Grã-Bretanha. Conforme--se a isso ou não venha para cá. Nós não queremos os ‘hate-mongers’, independentemente de sua raça, religião ou credo.18” “Conforme-se a isso ou não venha para cá” é, de fato, e como todos podem ver, um exemplo muito ilustrativo de tolerância.

Que nossos dois exemplos sejam estruturalmente semelhantes por dizerem respeito à tolerância intolerante de nossas sociedades multicul-turais com as massas de imigrantes, eis algo que não é um acaso. Lem-bremos de início que há algo extremamente instrutivo a respeito desses exemplos. Conhecemos várias análises sobre a pretensa especificidade dos modos de racionalização de países periféricos em relação aos centros hegemônicos do capitalismo mundial. Nesses países e regiões, a regra teria sido a importação de valores modernizadores no interior de reali-dades sociais refratárias e arcaicas. No entanto, ao invés de um “choque de modernização”, produziu-se o mais das vezes um desenvolvimento desigual e combinado no interior do qual as ideias parecem estar sempre em descompasso em relação a seus destinatários e à efetividade. Des-compasso cuja estetização perfeita seria a ironização que denuncia o formalismo de um sistema de ideias que acaba por adaptar-se a uma realidade social que lhe seria naturalmente contrária.

Todos conhecemos esse instrutivo esquema próprio a uma reflexão sobre o caráter “fora de lugar” das ideias em sociedades periféricas e como tais esquemas foram importantes para a construção do contexto de recuperação hegeliana da dialética. Um caráter que também pode dar conta de situações coloniais nas quais valores modernizadores metropo-litanos são mobilizados para legitimar ações que normalmente lhe se-riam contrárias – situações que acabam por consolidar estruturas sociais duais que indicam a coexistência e a determinação recíproca do Centro e da Periferia no mesmo espaço social. Tal determinação recíproca ser-viu para indicar como a racionalização de países periféricos teria produ-zido uma espécie de estrutura normativa dual em que a lei enunciada é sempre acompanhada por um outro sistemas de regras, implícito, que regula os processos efetivos de interação no campo social. Assim: “Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis

18 The Guardian, 9/12/2006.

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saem de mãos dadas”19. Como se essa situação periférica desvelasse a verdade do formalismo de uma civilização liberal capitalista capaz de forjar valores produzidos para serem conjugados apenas no interior de estruturas normativas duais.

Mas o que significa encontrarmos tais estruturas duais a regular os processos de interação social em países ditos “centrais”, como se agora a lógica das relações coloniais das antigas metrópoles aparecesse como o modo hegemônico de funcionamento social nessas próprias metrópo-les? Seria um caso de esvaziamento gradativo da substância normativa da ordem constitucional ou estaríamos diante de algo mais essencial, algo que diz respeito à própria dinâmica dos modos de racionalização e mo-dernização no capitalismo avançado? Algo que indica certa patologia social no interior de nossas formas de vida ligada à generalização de estruturas normativas duais.

“Algo mais essencial” não está aqui por acaso. Podemos nos perguntar se esse fenômeno que encontramos hoje de maneira cada vez mais hege-mônica não seria o destino inelutável de um certo modo de compreender processos de racionalização como processos de normatização e de consti-tuição de quadros normativos tacitamente partilhados. Talvez estejamos tão acostumados a compreender racionalidade como normatividade que nos espantamos com situações nas quais o acordo intersubjetivo em relação a cri-térios e valores não nos leve a um acordo em relação aos modos de aplicá-los ou, ao menos, a maneiras de retirar a ambiguidade de sua aplicação.

Por outro lado, vale sempre a pena lembrar que essas estruturas duais nunca foram situações específicas de colônias, mas diziam respei-to à natureza da relação orgânica entre metrópole e colônia. Ou seja, a consciência “metropolitana” sempre foi afetada pela existência de tais estruturas duais, mesmo que essa existência se revelasse de maneira mais clara em localidades geográficas distantes. De qualquer forma, essa é uma maneira de lembrar que a Lei nunca funcionou de acordo com seu conceito. O que temos agora é o simples desdobramento de consequên-cias de um fato posto há muito.

19 Roberto Schwarz, “As ideias fora de lugar”, em Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas Cidades, 1977), p. 17. De fato, o tempo encarregou-se de mostrar que o esquema de Schwarz não era adequado apenas para descrever o sistema de ideias em países periféri-cos, onde o liberalismo se combinava a práticas de que normalmente seria a crítica.

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Indexar a Lei é uma questão de soberania

É verdade que, a princípio, afirmações dessa natureza parecem ab-solutamente inconsistentes. Pois é sempre possível contra-argumentar, dizendo que a simples definição de uma enunciação como “cínica” já pressupõe a identificação de contradições entre as condições normativas de julgamento de um enunciado (ou “condições ideais de fala intersub-jetivamente partilhadas”, se quisermos falar como Habermas) e seus modos regulares de aplicação. Dizer que um ato de fala é cínico já implica o reconhecimento da contradição entre fato e Lei. Nossa própria defini-ção do cinismo como indexação de valores e critérios normativos a casos que invertem a significação normalmente pressuposta parece falha. Pois falar em “significação normalmente pressuposta” implica necessariamente aceitar a existência de coordenadas gerais e seguras de indexação entre enunciados, intenções, estrutura da ação e estados de coisas.

Essa aceitação da existência de coordenadas gerais e seguras de in-dexação é normalmente defendida relembrando discussões a respeito da centralidade de noções similares ou convergentes com o conceito de background na compreensão dos processos de produção do sentido. Ou seja, podemos lembrar da pressuposição, em todo ato de fala, de um “sistema de expectativas” fundamentado na existência de um saber prá-tico cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo pré-intencional, o contexto de significação.

No entanto, devemos insistir que isso não pode servir como elemen-to para impedir a compreensão dos processos de interversões de indexa-ções característicos do cinismo como exposição de problemas estruturais em nossos modos de racionalização da dimensão prática. Primeiramente, faz-se necessário lembrar que o background fundamenta princípios de conversação cooperativa em operação nos usos ordinários da linguagem. De fato, ele pode fornecer coordenadas gerais e seguras de indexação entre enunciados, intenções, estrutura da ação e estados de coisas. Mas tais coordenadas funcionam de maneira segura apenas nos limites dos usos ordinários da linguagem e é um erro maior acreditar que a definição do modo de aplicação de valores e critérios de racionalização segue a lógica presente no uso ordinário da linguagem. Tanto é assim que, volto a este ponto, podemos estar de acordo a respeito de critérios e valores intersubjetivamente partilhados sem necessariamente estar de acordo a

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respeito de seus modos de aplicação e dos casos corretos que por eles podem ser indexados. Ou seja, estar de acordo a respeito de critérios e valores não implica estar de acordo a respeito das estruturas de aplicação entre normas de aspiração universalizante e casos concretos. Podemos muito bem aceitar que as ordenações da sociedade “não são constituídas independentemente de toda validez, como as ordenações da natureza, em face das quais só adotamos uma atitude objetivante”20. Mas não se segue daí que a existência de atores e ações capazes de seguir ou satisfazer as normas possa garantir seus modos de indexação.

Na verdade, nada nos permite pressupor a existência de algo pare-cido a um background capaz de orientar nossos julgamentos em situações complexas, que envolvem significação de valores e modos de aplicação de critérios normativos de aspiração universalizante 21. Situações desse tipo não podem ser desproblematizadas por meio do recurso ao escla-recimento de contextos, já que não estamos de acordo sequer a respeito da extensão e da determinação de tais contextos. Há um erro que con-siste em generalizar uma Weltbild que só funciona em operações ele-mentares limitadas pelo senso comum. Mas, como dizia Bento Prado Jr., uma vez fora do senso comum, a ele não mais se retorna22.

Sempre haverá os que contra-argumentarão que valores e critérios normativos não têm apenas realidade sintática, mas realidade semân-tica, sua significação aparece como largamente não problemática. Mas, novamente poderíamos insistir que o fato de o sentido de um conjunto de valores ser intersubjetivamente partilhado não implica uma partilha de significado, ou seja, de relação à referência, de relação

20 Jürgen Habermas, Consciência moral e agir comunitário, cit., p. 81.21 Com essa afirmação, não se trata de desqualificar certa leitura que vê, no Geist hegelia-

no, exatamente algo como a posição de um processo de apropriação autorreflexiva da-quilo que nos aparece como background capaz, entre outros, de orientar nosso julgamento em situações complexas. Pois, no caso do Geist, ele só poderá ser posto de maneira refle-xiva quando os sujeitos forem capazes de conceitualizar a racionalidade da “necessidade lógica” do trajeto que constitui o que entendemos por Espírito. E essa necessidade só será visível a partir do momento em que o sujeito apreender a especificidade da forma estrutural de relações tecidas pelo Espírito. Pois o Espírito só se manifesta a partir do mo-mento em que os sujeitos se desesperam dos modos de estruturar relações baseados em noções não dialéticas de identidade e diferença. O que está longe de ser o caso que tra-tamos neste capítulo.

22 Bento Prado Jr., Erro, ilusão, loucura (São Paulo, Editora 34, 2004), p. 77-108.

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ao caso. As distinções clássicas entre sentido (Sinn) e significado (Be-deutung) podem ser úteis nesse contexto. Saber o sentido não implica necessariamente saber a referência, quais referências são adequadas e quais não o são.

Poderíamos ainda contra-argumentar que problemas de indexação entre critérios, valores e fatos podem ser normalmente resolvidos a par-tir de procedimentos similares à noção jurídica de “criar jurisprudên-cia”, ou seja, decisões anteriores aparecem como campo de constituição de um núcleo de experiências que tendem a direcionar decisões poste-riores, criando assim um processo, no sentido forte do termo23. Essa tendência não implica ignorar toda possibilidade posterior de redirecio-nar, através do “uso público da razão”, tal processo de determinação dos modos de indexação de critérios, valores e fatos.

Contra esse modo de tentar resolver a questão, devemos mostrar que o campo pressuposto por decisões passadas não tem estruturalmente a força de retirar a indeterminação de decisões futuras, porque as indetermi-nações não foram resolvidas sequer nas decisões passadas. Para que tais inde-terminações estivessem ausentes seria necessário aceitar que decisões passadas, além de terem sido produzidas em contexto de partilha inter-subjetiva, no sentido de terem sido vistas como modos bem-sucedidos de aplicação de regras, construíram procedimentos e critérios não problemá-ticos de inferência e universalização, a não ser que estejamos dispostos a “naturalizar” tais critérios, como se tivéssemos uma gramática natural dos modos de relação. Ou seja, para que a noção de “criar jurisprudência” seja operativa, é necessário afirmar que um caso é análogo a outro caso, para-digmático. Ficamos, assim, dependentes de raciocínios analógicos. No entanto, tais raciocínios são marcados por fragilidades e inseguranças epistêmicas profundas, pois, de uma certa perspectiva, qualquer coisa pode tecer relações de analogia com qualquer outra coisa.

No fundo, tais situações apenas servem para nos lembrar que tomar uma decisão reconhecidamente legítima é um processo ligado a um princípio de soberania, e não a um princípio de adequação normativa. Soberania não

23 Como se valesse aqui o que Robert Brandom disse a respeito do modo de funcionamen-to da normatividade no interior da filosofia hegeliana: “A autoridade das aplicações passadas, que instituíram a norma conceitual, é administrada em seu nome por aplica-ções futuras, que incluem, por sua vez, apreciações sobre tais aplicações passadas” (Tales of the mighty dead, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002, p. 230).

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é apenas uma questão de força, mas de reconhecimento de autoridade. Procedimento de reconhecimento que implica mecanismos complexos de identificação, retórica e investimento libidinal. Com isso, desloca-mos o problema para outro campo que não é mais o da adequação normativa, mas o campo dos processos de investimento libidinal que constituem o vínculo à autoridade. Passamos a um problema que pode ser mais bem compreendido a partir de uma economia libidinal.

Nesse sentido, podemos dizer que o cinismo é um modo de expo-sição de certos impasses maiores na compreensão da racionalidade como normatividade, impasses claramente visíveis no interior da tradi-ção hegeliana de crítica da modernidade. Digamos que, a partir do momento em que se pressupõe uma transparência entre significação e práticas procedurais de aplicação de critérios e valores, o cinismo trans-forma-se em um problema insolúvel. Pois tudo se passa como se o ato cínico afirmasse que tal transparência existe, mas foi mal compreendida, ou foi compreendida de maneira muito “rápida”, muito “ingênua”. Faz-se necessário desdobrar as mediações, desdobrar as inferências. A Lei é clara, diz o cínico, e se seguirmos seu espírito, veremos que ela pode justificar casos que lhe pareciam opostos. Como dizia Sade, é possível fundar até mesmo um Estado de libertinos a partir de valores universais republicanos intersubjetivamente partilhados. Basta apenas encore un effort.

Poderíamos aqui concordar com Slavoj ŽiŽek e afirmar que tudo isso só demonstra como a fórmula cínica “Eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” ignora que o desconhecimento ideológico não está na dimensão do “saber” da consciência, mas na estruturação das condi-ções de significação da práxis, ou seja, na dimensão do “fazer”24. Pois, como dizia Althusser, a ideologia não é uma questão de falsa consciên-cia, mas uma questão de repetição de rituais materiais.

No entanto, devemos completar tal raciocínio com um elemento fundamental: essa fantasia ideológica que estrutura as configurações da ação só pode ganhar consistência se não entrar em contradição

24 O que o próprio Marx já sabia claramente ao afirmar: “É verdade, a descoberta tardia pela ciência de que os produtos do trabalho, na medida em que são valores, apenas ex-primem sob forma de coisas um trabalho humano dispensado na produção, é uma descoberta que fez data na história do desenvolvimento da humanidade, mas ela não dissipou em nada a aparência de objeto que tem as características sociais do trabalho” (Karl Marx, Le capital, Paris, PUF, 1993, p. 85).

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performativa com os critérios normativos de julgamento intersubjeti-vamente partilhados e presentes no saber da consciência. Assim, se é verdade que “o cínico vive da discordância entre os princípios procla-mados e a prática – toda a sua sabedoria consiste em legitimar a dis-tância entre eles”25, então devemos levar às últimas consequências a ideia de que o cinismo é uma contradição posta que é, ao mesmo tempo, contradição resolvida ou, antes, aproveitando a formulação de ŽiŽek, uma estranha “discordância legitimada”. Este é o ponto realmente central: compreender como é possível ao cinismo sustentar-se como essa paradoxal discordância legitimada.

Kant com Kojève e o imperador Juliano

Antes de avançarmos neste ponto, vale a pena retornar ao problema da ironização, ou seja, essa compreensão de que estamos diante de uma realidade que, por não se adequar a seus próprios critérios de justifica-ção, não pode ser levada a sério, devendo a todo momento ser invertida e pervertida. Podemos aproximar tal problemática da definição do ci-nismo como um problema de indexação entre Lei normativa, valores e caso concreto. Tal aproximação serve para mostrar como a ironização própria ao cinismo vem da compreensão de que realidades e ações que pareciam não se conformar a expectativas normativas podem, ao con-trário, aparecer como realização última de tais expectativas. Nesse sen-tido, o cinismo, a sua maneira, realiza ao inverter nossos modos de indexação entre critérios normativos e consequências da ação. Comple-tando o que foi dito anteriormente, ironização significa não apenas rup-tura entre expectativas de validade e determinações fenomenais, mas tam-bém reconstrução de tal relação.

Alexandre Kojève nos fornece um exemplo precioso a respeito des-sa noção de cinismo como ironização de condutas e inversão de modos de indexação. Trata-se de seu comentário sobre a arte de escrever do imperador Juliano26, comentário que, a sua maneira, funciona como mais um capítulo de uma polêmica maior que envolve Kojève e Leo

25 Slavoj ŽiŽek, Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992), p. 60.

26 Alexandre Kojève, L’empereur Julien et son art d’écrire (Paris, Fourbis, 2000).

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Strauss. Em Perseguição e a arte de escrever, Leo Strauss sublinhava que não devíamos tomar ao pé da letra tudo que haviam escrito os grandes autores do passado, nem acreditar que haviam explicitado em seus es-critos tudo que queriam dizer. A arte antiga redescoberta por Leo Strauss consistia em escrever o contrário do que se pensa, tal como na ironia. Tal estratégia obedecia a uma dupla função: escapar da censura e, sobre-tudo, formar uma elite.

Kojève vê o exemplo perfeito dessa arte de escrever nos textos do imperador Juliano. Juliano é um imperador que se encontra diante do seguinte paradoxo: ateu convicto e esclarecido, ele, como imperador, deve ser chefe da religião pagã de Estado. Conservar essa religião popu-lar é ainda, segundo ele, um modo de preservar a unidade do Estado contra a sedição cristã. A solução será mostrar a uma elite capaz de “bem entender” que ele não escreve tudo que pensa nem pensa tudo que es-creve. Pois, como dirá o próprio Juliano: “Não devemos tudo dizer; e mesmo sobre aquilo que podemos dizer, faz-se necessário esconder al-gumas coisas da grande massa”27. Seus escritos sobre a religião serão assim paródias que, em razão do caráter contraditório de suas constru-ções e mitos, denunciam, para uma elite esclarecida, que o próprio poder critica ironicamente as ideias que divulga. Nesse sentido, Juliano não oculta a verdade, ao contrário, ele mostra que a maneira correta de enunciá-la é por meio da ironização absoluta do que então fundamenta as esferas sociais de valores, ou seja, a religião.

Há algo de profundamente astuto nesse exemplo e que certamente não passou despercebido a Kojève. Pois, de certa forma, poderíamos compreender o aparente paradoxo próprio ao imperador Juliano como uma versão inesperada da distinção entre uso público e uso privado da razão que marca Was ist Aufklärung?, de Kant. Conhecemos todos o exemplo clássico de Kant nesse pequeno texto. Diante dos membros de sua paróquia, o religioso deve contentar-se com um uso privado da ra-zão que o obriga a obedecer, mesmo sem acreditar, às injunções e nor-mas próprias ao papel que ele desempenha como membro da institui-ção. Mas diante da “totalidade do público do mundo leitor”, diante desse público esclarecido para o qual posso aparecer como cientista

27 Juliano, Discurso contra Heráclios, 239 ab, apud Alexandre Kojève, ibidem.

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(Gelehrte), como membro da humanidade racional, tenho todo o direi-to de fazer uso público da razão com seu potencial crítico. Um uso que, no seu horizonte, poderá produzir o consenso intersubjetivo necessário para chegar à posterior modificação das normas que guiam o funciona-mento social das instituições. Maneira de garantir o poder de raciona-lização da reflexão sem colocar em risco o fundamento institucional dos processos de interação social. Ou poderíamos dizer, juntamente com Foucault: maneira de passar ao largo da relação complexa entre cresci-mento da autonomia e intensificação de relações de poder 28.

E o que faz Juliano? Mesmo sem acreditar, ele desempenha o papel que lhe cabe de chefe da religião de Estado. Nesse contexto, ele obede-ce à injunção iluminista de contentar-se com um uso privado da razão. O que não o impede de endereçar-se à “totalidade do público do mun-do leitor” através de seus escritos, fazendo um uso público da razão e procurando, com isso, criar um consenso intersubjetivo sobre a preca-riedade, sobre o déficit de legitimidade das injunções e normas obriga-tórias para o funcionamento das instituições sociais. O resultado aqui é um regime peculiar de Sapere aude!

Não é difícil perceber que a peculiaridade de tal exigência de saber vem do fato de o trabalho de esclarecimento pressuposto pela capacidade de ironizar os mitos religiosos não produzir, como poderíamos esperar, a queda do poder da religião em razão do esforço de racionalização. Ao contrário, a posição dos mitos religiosos como aparência perpetua a necessidade funcional da partilha desses mitos no interior da vida social. Notemos que, dessa forma, realidades e ações que pareciam não se con-formar a expectativas normativas de racionalidade esclarecida podem, ao contrário, aparecer como realização última de tais expectativas.

Nesse sentido, chegaríamos a uma situação tipicamente cínica se pen-sássemos, por exemplo, em um momento histórico no qual a elite escla-recida seria do tamanho exato da população do Império. Ou seja, mo-mento que já disseminou o esclarecimento. Nessa situação, a paródia do poder nunca terminaria, em primeiro lugar, porque haveria sempre um sujeito-suposto-crer, alguém que sempre crê no meu lugar, legitimando a necessidade da ideologia; em segundo lugar, porque os conteúdos ideoló-

28 Ver Michel Foucault, “What is enlightment?”, em Dits et écrits II (Paris, Gallimard, 1998).

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gicos seriam ironizados e postos como aparência que não seria nada mais do que aparência, e por isso já marcados pela crítica. Assim, todos os su-jeitos seriam esclarecidos, mas agiriam como se não soubessem, todos seriam ateus, mas continuariam objetivamente a dobrar os joelhos, mesmo que tal ato não fosse motivado por nenhuma crença nos mitos socialmente partilhados. Ou antes, continuariam a dobrar os joelhos exatamente pelo fato de o ato não exigir mais crença alguma. Nesse sentido, chegaríamos facilmente a uma das definições clássicas do cinismo: falsa consciência es-clarecida ou, ainda, ideologia reflexiva.

Quando romper a norma é seguir a norma

Uma discussão rica em consequências para tais problemas vincula-dos às estruturas da racionalidade cínica foi levada a cabo por Giorgio Agamben por ocasião do problema do estado de exceção. Se definirmos o cinismo como uma enunciação da verdade que anula a força perlocu-cionária da própria enunciação ou (o que é um caso simétrico) como uma indexação de valores e critérios normativos a casos que invertem a significação normalmente pressuposta, então já podemos compreender como o problema da exceção é um elemento maior no interior de uma reflexão sobre a razão cínica. Pois a discussão de Agamben a respeito do estado de exceção leva-nos a uma lógica na qual o ordenamento jurídi-co legaliza sua própria suspensão.

Essa lógica quer ser vista como constitutiva do quadro mesmo de fundamentação do ordenamento jurídico na modernidade ocidental. Criada em 1791 pela tradição democrático-revolucionária da Assem-bleia Constituinte francesa sob o nome de “estado de sítio”, a figura de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em “casos extremos” aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e aos portos militares. Mas, já em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cida-de estar sitiada ou ameaçada militarmente. A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhan-tes na Alemanha, na Suíça, na Itália, no Reino Unido e nos Estados Unidos, que serão aplicados, durante os séculos XIX e XX, em situações variadas de emergência política ou econômica. O caso mais recente dessa lógica de generalização do estado de exceção foi obra do governo

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francês que, em 2005, como resposta às manifestações de desconten-tamento social nas periferias das grandes cidades, colocou o país sob situação de emergência.

Giorgio Agamben compreende tal desenvolvimento como a manifes-tação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. O que explicaria por que “a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”29. Processo este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais. Daí ele insistir que a exceção não é uma lógica exclusiva de Estados totalitários, mas criação da tradição democrático-revolucionária ocidental.

No entanto, se é fato que estaríamos aí diante de um paradigma constitutivo da ordem jurídica, então devemos ver, no problema posto pela exceção, a exposição de uma estrutura “sintomática” própria a modos privilegiados de racionalização das esferas sociais de valores na moderni-dade. Pois a compreensão de que a ordem jurídica pode incluir sua pró-pria exceção, sem, no entanto, deixar de estar em vigor, remete-nos ne-cessariamente a modos de racionalização através da posição de estruturas normativas capazes de indexar casos que suspendem o próprio funciona-mento de tais estruturas, sem que isso seja uma contradição. Assim, “um dos paradoxos do estado de exceção quer que, nele, seja impossível distin-guir a transgressão da lei e a sua execução”30. E se a norma pode ser sus-pensa, sem, no entanto, deixar de estar em vigor, é porque sua significação não reconhece um campo seguro de designações. Como se a anomia fosse interna ao próprio funcionamento normal da Lei.

Já foi dito que costumamos aceitar que a meta da Razão consistiria em fornecer condições para a racionalização das esferas de valores atra-vés do estabelecimento de estruturas normativas capazes de determinar condições ideais reguladoras e, no horizonte, realizar a promessa de um ordenamento jurídico justo. A compreensão de que o estado de exceção é cada vez mais a regra do funcionamento do poder legal é apenas uma das figuras da falência desse modo de compreender racionalização ideal-mente como constituição de normatividades – falência cujo nome cor-reto é cinismo. O mesmo cinismo que anima afirmações paradigmáticas

29 Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2005), p. 27-8.30 Idem, Homo sacer (Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002), p. 65.

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e cada vez mais usuais, como: “Nenhum sacrifício pela nossa democra-cia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia”31. Não me parece necessário arrolar aqui uma sequência interminável de exemplos que parecem realizar tal lógica. Todos eles apenas mostrarão que “o conceito de aplicabilidade é certamente uma das categorias mais problemáticas da teoria jurídica”, já que “a relação entre norma e realidade implica a suspensão da norma, assim como, na ontologia, a relação entre linguagem e mundo implica a suspensão da denotação sob a forma de uma langue”32.

De fato, a relação entre o geral da norma e o particular do caso não pode ser pensado como uma subsunção lógica. No entanto, se passar-mos ao domínio da práxis, veremos que essa relação, por sua vez, não pode apelar para sistemas partilhados e não problemáticos de expecta-tivas de indexação entre estados de coisas, intenções e critérios norma-tivos. Como havia dito, nada nos permite pressupor a existência de um background capaz de orientar nossos julgamentos em situações comple-xas que envolvem significação de valores e modos de aplicação de crité-rios normativos de aspiração universalizante. Pode parecer, com isso, que entramos em uma aporia incapaz de definir como podemos afinal nos orientar racionalmente no agir. No entanto, apenas chegamos à conclusão de existir uma problematização para a qual convergem críti-cas às dinâmicas de racionalização pensadas a partir de exigências de legitimidade dependentes da garantia transcendental de estruturas nor-mativas e teoria da ideologia não mais vinculada a noções como reificação e falsa consciência. Essa problematização se organiza a partir da temá-tica do cinismo. Falta ainda explorar de maneira mais sistemática os contornos dessa teoria da ideologia. Uma teoria apta a pensar os modos de legitimação da ação em sociedades “pós-ideológicas”.

31 Clinton Lawrence Rossiter, Constitutional dictatorship: crisis government in the modern democracies, p. 314, citado por Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 22.

32 Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 93. Nesse sentido, parece-nos que o problema do estado de exceção é um contraponto a ideias como: “A história dos direitos fundamen-tais nos Estados constitucionais modernos dá uma quantidade de exemplos do fato de que as aplicações de princípios, desde que sejam reconhecidos, de modo nenhum oscilam de situação para situação, mas seguem, sim, um curso orientado. É o próprio conteúdo univer-sal dessas normas que traz à consciência dos concernidos, no espelho de faixas de interesses cambiantes, a parcialidade e a seletividade das aplicações” (Jürgen Habermas, Consciência moral e agir comunitário, cit., p. 128).

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Sobre um rISo que não reconcIlIa

O que há de diabólico no riso que soa falsoé que ele parodia aquilo que há de melhor:

a reconciliação.

Theodor Adorno, Minima moralia

Na aurora da pós-modernidade, e em meio a uma polêmica a respei-to da filosofia adorniana da música, Jean-François Lyotard afirmava:

Nós temos, em relação a Adorno, a vantagem de viver em um kapita-lismo mais energético, mais cínico, menos trágico. Ele coloca tudo em representação, a representação reduplica-se (como em Brecht), logo apresenta-se. O trágico dá lugar ao paródico [...].1

Sem entrar diretamente na questão a respeito da pretensa obsoles-cência do pensamento adorniano devida a esse novo diagnóstico histó-rico, digamos que a afirmação de Lyotard ao menos tinha o mérito de apresentar uma mutação maior nas formas de vida e nos seus processos de legitimação, que já se fazia sentir desde então. Ela estava figurada nessa estranha passagem de um capitalismo “trágico” para um capitalis-mo “cínico”. Passagem que nos leva a perguntar o que esses dois termos poderiam querer dizer nesse contexto.

Uma resposta programática seria: ao invés da tragédia de um siste-ma socioeconômico que a todo momento funcionava através do oculta-mento do caráter fetichista de seus processos de determinação de valor em todas as esferas da vida social, tragédia de um sistema que não pode assumir aquilo que ele realmente é ao fundar-se no recalcamento ideo-lógico de seus pressupostos, teríamos o cinismo de práticas capazes de reduplicar seu próprio sistema de representações, tomando a todo

1 Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels (Paris, Galilée, 1994), p. 121.

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momento uma distância brechtiana em relação àquilo que elas próprias enunciam, tal como em uma eterna paródia. Lyotard era ainda mais claro a esse respeito quando afirmava, no mesmo texto:

Ao mesmo tempo em que o Kapital mantém, na vida e na arte, a lei do valor como separação, poupança, corte, seleção, proteção, privati-zação, ele mina, simultaneamente e por todos os lados, o valor da lei, obriga-nos a vê-la como arbitrária, impede-nos de crer nela. Ele é bu-fão [...]. A crítica não pode ir além dessa bufonaria.2

Daí a razão por que “o capitalismo nada oferece a crer, o cinismo é sua moralidade”3.

A colocação não poderia ser mais direta. A força do capitalismo viria do fato de ele não se levar mais a sério, já que minaria a todo momento o valor da lei que ele próprio enuncia. O capitalismo não exigiria mais es-pécie alguma de crença cega nos conteúdos normativos que ele próprio apresenta. Crença que deveria ser compreendida como defesa de um prin-cípio seguro de indexação entre critérios de validade de aspirações univer-salizantes e situações da dimensão prática. Ou seja, poderíamos todos tomar distância dos conteúdos normativos do universo ideológico capi-talista porque o próprio discurso do poder já ri de si mesmo. No entanto, e este ponto é o mais importante, essa aparente ausência de legitimidade seria o verdadeiro núcleo de sua força. Isso a ponto de podermos dizer que sua crise de legitimidade seria seu núcleo motor.

Assim, Lyotard apontava não apenas para o momento em que as sociedades capitalistas começaram a passar por uma crise geral de le-gitimação, mas para o momento em que elas foram capazes de legiti-mar-se através de uma certa “racionalidade cínica”, e com isso estabi-lizar uma situação que, em outras circunstâncias, seria uma típica e insustentável situação de crise. Como já havia dito, isso faz toda a diferença, ainda mais se levarmos a sério o diagnóstico de que “a crí-tica se torna impotente para ir além dessa bufonaria”. Pois a impotên-cia da crítica seria resultado da capacidade do capitalismo de – de uma certa forma – realizar cinicamente a crítica.

2 Ibidem, p. 130.3 Ibidem, p. 16.

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Antes de compreendermos melhor a estrutura desse processo de in-versão, não deixa de ser irônico encontrar exatamente em Adorno a cons-ciência desse cinismo constitutivo do regime contemporâneo de funcio-namento do capitalismo e de sua estrutura ideológica. Prova maior do descompasso nos processos mútuos de recepção entre o pensamento francês e o pensamento alemão contemporâneos. Vale então a pena iniciarmos insistindo em alguns aspectos fundamentais da discussão adorniana a respeito da ideologia.

Adorno e o riso que vem do poder

Um primeiro ponto deve aqui ser claramente salientado. A leitura atenta de alguns textos centrais de Adorno nos demonstra seu esforço em pensar, para a configuração dos móbiles da ideologia, a obsolescência de categorias como: falsa consciência, reificação, desconhecimento, erro e ilusão. Resultado da exigência de pensar o impacto das modificações históricas na configuração do conceito de ideologia. Nesse ponto, Adorno é claro:

A ideologia em sentido estrito se dá lá onde o que rege são relações de poder [Machtvehältnisse] não transparentes em si mesmas, mediadas e, nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade, injustamente censura-da por sua complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente [durchsichtig].4

Ou seja, de certa forma, o desafio atual consistiria em pensar o conceito de ideologia a partir de relações de poder que se dão no solo da posição da transparência.

Essa exigência nos coloca diante de uma tarefa complexa. Pois, quan-do o que impera são relações imediatas de poder postas enquanto tais, não há necessidade de falar em “ideologia” em sentido estrito, já que “ideolo-gia é justificação (Rechtfertigung)”5, é operação de conformação de situa-ções empíricas determinadas às expectativas de validade exigidas pelas aspirações universalizantes da razão. Ela exige, assim, que o poder seja

4 Theodor Adorno, Soziologische Schriften I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 467.5 Ibidem, p. 465.

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mediado pela reflexão acerca de sua legitimidade, mediação que levaria o poder a, por exemplo, mascarar seus verdadeiros pressupostos lá onde eles não podem ser colocados sem contradição. É ainda o reconhecimento de tais expectativas de validade em toda construção ideológica que leva Adorno a insistir na existência de um elemento racional sempre presente na ideologia. Dessa forma, a crítica da ideologia poderia operar nesses interstícios onde se evidenciam os nós sintomais nos quais se leem a con-tradição entre os procedimentos de justificação e o domínio das situações na efetividade. A crítica não faria outra coisa que mostrar como a cons-trução ideológica, de certa forma, não realiza seu próprio conceito.

No entanto, o que dizer de uma situação na qual a própria transpa-rência parece ser o motor central para a sustentação da ideologia, ou seja, situação na qual os pressupostos do poder estão claramente postos em sua contradição, mas nem por isso se segue uma reorientação das condutas dos sujeitos? Não se trata de pensar simplesmente relações de poder sustentadas na dessimetria da força. Trata-se, ao contrário (e no-vamente devemos insistir neste ponto), de compreender como o regime contemporâneo de transparência do poder é capaz de preencher exigên-cias de validade e legitimação, transformando a contradição posta em contradição resolvida. Para tanto, o primeiro passo consiste em perceber que essa “nudez que não desmascara” só pode ser compreendida ao iden-tificarmos, atuando em seu cerne, uma certa ironia que lhe é constitutiva. Como se o regime contemporâneo de funcionamento da ideologia só pudesse ser descrito através de uma reflexão prévia sobre a ironia.

Esse é, a princípio, um ponto que parece inconsistente porque to-dos conhecemos as múltiplas figuras da ironia como arma suprema do esclarecimento na constituição retórica da crítica. Um dos móbiles mais usados pela crítica esclarecida foi o riso como modo de desmascaramen-to das imposturas do poder. Ele já está claramente presente nos cínicos da Grécia antiga, que, radicalizando a ironia socrática, transformaram o riso em peça central da crítica. Pensemos, por exemplo, no sarcasmo de Diógenes contra o que haveria de hipócrita na lógica que guiaria as superstições, a moral e a política. Vemos aqui, entre outras coisas, a noção do riso como uma figura da crítica que procura desqualificar e desmas-carar a aparência sustentada por aquele que é ironizado. Essa teoria clás-sica do riso como desmascaramento da aparência pode explicar por que os vícios que, nesse contexto, aparecem risíveis são principalmente a

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hipocrisia e a vanglória, e não a perversidade. Pois hipocrisia e vanglória exprimem a inadequação entre as dimensões da aparência e das deter-minações essenciais, o que não é exatamente o caso da perversidade, cuja ausência de naturalidade é posta enquanto tal6.

Mas essa noção da ironia vinculada à eficácia retórica da crítica não encontra ressonâncias em Adorno. Ilustrativo nesse sentido é o parágrafo 134 da Minima moralia, intitulado “O erro de Juvenal”, o mesmo Juvenal que afirmava: difficile est satyras non scribere. No parágrafo de Adorno, a ironia, em especial aquela que aparece sob a forma da sátira, é compreendi-da como reação do poder aos imperativos de mudança, e isso em razão de o alvo privilegiado da sátira ser normalmente a “decadência dos costumes”. A crítica que se serve da ironia seria vinculada à lógica da conservação por-que seu critério de orientação “é sempre o critério ameaçado pelo progresso; este permanece pressuposto como ideologia imperante, a tal ponto que o fenômeno que foge à regra é rejeitado, sem que se lhe faça a justiça de uma discussão racional”7. Ela se orientaria, assim, através de um “acordo trans-cendental imanente”, de um senso comum nunca colocado em causa.

Adorno parece aqui não estar fazendo outra coisa que recuperar um tema constante na teoria clássica do riso a respeito do caráter normativo do humor no interior dos métodos de defesa próprios à lógica da conser-vação8. Um pouco como se a visão de Adorno devesse ser compreendida na continuação de afirmações como aquela proposta por Hobbes segun-do a qual o riso seria sanção contra o “desvio”, reação provocada pela “percepção de alguma coisa deformada em outra pessoa com a qual, ao nos compararmos, subitamente aplaudimos a nós mesmos”9.

6 De certa forma, essa noção do cômico vinculado à inadequação da aparência está pre-sente ainda em Henri Bergson, quando este afirma que normalmente encontramos no risível uma certa “rigidez mecânica [própria àquilo que mascara] quando seria de se es-perar a maleabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pessoa” (O riso, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 8).

7 Theodor Adorno, Minima moralia (São Paulo, Ática, 2003), p. 184.8 A esse respeito, ver Quentin Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso (São Leopoldo,

Unisinos, 2002). Podemos ainda lembrar a afirmação de Simon Critchley: “Boa parte do humor, em especial a comédia do reconhecimento – e a maior parte do humor con-siste em comédia do reconhecimento –, simplesmente procura reforçar o consenso e de maneira alguma procura criticar a ordem estabelecida ou mudar a situação na qual nos encontramos” (On humor, Londres, Routledge, 2002, p. 11).

9 Thomas Hobbes, Leviatã (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 53.

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No entanto, Adorno está fazendo mais do que isso. Se ele não pro-cura insistir nos vínculos claramente presentes entre ironia e crítica es-clarecida é para passar à constatação de que continua havendo uma ironia em funcionamento no cerne do poder, mas ela não aparece mais como apelo a uma espécie de acordo intersubjetivo transcendental “que não admite contestação” sobre normas e valores e, por isso, desqualifica tudo que lhe seria exterior. Na verdade, ela aparece como “acordo uni-versal sobre conteúdos” (inhaltlich universalen Einverständnis), ou seja, como uma estranha impossibilidade de ultrapassar aquilo que se coloca na efetividade (Wirklichkeit). Assim, não se trata mais de pensar a ironia como modo de apelo a uma verdade intersubjetivamente partilhada, mas transcendente à situação ironizada. Ao contrário, trata-se de pensar uma estranha ironia que sustentaria a efetividade ao zombar daqueles que procuram zombá-la.

É nesse sentido que devemos compreender a afirmação central de Adorno segundo a qual “a diferença entre ideologia e realidade [Wirk-lichkeit] desapareceu”. Tal desaparecimento não diz respeito apenas ao fato de as contradições que a ideologia procura justificar serem processos constitutivos da própria posição da efetividade, ao invés de serem resul-tantes do descompasso entre ideia e efetividade. Se assim fosse, Adorno não estaria fazendo outra coisa que repetir as elaborações do Marx da maturidade – como, por exemplo, a ideia marxista de que o fetichismo não seria exatamente uma ilusão da falsa consciência, mas uma espécie de “contradição objetiva”, ou seja, contradição vinda do próprio objeto.

Na verdade, ao afirmar que a diferença entre ideologia e realidade desapareceu, Adorno procura lembrar que, na contemporaneidade, a ideologia transparece e afirma-se enquanto tal na própria efetividade, sem que isso modifique o engajamento dos sujeitos em seu campo. Ele insiste na existência de certa relação de duplicação (Verdoppelung) entre ideologia e realidade, a fim de lembrar que “a ideologia não é mais uma capa [Hülle], mas a ameaçadora aceitação [Antlitz] do mundo”10.

Lembremos ainda que essa transparência não deve ser compreendi-da como realização direta, na efetividade, das expectativas de justificação presentes na ideologia. Ela apenas indica que os sujeitos agem aqui como falsas consciências esclarecidas, ou seja, como consciências que

10 Theodor Adorno, Soziologische Schriften I, cit., p. 477.

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desvelaram reflexivamente os pressupostos que determinam suas ações “alienadas” (pois sabem claramente o que é a efetividade), mas mesmo assim são capazes de justificar racionalmente a necessidade de tais ações. Daí eles poderem ter uma “crença desprovida de crença”11 (glaubenslosen Glauben) na mera existência. Algo resultante de uma efetividade que já traz em si mesma sua própria crítica.

Do fascismo ao casamento de Beatriz da Holanda

Essa estranha crença desprovida de crença só pode ser compreendi-da se levarmos em conta o modo como a ideologia é capaz de, atual-mente, pôr em marcha um processo de ironização da efetividade que responde, de maneira peculiar, às exigências de justificação que seriam constitutivas de seu próprio conceito. Isso nos permitirá perceber que a questão posta por Lyotard ao falar de um capitalismo bufão já havia sido levantada por Adorno, mas por ocasião de seus estudos sobre o fascis-mo. Para ele, o fascismo era, de certa forma, o riso que vem do poder.

Podemos dizer isso porque o caráter “carnavalesco” da ideologia fascista, caráter de paródia que absorve, ao mesmo tempo, conteúdos ideológicos aparentemente contraditórios, como, por exemplo, o vín-culo camponês à terra e o culto futurista à indústria, seria, segundo Adorno, o segredo de sua força. Tudo era aparência posta como aparência e, fato de suma importância, sabia-se disso. Adorno insiste que ninguém acreditava na mitologia do fascismo, nem sequer seus porta-vozes, mas cria-se – ou seja, a responsabilidade da crença era sempre enviada a um Outro, a uma espécie de “sujeito-suposto-crer”, um pouco como a ra-dicalização da descrição kojèveana de Juliano que vimos no capítulo anterior. O fascismo seria assim a realização da distância irônica a agir de maneira reflexiva no cerne do poder.

Aqui, é impossível resistir à ideia de citar, integralmente, o trecho de Adorno dedicado a tal análise:

Da mesma forma como as pessoas não acreditam, no fundo de seus corações, que os judeus sejam o demônio, elas não acreditam comple-tamente no líder. Não se identificam realmente com ele, mas atuam

11 Ibidem, p. 476.

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essa identificação [act this identification], representam [perform] seu próprio entusiasmo e desse modo participam da performance do líder. É através dessa representação que encontram uma balança entre seus impulsos instintuais [instinctual urges] continuamente mobilizados e o estágio histórico de esclarecimento que alcançaram e não pode ser ar-bitrariamente revogado. É provavelmente a desconfiança da ficção de sua própria “psicologia de grupo” que torna as massas fascistas tão impiedosas e inabaláveis. Se parassem para raciocinar [to reason] por um segundo, toda a performance iria pelos ares e elas seriam deixados em estado de pânico.12

Ou seja, o fascismo não teria passado de um grande jogo de más-caras ou, ainda, de uma grande paródia carnavalesca. Como se ele rea-lizasse o célebre dito de Saint-Just: “Celui qui plaisante à la tête du gouvernement tend à la tyrannie”13.

Neste ponto, podemos compreender melhor afirmações de Adorno aparentemente estranhas, como: “A dita psicologia do fascismo é larga-mente engendrada por manipulação”14. Uma “manipulação” do incons-ciente, “expropriação” do inconsciente pelo controle social ou mesmo “apropriação da psicologia das massas pelo líder”, dirá em “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”. Tais termos, tomados fora de contexto, podem induzir-nos a pensar que Adorno opera no interior de uma lógica do mascaramento ideológico, ou mesmo da ideo-logia, como uma espécie de ilusão da falsa consciência resultante dos móbiles de ocultamento dos pressupostos de atuação de um poder que,

12 Theodor Adorno, “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”, em Soziolo-gische Schriften I, cit., p. 418.

13 Essa leitura adorniana do fascismo como paródia pode servir-se, como argumento su-plementar, do fato de nem Hitler nem Mussolini poderem ser tecnicamente definidos como ditadores. Mussolini era o chefe legal do governo e Hitler, o chanceler legal do Reich. Como nos lembra Agamben: “O que caracteriza tanto o regime fascista quanto o nazista é o fato de terem deixado subsistir as constituições vigentes [...], fazendo acom-panhar – segundo um paradigma que foi sutilmente definido como ‘Estado dual’ – a constituição legal de uma segunda estrutura, amiúde não formalizada juridicamente, que podia existir ao lado da outra graças ao estado de exceção” (Estado de exceção, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 75-6). Acaso não teríamos aqui um estranho caso de estru-tura bakhtiniana da norma, que é sempre acompanha de seu duplo paródico? Como compreender a posição subjetiva de sujeitos que suportam um poder, que segue ao mesmo tempo a Lei e sua negação, a não ser através do cinismo?

14 Theodor Adorno, “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”, cit., p. 430.

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contrariamente ao que nos mostrou Foucault, parece ter um centro muito claro.

No entanto, nada mais equivocado no que concerne a Adorno. Não é por outra razão que o conceito central para compreender a “manipu-lação” fascista no texto em questão é phonyness, termo que indica a posição de uma falsidade que se afirma ironicamente enquanto tal. Isso é absolutamente central: para Adorno, os líderes autoritários fascistas não são hipócritas, eles são phonies. Nesse sentido, o regime de mani-pulação só ficará claro se respondermos à questão: como e por que o sujeito investe em vínculos sociais assumidamente phonies? Questão que obedece ao imperativo adorniano de criticar a ideologia não através da refutação de teses a partir de uma análise sistêmica da coerência dos enunciados ou da identificação de contradições performativas, mas através da análise das disposições (Dispositionen) de conduta que a ideo-logia pretende produzir nos sujeitos. Ou seja, devemos compreender que forma de vida esse discurso ideológico pressupõe.

No entanto, antes de tentar responder a essa questão, não podería-mos dizer que essa análise da ideologia fascista parece estranhamente próxima de algo fundamental em nossas sociedades “pós-ideológicas” pretensamente marcadas pelo desengajamento em relação a todo proje-to utópico? Se assim for, a semelhança de família entre o capitalismo bufão pós-ideológico de Lyotard e o fascismo em sua versão adorniana não seria mero acaso. Pois, nos dois casos, estaríamos diante de meca-nismos de poder fundados em ideologias da ironização. Fato que não seria estranho a Adorno.

Para se ter certeza de que o mesmo esquema de ironização serve a Adorno na análise do mecanismo de funcionamento da ideologia na con-temporaneidade capitalista em seu sentido mais amplo, lembremos como termina um texto seu consagrado à análise da televisão como ideologia:

Dentre os scripts analisados, numerosos são aqueles que jogam com a consciência de ser kitsch e dão uma piscadela de olhos em direção ao espectador [Betrachter] não ingênuo, como quem diz que eles mesmos não acreditam no que mostram, que não são assim tão idiotas.15

15 Idem, “Fernsehen als ideologie”, em Kulturkritik und Gesellschaft II (Frankfurt, Suhrkamp, 2003), p. 530. Lembremos ainda uma afirmação adorniana complementar

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Exemplo supremo de ideologia que pode funcionar exatamente por não se tomar a sério, diríamos nós.

Uma colocação dessa natureza é central se lembrarmos que, para Adorno, a indústria cultural e as estruturas de comunicação de massa que as suporta respondem, de maneira hegemônica, pelo estabeleci-mento das dinâmicas dos processos de socialização. Nesse sentido, a verdadeira questão posta por Adorno não diz respeito a processos uní-vocos de “manipulação” que desconsiderariam a multiplicidade pos-sível dos modos de recepção e de ressignificação. Ela diz respeito às consequências de processos de socialização mediados por conteúdos previamente ironizados. As reflexões de Adorno apontam para essa di-reção, principalmente em um texto tardio como Tempo livre (1969), no qual, ao final, é questão de uma certa revisão no quadro geral do conceito de indústria cultural tal como ele fora apresentado na Dialé-tica do Esclarecimento.

Partindo de um estudo empírico desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Sociais sobre os modos de recepção da veiculação midiática alemã do casamento da princesa Beatriz da Holanda, Adorno percebe a necessidade de abandonar um esquema clássico de ilusão ideológica em prol da análise de “sintomas de uma consciência duplicada” (Symptome eines gedoppelten Bewusstseins). A respeito de tais sintomas, ele dirá:

Verificamos que muitos [espectadores] se portavam de modo bem rea-lista e avaliavam com sentido crítico a importância política e social de um acontecimento cuja singularidade bem propagada os havia mantido em suspenso ante a tela do televisor. Em consequência, se minha con-clusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez ainda mais: não se acredita inteiramente neles.16

a essa: “Se se quisesse resumir em uma frase o que realmente nos leva à ideologia da cultura de massa, dever-se-ia apresentá-lo como paródia da frase ‘torna-te o que tu és’, enquanto duplicação e justificação de todo estado existente (bestehenden Zustandes), incluindo toda transcendência e toda crítica” (Soziologische Schriften I, cit., p. 476).

16 Idem, “Tempo livre”, em Indústria cultural e sociedade (São Paulo, Paz e Terra, 2002), p. 127.

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Se Adorno ainda via uma possibilidade de emancipação nessa dis-tância em relação à crença nos conteúdos ideológicos disponibilizados pela indústria cultural, podemos dizer que tal “crença desprovida de crença” é exatamente a mola de funcionamento da ideologia na contem-poraneidade e a garantia de sua perenidade. Os conteúdos já são previa-mente ironizados e é isso que lhes permite continuar circulando.

Podemos ver no diagnóstico dessa autoironia da indústria cultural um caminho frutífero aberto por Adorno na análise das formações con-temporâneas da ideologia. De fato, uma análise empírica dos produtos recentes da indústria cultural mostra a prevalência desse esquema. Per-sonagens de contos de fadas que não mais se reconhecem e criticam seus próprios papéis, propagandas que zombam da linguagem publicitária, celebridades e representantes políticos que se autoironizam em progra-mas televisivos: todos esses fatos são apenas figuras de um processo geral de ironização das formas de vida que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk chamou um dia de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a negação dos conteúdos que apresenta. Manei-ra astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.

Nesse sentido, a conservação da temática da ideologia pode mostrar sua atualidade. Nossas sociedades “pós-ideológicas” não são exatamente marcadas pela ausência de construções ideológicas usadas de maneira recorrente na justificação de práticas e valores sociais. Ao contrário, elas são marcadas pela perpetuação de tais construções sob a forma da ironia. Pois mesmo que tais construções sejam ironizadas, elas continuam fornecendo o quadro narrativo estável e socialmente partilhado para a descrição de práticas e valores. Isso apenas evidencia como, atualmente, uma crítica da ideologia que vise dar conta dos modos de funcionamento do poder a partir de uma racionalidade cínica deve ser, antes de mais nada, uma crítica da ironia.

Capitalismo carnavalesco

Essa exigência de pensar os moldes da crítica da ideologia a partir da crítica da ironia tem uma justificação suplementar. Pois tudo se pas-sa como se o capitalismo contemporâneo e suas formações maiores fun-cionassem a partir de uma certa lógica da “carnavalização”.

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O termo não está aqui de maneira gratuita. Ele visa sobretudo a descrição fornecida por Mikhail Bakhtin a respeito dos modos de sus-pensão da Lei em festas anômicas da Idade Média. Por mais improvável que isso possa parecer, tais modos de suspensão da Lei podem nos indi-car como a ideologia do capitalismo contemporâneo é capaz de, como dizia Lyotard, manter a lei do valor ao mesmo tempo em que mina o valor da lei. Ou seja, perpetuar a lei simultaneamente à proclamação da fragilidade de sua legitimidade. Isso talvez possa explicar por que certa leitura de Bakhtin se transformou em pilar de sustentação para cultural studies de inspiração pós-moderna.

Bakhtin tem um interesse especial pelas festas anômicas da Idade Média, em especial o carnaval, por ver nelas a entificação do caráter subversivo do riso popular contra as imposturas do poder. Ele insiste no fato de nenhuma festa cívica desenrolar-se na Idade Média sem que intervenham elementos de uma organização cômica. Fato que deveria ser lido no interior de um dado antropológico mais amplo exposto na seguinte afirmação:

Encontramos, no folclore dos povos primitivos, paralelamente aos cultos sérios (em virtude de sua organização e tom) os cultos cômicos que se transformavam em derrisão e blasfemavam as divindades (“riso ritual”); paralelamente aos mitos sérios, os mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos.17

No entanto, devemos nos perguntar sobre o significado de tal du-plicação irônica de estruturas gerais de socialização presente nas festas cívicas e nos mitos. Bakhtin compreende isso como exposição de ten-dências de subversão e ressignificação popular da lei social, tendências estas que ganharão forma mais acabada em festas anômicas, como o carnaval. Daí afirmações como: “O carnaval era o triunfo de uma forma de liberação provisória em relação à verdade dominante e o regime existente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privi-légios, regras e tabus”18. Mundo de aproximação dos contrários que marca a utopia da flexibilização das normas prometendo “um modo

17 Mikhail Bakhtin, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance (Paris, Gallimard, 1970), p. 14.

18 Ibidem, p. 18.

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particular de existência [...] baseado no princípio do riso”19. Riso que dissolve toda e qualquer determinidade e inverte todo e qualquer prin-cípio normativo em prol da vida como fluxo contínuo de formas.

A adequação histórica de tal compreensão das festas anômicas exi-giria uma análise empírica minuciosa. No entanto, é impossível não problematizar essa oposição estrita entre transgressão e respeito à Lei que guia a interpretação de Bakhtin. À primeira vista, a redução da vida a um fluxo contínuo de formas em momentos de anomia não parece opor-se ao ordenamento jurídico. Se a relação fosse realmente de opo-sição, seria difícil explicar como o ordenamento jurídico é capaz de re-configurar-se imediatamente após o período de anomia, sem que tal período implique em necessidade de reorientação dos processos de nor-matização. Ou seja, eles retornam tal como eram antes. Assim, para além da tentativa bakhtiniana de entificação de um certo caráter sub-versivo do riso popular que teria no carnaval seu espaço social privile-giado, riso popular que seria uma das raízes do cinismo grego, devemos insistir na complementaridade entre posição da norma e sua ironização paródica. Ou seja, devemos ver os mitos cômicos como parte constitu-tiva dos mitos sérios, como seu desdobramento interno, como o que permite ao sério internalizar sua própria crítica.

Georges Bataille compreendeu isso claramente em seus estudos no interior do Colégio de Sociologia a respeito da festa, do sagrado e do erotismo. Grosso modo, Bataille procurava pensar certa solidariedade entre transgressão e interdito enunciado pela Lei que encontramos em estruturas sociais marcadas por experiências estranhas para o mundo “desencantado” da modernidade. Tais estruturas sociais se fundam em uma normatividade que aceita e regula sua própria suspensão temporá-ria: “Não há interdito que não possa ser transgredido. Muitas vezes a transgressão é admitida, muitas vezes ela chega mesmo a ser prescrita”20. Ou seja, a transgressão é modo de funcionamento do vínculo social, e isso na medida em que a transgressão não é um retorno à natureza, ela é uma forma da norma internalizar momentos de anomia, sem com isso destruir-se. Daí Bataille poder afirmar que “a transgressão suspende o interdito sem suprimi-lo”.

19 Ibidem, p. 16.20 Georges Bataille, L’érotisme (Paris, Minuit, 1960), p. 71.

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Giorgio Agamben, que não deixa de ter as elaborações de Bataille em vista, chegou a uma conclusão similar ao apoiar-se nos estudos de Karl Meuli para afirmar que as festas anômicas devem ser relacionadas com “o estado de suspensão da lei que caracteriza alguns institutos ju-rídicos arcaicos, como a Friedlosigkeit alemã ou a perseguição do vargus no antigo direito inglês”21. Colocação astuta por lembrar que suspensão irônica da Lei não significaria necessariamente sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é desprovida de relações com a ordem jurídica. Como se um certo ordenamento jurídico “socialmente pressu-posto” reconhecesse que a suspensão da lei é fenômeno interno ao pró-prio processo de efetivação da lei e que a alternância entre ordem e desordem não põe em xeque a coesão de formas de vida. Tal como se a lei ironizasse sua própria aplicabilidade. O fato relevante aqui é como o que anteriormente estava restrito a momentos de anomia tende, na dinâmica ideológica do capitalismo contemporâneo, a colocar-se como modo hegemônico de funcionamento da Lei.

Identificações irônicas

Talvez só seja possível compreender melhor a necessidade dessa au-toironia que atua no cerne do modo de funcionamento da ideologia se relevarmos o advento de um modo peculiar de identificação dos sujeitos com os vínculos sociais. Notemos, por exemplo, como atualmente os sujeitos não são mais chamados a identificar-se com tipos ideais cons-truídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria en-gajamentos e certa ética da convicção. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo momento, os sujeitos afirmam sua distância em rela-ção àquilo que estão representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações. Como se Adorno, ao perceber que os sujeitos atuavam suas iden-tificações com o líder fascista e tomavam, a todo momento, uma distân-cia reflexiva dos conteúdos da comunicação de massa, tocasse em um ponto central a respeito do modo de individuação e socialização das sociedades capitalistas contemporâneas.

21 Giorgio Agamben, Estado de exceção, cit., p. 109.

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A psicanálise, em especial a de orientação lacaniana, insistiu no papel das identificações como processos centrais na socialização e sus-tentação dos vínculos sociais. Socializar é fundamentalmente “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo. No entan-to, a fim de dar conta de dois modos distintos de “fazer como”, a psica-nálise lacaniana viu-se obrigada a estabelecer uma distinção estrita entre identificação imaginária, fundada na introjeção constitutiva e especular da imagem de um outro que tem o valor de tipo ideal, e identificação simbólica, que indica o reconhecimento de si em um traço unário vindo de um Outro (normalmente aquele que sustenta a função paterna) na posição de Ideal do eu. Essa forma de identificação é modo de reconhe-cimento que, por operar através de traços unários, ao invés de operar por imagens estáticas, não impõe ao sujeito a partilha de uma identidade fixa, mas leva-o a reconhecer-se e a reconhecer seu desejo naquilo que não tem objetivação previamente determinada.

Através dessa duplicidade nos mecanismos de identificação, Lacan procurava explicar como os processos de socialização baseados em iden-tificações podiam dar conta do fato de os sujeitos serem capazes de re-conhecer-se em funções simbólicas que não se esgotam nas figuras con-tingentes daqueles que as portam. No entanto, tudo se passa como se transformássemos essa ausência de objetivação previamente determina-da própria às funções simbólicas em ironia.

Tal como as identificações simbólicas, as identificações irônicas não estão vinculadas à introjeção de imagens privilegiadas colocadas em posição de ideal. Desde há muito, a dissolução irônica da determinida-de foi compreendida também como dissolução da fixidez da imagem de si. Ao expor continuamente a distância entre enunciado e enunciação, o ironista aparece como aquele que nunca está presente em seu dizer, aquele que nunca fornece uma imagem de si. Como dizia Schlegel a propósito de Sócrates: “Nele, tudo deve ser gracejo e tudo deve ser sério: tudo sinceramente aberto e tudo profundamente dissimulado”22.

Dessa forma, a destruição da pregnância das imagens de si pode redundar simplesmente na implementação contínua de uma certa dis-tância irônica em relação a toda determinidade empírica, ou seja, em relação a todo papel identitário que determina um fazer social. Um

22 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37.

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distanciamento que pode estabilizar-se a partir do momento em que os sujeitos tratam suas identidades sociais como simples semblantes, para usar um termo de Lacan, ou ainda como aparências postas enquanto tal. Assim, eles se aferram a identidades sociais que não têm realidade substancial em virtude exatamente do fato de elas não terem realidade substancial alguma. Tal lógica da ironização pode realizar-se, por exem-plo, através da “flexibilidade” de uma subjetividade plástica que pode afirmar-se enquanto puro jogo de máscaras não mais submetido a prin-cípio unificador algum. Como se o presente tivesse realizado o diagnós-tico preciso de Nietzsche:

Há épocas nas quais o indivíduo está convencido de poder quase tudo fazer, estar a altura de quase todos os papéis, nos quais cada um tenta, improvisa, tenta novamente [...]. Os gregos, uma vez engajados nessa crença nos papéis [...], realmente se transformaram em atores [...]. Mas o que temo é que nós, homens modernos, já estejamos plenamen-te engajados no mesmo caminho, e cada vez que o homem começa a descobrir em que medida ele desempenha um papel e até que ponto ele pode ser um ator, ele se transforma em ator.23

Notemos ainda que esse regime de identificação ganha importância se lembrarmos como tal distância irônica é atualmente condição necessá-ria para o funcionamento da ideologia. Lembremos essa afirmação central de Althusser (ao menos nesse ponto próximo a Adorno), segundo a qual a ideologia não é uma questão de falsa consciência ou de crença cega, mas uma questão de repetição de rituais materiais 24. Repetição que pode mui-to bem prescindir de todo e qualquer engajamento subjetivo. Na verdade, é até melhor que o sujeito tome distância crítica em relação ao seu fazer, que não se confunda com seus papéis e rituais sociais. Dessa forma, a inércia na modificação do agir será ainda maior, pois o sujeito se desso-lidariza de seu próprio ato, que ganha a força do automatismo. Repetir sem acreditar, ou seguir o famoso dito pascaliano que inverte a relação entre ato e crença: “Ajoelhai-vos, orai e acreditareis” serve para nos lem-brar que a crença ideológica não é exatamente um conceito ligado a estados

23 Friedrich Nietzsche, A gaia ciência (São Paulo, Companhia das Letras, 1999), par. 356.24 Ver Louis Althusser, Aparelhos ideológicos de Estado (6. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1992),

p. 91.

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intencionais, mas a estruturas da práxis. É tendo em vista fenômenos si-milares que Adorno podia falar em “crença desprovida de crença”. Um belo exemplo desse tipo de posição subjetiva nos é dado por Richard Rorty em seu livro Contingência, ironia e solidariedade.

Rorty pensa a ironia fundamentalmente como forma de vida pró-pria às sociedades democráticas liberais e fundada sobre uma posição global em face de valores que aspiram a fundamentar critérios não re-vogáveis de avaliação de condutas e instituições. Dirá ele:

Chamo essas pessoas de “ironistas” porque sua compreensão de que po-demos fazer qualquer coisa parecer boa ou má por meio de redescrições e sua renúncia à tentativa de formular critérios de escolha entre vocabu-lários finais [ou seja, determinações com peso de necessidade ontológi-ca] coloca-os na posição que Sartre chamou de “metaestável”: nunca prontos a tomarem a si mesmos a sério porque sempre conscientes de que os termos nos quais eles se descrevem a si mesmos estão sujeitos a mudanças, sempre conscientes da contingência e da fragilidade de seus vocabulários finais e, consequentemente, de seus Eus [selves].25

Ou seja, valores socialmente partilhados, que Rorty chama de “vocabulário final” para salientar sua aspiração de estar dotado de dignidade metafísica, seriam radical e continuamente postos em dúvida pelo ironista. Ironia que viria da consciência da contingência histórico-cultural de todo vocabulário de descrição de critérios nor-mativos de justificação. Um saudável relativismo próprio àqueles que sabem que os termos com os quais descrevemos nossas expectativas de justificação estão sempre sujeitos a mudanças animaria essa recuperação rortyana da ironia. Pois critérios de justificação não seriam mais do

25 Richard Rorty, Contingence, irony and solidarity (Cambridge, Cambridge University Press, 1989), p. 74. Não deixa de ser extremamente sintomático que Rorty compreen-da essa fragilização de “vocabulários finais” como resultado de uma “dialética” que estaria em operação no pensamento hegeliano – uma dialética baseada no jogo contí-nuo de interversões e inversões. Daí a definição: “O dito método dialético de Hegel não é um procedimento argumentativo ou uma maneira de unificar sujeito e objeto, mas simplesmente uma habilidade literária – habilidade de produzir mudanças sur-preendentes de figura (gestalt) através de transições rápidas, fluidas de uma termino-logia a outra” (p. 78). Essa redução da dialética a uma literary skill que gira em falso já fora, no entanto, criticada pelo próprio Hegel por ocasião de suas considerações sobre a ironia romântica.

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que “a platitude que define contextualmente termos de um vocabulá-rio final em uso corrente”26.

Segundo Rorty, por exemplo, o ironista não investe os processos de socialização com uma convicção segura (já que opera por identificações irônicas, diríamos nós). No entanto, ele não pode fornecer um critério positivo para transformar tal insegurança em abertura para a produção de uma determinidade efetiva e estável de si mesmo. Tal como na ironia romântica, a ironia está vinculada a um movimento de redescrição con-tínua de si que coloca a subjetividade para além de toda e qualquer determinação concreta.

No entanto, e este é o ponto mais importante, Rorty reconhece que tal conceito de ironia exige uma distinção estrita entre espaço privado e esfera pública. Pois, se a ironia diz respeito a uma certa maneira de impli-car-se em valores que sustentam a esfera pública, não se trata de afirmar que a retórica pública deva ser ironista. De fato, “o ironista toma as pala-vras que são o fundamento da metafísica e, em particular, para a retórica pública das democracias liberais, como apenas mais um texto”27. No en-tanto, ele age como se levasse as palavras da retórica pública das democra-cias liberais a sério. Rorty não pode pensar que os valores das democracias liberais são enunciados de maneira irônica. Como ele mesmo dirá: “Eu não posso imaginar uma cultura que socializa sua juventude de tal ma-neira que a faça duvidar continuamente de seu próprio processo de socialização”28. Mas, como veremos no próximo capítulo, nós podemos.

Sabemos que, para Rorty, trata-se de insistir em uma distância ne-cessária em relação à absolutização de valores que são usados pelos su-jeitos para regular e justificar ações cotidianas, algo que, de uma forma ou de outra, não deixa de nos remeter ao Kant de Was ist Aufklärung?, com suas distinções entre uso público e privado da razão. Essa distância deixaria os sujeitos imunes à tentação metafísica de acreditar que nossos valores podem dar conta da descrição correta de crenças, ações e siste-mas de outros que partilham valores distintos. O que abriria o espaço necessário para a tolerância liberal ao outro (uma tolerância que, como vimos, não é imune à autodefesa intolerante). Entretanto, como a ironia

26 Ibidem, p. 75.27 Ibidem, p. 99.28 Ibidem, p. 87.

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seria basicamente un affaire privé, a retórica das democracias liberais continuaria aceita exatamente por não exigir convicção absoluta dos sujei-tos; até porque o problema da justificação foi desvinculado do problema da verdade. Talvez essa seja mesmo a condição sine qua non para a per-petuação das formas de vida hegemônicas nas democracias liberais. Um preço alto demais?

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II

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Por uma crítIca da economIa lIbIdInal

Eu não posso imaginar uma cultura quesocialize sua juventude de tal maneira que

a faça duvidar continuamente de seu próprioprocesso de socialização.

Richard Rorty, Contingence, irony and solidarity

Da necessidade de uma economia libidinal

“No lugar da questão sociológica a respeito dos modos de integra-ção social e de conflito social, aparece a questão referente à influência recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica, ou seja, a aproximação possível entre psicanálise e análise do sistema econômico.1” Essa frase é, na verdade, o núcleo de uma certa crítica de Axel Honneth a Theodor Adorno. Ela consiste em afirmar que o projeto adorniano seria acometido por algo como um déficit sociológico visível na pretensa impossibilidade do filósofo de Frankfurt em fornecer uma verdadeira reflexão sobre o sentido e a dinâmica propriamente social dos processos de racionalização. Impossibilidade que cresceria de maneira proporcio-nalmente inversa a uma espécie de superávit psicanalítico. Como se a psicanálise tivesse impedido Adorno de levar em conta a autonomia sistêmica das múltiplas esferas de valores que compõem a vida social com suas expectativas próprias.

No entanto, a decisão adorniana em sustentar a relevância dessa “in-fluência recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica” talvez nos indique algo mais do que um mero déficit sociológico. Talvez esse seja o resultado natural da fidelidade a uma intuição já presente em mo-mentos centrais dos ditos “textos sociológicos” de Freud, a saber, a com-preensão de que a análise dos processos de racionalização social deve, necessariamente, submeter-se a considerações mais amplas sobre a onto-gênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos. Ontogênese esta

1 Axel Honneth, Critique of power (Cambridge, MA, MIT Press, 1991), p. 101.

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que é, por sua vez, indissociável da descrição da dinâmica conflitual dos processos de socialização do desejo no interior de esferas de interação, como a família, as instituições sociais, os aparatos midiáticos de massa e o Estado. Ou seja, em última instância, trata-se de propor a compreensão do fundamento dos processos de racionalização social a partir de proble-mas ligados à socialização do desejo. É tendo tal submissão em vista que Freud pode fazer afirmações arriscadas como “mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciên-cias, a psicologia, pura e aplicada, e o estudo da natureza (Naturkunde)”2.

De fato, uma afirmação dessa natureza é temerária por parecer tri-butária de alguma forma de psicologismo selvagem que nos levaria a um certo imperialismo psicanalítico que sempre interpreta a multiplicidade dos fatos culturais à luz da repetição modular dos complexos de Édipo e das teorias sobre a sexualidade infantil. Psicologismo ainda mais te-merário por parecer induzir-nos a tratar o campo social de maneira atomizada por meio da hipóstase de funções intencionais particularistas como chave compreensiva de processos sociais complexos.

No entanto, devemos procurar melhor o que está em jogo nessa tendência psicanalítica, presente desde Freud, de operar no ponto exa-to de contato entre estruturas da subjetividade e modos de interação social. Pois, a seu modo, a psicanálise acaba por realizar a intuição weberiana a respeito da necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos sociais em geral e dos papéis econômicos em particular depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar cer-tos tipos de conduta. O mesmo espírito levou Adorno a insistir que a teoria da ideologia deveria necessariamente submeter-se a uma análi-se das disposições subjetivas. Não se trata nesses casos de incorrer em alguma espécie de déficit sociológico, mas insistir que nenhuma pers-pectiva sociológica pode abrir mão de compreender a maneira como os sujeitos investem libidinalmente os vínculos sociais, mobilizando com isso representações imaginárias e expectativas de satisfação que muitas vezes acabam por inverter o sentido de determinações norma-tivas que visam racionalizar tais vínculos.

2 Sigmund Freud, “Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. XV, p. 194.

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Pode parecer que fazer afirmações dessa natureza implica tentar submeter o quadro compreensivo das estruturas de interação social, com suas exigências de legitimidade e aspirações de validade, a um cál-culo de interesses baseado na lógica utilitarista da maximização do pra-zer e do afastamento do desprazer. De fato, todo leitor de Freud sabe como ele procura constituir os protocolos de uma verdadeira econômica. Desde o momento em que procura derivar a dinâmica geral dos proces-sos de julgamento de exigências gerais de maximização de prazer e de afastamento do desprazer3, Freud parece mostrar como está disposto a submeter expectativas prático-cognitivas a um cálculo econômico de interesses no interior do qual um raciocínio meramente utilitarista de-sempenharia o papel de fundamento.

Mas há algumas precisões importantes a serem feitas a respeito dessa econômica. A primeira é que a psicanálise trouxe uma noção absolutamente particular de cálculo de interesse, uma noção profun-damente não utilitarista. É tendo isso em vista que psicanalistas como Jacques Lacan insistiram que a inteligibilidade da dinâmica pulsional dos sujeitos não está vinculada à lógica polar do prazer–desprazer. Tal inteligibilidade exige a introdução de outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula as distinções estritas entre prazer e desprazer. Esse campo se organiza a partir de uma noção bastante peculiar de “gozo”. Nesse contexto, “gozo” não significa o usufruto dos bens dos quais sou proprietário, mas algo totalmente contrário, uma perspectiva de satisfação que não leva mais em conta os sistemas de defesa e controle do Eu, perspectiva que flerta conti-nuamente com experiências disruptivas, ou ao menos com a “retórica” da transgressão (o que não deve nos estranhar, já que uma das fontes dessa teoria do gozo vem exatamente da teoria da festa como fato social total em Bataille, Roger Caillois e no Colégio de Sociologia4). Como veremos, isso talvez explique certa tendência contemporânea em utilizar o gozo como conceito-chave para compreender a econo-mia libidinal própria à sociedade de consumo.

3 Ver, por exemplo, a segunda parte de Sigmund Freud, “Die Verneinung”, em Gesam-melte Werke, cit., v. XIV.

4 Ver, por exemplo, Roger Caillois, “Le sacré de transgression: théorie de la fête”, em L’homme et le sacré (Paris, Gallimard, 1950).

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Há, no entanto, um problema de fundo que subsiste. Pois, através da transformação de estruturas pulsionais e funções intencionais como o desejo em solo privilegiado de inteligibilidade de processos sociais, continuamos assumindo o risco de construir uma visão atomizada das estruturas de interação social. Perspectiva de transformação de uma teo-ria pulsional em campo de inteligibilidade de processos sociais que cau-sava repulsa a pensadores como, por exemplo, Claude Lévi-Strauss, para quem: “Na verdade, as pulsões e as emoções não explicam nada; elas sempre resultam seja da potência do corpo, seja da impotência do espí-rito. Consequências, nos dois casos; elas nunca são causas”5. Mas uma afirmação como essa de Lévi-Strauss não leva em conta que podemos aceitar sem problemas, e ao mesmo tempo, que pulsões e desejos não são sistemas causais irredutivelmente individuais e que, através da so-cialização de tais pulsões e desejos, internalizamos processos gerais de orientação do julgamento e da ação. Ou seja, por meio de tais processos de socialização, internalizamos padrões gerais de racionalidade que ten-dem a guiar o comportamento social. Nesse sentido, é incorreto afirmar que pulsões e emoções não explicam nada.

É fato que Lévi-Strauss e vários outros gostariam de simplesmente dizer, por exemplo, que o desejo é um efeito do universo simbólico social, uma disposição produzida integralmente por ele, e não sua cau-sa. Assim, eles podem contentar-se com explicações sistêmicas e estru-turais que não precisam levar em conta a maneira com que os sujeitos fornecem uma perspectiva distinta daquela meramente estrutural de significação de fenômenos sociais. Nesse sentido, podemos afirmar que o encaminhamento freudiano é de fato radicalmente “psicologicista”, mas, por isso, ele é mais “materialista” do que o de seus críticos. Pois ao colocar como tarefa fundamental a possibilidade de considerações sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos, ao afirmar que há uma ontogênese social de tais capacidades que se revela na com-preensão das dinâmicas de socialização, ele afirma o caráter empírico (no sentido de absolutamente não transcendental) das estruturas gerais daquilo que estamos dispostos a contar como racional. Há uma gênese empírica das estruturas de orientação do que aspira ser visto como ação

5 Claude Lévi-Strauss, Le totémisme aujourd’hui (Paris, PUF, 2002), p. 105.

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racional. A questão freudiana consiste em saber quais são os protocolos fundamentais de determinação de tal gênese.

A natureza dessa empiricidade fica mais evidente se lembrarmos que, para Freud e para grande parte da posteridade psicanalítica, os dispositivos de formação e de individuação presentes nas dinâmicas de socialização são legíveis a partir daquilo que compreendemos como sen-do processos de identificação e de investimento libidinal. Até porque socializar é, fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelos de identificação e de polo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir. No entanto, essa identificação com tipos ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de consi-derações sobre as pressões de coerção presentes em núcleos elementares de interação social (família, instituições sociais, mídias). Freud com-preendeu que as estruturas elementares que orientam o que está em jogo nesses núcleos de interação são figuras privilegiadas da razão. As exigên-cias de racionalidade presentes nesses núcleos são necessariamente manifestações privilegiadas do que estamos dispostos a contar como racional. No entanto, Freud nunca deixará de colocar a questão: “O que é necessário perder para conformar-se a exigências de racionalidade pre-sentes em processos hegemônicos de socialização e de individuação?”, ou ainda: “qual é o preço a pagar, qual é o cálculo econômico necessário para viabilizar tais exigências?”. Pois devemos nos perguntar o que deve acontecer ao sujeito para que ele possa se pautar por um regime de ra-cionalidade que impõe padrões de ordenamento, modos de organização e estruturas institucionais de legitimidade. Neste ponto, vale a pena voltarmos a algumas elaborações fundamentais presentes no texto freu-diano a fim de encaminhar melhor qual pode ser uma economia libidi-nal à altura dos problemas da sociedade contemporânea.

Pressupostos sociais do supereu freudiano

Um dos principais conceitos criados por Freud para a análise de fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar, através do mesmo dispositivo, a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa, dos ideais sociais do eu e da internalização da lei simbólica, Freud deparou--se com um processo no qual socialização e repressão convergiam em larga medida. Hoje, as páginas do Mal-estar na civilização que tratam

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de tal imbricação são arquiconhecidas. “Toda cultura deve necessaria-mente edificar-se sobre a repressão e a renúncia pulsional” é uma frase que ressoou como programa crítico durante todo o século XX.

Grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados sociais de uma relação ambivalente que se dá inicialmente no interior da família bur-guesa – relação marcada pela sobreposição entre rivalidade e identifica-ção que aparece de maneira mais visível no conflito entre o filho e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito e como objeto de amor no interior da esfera familiar, ou seja, para sair de uma situação de desamparo e ver-se garantido em sua posição sub-jetiva enquanto objeto de amor, faz-se necessário que o sujeito se iden-tifique exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em rela-ção às exigências pulsionais. O resultado é a internalização psíquica de uma “instância moral de observação”, no caso, o supereu resultante dessa identificação parental. Isso faria com que toda afirmação do gozo ligado à satisfação pulsional provocasse, necessariamente, um sentimento de cul-pa advindo da pressão sádica do supereu sobre o Eu. Sentimento de culpa que não deixa de provocar, como benefício secundário, um modo neuró-tico de gozo.

Sabemos que a psicanálise freudiana normalmente opera com uma perspectiva unívoca na compreensão da multiplicidade das ordens sim-bólicas. Há, por exemplo, a pressuposição de uma espécie de princípio de articulação estrutural entre a autoridade familiar e as autoridades que suportam outros vínculos sociais, como os vínculos religiosos ou políti-cos6. Tal articulação entre esferas aparentemente autônomas de valores (família, religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta

6 Isso levará Freud, por exemplo, a afirmar que “a exploração psicanalítica do indivíduo ensina com uma insistência particular que o deus de cada homem é à imagem do pai, que a relação pessoal a Deus depende da relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a partir desta última, e que Deus não é outra coisa que um pai elevado ao nível superior” (“Totem und Tabu”, em Gesammelte Werke, cit., v. IX, p. 177). Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas: “Há nas massas humanas uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar [...]. A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas. Trata-se da nostalgia do pai” (“Der Mann Moses und die monotheistische Religion”, em Gesammelte Werke, cit., v. XVI, p. 217). Daí a fórmula canônica a respeito da formação das massas: “Uma massa psicológica é a reunião de indi-víduos que introduziram a mesma pessoa no supereu e que, na base dessa comunhão, identificaram-se uns aos outros no eu” (“Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, em Gesammelte Werke, cit., v. XV, p. 74).

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a função paterna não é apenas representante da lei da família, mas de uma Lei que determina o princípio geral de estruturação do universo simbóli-co. Não se trata de tentar derivar as ordens simbólicas a partir do núcleo familiar, mas de insistir no fato de que problemas de socialização do de-sejo no interior do primeiro campo de experiências do sujeito, ou seja, o núcleo familiar, trazem necessariamente tensões de socialização em esferas mais amplas. Isso abre caminho para Freud afirmar que o sentimento de culpa “seria o mais importante problema no desenvolvimento da civilização”7, e não simplesmente no desenvolvimento da família burgue-sa. Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das con-figurações familiares para com estruturas sociais mais amplas. No entan-to, quem diz dependência não diz subsunção simples.

De fato, tudo isso é praticamente um lugar-comum atualmente. Mas algumas modificações substanciais ocorreram em certos processos de socialização e elas fazem com que o problema do supereu ganhe hoje novas configurações. Esse ponto não deve provocar estranhamento pois, se o supereu tem sua gênese exatamente a partir dos processos de socia-lização, se ele é “uma manifestação individual ligada às condições sociais do edipismo”8, então ele necessariamente se modificará na medida em que tais processos se reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jacques Lacan e a Escola de Frankfurt perceberam claramente ao pensar as in-cidências clínicas de uma modificação histórica maior bem definida por críticos conservadores da modernidade: o advento de uma espécie de “sociedade não repressiva”, vinculada à universalização das práticas de consumo. Isso terá implicações na configuração dos modos de identifi-cação social com suas consequências. Para entender o significado e o alcance de tais elaborações, valeria a pena darmos um passo para trás.

Muito há ainda a se dizer, por exemplo, a respeito de certas articula-ções possíveis entre Freud e Max Weber como teóricos da modernização, dos processos de racionalização e de suas consequências. Não deixa de ser

7 Sigmund Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV, p. 494.

8 Jacques Lacan, Écrits (Paris, Seuil, 1966), p. 136. O que fica muito claro quando Freud afirma que “o supereu adota também as influências de pessoas que tomaram o lugar dos pais, como educadores, mestres, modelos ideais. Ele normalmente se distancia cada vez mais dos indivíduos paternos originários e torna-se mais impessoal” (“Neue Folge der Vor-lesungen zur Einführung in die Psychoanalyse”, em Gesammelte Werke, cit., v. XV, p. 70).

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tentador lembrar como esse supereu que articula uma consciência moral fundada na repressão de moções pulsionais teve, por exemplo, uma fun-ção social preciosa no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de produção. Isso nos permite afirmar que a economia libidinal da sociedade de produção teria alimentado uma instância psíquica como o supereu repressor, o que pode explicar certos motores de sua permanência.

Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fun-damentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a internaliza-ção psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produção era uma atividade que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que “de sua riqueza ‘nada tem’ para si mesmo, a não ser a irracional sensação de ‘cum-primento do dever profissional’”9. Weber chega a falar em um “estímulo psicológico”10 produzido pela pressão ética e satisfeito pela realização de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir que

esse é o summum bonum dessa “ética”: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho, algo tão completamente despido de todos os pontos de vista eudemonistas ou mesmo hedonistas e pensado tão exclusivamente como fim em si mesmo que, em comparação com a “felicidade” do indiví-duo ou sua “utilidade”, aparece em todo caso como inteiramente transcendente e simplesmente irracional.11

A irracionalidade desse processo de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode indicar--nos seu caráter superegoico.

9 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo, Companhia das Letras, 2004), p. 62.

10 Ibidem, p. 116.11 Ibidem, p. 46.

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Weber indica-nos claramente vários traços superegoicos dessa Lei da ética protestante do trabalho: a transformação do Pai celestial que suportava a Lei no Novo Testamento em um Pai severo superegoico (“ser transcendente que escapa à compreensão humana”12), um trabalho feito como vocação que é resposta à voz do Outro (no caso, o chamado de Deus13), a culpabilização de todo prazer sensível (rebaixamento do sensível que Freud compreendeu como figura maior da renúncia pul-sional) e a entificação obsessiva de um “autocontrole sereno” como ideal de conduta14, um autocontrole que se traduz na repressão ao prazer polimórfico em prol da fixidez identitária no mundo do trabalho – fi-xidez já presente na ideia de “vocação”.

Sendo assim, se a lei moral que sustenta a disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta econômica é uma figura do supereu15, então a economia libidinal do capitalismo como sociedade de produção seria impensável sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica que só poderia pensar seus processos de socialização através da instru-mentalização repressiva do sentimento de culpa. E Freud não teme falar nesse caso de “patologias das comunidades culturais”16 (Pathologie der kulturellen Gemeinschaften). O que não significa que todos os sujeitos de uma determinada sociedade serão neuróticos, mas que os ideais socioculturais responsáveis por processos de socialização baseados em identificações tendem a produzir estruturas libidinais neuróticas.

Tais considerações demonstram a função do recurso à psicanálise no interior de uma teoria dos processos de modernização e racionaliza-ção. Costumamos aceitar tacitamente que agir e julgar racionalmente

12 Ibidem, p. 95.13 Lembremos como Lacan insiste que a voz e o olhar são objetos parciais os quais indicam a

redução da Lei à dimensão do supereu. Esse caráter superegoico da vocação fica claro em afirmações como: “Contra todas as tentações sexuais, do mesmo modo que contra as dúvi-das religiosas e os escrúpulos torturantes, além de uma dieta sóbria à base de refeições vege-tarianas e banhos frios, receita-se ‘trabalho duro na [tua] profissão’” (ibidem, p. 144).

14 Ibidem, p. 95.15 Proposição que não seria absolutamente estranha a Freud, para quem a gênese da cons-

ciência moral (Gewissen) era necessariamente derivada de um fato empírico. Donde se segue que, para o materialista Freud, a moralidade é fruto de um processo ligado aos modos de reprodução material da vida social. Neste ponto, remeto ao meu “O ato para além da Lei”, em Um limite tenso (São Paulo, Unesp, 2003).

16 Sigmund Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV, p. 505.

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significa, entre outras coisas, determinar a conduta a partir de práticas e instituições que aspiram a uma validade legitimada. A ação racional pressupõe, mesmo que como horizonte regulador, a possibilidade de institucionalização de critérios de justificação legitimados pelo assenti-mento não coercivo. No entanto, tal possibilidade já deve estar atual-mente em operação, mesmo que de maneira imperfeita (ou, ainda, am-bivalente), através de instituições e práticas que socializam sujeitos cujas ações e julgamentos aspiram a racionalidade.

As colaborações maiores de Freud consistiriam, nesse caso, em insis-tir que tais processos de socialização se dão inicialmente no interior da família e, por isso, são marcados pelos conflitos e representações imaginá-rias próprios ao universo familiar; um universo no qual demanda de amor e exigências de submissão estão absolutamente imbricadas. Eles são, ao mesmo tempo, a realização de aspirações racionais e a produção de ins-tâncias repressivas que agem individualmente nos sujeitos através da cul-pabilização de exigências pulsionais. Toda socialização é normativa, ela é normatividade que se impõe à vida com suas exigências de satisfação pulsional. Max Weber não havia mostrado outra coisa ao insistir que a gênese da ética protestante do trabalho na constituição da racionalidade do capitalismo era solidária do ascetismo e da restrição ao gozo.

No entanto, conhecemos várias críticas à plausibilidade dessa “hi-pótese repressiva”, e uma das principais vem de Michel Foucault. Em História da sexualidade, ele não deixa de criticar esse vínculo entre asce-tismo e consolidação da sociedade capitalista de produção. Insiste que as tecnologias de si, próprias ao mundo burguês moderno, não podem ser compreendidas como simples dispositivos repressivos montados contra um corpo libidinal metafisicamente pressuposto, substrato na-tural que apareceria como base para as operações do poder. Ao contrário, deveríamos “abandonar o energitismo difuso que sustenta o tema de uma sexualidade reprimida por razões econômicas”17. Só assim pode-ríamos compreender que a modernidade foi um longo processo de constituição (e não de repressão) da sexualidade, implementação de um poder disciplinar que constituiu tanto mecanismos de incitação a modos de investimento libidinal reconhecidos socialmente quanto figuras de resistência; já que o verdadeiro poder não se funda apenas

17 Michel Foucault, Histoire de la sexualité I (Paris, Gallimard, 1976), p. 151.

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em operações de gestão coerciva de padrões normativos de conforma-ção, mas principalmente na produção dos próprios modos de resistên-cia à “dominação”. Foucault quer liberar a reflexão do poder de temá-ticas vinculadas à opressão, a fim de permitir a melhor compreensão do caráter criador de um poder que engendra, um biopoder que inci-ta modos de investimento libidinal, assim como modos de conflito.

Tendo isso em vista, Foucault pode dizer, por exemplo, que os pro-cessos de entificação do ascetismo e da desqualificação da carne anali-sados por Max Weber eram inicialmente, na verdade, técnicas de “in-tensificação do corpo, de problematização da saúde e de suas condições de funcionamento”18. Maneira, por exemplo, de assegurar a longevida-de e a não corrupção da descendência. Contra essas práticas disciplina-res que constituem a sexualidade, não se trataria de consolidar críticas aos processos de interversão das expectativas de racionalidade em regi-mes de dominação de si. A verdadeira crítica consistiria em, de uma forma ou de outra, “desativar” os dispositivos de sexualidade, cortando o vínculo tacitamente aceito entre sexo e lugar da verdade, suspendendo a economia libidinal alimentada por processos disciplinares.

No entanto, há duas considerações a fazer a respeito dessa perspec-tiva de Foucault. Primeiro, uma análise psicanaliticamente orientada não teria maiores dificuldades em aceitar a temática de um biopoder que engendra dispositivos de sexualidade. Lembremos que o problema maior levantado por Freud a respeito dos modos de internalização da Lei através do supereu consiste exatamente em mostrar como dinâmicas de repressão se transformam em modo neurótico de satisfação, em mos-trar como aquilo que nos adoece é fonte de gozo. Nesse sentido, a hi-pótese repressiva é apenas a descrição de um modo de internalização de práticas disciplinares.

Mas é fato que a temática da “repressão” nos leva à pressuposição de um corpo libidinal “naturalizado”, no sentido de não ser totalmente redutível à condição de efeito da ordem do discurso. Não há por que negar esse ponto, assim como não há por que negar sua importância em temáticas, como a adorniana, de interversão da razão em procedimento de dominação da “natureza interna”. Melhor seria mostrar como o pró-prio Foucault é muitas vezes obrigado a retomar um substrato corporal

18 Ibidem, p. 162.

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para além da esfera da ordem do discurso a fim de sustentar procedi-mentos de crítica ao poder 19. Ou seja, melhor seria mostrar que não é fácil livrar-se da “hipótese repressiva”.

Da produção ao consumo

De qualquer forma, não há como esquecer que a contemporanei-dade do diagnóstico social de bloqueio dos processos de modernização devido a uma socialização construída a partir da repressão pulsional superegoica foi paulatinamente revista pela posteridade dos leitores de Freud. Muito já se falou, por exemplo, a respeito das incidências do declínio da imago paterna na reconfiguração dos processos de socializa-ção e sua posterior consequência na formação de ideais sociais repressi-vos. Mas vale a pena insistir aqui em um outro ponto. Se é fato que a incidência social da figura do supereu estaria vinculada (embora não se trate necessariamente de uma relação de causalidade simples) a uma certa “dinâmica libidinal” da sociedade de produção através da entifica-ção da ética do trabalho, então devemos pensar as consequências libidi-nais do esgotamento da sociedade de produção, ao menos tal como ela aparecia no início do século para Freud e Weber. Podemos seguir aqui aqueles que insistem na temática do declínio da sociedade do trabalho e da obsolescência do paradigma da produção20. Ao invés da sociedade da produção, devemos compreender a contemporaneidade e seus traços a partir da temática da sociedade do consumo, no sentido em que proble-mas vinculados ao consumo acabam por direcionar a racionalidade do processos de interação social e de desenvolvimento subjetivo, assim como é o incentivo ao consumo que aparece como problema econômi-co central. Ou seja, podemos nos perguntar se a obsolescência do para-digma da produção não implica na queda do trabalho como processo

19 Judith Butler percebeu claramente essa ambiguidade de Foucault, principalmente em um pequeno texto dedicado ao caso de uma hermafrodita, Herculine Barbin, que é descrita como alguém que vive no “limbo feliz da não identidade” (ver “Foucault, Herculine, and the politics of sexual discontinuity”, em Gender trouble, Nova York, Routledge, 1999).

20 Ver, por exemplo, o clássico Joachim Matthes (org.), Krise der Arbeitsgesellschaft (Frank-furt, Campus, 1983) ou ainda os trabalhos de André Gorz, como Misérias do presente, riqueza do possível (São Paulo, Annablume, 2004).

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fundamental de socialização e de constituição de padrões de racionali-dade social.

Lembremos inicialmente que, em virtude do desenvolvimento tec-nológico exponencial e do aumento da produtividade, cada vez menos sujeitos precisam estar envolvidos diretamente nos processos de produ-ção21. Mesmo na esfera do trabalho, modificações estruturais ocorre-ram. “Desde os anos 1940”, lembra-nos Claus Offe, “é recorrente a hipótese genérica de que, a partir de certo grau de industrialização, a tendência de desenvolvimento da sociedade industrial se alteraria no sentido da expansão do setor terciário, e não mais do industrial.22” Tal crescimento do setor terciário indica, entre outras coisas, que boa parte dos novos empregos está fundamentalmente envolvida em processos de ampliação do consumo, de manuseio da retórica do consumo (vendas, publicidade, marketing, design, administração), de “manipulação de símbolos”23 ou, ainda, de manutenção da produção em sua forma social (saúde, educação, segurança). Se pensarmos principalmente no primei-ro e segundo grupos, veremos que no interior mesmo da esfera de tra-balho os sujeitos se deparam com imperativos conflitantes, pois seu trabalho visa a disponibilização de serviços que não se submetem à re-produção da ética do trabalho.

No entanto, a modificação principal talvez diga respeito à figura que permite ao trabalho aparecer como horizonte ideal de reconheci-mento no interior das formas hegemônicas de vida no capitalismo con-temporâneo, figura esta que não possui mais relações com o espírito do

21 Isso gera, entre outras coisas, uma realidade social da flexibilização do trabalho com o consequente aumento das horas de trabalho em empregos múltiplos e precários. No entanto, essa nova realidade do trabalho produz uma situação extremamente relevante para a nossa hipótese: uma sociedade do trabalho sem ética do trabalho. Ou seja, uma so-ciedade que exige cada vez mais a disponibilização desesperada dos sujeitos para o tra-balho, mas, por outro lado, não procura mais legitimar tais exigências por meio de uma ética do trabalho. O que não impede que os trabalhadores empregados pelas grandes empresas possam ter uma percepção de si como uma elite, “não porque tenham aptidões superiores, mas porque foram selecionados dentre uma massa de indivíduos tão aptos quanto eles de modo a perpetuar a ética do trabalho em um contexto econômico em que o trabalho perde objetivamente sua ‘centralidade’” (André Gorz, Misérias do presen-te, riqueza do possível, cit., p. 57).

22 Claus Offe, Trabalho e sociedade (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1991), p. 12.23 Ver Robert Reich, L’économie mondialisée (Paris, Dunod, 1993).

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capitalismo marcado pela ética protestante do trabalho. Estudos sobre o “novo espírito do capitalismo”24 insistem que os imperativos de flexi-bilização, mobilidade e multiplicidade de atividades ligados ao mundo do trabalho tiveram um impacto decisivo na economia libidinal dos sujeitos, pois permitiram a aproximação do ideal do trabalho com um certo ideal de gozo em operação no mundo do consumo. Maneira de salientar que os dispositivos de controle no mundo do trabalho são agora decalcados das dinâmicas em operação nas práticas de consumo.

Compreenderemos melhor esse ponto se lembrarmos que a mudan-ça de paradigma da sociedade industrial da produção para a sociedade pós-industrial do consumo traz uma série de consequências fundamen-tais, a começar pelo fato de que os modos de alienação necessários para entrarmos no mundo da produção não são totalmente simétricos aos modos de alienação que fazem parte do mundo do consumo. De ma-neira esquemática, podemos afirmar que o mundo capitalista da produ-ção estava vinculado à ética do ascetismo, da acumulação (“o prazer que submete todos os prazeres”) e pela fixidez identitária que se manifesta como vocação para funções específicas e especializadas. O mundo do consumo pede, por sua vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura do gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo. Ele precisa da regulação do gozo no interior de um universo mercantil estruturado. Para sermos mais preci-sos, ele precisa da instauração daquilo que Jacques Lacan chama de um “mercado do gozo”25, gozo disponibilizado através da infinitude plástica da forma-mercadoria.

Essa ética do direito ao gozo se manifesta, preferencialmente, como “liberação” propiciada pela plasticidade da forma-mercadoria. Libera-ção em relação às amarras de identidades fixas, já que a circulação no mundo do consumo absorve a desconstrução da noção de autenticida-de pensada como autoidentidade e exigência de conformação a um ideal. A autoidentidade aparece, tanto no mundo do consumo quanto no mundo do trabalho, como rigidez, assim como a conformação a um

24 Principalmente, Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme (Paris, Gallimard, 1998).

25 Jacques Lacan, Séminaire XVI, sessão de 13/11/1968.

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ideal aparece como desconhecimento da variabilidade infinita dos seres e da diferença. Por isso, trata-se de uma liberação em direção à flexibi-lidade, à leveza do que não tem mais contas a acertar com o peso meta-físico da identidade.

A consciência dessa passagem da ética protestante do trabalho ascético para a ética do direito ao gozo aparece, por exemplo, na crí-tica conservadora de Daniel Bell à dissociação entre os imperativos tecnoeconômicos de produção e os imperativos culturais na moderni-dade ligados ao desenvolvimento do Eu e ao princípio do prazer: “O novo capitalismo (o uso dessa palavra data dos anos 1920) continua exigindo as regras da moral protestante no domínio da produção – ou seja, no domínio do trabalho –, mas estimula ao mesmo tempo o direi-to ao prazer e ao entretenimento”26. Essa contradição de imperativos marca a tensão que encontramos na passagem de uma sociedade da produção para a sociedade do consumo. Tensão que o próprio Bell re-conhece muito bem ao lembrar que “o maior instrumento de destruição da ética protestante foi a invenção do crédito. Antes, para comprar, era necessário primeiro economizar. Mas, com um cartão de crédito, nós podemos satisfazer imediatamente nossos desejos”27.

Dessublimação repressiva e a função social do supereu

O que nos interessa aqui são certas consequências psíquicas dessa passagem da sociedade da produção para a sociedade do consumo. Jac-ques Lacan identificou talvez a maior delas ao insistir que a figura social dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais vincula-da à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos

26 Daniel Bell, The cultural contradiction of the capitalism (Nova York, Basic Books, 1978), p. 85. Ou, como nos lembra Thomas Frank: “Desde a década de 1920, pelo menos, o consumismo vem sendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados à pro-dução. Enfatizou o prazer e a gratificação, em oposição à restrição e à repressão da tradição puritana” (“O marketing da libertação do capital”, Cadernos Le Monde Diplomatique, n. 5, 2003, p. 43). Max Weber já havia percebido essa mudança inexorável na moralidade econômica do capitalismo ao afirmar: “No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a associar-se com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o cará-ter de esporte” (A ética protestante e o espírito do capitalismo, cit., p. 143).

27 Daniel Bell, The cultural contradiction of the capitalism, cit., p. 31.

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fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí ele nos lembrar que o verdadeiro imperativo do supereu na contempora-neidade é “Goze!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação28.

Já há muito não vemos mais a hegemonia de discursos sociais que pregam a repressão. Hoje, o verdadeiro discurso que sustenta os vínculos socioculturais da contemporaneidade é, digamos, mais maternal. Trata- -se, por exemplo, do “cada um tem direito a sua forma de gozo” (ou, ainda, “cada um deve encontrar sua forma de gozo”) que podemos encon-trar na liberação multicultural da multiplicidade das formas possíveis de sexualidade em nossas democracias liberais29. Devemos pensar aqui na tese de que a incitação e a administração do gozo se transformaram na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo, ao invés da repressão própria à sociedade da produção.

De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato para pensar tal situação através do conceito de “dessublimação repressiva”, utiliza-do inicialmente para a compreensão de certas características das socie-dades totalitárias. Sabemos como a noção de dessublimação repressiva aparece no edifício frankfurtiano, entre outras coisas, como possibili-dade de instrumentalização social direta das moções pulsionais sem recalcamento, fruto de uma época na qual o Eu não seria mais capaz de impor-se como instância de mediação entre as exigências pulsionais do isso e o princípio de realidade. Adorno, por exemplo, chega a falar em “expropriação do inconsciente pelo controle social”30, que se impo-ria em razão da fraqueza do Eu. Em paragens distintas, Lacan, ao falar da “assimilação social do indivíduo levada ao extremo”31, não pensava

28 Jacques Lacan, Séminaire XX (Paris, Seuil, 1975), p. 10.29 O adjetivo “maternal” não funciona aqui como simples metáfora. Ele faz alusão à noção

psicanalítica (presente desde os trabalhos de Melanie Klein) a respeito da existência de um supereu materno resultante da introjeção do investimento libidinal da figura materna. Pro-cesso este anterior à consolidação de um supereu através da introjeção da identificação paterna como saldo da saída do complexo de Édipo. Ele responde também pelo problema referente ao princípio de investimento libidinal em vínculos sociais no interior de uma sociedade marcada pelo “declínio da imago paterna”, para falar como Lacan.

30 Theodor Adorno, “Freudian theory and the patterns of fascist propaganda”, em Soziolo-gische Schriften I (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 431.

31 Jacques Lacan, Écrits, cit., p. 146. Ou ainda, quando ele escreve sobre “o desenvolvi-mento que crescerá, neste século, dos meios de agir sobre o psiquismo, um manejo concertado das imagens e paixões do qual já se fez uso com sucesso” (Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 120).

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em outra coisa, à exceção de que, para o psicanalista parisiense, o Eu não é exatamente uma instância de mediação, mas já é desde sempre construção reificada de imagens socialmente ideais. Daí a falta de sen-tido em procurar evitar a expropriação social do inconsciente através de alguma espécie de “fortalecimento” do Eu (de que Adorno tampouco estava à procura).

Mas no interior desse debate, devemos lembrar como Marcuse con-figura corretamente tal expropriação do inconsciente como neutraliza-ção social do conflito entre princípio de prazer e princípio de realidade através de uma satisfação administrada, ou seja, “uma liberalização con-trolada que realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade ofere-ce”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada”32. Ou seja, abre-se a todos esses autores a consciência de uma modificação substancial nos processos de socialização. Eles compreendem a tendên-cia das imagens sociais ideais não estarem mais vinculadas a representa-ções do “autocontrole sereno” da renúncia pulsional como princípio de conduta. Com a “integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento central na lógica de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles que instrumentalizam seus fantasmas e pautam sua conduta pela exigência irredutível de gozo.

Para compreendermos melhor esse aspecto, devemos lembrar que falta à construção frankfurtiana a compreensão de que tal expropriação do inconsciente se dá, na contemporaneidade, através de novas figuras sociais do supereu33. Não se trata de uma correção sem maiores conse-quências. Suas implicações ficam visíveis se seguirmos o problema do supereu na experiência intelectual lacaniana.

32 Herbert Marcuse, Cultura e sociedade II (São Paulo, Paz e Terra, 1996), p. 106.33 O que Slavoj ŽiŽek já havia indicado ao afirmar: “A dessublimação repressiva é apenas

uma maneira, a única maneira possível, no contexto teórico da Teoria crítica da Socie-dade, de dizer que, no totalitarismo, a Lei social começa a funcionar como supereu, assume os traços de um imperativo do supereu” (Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992, p. 31).

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A inversão lacaniana do supereu

A longa elaboração lacaniana a respeito do supereu terminou na definição do “Goze!” como o verdadeiro imperativo superegoico. Vale sempre a pena salientar como essa elaboração é inversa àquilo que nor-malmente encontramos em Freud. Sabemos que em Freud o supereu é resultado de um processo no qual socialização e repressão convergem por causa da exigência cada vez mais inconsistente de renúncia pulsional. Como vemos na reflexão freudiana sobre a neurose obsessiva, é a culpa-bilização do gozo que aparece como resultado da ação do supereu.

Lacan, no entanto, tem clara consciência da modificação dos pro-cessos de socialização na contemporaneidade e de seu impacto na con-figuração da figura do supereu. Em um diagnóstico de época simétrico àquele fornecido por Horkheimer em 1936, ele insiste no “grande nú-mero de efeitos psicológicos derivados do declínio social da imago pa-terna. Declínio condicionado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos extremos do progresso social” como a “concentração econômica e as catástrofes políticas”34. Podemos pensar que Lacan tem em mente, entre outras coisas, o problema horkheimeano do enfraquecimento da auto-ridade paterna devido ao impacto, no interior da família, do desenvol-vimento impessoal da grande corporação burocrática. Impacto que faz com que a figura paterna (o que não quer dizer a função paterna, tal distinção será utilizada a exaustão por Lacan) seja cada vez mais “ausen-te, humilhada, carente ou postiça”35.

No entanto, o declínio da figura ideal paterna não significa em absoluto decréscimo da pressão do supereu e de suas consequências. Lacan trabalhará por trinta anos até chegar à explicação de que o declínio da imago paterna abria espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de Totem e tabu, ou seja, ao pai-senhor do gozo, que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz e obs-cena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura tradicional de um pai que faz convergir imperativos de repressão e de sublimação. Isso fará Lacan afirmar, por exemplo, que a verdadeira versão do pai é

34 Jacques Lacan, Autres écrits, cit., p. 60.35 Ibidem, p. 61.

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uma père-version. A esse respeito, e em outras paragens, Christopher Lasch dirá corretamente que o declínio da figura paterna é um dado fundamental, “não tanto porque ele priva a criança do modelo de papel a representar, mas por permitir que fantasias primitivas com o pai do-minem o desenvolvimento subsequente do superego”36.

A questão de Lacan torna-se, então: o que significa pensar processos de socialização a partir de “tipos ideais” que pautam suas ações pela pro-cura incessante de satisfação imediata? Fundamentalmente, significa dizer que a identificação do sujeito com tais tipos será introjetada através de um supereu não mais vinculado à repressão, mas ao imperativo do gozo. Daí Lacan poder afirmar que “o supereu se origina desse pai original mais do que mítico, desse apelo como tal ao gozo puro, ou seja, apelo também a não castração: Goze!”37. Os processos de socialização tendem assim a não estar mais vinculados ao mecanismo de repressão, mas a mecanismos que cobram um modo muito peculiar de gratificação irrestrita.

No entanto, poderíamos perguntar: qual é o problema com tal su-pereu? A princípio, nada melhor do que uma instância psíquica capaz de impulsionar exigências de gratificação do gozo e que marcaria todos os discursos repressivos com o selo da obsolescência. Ela seria a realização perfeita dessa moralidade libidinal necessária à multiplicidade plástica da sociedade de consumo. No entanto, “tal ordem [Goze!] é impossível de ser satisfeita”38, e devemos nos perguntar de onde vem tal impossibi-lidade estrutural.

Lacan sempre insistiu que a lei do supereu era uma “lei insensata”39, que funciona como um significante desprovido de significado. Tal ca-ráter insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem ne-nhum conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar ou qual é o objeto adequado ao gozo. Diz apenas um “Goze!” sem predicações, um

36 Christopher Lasch, A cultura do narcisismo (São Paulo, Brasilisense, 1986), p. 215. Ou ainda: “À medida que as figuras de autoridade na sociedade moderna perdem sua ‘credi-bilidade’, o supereu individual cada vez mais tem origem nas primitivas fantasias infan-tis sobre seus pais – fantasias carregadas de ódio sádico – e não em ideais do eu interio-rizados, formados pela experiência posterior com modelos amados e respeitados de conduta social” (p. 33).

37 Jacques Lacan, Séminaire XIX, sessão de 16/6/1971.38 Ibidem.39 Idem, Séminaire I (Paris, Seuil, 1975), p. 119.

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puro “não ceda em seu desejo”. O caráter insensato desse puro gozo fica evidente se pensarmos que toda escolha empírica de objeto é inadequa-da a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza de determinações, em sua independência em relação a toda e qualquer fixação privilegiada de objetos. Ele só pode realizar-se no “infinito ruim” do consumo e da destruição incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um excedente de gozo40. Ou seja, estamos diante de um supereu perfei-to para uma sociedade que deve alimentar o fluxo contínuo de equiva-lências em campos sociais cada vez mais alargados.

Nesse sentido, esse supereu lacaniano representa um passo além de ideias como, por exemplo, as que animam a compreensão de Michel Foucault a respeito da mudança nas táticas dos processos disciplinares a partir, sobretudo, dos anos 1960. Mudança retratada em afirmações do tipo: “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investi-mento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle--estimulação: ‘Fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!’”41. Ou seja, apresente sua sexualidade... mas no interior de formas socialmente fornecidas e codificadas pelo mercado. No entanto, o que o conceito lacaniano de supereu nos indica é a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados. Volto a insistir, a lei do su-pereu é vazia, sem determinações privilegiadas. Dessa forma, ela pode nos ajudar a compreender porque, na sociedade contemporânea de con-sumo, “magro, bonito e bronzeado” pode facilmente ser trocado, por exemplo, por “doente, anoréxico e mortífero” sem prejuízos para sua capacidade momentânea de mobilização de desejos.

O próprio uso de “gozo” como conceito privilegiado para a com-preensão da economia libidinal da sociedade de consumo nos diz mui-to. Como foi dito anteriormente, o conceito de gozo permite a Lacan desenvolver explicações de orientação da conduta com base na procura de satisfação pulsional, mas sem, com isso, apelar para os cálculos utilitaristas de maximização do prazer-afastamento do desprazer. Apelo

40 Lacan compreendeu esse caráter “puro” da Lei superegoica ao analisar a função da Lei no interior do universo fantasmático do marquês de Sade. A Lei sadiana, que ordena a todos os sujeitos o “direito de gozo”, funda-se exatamente na rejeição de toda fixação privilegiada de objeto. Esse princípio de equivalência geral entre objetos leva à negação destrutiva de todo objeto.

41 Michel Foucault, Microfísica do poder (Rio de Janeiro, Graal, 1981), p. 147.

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que acabaria por levar a crítica da sociedade de consumo ao campo da denúncia de certo hedonismo como padrão geral de racionalidade. Não é sem interesse neste contexto lembrar que o conceito de gozo, ao menos tal como Lacan inicialmente o utiliza, vem de uma certa teoria social que procura explicar fenômenos como o sacrifício, a fes-ta, o sagrado e práticas de consumo de objetos (como o potlatch) que não se submetem à lógica utilitária dos bens. Fenômenos sociais em que suspensão transgressora da norma e conservação da norma orde-nadora se confundiriam.

Ao ser utilizado para a compreensão das dinâmicas próprias aos processos de socialização e à economia libidinal da sociedade de con-sumo, tudo se passa como se Lacan afirmasse que o modo de satisfação próprio às sociedades de consumo não está vinculado à simples repe-tição normatizada de padrões e estereótipos. Ao contrário, seu modo de satisfação só pode ser compreendido se aceitarmos a existência de um processo no qual posição de padrões e transgressão estão absolu-tamente imbricados.

A sociedade da insatisfação administrada e seus dispositivos disciplinares

Vale a pena insistirmos nesse ponto. Como, em última instância, toda determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um imperativo superegoico que exige o puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mercadorias disponibilize determinações de maneira cada vez mais descartável e rápida, importando-se cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância, isso nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma socie-dade da insatisfação administrada, na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que são postas para serem descartadas), a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais autoirônica e “crítica”42. Ou seja,

42 O que já havia sido claramente compreendido por Guy Debord. Lembremo-nos de sua afirmação: “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espeta-cular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento dessa

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estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem de si) são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de alimentar-se dessa fragilidade. Até porque não se trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado.

O segredo dessa sociedade na qual os vínculos com os objetos são frágeis, mas que é capaz de alimentar-se dessa fragilidade mesma está naquilo que chamamos de “ironização absoluta dos modos de vida”. Pois, em uma sociedade da insatisfação administrada, os sujeitos não são mais chamados a identificar-se com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e cer-ta ética da convicção, fato impossível em uma situação de crise de legi-timidade como a nossa. Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo momento, o sujeito afirma sua distância em relação àquilo que ele está representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações. Pois uma exigência irrestrita de gozo que procura realizar-se através da anulação de toda determinidade “restritiva” encontra sua forma perfeita na ironia absoluta que reenvia todo vínculo com a determinidade ao campo do inefetivo. Assim, essa ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência nada mais é do que posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados própria a essa nova figura social do supereu. Ela ganha relevância em uma situação histórica, como a nossa, na qual a ideologia no capitalismo pode livrar-se de todo e qualquer vínculo privilegiado a conteúdos substantivos, pois:

Da mesma forma que o sujeito irônico pode adotar qualquer discurso ou persona, o capitalismo pode colocar no mercado qualquer discurso ou valor [...]. Ironia representa, ao mesmo tempo, uma tendência e um problema do capitalismo. Ela sempre pôs algum ponto para além de

matéria-prima” (A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 2002, p. 40). Ou seja, nada impede que a frustração com o universo fetichizado da forma-mercadoria e de suas imagens ideais possa transformar-se também em uma mercadoria.

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todo conteúdo ou valor particular. Nesse sentido, ela antecipou a ten-dência do capitalismo em atravessar contextos e produzir um ponto universal a partir do qual todos valores podem ser intercambiados.43

Há muito nossos dispositivos disciplinares não procuram mais pro-duzir subjetividades através da internalização de sistemas unificados de condutas e regras. Até porque nossa época desenvolveu dispositivos dis-ciplinares que são subjetivados “de maneira paródica” por procurar levar sujeitos a constituírem sexualidades e economias libidinais que absor-vem, ao mesmo tempo, o código e sua negação. Nesse sentido, a paródia parece ser a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos discipli-nares da biopolítica contemporânea, o que nos leva a encontrá-la no seio da retórica midiática de consumo. Pois a “administração dos corpos e a gestão calculista da vida” a respeito da qual fala Michel Foucault quando se refere ao poder disciplinar é atualmente possível não por meio do vínculo a mandatos simbólicos coesos, mas apenas através da internalização de tipos ideais e práticas que transgridem suas próprias disposições de conduta, tipos ideais próprios a situações de anomia. Ou seja, essa maneira de funcionamento do setor mais avançado da retórica de consumo é apenas uma forma de gestão disciplinar dos processos de subjetivação em situações sociais de anomia.

A esse respeito, pensemos em algumas mudanças maiores ocorridas na retórica do consumo nas últimas décadas. Em 2006 foi realizada uma pesquisa a respeito das noções de corpo e sexualidade presentes em certas campanhas publicitárias de marcas globais, como Calvin Klein e Versace44. Campanhas de larga influência em outros setores da cultura de consumo, elas apresentavam principalmente, como ideais de identificação, a ambivalência sexual e o desconforto com imagens ideais e saudáveis de corpo. Nesse sentido, elas se alimentavam do desconfor-to com as próprias imagens ideais hegemônicas na retórica de consumo. Por outro lado, tais campanhas pareciam corroborar certa forma cada vez mais global de afirmar a obsolescência de lógicas próprias a uma

43 Claire Colebrook, Irony (Londres, Routledge, 2003), p. 150.44 Ver os resultados da pesquisa, financiada pelo CAEPM, em Vladimir Safatle, “Identida-

des flexíveis como dispositivos disciplinares: algumas hipóteses sobre publicidade e ideologia em sociedades ‘pós-ideológicas’”, Revista Antropolítica, 2007.

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sociedade repressiva, e isso em prol do advento de uma época de flexibi-lização e “construção performativa” de papéis sexuais e disposições corpo-rais. Poderíamos assim esperar que os consumidores de Calvin Klein e Versace tivessem, de uma forma ou outra, esse ideal de conduta. Essa hipótese, no entanto, não se confirmou nas entrevistas qualitativas reali-zadas com consumidores brasileiros e europeus.

Sobre as campanhas da Calvin Klein, com modelos no limiar da anorexia e com corpos desvitalizados, a maioria das afirmações de entrevistados foi surpreendentemente no sentido de não se reconhe-cerem nos padrões de corpo e sexualidade da própria marca. Muitas vezes tais consumidores nem sequer reconheciam tais padrões como tipos ideais. O que nos deixa com a questão de saber o que então sustentava o processo de identificação entre consumidor e padrões de conduta oferecido pelas mercadorias. A chave para o problema con-sistia em uma aparente contradição. Na mesma época em que a Calvin Klein colocava em circulação suas campanhas heroine chic e suas re-presentações de corpo doente, mortificado e sexualmente ambivalen-te (em campanhas, por exemplo, para os perfumes CK One, CK Be e Obsession), ela disponibilizava campanhas (como as criadas para Eternity) com valores exatamente opostos, valores que exaltavam a família moderna e “classicamente definida”, o retorno à natureza, o equilíbrio. E tratava-se de campanhas que alcançavam o mesmo pú-blico por serem veiculadas nas mesmas revistas (Details, Vanity Fair, Vogue, GQ, Rolling Stone etc.).

A resposta para tal contradição paradoxal consiste em insistir que o posicionamento dessas marcas não é um posicionamento de valores “exclusivos”, mas uma espécie de posicionamento “bipolar”. Ou seja, ele é assentado em valores contrários. O que aparentemente seria um erro crasso de posicionamento revela-se uma astúcia. Por um lado, isso permite ao consumidor identificar-se com a marca sem, necessariamen-te, identificar-se com um de seus polos. Mas, principalmente, esse po-sicionamento bipolar pode funcionar porque os próprios consumidores são incitados a não se identificarem mais com situações estáticas.

A publicidade contemporânea e a cultura de massa estão repletas de padrões de condutas construídos através de figuras para as quais convergem disposições aparentemente contrárias. Mulheres ao mesmo tempo lascivas e puras, crianças ao mesmo tempo adultas e infantis,

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marcas tradicionais e modernas. Essa lógica foi bem sintetizada no teaser de uma campanha da própria Calvin Klein: “Be bad, be good, just be”. Ou seja, um modo de ser próprio a uma era de flexibilização de padrões de identificação. Uma época como esta permite marcas que tragam, ao mesmo tempo, a enunciação da transgressão e da norma. Até porque os sujeitos estão presos a essa lógica de simultaneamente aceitar a norma e desejar sua transgressão.

Se este for realmente o caso, então teríamos uma tendência a repen-sar a dinâmica própria à cultura de consumo e seu álibi maior: a indús-tria cultural. Práticas comerciais e dispositivos de incitação ao consumo pressupõem, necessariamente, uma certa teoria a respeito da maneira como sujeitos orientam seus desejos e sustentam processos de identifi-cação. Digamos que, grosso modo, na noção “clássica” de posicionamen-to de marcas, trabalhamos com sujeitos pensados como tipos ideais (para usar um termo weberiano), que parecem procurar, nos produtos, certos valores de significação bem definida (“segurança”, “modernida-de”, “retorno à natureza” etc.). É possível, todavia, que tal maneira de pensar a relação entre consumidor e marca não dê mais conta de certas tendências contemporâneas. Tendências que levam os consumidores a se identificar com o ponto de indistinção entre valores contrários, com-pondo com isso um ideal de personalidade não mais vinculado à coe-rência de condutas submetidas a um padrão de unidade.

O que vem depois do ocaso da culpabilidade?

Tal configuração econômico-cultural talvez nos ajude a compreen-der por que os grandes sintomas da contemporaneidade não são mais o sentimento obsessivo de culpa ou a “conversão” histérica, que pressu-punham, cada um à sua maneira, a crença em desejos recalcados em sua própria enunciação. Desejos que habitariam a Outra cena de um corpo erógeno – que nunca pode tomar diretamente a palavra – e seriam libe-rados através de procedimentos hermenêuticos de interpretação de re-sistências. Se alguns dos sintomas mais correntes na atualidade são a ansiedade e a depressão, eles talvez nos indiquem resultados da pressão desse supereu vinculado ao puro imperativo de gozo. Pois tanto a ansiedade quanto a depressão pressupõem a consciência tácita da incapacidade de sustentar escolhas de objeto. Enquanto a ansiedade é exigência do

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desejo de atravessar de maneira cada vez mais rápida escolhas de objeto, a depressão é exatamente a impossibilidade de vincular-se a uma relação de objeto. Os dois casos podem ser vistos como sintomas diretamente resultantes da introjeção de um supereu que ordena uma injunção de gozo tão forte e incondicional que toda tentativa de realização efetiva será necessariamente um fracasso. No caso da depressão, lembremos a ideia central de Pierre Fédida de que “a depressão é uma doença da forma – o psíquico sendo aquilo que dá forma ao vivente. ‘Sinto-me desfeita em minha aparência humana’, diz uma mulher no momento em que começa a se descrever”45. Lá onde uma escolha de objeto não pode se estruturar, é a própria imagem de si que se desfaz.

No entanto, devemos acrescentar aqui outro sintoma dos processos contemporâneos de socialização. Ao lado da ansiedade e da depressão, devemos pensar principalmente no cinismo como sintoma de “um mun-do sem culpa”46. Pois “cinismo” é o nome correto dessa posição subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza toda e qualquer determinidade (por reco-nhecer seu caráter descartável). Ela nega reflexivamente aquilo ao qual se vincula, criando assim um universo social “carnavalesco” de aparências reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências.

Mas, mais importante do que isso, vemos que o cinismo pode ser compreendido como a posição subjetiva possível para um sujeito que internalizou a Lei sob a figura de um supereu que exige que as condutas sejam pautadas a partir da lógica do gozo puro. Pois essa procura inces-sante de satisfação imediata não pode simplesmente passar por cima dos critérios normativos de racionalização da dimensão prática, que no es-tágio atual de esclarecimento seriam intersubjetivamente partilhados e consensuais. Para tanto, será necessário aprender a gozar através das normas partilhadas, ou seja, respeitando o formalismo das normas com suas expectativas de modernização das condutas sociais. O que fazer, pois, quando, por exemplo, o particularismo do gozo choca-se com as aspirações universalizantes dos critérios normativos? A resposta na era do supereu repressor era clara: abrir mão do gozo através do apelo à

45 Pierre Fédida, Dos benefícios da depressão (São Paulo, Escuta, 2002), p. 12.46 Ver Paulo Eduardo Arantes, “A fratura brasileira do mundo”, em Zero à esquerda (São

Paulo, Conrad, 2004).

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culpabilidade, ou seja, como dizia Max Weber, “tomar banhos frios e trabalhar em sua vocação”. Mas, em um momento histórico no qual o supereu se funda no imperativo de gozo, somos incitados a operar um “modo de ser muito peculiar de suspensão de conflitos”47. Pois basta que as normas possam ser “flexibilizadas” em seus regimes de indexação da efetividade para que o conflito seja suspenso. Em outras palavras, basta que sejam seguidas de maneira cínica, fazendo com que justifiquem o contrário do que pareciam indexar. Dessa forma, o “sofrimento de inde-terminação” normativa capaz de provocar sintomas como a ansiedade e a depressão pode aparecer, no interior do cinismo, como motivo de gozo.

Essa relação cínica com critérios normativos é um fenômeno que merece nossa atenção. Ela tende a tornar-se hegemônica em situações históricas nas quais imperativos de satisfação irrestrita precisam conviver com expectativas normativas que aspiram à validade universal. Ela ten-de a constituir estruturas normativas duais nas quais, como bem de-monstra ŽiŽek, a lei sócio-simbólica é sempre complementada por uma espécie de duplo, uma segunda lei superegoica. A síntese paradoxal en-tre as duas só pode ser feita através do cinismo.

Se voltarmos ao mundo do trabalho ligado ao novo espírito do capitalismo, podemos dizer que os imperativos de maleabilidade e de flexibilização de funções vindos da crítica da especialização e do adven-to hegemônico do trabalho em rede são fundamentais não apenas por permitirem aos sujeitos desenvolverem disposições de conduta em situa-ções de instabilidade normativa, de fluidez entre ordem e desordem e de contínua reengenharia. Situações estas cada vez mais presentes no mundo do trabalho. Eles são importantes também por permitirem a incorporação, no interior da esfera da produção, de uma dinâmica de investimento libidinal marcada pela fragilização de vínculos, pela inde-terminação e pela transgressão de regras.

Tal dinâmica pode, à primeira vista, parecer a implementação de expectativas de autenticidade na relação dos sujeitos ao trabalho. Por isso, em vez de um trabalho ascético que exige a repressão ao prazer sensível e à fixidez identitária presente na ideia de “vocação”, o discurso atual do trabalho procura legitimá-lo como modo de acesso a um gozo onde

47 Ibidem, p. 61.

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flexibilização de vínculos e prazer da indeterminação são características maiores. No entanto, este é, no fundo, um modo de socialização que visa acostumar sujeitos a se submeter a regimes de controle que não fazem mais apelo a identidades fixas, mandatos vocacionais coesos. Regimes de controle mais adaptados ao “novo espírito do capitalismo”48.

Prolegômenos a toda crítica futura da economia libidinal

Aqui, vale a pena colocar uma questão final. Que a economia libi-dinal do capitalismo tende a organizar-se a partir de uma racionalidade cínica, eis uma proposição que não teremos dificuldade de encontrar naquele que primeiro forjou o próprio termo “economia libidinal”, ou seja, Jean-François Lyotard. Basta lembrarmos sua afirmação sobre a impossibilidade do capitalismo de fornecer um sistema de crenças, so-bre sua tendência funcional ao cinismo. Com precisão, Lyotard insiste que o capitalismo tardio havia chegado à situação de ser “uma fuga violenta, uma viagem aleatória de libido, uma errância que se marca no ‘não importa o quê’ do Kapital”49. Maneira de insistir que seu fluxo contínuo de trocas, metamorfoses e equivalência que tudo abarca ten-deria a constituir-se enquanto característica maior de um sistema que “impõe a predominância do ponto de vista da circulação sobre este da produção”50 – sistema que tem em seu próprio interior a força de desar-ticulação de seus limites e de subversão de seus modelos. O único axioma intocável seria o processo de autovalorização do próprio capital. Axio-ma, e não código que determina o sentido dos fluxos que os processos de equivalência produzem. Axioma que permite a disponibilização des-sa pura forma da reconfiguração incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado.

Esse diagnóstico de Lyotard convergia, em larga medida, com a teoria do capitalismo que Deleuze e Guattari forneceram em L’anti-Oedipe. Um dos pilares dessa teoria do capitalismo consitia em subli-

48 Um espírito de flexibilização que seria, em última instância: “uma estilização cínica das qualidades de sobrevivência durante os períodos prolongados de precariedade, ou simples-mente de pré-trabalho” (Paulo Arantes, “A fratura brasileira do mundo”, cit., p. 67).

49 Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels (Paris, Galilée, 1994), p. 19.50 Ibidem, p. 20.

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nhar a maneira como o próprio desenvolvimento da circulação do capital parece continuamente forçar os processos de territorialização e de determinação produzidos por estruturas normatizadoras como o Es-tado e o complexo de Édipo. Até porque “capitalismo e seu corte não se definem simplesmente pelos fluxos descodificados, mas pela descodi-ficação geral de fluxos, a nova desterritorialização maciça, a conjunção de fluxos desterritorializados”51. Deleuze e Guattari pensam aqui no que significa o aparecimento do capital como dinheiro que engendra dinheiro, como valor que se autovaloriza. Com isso, não só um equiva-lente geral é posto, mas instaura-se um processo ilimitado de desterri-torialização de todo objeto em relação a si mesmo (valor de uso). Ne-nhum objeto é idêntico a si mesmo, já que é apenas a ocasião para a passagem do fluxo ilimitado do capital que perverte todos os códigos e identidades, anula todo conteúdo privilegiado a fim de instaurar a re-petição modular da pura forma. No capitalismo, como dirá Giorgio Agamben, todo objeto está separado de si mesmo52. Assim, a desterri-torialização é elevada a princípio de funcionamento do sistema.

Essa realidade econômica instaurada pelos fluxos ilimitados, pela “viagem aleatória da libido”53 produzida pelo capital não tem apenas realidade no campo dos processos de trocas econômicas. Na verdade, ela tende a colonizar todos os processos de relação social e de relação ao desejo. Até porque, não nos esqueçamos, para Deleuze e Guattari, a verdadeira função do socius não consiste em estabelecer sistemas de tro-cas, mas em “codificar o desejo”, estabelecer um modo de ser do desejo que funcionará como princípio de hegemonia social.

Isso implica, entre outras coisas, afirmar que a desterritorialização a qual os objetos estão submetidos no processo de valoração econômica do capital será imposta também aos sujeitos. Suas identidades serão cada vez mais flexibilizadas, cada vez menos dependentes de padrões de conformação de condutas. Partamos, por exemplo, da descoberta da “plasticidade” do corpo e do esvaziamento de suas pretensas disposições naturais ligadas à sexualidade, à identidade de si. Essa plasticidade está organicamente vinculada ao discurso da dissolução do Eu como unidade

51 Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe (Paris, Seuil, 1971), p. 266.52 Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 76.53 Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels, cit., p. 31.

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sintética. Sabemos como o Eu está profundamente vinculado à imagem do corpo próprio, ao ponto de desarticulações na imagem do corpo pró-prio afetarem necessariamente a capacidade de síntese do Eu. Mas, se voltarmos os olhos para a retórica do consumo e da indústria cultural, veremos como elas passaram por mutações profundas que afetaram o regime de disponibilização das imagens ideais de corpo. Ao invés de locus da identidade estável, o corpo fornecido pela indústria cultural e pela retórica do consumo aparece cada vez mais como matéria plástica, como espaço de afirmação da multiplicidade. O que não poderia ser diferente, já que “o capitalismo atual ultrapassa a lógica da totalização normalizadora e adota a lógica do excesso errático”54.

Inicialmente, Deleuze e Guattari procuraram afirmar que o processo de descodificação próprio ao capitalismo é por ele mesmo bloqueado:

Do capitalismo, diremos que ele não tem limite exterior e ao mesmo tempo tem um; ele tem um que é a esquizofrenia, ou seja, a descodifi-cação absoluta de fluxos, mas ele só funciona ao repelir e conjurar esse limite. E também tem limites interiores e não tem; ele tem nas condi-ções específicas de produção e circulação capitalistas, ou seja, no pró-prio capital, mas o capitalismo só funciona ao reproduzir e alargar tais limites para uma escala cada vez mais vasta.55

Ou seja, o capitalismo é o espaço de uma contradição paradoxal (embora Deleuze e Guattari não aceitassem o termo) entre impacto do processo de circulação do capital e mecanismos de controle e disciplina normalmente vinculados ao Estado, à família, às instituições etc.

No entanto, ao fazer sua crítica a L’anti-Oedipe, Lyotard lembra que é da lógica interna do capitalismo a obsolescência de padrões de sociali-zação baseados na regulagem de identidades própria ao complexo de Édi-po, com seus esquemas de constituição de unidades identitárias através da culpabilização de exigências pulsionais polimórficas. Pois a verdade do capitalismo consistiria em ser uma economia libidinal que tende a apro-ximar-se do caráter polimórfico (ou melhor, amórfico) dos processos pul-sionais primários descritos por Freud. Longe de ser uma mera metáfora

54 Slavoj ŽiŽek, Organs without bodies: on Deleuze and consequences (Nova York, Routledge, 2004), p. 184.

55 Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe, cit., p. 297.

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que visa dar conta do caráter de desterritorialização e de flexibilização contínua dos processos de circulação do capital, essa aproximação com a dinâmica pulsional freudiana visava instaurar um horizonte de “reconci-liação” entre estrutura social e aspirações subjetivas patrocinado pelas promessas de gozo do último estágio do capitalismo avançado.

Tais perspectivas trouxeram riscos maiores. Primeiro, elas retiravam toda possibilidade de estabelecer outro princípio para a crítica social, já que a crítica tende a ser apenas a afirmação de que as condições atuais do capitalismo pós-industrial são providas de forte potencial emancipa-dor56. Como quem diz que, de certa forma, todas as condições de libe-ração já estão dadas no capitalismo avançado, sua racionalidade cínica já nos livrou das amarras de um pensamento da representação, bastando apenas uma espécie de afirmação de potencialidades que, no fim das contas, é a própria mola de desenvolvimento socioeconômico do capi-talismo. Isso pode explicar afirmações como:

Nunca houve luta contra a sociedade de consumo, essa noção imbecil. Nós dizemos, ao contrário, que ainda não temos consumo suficiente, o artifício, nós ainda não o temos suficiente. Nunca os interesses passarão para o lado da revolução se as linhas do desejo não alcançarem o ponto em que desejo e máquina se fundem, desejo e artifício, e isso a ponto de ele voltar-se contra os dados ditos naturais da sociedade capitalista.57

Pensemos ainda nesta colocação de Lyotard: “A dissolução das for-mas e dos indivíduos na sociedade dita ‘de consumo’ deve ser afirmada”58. Um pouco como se estivéssemos diante de uma versão pós-moderna da celebração marxista do revolucionário poder de desterritorialização do

56 Basta ser fiel a afirmações como: “O capitalismo tende em direção a um limiar de desco-dificação que desfaz o socius em prol de um corpo sem órgãos e, sobre esse corpo, libera o fluxo do desejo em um fluxo desterritorializado [...]. A descodificação dos fluxos, a dester-ritorialização do socius formam assim a tendência mais essencial do capitalismo. Ele não cessa de apropriar-se de seu limite, que é um limite propriamente esquizofrênico. Ele tende com todas as suas forças a produzir o esquizo como o sujeito dos fluxos descodifica-dos sobre o corpo sem órgãos [...]. O capitalismo, em seu processo de produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele deve impor todo o peso de sua re-pressão, mas ele não cessa de reproduzi-la como limite do processo” (ibidem, p. 42).

57 Félix Guattari, “Entretien sur Mille Plateaux”, em Gilles Deleuze, Pourparlers (Paris, Minuit, 2003), p. 32.

58 Jean-François Lyotard, Des dispositifs pulsionnels, cit., p. 315.

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capitalismo. Assim, tudo se passa como se a crítica da economia política saísse de cena em prol de uma afirmação da economia libidinal do ca-pitalismo avançado.

No entanto, e se desejo e artifício, desejo e máquina se fundirem sem que, com isso, os dados ditos naturais da sociedade capitalista sejam abalados? Não poderíamos dizer que Deleuze e Guattari acreditam nesse potencial revolucionário da afirmação do desejo por serem dependentes de uma ontologização da diferença que pode ter potencial disruptivo em sociedades disciplinares marcadas por uma forma de ideologia liga-da à entificação do princípio de identidade, mas que perdem toda a força quando confrontadas com sociedades cuja reprodução material depende da produção da diferença? Teria mesmo a diferença um forte potencial disruptivo? A afirmação da “polimorfia criativa” do desejo teria realmente a força de quebrar o gelo do capitalismo?

Isso foi compreendido posteriormente pelo próprio Deleuze ao reco-nhecer que a verdadeira dinâmica do capitalismo levava à dissolução de estruturas disciplinares (como o Estado, a família etc.). Por isso, ele deve-rá insistir que passamos de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle: “Os controles são uma modulação, como um molde autode-formante que muda continuamente de um instante a outro, ou como uma peneira cujas malhas mudam de um ponto a outro”59. Ou seja, não mais instituições normativas próprias a uma sociedade disciplinar, mas dispositivos de controle que absorvem, no interior de sua própria dinâ-mica, a multiplicidade, a flexibilização e a diferença.

Tal guinada deixou em aberto uma série de problemas cuja extensão só começamos a medir agora. Pois, se como Adorno dissera: “A identi-dade é a forma originária da ideologia”60, devemos hoje complementar essa frase dizendo que há uma diferença que é a forma desenvolvida da ideologia. A ideologia do capitalismo contemporâneo convive bem com imperativos de desarticulação de unidades, flexibilização de identidades e de internalização da diferença. Uma internalização que pode até mes-mo chegar à anomia enquanto impossibilidade de pensar a relação entre fundamento e determinação a partir da subsunção simples da norma ao caso. A diferença parece ter perdido seu poder disruptivo. Por sua vez,

59 Gilles Deleuze, “Post-scriptum sur les sociétés de contrôle”, em Pourparlers, cit., p. 242.60 Theodor Adorno, Negative Dialektik (Frankfurt, Suhrkamp, 1975), p. 151.

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a estratégia de distinguir entre falsa e verdadeira diferença exige critérios claramente fundamentados de valoração. Pois ela não pode ter apenas um critério negativo (“a verdadeira diferença é aquela que não se deixa pensar no interior das dinâmicas sociais colonizadas pela forma-equiva-lente do capital”), já que um critério simplesmente negativo acaba por reconhecer a essencialidade daquilo que ele nega. De qualquer forma, em nome do que dizemos que uma diferença é falsa? Em nome de uma certa potência renovadora do acontecimento? Em nome de uma certa forma de satisfação vinda da assunção da indeterminação? Todas essas respostas precisam ser mais bem desdobradas.

Terminemos apenas lembrando um aspecto conservador que pare-ce animar essas teorias pós-estruturalistas do capitalismo. Pois elas pa-recem aceitar tacitamente a ideia clássica de que o totalitarismo está necessariamente vinculado à imagens de harmonia social, da unidade e da completude. Claude Lefort, companheiro de rota de Lyotard no grupo Socialismo ou barbárie, insistia, em um ensaio maior de teoria política psicanaliticamente orientada, que todo sistema totalitário fazia apelo à fantasia de um corpo social orgânico61. Corpo harmônico, uni-ficado e egocrata, no qual um órgão é, ao mesmo tempo, o todo e a parte destacada que faz o todo. Dissolver a corporeidade fantasmática do social, afirmar a perda da substância do corpo político seria a condição para a verdadeira invenção democrática. E o que seriam esses fluxos libi-dinais polimórficos e sem telos do Capital a não ser a maneira que encon-trou o pós-estruturalismo de atravessar a fantasia social do corpo uno?

Mas fica aqui uma questão: e se a fantasmagoria do capitalismo não precisasse mais fazer apelo a imagens de completude e unidade? É bem provável que estejamos em uma época na qual somos assombrados por uma outra fantasia ideológica: a fantasia do corpo inconsistente do Ca-pital. Fantasia que nos leva a uma forma ainda mais astuta de totalita-rismo, já que nos cega para o que permanece idêntico no interior dessa disseminação de multiplicidade. Pois a inconsistência pode servir para sustentar uma Ordem que vigora através de sua própria descrença.

61 Claude Lefort, “A imagem do corpo e o totalitarismo”, em A invenção democrática (São Paulo, Brasiliense, 1983).

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Sexo, SImulacro e PolítIcaS da ParódIa

Uma rebelião simbólica em uma cidade simbólica,apenas as torturas eram verdadeiras.

Sartre, Paris sous l’occupation

Sexo e reconciliação

Em 3 de março de 1794, diante das possibilidades abertas pela Revolução Francesa, Saint-Just afirmava na tribuna da Convenção: “A felicidade é uma ideia nova na Europa”. Declaração importante por indicar uma consciência clara da transformação da felicidade em fator central da ação social. Estávamos longe da compreensão da felicidade como simples “cuidado de si” resultante de práticas e experiências que não tomam por referência uma Lei geral reconhecida universalmente. Para Saint-Just, a felicidade era uma ideia nova na Europa porque, pela primeira vez, ela poderia guiar a racionalidade das esferas que compõem o político. Nesse sentido, o primeiro parágrafo da declara-ção que precede a Constituição de 1793 não poderia ser mais claro: “O objetivo da sociedade é a felicidade geral [bonheur commun] e o governo é seu defensor”.

Que a promessa de realização de uma política da felicidade apareça em um momento histórico fundador da modernidade política, isso é algo que não nos surpreende. A escatologia própria a toda política revolucio-nária moderna depende da promessa utópica da efetivação possível de uma realidade jurídica na qual Lei social e satisfação subjetiva, dimensão pública e espaço privado, possam enfim aparecer reconciliados.

É por levar em conta as aspirações do princípio de subjetividade no interior da esfera do político que podemos dizer que estamos dian-te de uma noção de felicidade como fenômeno eminentemente mo-derno. Notemos a tensão interna à felicidade em sua versão moderna. Ela deve englobar, ao mesmo tempo, imperativos de reconhecimento

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da singularidade e imperativos de integração da multiplicidade na unidade do corpo social e de suas representações. Devemos assim falar em tensão interna à felicidade porque ela deve dar conta de dois im-perativos aparentemente antagônicos. Há, na aurora do projeto mo-derno, uma articulação fundamental entre felicidade e universalidade que explica, entre outras coisas, por que todos os grandes projetos de teoria política na modernidade estão de acordo em pelo menos um ponto: a ação política que visa a felicidade subjetiva deve produzir a reconciliação objetiva com o ordenamento jurídico de uma figura ins-titucionalizada do Universal (de preferência, com a realidade jurídica do Estado justo).

Sabemos que uma das estratégias maiores de certa tradição crítica do pensamento do século XX consistiu em insistir que a possibilidade dessa reconciliação dependeu de uma preparação do campo das singula-ridades dos sujeitos – preparação que tocava profundamente aquilo que é da ordem do sexual. O que não deve causar estranhamento, já que o campo do sexual foi paulatinamente sendo compreendido como espaço fundamental de desdobramento dos processos de socialização e reco-nhecimento, no sentido de que processos de constituição de posições subjetivas em relação ao que é da ordem do sexo (movimentos que um dia Lacan chamou de sexuação) são dispositivos centrais para a produção de subjetividades socialmente reconhecidas. Nesse sentido, lembremos a tese foucauldiana, hoje amplamente conhecida: a contrapartida da hipótese da realização objetiva da felicidade no interior da realidade jurídica do Estado justo foi posta às custas de uma metamorfose maior naquilo que diz respeito ao sexo.

Não se trata de dizer que esse ideal de felicidade foi fundado sobre a simples repressão da realidade sexual. Ao contrário, “o que é próprio das sociedades modernas não é ter-se condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim ter-se devotado a falar dele sempre, valorizan-do-o como o segredo”1. Pois se há alguma forma de repressão, ela é exatamente o contrário do ato de silenciar o que é da ordem do sexo. Encontra-se nos processos de normatização do sexo na ordem social através de uma biopolítica assentada na proliferação de discursos médi-cos, jurídicos e morais sobre a conduta sexual.

1 Michel Foucault, Histoire de la sexualité I (Paris, Gallimard, 1976), p. 36.

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De fato, a introdução da satisfação subjetiva como índice da polí-tica não poderia resultar simplesmente na repressão de tudo o que é da ordem do sexual. O verdadeiro trabalho consistiu em definir coordena-das para o advento de um discurso de aspirações universalizantes sobre o sexual e sobre a normatização de seus prazeres. Nesse sentido, o ver-dadeiro imperativo da felicidade moderna não é e nunca foi o ascetismo ou a abstinência, mas o sexo sadio, ou seja, o sexo submetido ao univer-sal da Lei e que normalmente, mas não necessariamente, realiza-se no amor conjugal com seus protocolos de reprodução da espécie. Como se o dizer da verdade do sexo naturalmente conciliasse com alguma forma de universal da Lei.

A esse respeito, relembremos a problematização trazida pela psicaná-lise. Pois se partirmos de Freud, veremos que o problema maior da análi-se freudiana do social toca a questão das expectativas de reconciliação:

Uma boa parte das lutas da humanidade concentra-se em torno de uma tarefa: encontrar uma acomodação [zweckmässigen], isto é, um com-promisso [Ausgleich] feliz entre reivindicações individuais e culturais; e trata-se de um problema de destino [Schicksalsprobleme] da humanidade saber se esse compromisso pode ser alcançado por meio de uma forma-ção determinada da cultura ou se o conflito é irreconciliável.2

A resposta freudiana é conhecida: só há compromisso social através da internalização da repressão externa às moções pulsionais devida ao desenvolvimento de uma consciência moral fundamentalmente vincu-lada à experiência da culpabilidade. A sua maneira, Freud marcaria as-sim um ponto de inflexão das promessas de uma política da felicidade própria à modernidade. Ele não vê como tarefa sua pensar modos pos-síveis de reconciliação no interior da esfera do político. Pós-freudianos como Lacan sabiam disso ao afirmar, a respeito da felicidade, que Freud reconhece “não haver absolutamente nada de preparado, nem no ma-crocosmo, nem no microcosmo”3. Mas quais seriam as consequências políticas desse despreparo, isso se não quisermos entrar na simples de-fesa do particularismo?

2 Sigmund Freud, “Das Unbehagen in der Kultur”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fischer, 1999), v. XIV, p. 455.

3 Jacques Lacan, Séminaire VII (Paris, Seuil, 1986), p. 22.

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Transcendência e superfície

No interior dessa discussão sobre o sexual e a dimensão normativa da Lei social, Deleuze representa, a sua maneira, uma inflexão peculiar. Podemos dizer que, para ele, continua válida a noção do sexual como campo de enunciação da verdade do singular; mas à condição de levar-mos em conta uma modificação maior na lexis que enuncia o sexual em sua verdade. De certa forma, a palavra que revela a verdade sobre o campo do sexual deve estar necessariamente marcada pela paródia e pelo humor. Ela não promete a reconciliação com o universal da Lei, nem a insistência no particularismo do desejo sexual. Ela promete a desarticu-lação do campo do universal através do humor e, com isso, a suspensão do poder organizador da Lei.

De fato, como veremos, essa é uma consequência necessária da compreensão deleuzeana a respeito da centralidade da noção de simu-lacro. O humor próprio ao dizer da verdade do sexo deve instaurar uma espécie de simulacro das aspirações da Lei, maneira de apresentar uma sexualidade que não terá mais necessidade de estruturar-se a partir de mecanismos repressivos. Um modo de sexuação (e, por consequência, de socialização) que tenderia a ser cada vez mais hegemônico. Mas, por outro lado, devemos insistir nas consequências políticas dessa decisão, pois ela tende a fornecer a antecâmara para uma reflexão de larga escala sobre uma certa renovação da ação política.

Veremos isso mais adiante. Por enquanto, devemos expor a maneira com que Deleuze procura enquadrar a relação ao sexual no interior de uma teoria do humor, assim como a maneira como tal teoria do humor fornecerá o regime de imanência em relação à positividade do desejo.

Deleuze parte de uma distinção estrita entre ironia, humor e sarcas-mo que será construída principalmente em dois livros: Logique du sens e Présentation de Sacher-Masoch. Neles, ele afirma que conhecemos prin-cipalmente dois modos de subverter a Lei. Um é a ironia enquanto operação que procura regionalizar a Lei ao insistir na posição de uma Lei ainda mais elevada e incondicional. Ou seja, seguindo a tradição romântica que vê na ironia uma “bufonaria transcendental”, Deleuze compreende a ironia como um modo privilegiado de recurso à trans-cendentalidade da Ideia. Donde se segue a definição: “Sempre chama-mos de ironia o movimento que consiste em ultrapassar a lei em direção

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a um princípio mais alto, e isso a fim de reconhecer na lei apenas um poder segundo”4.

A sua maneira, Deleuze compõe um grande e heteróclito quadro de relações de família que começa na ironia socrático-platônica, com suas estratégias de autentificação da Ideia. Ironia que Deleuze lembra ao dizer: “Platão ria daqueles que se contentavam em fornecer exemplos, de mostrar, de designar, ao invés de apreender as essências: Eu não te pergunto, dizia ele, o que é justo, mas o que é o justo etc.”5. Para De-leuze, algo desse riso que zomba das expectativas de determinações em-píricas de fundamentar o advento do sentido poderá ser ouvido em um autor que nada teria de platônico: Sade. O mesmo Sade cuja ironia consiste em regionalizar as aspirações universalizantes da Lei moral a fim de insistir na imanência de uma Lei mais alta fundada na natureza com suas injunções de gozo:

Partindo da ideia de que a lei não pode ser fundada pelo Bem, mas deve repousar em sua forma, o herói sádico inventa uma nova maneira de ascender da lei para um princípio superior; mas tal princípio é o elemento informal de uma natureza primeira destrutora de leis.6

Ou seja, da ironia socrática à ironia moderna (Sade), passa-se da regionalização da Lei pela substancialidade do Bem supremo para a re-gionalização da Lei por um princípio que é apenas a posição da pura forma, mesmo que essa pura forma ganhe a figura de uma natureza primeira caracterizada pelo impulso de destruição de todo e qualquer conteúdo sensível. Por trás dessas aproximações inusitadas, Deleuze pro-cura insistir nos impasses de uma estratégia de constituição da experiên-cia do sentido a partir de motivos da transcendência. Por outro lado, ele enxerga em Sade a realização mais bem acabada de uma estratégia que insiste na inadequação radical do desejo aos objetos empíricos: o resul-tado só poderá ser o impulso de destruição serial de tudo que se colocar como objeto do desejo para que o vazio da pura forma possa ser posto7.

4 Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch (Paris, Minuit, 1969), p. 75.5 Idem, Logique du sens (Paris, Minuit, 1969), p. 160.6 Idem, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 79.7 Lembremos que Sade partilha da crença iluminista na possibilidade de encontrar uma

conciliação entre as exigências de felicidade individual (ligadas à dimensão da afirmação

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O outro modo de subverter a Lei é o humor. “Nós chamaremos de humor não mais o movimento que ascende da lei para um princípio mais alto, mas aquele que desce da lei em direção às consequências.8” Ou seja, não se trata de regionalizar o ordenamento produzido pela Lei através da posição de um princípio que a transcende, mas de “torcer” a Lei pelo aprofundamento de suas consequências. Seguiremos a Lei ao pé da letra, respeitaremos os critérios normativos que aspiram a funda-mentar a orientação no julgamento, mas faremos de maneira tal que eles justifiquem consequências que pareciam inicialmente contraditó-rias em relação à Lei. O humor é essa capacidade de fazer a Lei justi-ficar disposições performativas que lhe pareceriam contraditórias. Se Deleuze pode afirmar que o humor é a coextensividade entre o senti-do e o não sentido, é porque quer demonstrar que a significação da Lei pode ser consistente com uma pragmática que normalmente lhe seria estranha. Encontramos novamente essa figura da problematização das estratégias de indexação entre a significação da Lei e a designação osten-siva do caso. O que o leva a dizer que o humor é a transformação da questão: “O que significa para algo responder a seu nome?”9 em para-doxo.

Não deixa de ser ilustrativo que esse humor, Deleuze o encontre inicialmente na crítica ao platonismo operada pelos cínicos, pelos estoi-cos e pelos megáricos:

O humor é essa arte de superfície contra a velha ironia, arte de profun-dezas e alturas. Os sofistas e os cínicos já haviam transformado o hu-mor em uma arma filosófica contra a ironia socrática, mas com os estoicos o humor encontra sua dialética, seu princípio dialético e seu lugar natural, seu conceito filosófico puro.10

O que nos interessa aqui é, para além da adequação ou não dessa leitura da história da filosofia que coloca, lado a lado, sofistas e cínicos, a maneira deleuzeana de recuperar o legado cínico no interior de uma

da sexualidade) e o universal da Lei social. Basta termos em mente o sentido do panfle-to: Franceses, só mais um esforço se quiserem ser republicanos.

8 Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 77.9 Idem, Logique du sens, cit., p. 28.10 Ibidem, p. 18.

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teoria do humor. Séculos depois de Diderot, a reflexão filosófica recor-re ao cinismo como paradigma de articulação dos potenciais disruptivos da razão. Mas, agora, algo da capacidade de problematizar a ambigui-dade perversa do cinismo se perdeu.

Deleuze insiste que os cínicos gregos, assim como os estoicos, te-riam trazido um logos animado por paradoxos, valores e significações filosóficas novas. Esse novo logos deveria ser atualmente recuperado para nos libertar da diferença ontológica entre essência e aparência e das dicotomias do pensamento representativo que irão estruturar a expe-riência da modernidade. Daí Deleuze dizer que o humor cínico teria trazido um dizer capaz de pôr:

um puro devir sem medidas, verdadeiro devir-louco que nunca para [...]. O paradoxo desse devir puro é a identidade infinita: identidade entre os dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, do ama-nhecer e do entardecer, do mais e do menos, do muito e do insuficien-te, do ativo e do passivo, da causa e do efeito.11

Ou seja, através de um peculiar retorno à critica ao platonismo e ao culto do paradoxo, Deleuze procura, no cinismo e no estoicismo, a lógica de uma linguagem que desconheça dualidades e possa ser capaz de con-jugar a imanência daquilo que o filósofo francês chama de “Grande Mélange”12, plano de multiplicidades não estruturadas no qual operações de diferenciações e identificações nunca podem estabilizar-se.

Para tanto, Deleuze precisa mostrar como o cinismo indicaria uma crítica à Ideia platônica, mas uma crítica que não seria simples inversão do locus do sentido, da significação da Ideia à designação ostensiva. A crítica cínica deve aparecer como impossibilidade de fundar o sentido, seja através do universal da significação, seja através do particular da designação osten-siva. Pois o humor cínico seria uma operação capaz de desarticular, ao mesmo tempo, a ideia de transcendência (há um sentido que nunca se

11 Ibidem, p. 16.12 A partir desse projeto, Deleuze procura dar importância a colocações sobre Diógenes,

como: “Ele não achava odiento comer carne humana, como fazem povos estrangeiros, dizendo que, em sã razão, tudo é em tudo e em todos os lugares. Há carne no pão e pão nas ervas; tais corpos e tantos outros entram em todos os corpos por condutos escondi-dos” (Diógenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, Paris, Flamma-rion, 1965, v. II, p. 33).

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encarna completamente) e de profundidade (encontro com o real bruto do objeto). Ao invés dos dois, o humor traria a noção de simulacro, ou seja, não exatamente aquilo que se coloca de maneira equivocada como repre-sentação da Ideia, mas aquilo que desarticula tanto a noção de representação (o caso é uma representação da Ideia) quanto de apresentação.

Deleuze insiste na necessidade de reabilitar o simulacro e sua desarti-culação das noções de cópia e de modelo, a fim de fornecer um dispositivo de crítica ao pensamento da representação. O simulacro coloca-se como se fosse o que se modela a partir da Ideia. No entanto, esse “como se” é uma estratégia para mostrar que a Ideia não tem a força de assegurar um campo fundamentado de aplicação. Pois o simulacro é aquilo que se coloca como realização da Ideia, mas tem deliberadamente apenas um “efeito de seme-lhança exterior e improdutivo obtido por astúcia e subversão”13. Daí De-leuze poder afirmar que “a cópia é uma imagem dotada de semelhança”, enquanto “o simulacro é uma imagem sem semelhança”14. Dessa forma, o simulacro desautoriza a partilha entre verdadeiro e falso a partir da aplicação da Ideia e bloqueia a lógica da representação como subsunção da imagem à determinação do objeto. Ele será “a mais alta potência do falso”15, dirá Deleuze, parafraseando Nietzsche. Uma certa realização da Ideia que inver-te suas expectativas performativas.

Jogos de perspectiva

No entanto, devemos insistir aqui em uma precisão histórica. A tentativa deleuzeana de transformar o cinismo grego em primeiro exem-plo do humor de simulacros, movimento libertador das dicotomias entre essência e aparência, exige torções profundas e reveladoras no que poderíamos compreender como sendo a “teoria cínica da linguagem”. Pois tal estratégia demonstra como o que está em jogo é, na verdade, uma operação que procura definir as possibilidades do presente com suas situações específicas, e não uma recuperação de uma experiência filosófica mal compreendida no passado. Tudo se passa como se Deleuze

13 Gilles Deleuze, Logique du sens, cit., p. 298.14 Ibidem, p. 297.15 Ibidem, p. 303.

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projetasse, no cinismo grego, coordenadas e problemáticas que só po-dem orientar uma compreensão contemporânea do cinismo.

Podemos insistir nessa inadequação da leitura de Deleuze porque uma análise do que aparece como teoria cínica da linguagem nos mos-tra que ela se encontra sumarizada na afirmação canônica de Antístenes contra a filosofia platônica: “Eu vejo bem um cavalo, mas não vejo a cavalidade”. Afirmação repetida por Diógenes ao encontro do próprio Platão: “Eu vejo a taça e a mesa, mas não vejo a ideia de taça e a ideia de mesa”16. No entanto, essa negação da realidade substancial do genérico do conceito é resultado da crença cínica na possibilidade de uma indexa-ção direta do ser individual, o único que teria realidade objetiva.

A esse respeito, conhecemos, por exemplo, a afirmação presente na Metafísica, de Aristóteles, a respeito da “ingenuidade” da doutrina de Antístenes, “que acreditava nada poder ser atribuído a um ser a não ser sua noção própria [λογοζ οικειοζ]”17. No caso de Antístenes, tratava-se na verdade de afirmar a impossibilidade da predicação como modo de acesso à essência, já que as atribuições predicativas apenas estabeleceriam analogias entre coisas e nunca determinariam a essência do sujeito propo-sicional. Se lembrarmos da distinção fregeana entre predicação e identi-dade (dois modos de uso do verbo ser), podemos dizer que Antístenes procura restringir o uso do verbo ser apenas à determinação da identida-de (como se o verbo ser no interior de uma proposição fosse necessaria-mente idêntico ao signo “=”). Daí as únicas proposições legítimas serem proposições tautológicas do tipo “homem é homem” e “Cavalo é cavalo”, pois atribuir a um sujeito vários predicados significa atribuir ao uno a multiplicidade, o que seria uma contradição. Cada coisa tem um nome que lhe é próprio. Afirmar, por exemplo, que “o cavalo é um animal” implicaria a afirmação da identidade entre dois termos, e não em uma relação de submissão a um conjunto. Como a animalidade não tem mais realidade empírica do que o particular, a proposição deixa de ter valor cognitivo. É isso que pode explicar, por exemplo, por que Diógenes pôde afirmar que a música, a geometria, a astrologia e outras ciências que não se baseiam no cálculo das empirias seriam inúteis18.

16 Diógenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, cit., p. 26.17 Aristóteles, Métaphysique (Paris, Vrin, 2003), 1024b, p. 32-4.18 Ver Diógenes Laércio, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, cit., p. 34.

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Como bem perceberam certos comentadores, essa teoria da lingua-gem é fundamentalmente naturalista por naturalizar a relação entre palavras e essências:

Defensores da opinião naturalista argumentam que há, ou deve haver, uma conexão entre nomes e coisas de forma que os nomes denominam seus nominatas em virtude de afinidade ou de propriedades partilhadas. Antístenes deve certamente ser colocado no campo dos naturalistas; ele nega a possibilidade de contradição na medida em que apenas uma no-ção, o logos próprio, pode ser estritamente aplicada a cada coisa.19

Mas devemos insistir em um ponto. Como a indexação direta não pode passar pelo universal da linguagem, é o mostrar, ou seja, a designa-ção que recebe a tarefa de pôr na efetividade o que é da ordem do ser, o que Deleuze procura negar a todo custo em sua leitura do cinismo grego. Conhecemos, por exemplo, a história de Antístenes que, a fim de provar a existência do movimento contra Zenão, levanta-se da sala e começa a andar 20. Ou, ainda, sua maneira de responder ao silogismo: “Você não perdeu o que tem/ Você não perdeu chifres/ Logo você tem chifres” – “Eu não os vejo”. Esses exemplos demonstram que toda sig-nificação de determinações essenciais estaria atrelada a modos de desig-nação ostensiva. Dessa forma, a ambiguidade das significações poderia ser corrigida através das designações. Daí Epicuro lembrar que, para Antístenes, o começo da verdadeira educação estaria no aprendizado dos nomes. Isso explica também por que “algumas das práticas linguís-ticas de Diógenes o mostra a inverter nomes que são primariamente des-critivos em nomes que pertencem apenas àqueles que merecem a descrição”21. Ou seja, trata-se de submeter o uso descritivo dos nomes a um uso que vise apenas a determinação da essencialidade. O que significa esvaziar a função cognitiva da linguagem em prol de uma

19 Anthony A. Long, “The socratic tradition: Crates, Diogenes and hellenistic ethics”, em R. Bracht Branham e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics: the cynic movement in Antiquity and its legacy (Berkeley, University of California Press, 1996), p. 36.

20 “Um dos cínicos recebeu uma objeção à existência do movimento; sem nada responder, ele levantou-se e pôs-se a andar, mostrando assim pelos fatos e pela evidência que o movimento pode existir” (Sexto Empírico, Hypotyposes, III, p. 66, citado em Anthony A. Long, “The socratic tradition”, cit.).

21 Anthony A. Long, ibidem, p. 37.

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compreensão da linguagem como espaço de manifestação de julgamen-tos éticos. Talvez o exemplo mais célebre dessa estratégia crítica seja a anedota na qual Diógenes sai à luz do dia, com uma lanterna na mão, gritando: “Procuro um homem”. Ou seja, Diógenes aceita a conotação ordinária das palavras (o que significa um homem), mas insiste que sua denotação deve ser invertida (o que cai sob a extensão do termo “ho-mem”). Tais considerações demonstram que o cinismo grego é muito mais próximo de uma teoria “naturalista” da linguagem do que de algo parecido a uma teoria do simulacro.

Na verdade, tudo indica que é Nietzsche quem guia Deleuze em sua leitura do cinismo grego como momento inicial de advento da potência do simulacro. Pois, com Nietzsche, o cinismo adquire claramente o esta-tuto de um problema ontológico na medida em que aparece como resul-tado direto da dissolução das distinções entre essência e aparência. Isso talvez explique a natureza da filiação nietzscheana ao cinismo. Filiação que fica evidente se nos lembrarmos, por exemplo, desta afirmação em Ecce homo, sobre seus escritos: “Não há no mundo nenhuma espécie de livros mais orgulhosos e ao mesmo tempo tão refinados – eles alcançam aquilo que há de mais elevado a alcançar na terra, o cinismo [Cynismus, e não Kynismus, termo normalmente usado para indicar a escola grega]”22.

De um lado, esse gesto se inscreve no interior dessa tradição que vem das Luzes e que vê, nos filósofos cínicos, o cosmopolitismo, a crí-tica sarcástica da autoridade, a moral livre de preconceitos e a autono-mia do indivíduo. Mas, por outro, no cinismo de Nietzsche, apresenta-se uma relação modificada com o dizer da verdade. Trata-se de uma relação de “estratégia e de tática”, segundo Peter Sloterdijk. É nesse sentido que devemos compreender a afirmação de Heinrich Niehues-Pröbsting: “Nietzsche descobriu o cinismo como uma posição para além do bem e do mal, como um jogo didático do espírito livre”23. Pois, ao menos segundo Nietzsche, a parresia cínica desconheceria fundamento na imanência entre o dizer da verdade e a coisa em sua acessibilidade à experiência empírica para se fundamentar, sobretudo, em um duplo

22 Friedrich Nietzsche, “Por que escrevo livros tão bons”, em Ecce homo (São Paulo, Com-panhia das Letras, 2005), par. 3.

23 Heinrich Niehues-Pröbsting, “The modern reception of cynicism”, em R. Bracht Branham e Marie-Odile Goulet-Cazé (org.), The cynics, cit., p. 359.

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movimento que demonstraria a irrealidade tanto do Universal quanto dos protocolos realistas de descrição de objetos. Restaria, assim, um certo amor pela superfície em seu ponto de mascarada.

Essa relação de estratégia e tática com o dizer da verdade é uma relação humorística, no sentido deleuzeano24. A esse respeito, lembremos principalmente o parágrafo 294 de Além do bem e do mal. Nele, Nietzsche sugere uma hierarquia dos filósofos conforme a qualidade de seu riso, colocando no topo aqueles capazes de uma risada de ouro. Esta indica aqueles que sabem rir “de maneira nova e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias”25 (como as distinções ontológicas entre essência e aparência, Um e múltiplo, conceito e metáfora etc.). Ou seja, o filósofo superior é capaz de adotar uma escrita necessariamente humorística. Pois só tal escrita é capaz de afirmar, sem com isso petrificar as afirma-ções em explicações sobre a positividade do estado do mundo. Só ela coloca o mundo como uma ficção que se afirma como ficção criadora. O riso aparece assim como nova aliança estética com um mundo libe-rado das dicotomias ontológicas de um pensamento da representação e compreendido como jogo de forças em contínua reconfiguração, em con-tínua “flexibilização” que dissolve toda determinidade.

O riso reconcilia o pensamento filosófico com o plano de imanência da vida como jogo de forças, já que ele indica a distância que o enun-ciador toma em relação ao enunciado, mostrando assim que a enuncia-ção não aspira a naturalização alguma. “Tudo que é profundo ama a máscara”26, dirá Nietzsche. Mas é o riso que melhor expressa esse amor pelo jogo de máscaras, único jogo capaz de desvelar a força plástica da

24 De fato, como bem lembra Ernst Behler: “Nietzsche evita o termo ironia, que, para seu gosto, guarda muito romantismo, e prefere a clássica noção de dissimulação, que é traduzida por ‘máscara’” (Irony and the discourse of modernity, Seattle, University of Washington Press, 1991, p. 93). O próprio Nietzsche lembra que “a ironia só é adequa-da como instrumento pedagógico”, mas fora da relação de formação entre mestre e discípulos ela é um: “mau comportamento, um afeto vulgar” (Friedrich Nietzsche, Hu-mano, demasiado humano, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, par. 372). Ou seja, nas mãos de um mestre que, através da ironia, produz a formação em direção ao amor fati, a ironia é adequada. Mas nas mãos de um desencantamento niilista, a ironia nos tornará “iguais a um cão mordaz que aprendeu a rir, mas se esqueceu de morder”.

25 Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (São Paulo, Companhia das Letras, 2004), par. 294.

26 Ibidem, par. 40.

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vida e de afirmar a temporalidade radical de um mundo onde nenhuma configuração deve subsistir de maneira perene.

Lembremos como o cinismo grego pode ter fornecido a Nietzsche a figura desse riso que se afirma como força criadora através da dissolu-ção de toda determinidade. Ao falar do cinismo como forma literária, Nietzsche lembra:

Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido por mistura de todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia [Nietzsche parece falar de si mesmo], e com isso infringe igualmente a severa lei antiga da unidade da forma linguística; caminho este por onde os escritores cínicos foram ainda mais longe, atingindo, na máxima variegação do estilo, na constante variação entre formas métricas e prosaicas, tam-bém a figura literária do “Sócrates furioso” que eles costumavam re-presentar em vida.27

Ou seja, essa escrita que desarticula as distinções literárias é fruto da ironização do gênero trágico colocada em marcha pelos cínicos. No entanto, não estamos apenas diante de uma mera questão estilística, mas de um dizer que vincula a verdade à ironização absoluta das formas e das determinidades.

Se Nietzsche é mais sensível a tais temas advindos do cinismo, aban-donando, assim como Deleuze, o que poderíamos chamar de teoria cínica da linguagem, é porque os dois procuram, no fundo, esquemas que permitam pensar um processo social o qual Nietzsche talvez tenha sido o primeiro a perceber. Podemos chamar esse processo de “ironiza-ção”. Nietzsche chamou-o simplesmente de décadence europeia28. Em seu limite, tal décadence teria produzido essa perda de substancialidade unificadora, essa desintegração do fundamento substancialmente enrai-zado da estrutura social que leva os sujeitos a não encontrarem mais seus

27 Idem, O nascimento da tragédia (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), p. 88.28 Sabemos como o conceito de décadence, em Nietzsche, é um conceito advindo de Paul

Bourget, em Essais de psychologie contemporaine (Paris, Plon, 1919). Nele, Bourget pro-curava explicar processos de desagregação nos quais se tornam independentes e autôno-mas partes subordinadas de um organismo. Esse processo produz uma certa anarquia que se traduz pela perda da unidade funcional na qual “o todo já não é mais o todo”.

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“lugares”, transformando-se em atores que encenam seus próprios pa-péis sem se vincularem realmente a eles e instaurando, com isso, um jogo de máscaras sem original.

Nesse sentido, talvez não haja texto mais ilustrativo do que o afo-rismo 223 de Além do bem e do mal:

Somos a primeira época estudiosa em matéria de “fantasias”, quero dizer morais, artigos de fé, gostos artísticos e religiões, preparada, como ne-nhuma época anterior, para o Carnaval de grande estilo, para a mais espiritual gargalhada e exuberância momesca, para a altura transcenden-tal da suprema folia e derrisão aristofânica do mundo. Talvez descubra-mos precisamente aqui o domínio da nossa invenção, esse domínio em que também nós ainda podemos ser originais, como parodistas da his-tória universal e bufões do Senhor, quem sabe. Talvez, se nada do pre-sente existir no futuro, justamente a nossa risada tenha futuro.29

Essa risada de ouro, que afirma a paródia da história universal e a bufonaria da suprema folia que destrói toda forma fixa, que inverte toda relação entre norma e caso (supremo ato de criminalidade) e que afirma o mundo como um deslizar constante entre máscaras, pode acabar se transformando em modo de privilegiado de relação com uma realidade que perdeu toda a sua substancialidade.

O humor de Sacher-Masoch, segundo Deleuze

Mas voltemos a Deleuze. Assim como Deleuze vê, em Sade, um exemplo privilegiado da transcendentalidade da ironia em ação no campo da organização da sexualidade, ele verá em Sacher-Masoch o exemplo de uma sexuação pensada a partir da teoria do humor. Há um largo movi-mento em Deleuze que consiste em recorrer ao masoquismo e à perversão a fim de tentar transformá-los em exemplos desse humor capaz de instau-rar uma relação de imanência com um plano de simulacros. É através desses exemplos que Deleuze procura mostrar como o dizer da verdade do sexo deve necessariamente obedecer à dinâmica do humor.

Vimos como Deleuze instaurava uma dicotomia entre ironia e hu-mor a fim de dizer que, se a ironia consiste em ultrapassar a Lei “pelo

29 Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, cit., par. 223.

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alto”, o humor visaria torcer a Lei através do aprofundamento de suas consequências. Não colocamos nenhum princípio de significação para além da Lei moral. Mas os efeitos da Lei são invertidos em razão da possibilidade de torções nas designações: “A mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto àquele que normalmente esperávamos (por exem-plo, os golpes de chicote, longe de punir ou prevenir uma ereção, pro-vocam-na, asseguram-na)”30. Isso é Deleuze falando de Sacher-Masoch, esse mesmo Sacher-Masoch em quem Deleuze vê uma insolência por obsequiosidade, uma revolta por submissão. Mas perderemos toda a especificidade da relação do masoquista à Lei se virmos aqui apenas um caso de hipocrisia, ou seja, de ação conforme a Lei que esconde, sob a conformação à universalidade do princípio, interesses particulares de gozo. O verdadeiro desafio do masoquismo consiste em mostrar que a Lei pode sustentar consequências que lhe são normalmente contrárias, sem que isso implique necessariamente contradição performativa.

Por exemplo, seguir a Lei é inicialmente regular sua conduta a partir de um imperativo categórico, universal e incondicional capaz de pôr um princípio de racionalidade na dimensão prática e afastar o determinismo próprio à causalidade natural. Isso nos revela tanto a existência de uma vontade livre e purificada de todo vínculo privilegia-do aos objetos empíricos quanto um horizonte regulador da conduta. Horizonte capaz de fundar um espaço transcendental de reconheci-mento intersubjetivo da autonomia e da dignidade dos sujeitos, espaço no qual eles nunca serão tratados como simples meios ou instrumentos do gozo do outro.

Nesse sentido, uma das inversões maiores do masoquismo consiste em mostrar que uma vontade livre de toda fixação em objetos empíricos pode ser fetichista e que um horizonte de reconhecimento intersubjetivo da autonomia e da dignidade dos sujeitos pode comportar a submissão e a humilhação. É neste ponto que devemos analisar dois procedimentos cen-trais em todo cenário masoquista: o contrato e a fetichização.

De um lado, o contrato é necessariamente reconhecimento do de-sejo entre iguais que se reconhecem mutuamente como sujeitos. Refle-xividade intersubjetiva que Deleuze identificou claramente ao afirmar que, no cenário masoquista:

30 Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 78.

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Nós estamos diante de uma vítima que procura um carrasco e necessi-ta formá-lo, persuadi-lo e fazer uma aliança com ele para a empresa mais estranha [...], é o masoquista que a forma [a dominadora], a traveste e lhe sussurra as palavras duras que ela lhe endereça.31

Essa figura da vítima que forma um carrasco nos lembra que trans-formar-se em puro objeto do gozo do outro por contrato, ser Senhor e escravo por contrato é uma forma absolutamente paródica de reconhecer a autonomia dos sujeitos. Pois a figura do contrato pressupõe previamente o reconhecimento da dignidade dos sujeitos que deixam de lado sua dignidade a fim de sustentar uma encenação limitada no tempo e no espaço. Pode-mos dizer que a realização suprema do ideal de autonomia presente na Lei moral consistiria em poder gozar de maneira paródica do papel da hetero-nomia e da submissão32. O contrato masoquista aparece então como ato supremo de humor. Através desse humor, o cenário de submissão maso-quista aparece como construção de um espaço de simulacros.

Essa questão do contrato masoquista nos leva a um ponto central da estratégia deleuzeana. Lembremos o motivo freudiano da subordina-ção da “autonomia” da Lei moral à experiência de culpabilidade prove-niente da pressão sádica do supereu contra o eu. Para Freud, tudo se passa como se a faticidade da Lei moral fosse indissociável de uma ex-periência de culpabilidade objetiva que apareceria como saldo de pro-cessos de socialização do desejo sexual nas sociedades modernas depen-dentes de mecanismos de repressão.

No entanto, já vimos como é possível atualmente falar em uma obsolescência da culpabilidade enquanto saldo das experiências de socialização e de internalização da Lei moral, isso em prol de certa “flexibilização” da Lei que pode ser compreendida a partir da lógica da paródia. Esse é o contexto adequado para a compreensão da leitura deleuzeana do masoquismo. Pois devemos lembrar que, para Deleuze, o masoquismo não seria simplesmente a encenação da indissolubilidade

31 Ibidem, p. 22.32 Donde se segue, por exemplo, a afirmação de Lacan, que em larga medida concorda

com Deleuze a respeito do problema do masoquismo: “Enquanto [Sacher-Masoch] de-sempenha o papel do servo que corre atrás de sua dama, ele tem todas as dificuldades do mundo para não explodir de rir, ainda que tenha o ar mais triste possível. Ele só retém o riso com muita dificuldade” (Séminaire XIV, sessão de 14/6/1967).

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entre a afirmação do primado da Lei e a experiência de culpabilidade e humilhação do eu. Na verdade, ele seria um surpreendente movimento de anulação da culpabilidade através da “parodização” da Lei. Movimen-to de subversão da Lei com sua experiência subjetiva de culpabilidade, o masoquismo conservaria os motivos da Lei apenas para destruir sua força performativa. Para tanto, Deleuze insiste que, no masoquismo, a culpabilidade vinda da pressão sádica do supereu repressivo seria ence-nada de maneira paródica através da externalização do supereu na figu-ra da dominadora. Nessa chave interpretativa, o que é humilhado no masoquismo pela figura feminina é aquilo que, no sujeito, moldou-se à semelhança da identificação paterna, é aquilo que, no sujeito, asseme-lha-se à imagem desse pai em “crise de investidura”. Ou seja, ao invés da repressão do supereu paterno como resultado da internalização da identificação paterna, teríamos, no masoquismo, a sua destruição. Ao insistir na recorrência do tema “você não é um homem, eu transformo você em um” que sai da boca das dominadoras dos romances de Sacher--Masoch, Deleuze lembra que “ser um homem”, aqui, “não significa em absoluto fazer como o pai, nem ocupar seu lugar. É, ao contrário, supri-mir seu lugar e a semelhança com ele a fim de permitir o nascimento de um homem novo”33.

Mas podemos insistir que esse declínio da figura paterna permite que fantasias primitivas dominem o desenvolvimento subsequente do supereu. Nesse caso, essas fantasias primitivas masoquistas (e aqui po-demos seguir Deleuze) dizem respeito principalmente à mãe fálica e a um certo supereu constituído a partir de figuras femininas. Sua lógica de “paródia” da repressão apenas permite o advento de uma figura pos-sível de um supereu “materno” não mais vinculado a mecanismos re-pressivos, mas ao imperativo do gozo. Dessa forma, através do maso-quismo, Deleuze parece nos fornecer uma lógica da ação organizada a partir de uma certa possibilidade de “interversão paródica” da Lei que aparece como modo de conciliação entre exigências de satisfação irres-trita e reconhecimento da Lei. Tal lógica teria um conteúdo subversivo em situações sociais nas quais a Lei procura legitimação a partir da fundamentação de seus modos de aplicação concreta.

33 Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, cit., p. 86.

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Fetiches, semblantes e simulacros

Há ainda outro ponto fundamental na recompreensão dos modos de sexuação que aparece no bojo da leitura deleuzeana do masoquis-mo. Trata-se da centralidade do fetichismo na organização da econo-mia libidinal do masoquismo. É o próprio Deleuze que insiste nesse ponto ao lembrar como as operações de suspensão, de congelamento e de idealização próprias ao fetichismo são fundamentais para a com-posição do cenário masoquista e, em especial, para a composição da-quela que encarnará a paródia da Lei: a dominadora. Como se o feti-chismo fosse a realização mais bem acabada do que vimos até agora sob o nome de simulacro.

Esse problema do fetichismo é elemento central não apenas em nos-sa discussão sobre modos de sexuação que parecem seguir uma lógica de “racionalização cínica da dimensão prática”. De fato, por um lado, pode-mos afirmar que o fetichismo tende a ser um dos modos hegemônicos de escolha de objeto em uma sociedade na qual os vínculos com os objetos são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de alimentar-se dessa fragilidade. Sociedade que tenderia a disponibilizar, através de seus pro-cessos de socialização, dois modos gerais de vínculos com os objetos: o infinito ruim do consumo e da destruição incessante (com seus desdobra-mentos em ansiedade e depressão) e a fixação fetichista. Veremos, mais à frente, como o fetichismo implica uma noção muito peculiar de “fixação” de objeto por não pressupor nenhum desconhecimento em relação à fra-gilidade da adequação do objeto escolhido ao desejo.

Por outro lado, essa discussão sobre o problema psicanalítico do fetichismo nos permite compreender modelos de alienação que viabili-zam uma crítica do fetichismo social não mais dependente das temáticas da reificação e da falsa consciência. Da mesma forma como o problema psicanalítico do fetichismo visa dar conta de economias libidinais que não se organizam mais a partir de processos de repressão que instauram uma Outra cena, na qual se alojaria a verdade recalcada do desejo, é possível que a compreensão do fetichismo social nos exija um abandono da temática da reificação da essência na dimensão da aparência fantas-mática do processo de determinação de valor; um abandono que per-mite insistir no vínculo entre fetichismo e temáticas sobre modos de autonomização reflexiva da aparência.

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Primeiro, podemos dizer que o fetiche é um exemplo privilegiado de noções como simulacro, porque ele não é aquilo que procura colocar-se como representação adequada do objeto do desejo. Essa inadequação fun-damental entre um desejo que não pode ser compreendido no interior de uma moral naturalista e os objetos empíricos, inadequação radical entre desejo e empiria que a psicanálise de orientação lacaniana chama de cas-tração, é um elemento fundamental na constituição do fetiche. No en-tanto, através do fetiche, é possível produzir um objeto que permite ao sujeito agir como se nada soubesse a respeito da verdade da castração.

Compreender como um objeto tal qual o fetiche é possível signifi-ca compreender o modo de negação que o suporta. Nesse sentido, faz-se necessária uma análise da negação perversa própria àquilo que Freud chama de Verleugnung.

A especificidade dessa forma perversa de negação vem do fato de que, contrariamente aos outros modos de negação presentes na clínica analítica que fundamentam estruturas nosográficas como a neurose (Verneinung) e a psicose (Verwerfung), não há nenhum não saber sobre a castração na Verleugnung. Não se trata aqui de recalcar ou expulsar o saber sobre a castração e o vazio de objeto que ela impõe. Nós estamos diante de um movimento duplo no qual saber e não saber podem coe-xistir conjuntamente. Ao invés do saber marcado pelo esquecimento próprio ao recalcamento, a Verleugnung é uma contradição paradoxal. Dois julgamentos contraditórios estão presentes no eu, mas sem que o resultado de tal contradição seja um nada. Há, na verdade, produção de um objeto a partir de determinações contraditórias. Esse objeto terá a consistência de um simulacro.

Freud estrutura sua teoria do fetichismo a partir da temática da defesa contra a percepção da castração feminina e do reconhecimento da diferença sexual que tal percepção implica. De fato, “percepção” é um termo que sempre colocou problemas no interior dessa teoria do fetichismo, já que, de certa forma, a castração feminina, como ausência do pênis, é um fantasma, e não uma realidade que poderia ser percebi-da. Podemos conservar essa temática da castração apenas se admitirmos o valor simbólico da castração enquanto nome do reconhecimento da inadequação entre o desejo e os objetos empíricos.

Mas sigamos inicialmente o esquema freudiano. Sabemos que, para Freud, não se trata simplesmente de expulsar ou recalcar a castração.

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Notemos que o fetichista tem um saber sobre a castração. Como dirá Freud:

Não é exato dizer que a criança, após sua observação da mulher, tenha salvo sem modificações sua crença [Glauben] no falo da mulher. Ela a conservou, mas igualmente a abandonou; no conflito entre o peso da percepção não desejada e a força do desejo oposto [Gegenwunsches], ela encontrou um compromisso.34

O mesmo objeto pode então negar a experiência da diferença sexual e da castração, funcionando como um substituto do pênis ausente da mulher, e afirmar o que ele nega. Freud é claro a respeito da ideia de que o fetiche seria uma contradição encarnada, já que ele “concilia duas afirmações incompatíveis: a mulher conservou seu pênis e o pai castrou a mulher”35. Toda a complexidade do fetiche vem do fato de ele ser suporte de uma construção fantasmática (a mulher fálica), ao mesmo tempo em que reconhece o real da castração.

Qual é o processo que permite ao fetichista conciliar duas afirma-ções aparentemente tão incompatíveis? Em 1938, Freud falará de um deslocamento de valor (Wertverschiebung) que transfere a significação do pênis (Penisbedeutung) para outra parte do corpo (ou outro objeto: látex, peles etc.)36. Mas devemos notar que tal deslocamento é inscrito como marca suportada pelo objeto. Para compreender a Verleugnung faz-se necessário lembrar que o objeto substituto (Ersatz) é posto como sendo apenas um substituto. Em todo fetiche há a insistência no caráter factício do objeto (que não é estranho à origem portuguesa da palavra: feitiço, factício, fetiche).

Graças a isso, a Verleugnung pode aparecer como uma surpreenden-te negação da negação. O sujeito nega a castração através do deslocamento de valor e da produção de um objeto fetiche, mas, ao mesmo tempo, nega essa negação ao apresentar o fetiche como um simples substituto ou, ainda, se quisermos, como um semblante. Nesse sentido, podemos dizer que o fetichista já faz a crítica do fetichismo, tal como um intelectual aufklärer. Ele já assumiu a “Lei da castração”, sem para isso precisar

34 Sigmund Freud, “Fetichismus”, em Gesammelte Werke, cit., v. XIV, p. 313.35 Ibidem, p. 317.36 Idem, “Die Ichspaltung im Abwhervorgang”, em Gesammelte Werke, cit., v. XVII, p. 61.

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reorientar sua conduta. Como dizia Octave Manonni em um texto célebre sobre a estrutura da crença fetichista, a proposição por excelên-cia de um pensamento fetichista obedece sempre à forma: “eu sei bem, mas mesmo assim...”37. Eu sei bem que a mulher é castrada, mas posso gozar da aparência de sua não castração, tal como em um cenário ma-soquista construído por meio de um contrato de simulações. Proposi-ção que, não por acaso, remete-nos novamente à fórmula do cinismo fornecida por Sloterdjik: “Eles sabem o que fazem, e continuam a fazê--lo”. Assim, se no interior da discussão sobre o fetichismo Manonni percebe que “tudo se passa como se vivêssemos em um meio no qual flutuam crenças que aparentemente ninguém assume”38, é porque o fetichismo nos lembra, mais uma vez, que a crença não é um problema de estados intencionais, mas de estrutura da práxis.

Lembremos ainda que, ao contrário do que poderia inicialmente parecer, essa discussão sobre o fetichismo não está restrita simplesmente a quadros clínicos específicos da perversão, já que (ao menos segundo Lacan) o fetichismo será o modo por excelência de escolha perversa de objeto. Como estudos psicanalíticos recentes insistem, a tentativa de re-pensar a centralidade dos mecanismos de recalcamento em prol de uma teoria baseada na Verleugnung e na clivagem do eu aparece atualmente como saída para a compreensão de quadros mais amplos de constituição da sexualidade 39. Se aceitarmos, com Lacan, que a perversão é funda-mentalmente um modo de relação à Lei da castração, modo de organi-zação de sexualidades não mais dependente de processos repressivos e de recalcamento, então podemos dizer que a perversão, longe de desaparecer

37 Octave Manonni, Clefs pour l’imaginaire ou L’Autre scène (Paris, Seuil, 1969), p. 9-33. Nesse sentido, podemos seguir também as considerações de Migeot sobre o desmentido perverso na figura dos libertinos de Laclos: “Trata-se de um discurso astuto no qual o sujeito nunca adere ao seu dito, já que ele nunca está totalmente lá onde ele fala, já que ele só está pela metade naquilo que diz. Trata-se ainda de um discurso da derrisão, já que nenhuma asserção pode ser assumida sem ser rapidamente combinada com outra, que se torna seu duplo. O discurso transforma-se em um jogo, uma arte ou mesmo um domínio colocado sob o signo da onipotência aspirada pelo perverso” (François Migeot, “(Dé)négation, déni; névrose et perversion dans Les liaisons dangereuses (Laclos)”, Néga-tion, dénégation, Annales Littéraires de l’Université de Besançon, v. 22, 1993, p. 55).

38 Octave Manonni, Clefs pour l’imaginaire ou L’Autre scène, cit., p. 19.39 Nesse sentido, ver principalmente Allan Bass, Difference and disavowal: the trauma of

Eros (Palo Alto, CA, Stanford University Press, 2000).

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do quadro clínico, tende a transformar-se em horizonte hegemônico de identificação e de constituição de tipos ideais em processos de sociali-zação. A lógica perversa de relação à Lei, muito mais do que a prolife-ração de fantasias sexuais que saem do espaço da interioridade culpada para circular livremente no espaço social, é um fato convergente com o modo anômico e desterritorializado de funcionamento do capitalismo contemporâneo. Lacan compreendeu essa hegemonia social da perver-são ao afirmar que socialização através da identificação com a lei pater-na falocêntrica tendia, cada vez mais, a funcionar como identificação com uma père-version 40.

Judith Butler e os limites da política da paródia

Algo desse movimento deleuzeano de torção da Lei presente no ma-soquismo e no fetichismo funciona como base de certas considerações maiores sobre a estrutura da ação política. Podemos recorrer a dois casos: Judith Butler e Giorgio Agamben. Ambos, tal como Deleuze, compreen-dem como tarefa política maior a possibilidade de pensar uma ação hu-mana que se situe fora da relação à norma. No entanto, mais do que exatamente criticá-la em moldes clássicos, eles querem desativar o poten-cial normativo da norma através de certos usos políticos da paródia.

Reconhecida como uma das teóricas mais importantes dos estudos de gênero, Butler tem o interesse de tentar ver as práticas de gênero como espaço privilegiado para a reflexão sobre o político e a revitaliza-ção de suas categorias. Novamente, veremos a aceitação da noção con-temporânea de sexo como lugar de enunciação da verdade e, novamen-te, a lexis que suporta tal enunciação deve passar pela paródia e pela

40 O que só pode nos levar a aceitar sem reservas a afirmação: “A perversão, e não a neurose, é o modo dominante, invisível, de organização do laço social” (Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci, Videologias, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 74). Até porque esse modo perverso de operar a subjetivação da falta mostra que o fetiche opera de maneira idêntica ao conceito lacaniano de falo. Podemos mesmo dizer que ele se co-loca como realização cínica e paródica da exigência de sexuação e de subjetivação do desejo através da identificação simbólica ao falo. Pois se a subjetivação da falta por meio do falo coloca a inadequação de todo objeto empírico ao desejo, então nada impede o sujeito de gozar de um objeto que, de certa maneira, faz deliberadamente semblant de ser adequado, um objeto que é uma máscara. Em suma, nada impede o sujeito de usar o falo como um fetiche.

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afirmação de algo muito próximo ao que Deleuze compreende como simulacro e Lacan, como semblante (embora Butler não esteja disposta a aceitar tais proximidades, em especial a segunda).

Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler se encon-tra na tentativa de fornecer uma teoria antirrepresentativa do sexual. Identidades sexuais não devem ser pensadas como representações supor-tadas pela estrutura binária de sexos. Trata-se, ao contrário, de tentar escapar da própria noção de representação através de uma teoria perfor-mativa do sexual. Teoria que sustenta a possibilidade de realização de atos subjetivos capazes de fragilizar o caráter reificado das normas, pro-duzindo novos modos de gozo que subvertam as interdições postas pelo sistema binário de gêneros.

Tal teoria nasce de uma tomada de posição que procura levar às últi-mas consequências a distinção entre sexo (configuração determinada bio-logicamente) e gênero (construção culturalmente determinada). No seu caso, não se trata de fornecer uma nova versão da distinção clássica entre natureza e cultura, até porque gênero, segundo Butler, “é o aparato dis-cursivo–cultural através do qual ‘natureza sexual’ ou ‘sexo natural’ são produzidos e estabelecidos como ‘pré-discursivos’, como prévios à cultu-ra, uma superfície politicamente neutra na qual a cultura age”41. Essa noção de gênero como antecâmara de produção da “natureza sexual” permite a Butler primeiramente defender o caráter ideológico de uma noção binária de gênero (masculino–feminino), já que “a pressuposição de um sistema binário de gênero depende da crença em uma relação mimética entre gênero e sexo, na qual gênero espelha sexo ou é, por outro lado, restringido por ele”42. Posteriormente, ela insistirá que a tarefa polí-tica central consistiria na crítica das categorias identitárias engendradas e naturalizadas pelo ordenamento jurídico – donde se deduz a função po-lítica de uma teoria performativa do sexual. Ou seja, não mais as estraté-gias de reconciliação com o universal da Lei, mas novamente a realização de aspirações do político como desarticulação da Lei.

O que nos interessa aqui é a anatomia dessa crítica. Pois ela não deve levar à naturalização de outras categorias identitárias, mas à posição de identidades sexuais que sejam a própria encarnação da desestruturação

41 Judith Butler, Gender trouble (Nova York, Routledge, 1999), p. 11.42 Ibidem, p. 10.

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da noção de representação, identidades que seriam a apresentação da desestabilização das identidades. Daí essa crítica das categorias identi-tárias ser performativamente implantada através, por exemplo, de prá-ticas paródicas de gênero, como aquelas levadas a cabo por drag queens e as práticas de cross-dressing. Pois ao operar uma “dupla inversão” que consistiria em embaralhar as distinções essência–aparência para afirmar, ao mesmo tempo, “minha aparência exterior é feminina, mas minha essência interior (o corpo) é masculina” e “minha aparência exterior é masculina (meu corpo), mas minha essência interior é feminina”, as drags fariam uma espécie de “crítica da reificação dos gêneros”. Butler poderá afirmar assim que elas revelariam “esses aspectos da experiência de gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção regulatória da coerência heterossexual”43. Crítica paródica que, por inaugurar um deslocamento perpétuo de identidades, teria a força de sugerir a abertura para processos de ressignificação capazes de se disseminarem na malha social.

Essa crítica articulada através do embaralhamento da diferença on-tológica entre essência e aparência só é possível porque a aparência é elevada aqui à condição de simulacro ou, ainda, de fetiche que desorien-ta a própria noção de identidade e representação fixa por, ao mesmo tempo, adequar-se e não adequar-se à diferença sexual e aos modos de sexuação tais como seriam postos pela Lei. Assim, tudo se passa aqui como se:

ao agir [performing] e ao chamar a atenção para a estrutura do gênero como performance, nós pudéssemos ser liberados de uma política dog-mática ou de uma política que aspira a saber o real de maneira segura. Não podemos escapar do sistema de identidade ou da ilusão de que há um sujeito que fala. Mas podemos agir, repetir ou parodiar todos esses gestos que criam um sujeito.44

De fato, Butler reconhece bem as dificuldades de sua aposta. Ao definir performatividade como uma estrutura de citação e repetição con-tínua de determinações normativas, de um conjunto a priori de práticas,

43 Ibidem, p. 175.44 Claire Colebrook, Irony (Londres, Routledge, 2003), p. 125.

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Butler insiste que a necessidade da repetição indica como o processo de determinação é sempre frágil. Práticas de subversão seriam capazes de expor o estatuto reificado do quadro heterossexual que sustenta práticas de gênero. No entanto, ela é a primeira a reconhecer que:

Não há garantia de que a exposição do caráter naturalizado da heteros-sexualidade nos levará à subversão. A heterossexualidade pode aumen-tar sua hegemonia através da desnaturalização, tal como vemos paró-dias desnaturalizadoras que reidealizam normas heterossexuais sem colocá-las realmente em questão.45

Isso nos deixa com a questão de saber como diferenciar críticas à reificação que tenham força perlocucionária de outras que não tem. Mas talvez Butler não possa nos fornecer um critério claro a esse respeito.

Butler não abandona a crença na força subversiva de uma citação teatral das normas, citação que mimetiza e toma de maneira hiperbóli-ca a convenção discursiva que ela subverte. No entanto, ela desenvolve tal posição de maneira astuta ao afirmar que esse ato seria capaz, na verdade, de alegorizar uma perda própria a todo processo de incorpora-ção da norma e de regulação das paixões, perda esta que produz:

o campo dos objetos heterossexuais ao mesmo tempo que produz um domínio daqueles aos quais seria impossível amar [por não se subme-terem ao processo de constituição de objetos do amor heterossexual]. Assim, a drag alegoriza a melancolia heterossexual, melancolia que in-dica como o gênero masculino é formado a partir da recusa em perder o masculino como possibilidade de amor, como o gênero feminino é formado (assumido) pela fantasia incorporativa através da qual o femi-nino é excluído como possível objeto de amor.46

Dessa forma, as práticas críticas poderiam expor a fraqueza da nor-matividade heterossexual através da alegorização de sua melancolia. Como se uma certa recuperação da ironia melancólica tivesse a força de desarticular matrizes de socialização e modos de indexação entre nor-mas, modos de escolhas de objeto e determinações identitárias.

45 Judith Butler, Bodies that matter (Nova York, Routledge, 1993), p. 231.46 Ibidem, p. 235.

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Giorgio Agamben e a paródia como profanação

Se agora voltarmos nossos olhos para Giorgio Agamben e sua teoria da ação política como “profanação”, encontraremos algumas opções estratégicas relativamente convergentes com o que vimos. Tais estratégias consistem em não tentar mais transgredir ou fornecer novas normas, mas simplesmente mimetizar a norma de maneira tal, agir “normal-mente” de forma tal que ela perca sua capacidade organizadora. Nesse sentido, um pequeno ensaio de Profanações, intitulado “Paródia”, é ex-tremamente significativo.

Agamben lembra que há dois traços canônicos na paródia: a depen-dência em relação a um modelo existente e a conservação de elementos formais de tal modelo em meio a conteúdos ou contextos incongruen-tes. Ou seja, trata-se de um modo de seguir um modelo, assumir uma norma, mas de forma tal que a força ordenadora do modelo e da norma são “desativados” pelo fato de eles serem repetidos de maneira irônica. Ele lembra como o termo paródia era usado inicialmente para designar uma separação entre canto e palavra, entre melos e logos, que produzia situações nas quais se cantava para ten oden, a contracanto ou fora do canto. Maneira de desativar o logos em razão da inadequação do melos que o acompanhava. Daí esta definição da paródia:

separação entre canto e palavra, entre melos e logos. Na música grega, de fato, originalmente a melodia tinha que corresponder ao ritmo da palavra. Quando, na recitação dos poemas homéricos, tal nexo acaba desfeito e os rapsodos começam a introduzir melodias que são perce-bidas como discordantes, diz-se que eles cantam para ten oden, contra o canto (ou ao lado do canto).47

Esse esquema da paródia é o que Agamben procura implementar através de sua noção de profanação. Usando a ideia de que profanar é restituir as coisas (outrora separadas na dimensão do sagrado) ao livre uso dos homens, trata-se de pensar uma ação que instaure esse livre uso através da ironização do que antes estava separado, sacralizado, perdido em sua identidade imediata. Um uso irônico que, ao mimetizar o sacra-lizado, anula o vínculo seguro entre coisas, regras e sentido que toda noção de sagrado visa garantir. Como dirá Agamben:

47 Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 38-9.

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O comportamento libertado dessa forma reproduz e ainda expressa gestualmente as formas da atividade de que se emancipou, esvaziando--as, porém, de seu sentido e da relação imposta com uma finalidade, abrindo-as e dispondo-as para um novo uso.48

Um uso próprio àquilo que Agamben, seguindo as pegadas de Ben-jamin, chama de “meios sem fim”. Uso mais próximo da gratuidade do jogo que da instrumentalidade daquilo que só é por causa de seu vín-culo a uma função. No fundo, com esse conceito de profanação, Agam-ben não parece muito distante de Deleuze com sua noção de humor enquanto repetição mimética que impede a indexação segura entre nor-ma e caso, como o que inverte o uso da norma ao fazê-la adequar-se a casos e contextos nos quais ela, normalmente, não poderia ser aplicada.

Como exemplo privilegiado aqui, o filósofo italiano vai, não por acaso, ao campo do sexual para falar de uma atriz pornô francesa, Chloë des Lysses, uma espécie de Cindy Sherman hardcore, famosa por seus li-vros de porn art, nos quais ela se deixa fotografar nas cenas pornográficas mais tórridas com um rosto de leve enfado que nos remete a uma gramá-tica hiperestilizada de gestos e feições que podemos encontrar em toda top model de revista feminina49. O interesse desse exemplo também está liga-do à discussão, que será desenvolvida no próximo capítulo, sobre os usos de materiais hiperfetichizados na arte contemporânea.

Agamben vê nessa gramática o rosto mesmo da inexpressividade e da indiferença estoica lá onde deveríamos encontrar a representação codificada do gozo. Esta seria uma forma de desativar o dispositivo fascinante da pornografia através de uma ação que mimetiza as formas próprias à linguagem pornográfica, mas de uma maneira tal que certo “distanciamento irônico”, certa autoderrisão é encenada, provocando com isso o estranhamento lá onde esperávamos apenas a repetição fan-tasmática. Ao encenar fantasmas “clássicos” de filmes pornográficos, como a secretária, a executiva, a empregada, a garota mignon currada por um negro, a garota rica e devassa, ela age como se estivesse total-mente presa aos códigos da pornografia barata. Mas, ao fazer com que

48 Ibidem, p. 74.49 Ver principalmente Dahmane e Chloë des Lysses, Porn art (Paris, Alixe, 1996) e Chloë

des Lysses, Sade revu et corrigé pour les filles: traité d’education et punitions, si méritoires (Paris, Scali, 2006).

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seus olhares, suas feições, suas roupas fashion nos remetam a um outro código, o das revistas internacionais de moda, com seu “glamour” femi-nino desafetado, Chloë des Lysses produz uma duplicidade de códigos que nos lembra que ela não está totalmente absorta no que faz. Daí a noção de profanação como agir paródico, agir daqueles que fazem o que, no fundo, procuram destruir. Agir que desativa a potência ordena-dora e identitária do código no momento mesmo em que tal ordenação parece ser aplicada. Contrariamente, por exemplo, aos trabalhos de Jeff Koons e Cicciolina (como Made in Heaven), em que os mesmos códigos da pornografia eram encenados de maneira absolutamente “imanente” e sem distâncias, produzindo assim uma subjetivação que literaliza os sujeitos em uma cena fetichizada, o trabalho de Chloë des Lysses seria a apresentação de uma potência profanadora capaz de desativar o feti-chismo social ao levar o impessoal ao seu extremo autorreflexivo, esse impessoal que ela traz em seu rosto ao fazê-lo portar as marcas da indi-ferença em relação àquilo que o resto de seu corpo faz50.

Que tal estrutura da ação tenha uma força política explosiva, como parece indicar Agamben, eis algo que, infelizmente, não é totalmente seguro. É fato que Agamben compreende esse e outros exemplos a par-tir de um regime de recuperação do impessoal enquanto estratégia de desarticulação de dispositivos de subjetivação e estratégia de crítica a um poder vinculado exatamente à potência de subjetivação. Anterior-mente, em outro artigo de seu livro, ele havia citado um pequeno texto de Foucault a fim de falar sobre um certo modo de encenação da vida que seria capaz de romper a força identitária das imagens de si no ato mesmo em que assume tais imagens. Até porque “a subjetividade se mostra e resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a captu-ram e põem em jogo”51. Mas há alguns problemas que decorrem disso.

Primeiro, poderíamos partir do exemplo fornecido pelo próprio Agamben e compreender as experiências de Chloë des Lysses de uma

50 Talvez seja pensando nela que Agamben escreve: “A pornografia, que mantém intangível o próprio fantasma no mesmo gesto com que se aproxima dele de um jeito incapaz de ser olhado, é a forma escatológica da paródia” (Profanações, cit., p. 45). Ou seja, a lite-ralidade “intangível” da pornografia seria uma espécie de estranha contraprova da im-possibilidade da linguagem de alcançar as coisas e da impossibilidade da coisa de encon-trar seu nome próprio. Impossibilidade que seria a essência mesma da paródia.

51 Giorgio Agamben, Profanações, cit., p. 63.

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maneira distinta. O caráter de estranhamento de suas fotos vem do fato de ela estar absorta em dois códigos que apenas em aparência são con-trários e excludentes. Mas esse estranhamento é a revelação de uma verdade própria aos modos atuais de reprodução social. No fundo, ela acaba por revelar a solidariedade profunda entre dois polos hiperfetichi-zados da economia libidinal contemporânea (a indústria da moda e a indústria da pornografia), que, conjuntamente, funcionam como duas peças de um dispositivo disciplinar fundamental da biopolítica contem-porânea. No desvelamento dessa solidariedade fundada em passagens no oposto, a fascinação fetichista, longe de ser desativada, perpetua-se. Tal perpetuação da fascinação pode ser explicada.

Lembremos como nossa época desenvolveu dispositivos disciplina-res que são subjetivados “de maneira paródica” por procurarem levar sujeitos a constituírem sexualidades e economias libidinais que absorvem, ao mesmo tempo, o código e sua negação, a norma e sua transgressão. Nesse sentido, a paródia, longe de ter uma força profanadora, parece ser, na verdade, a lógica mesma de funcionamento dos dispositivos dis-ciplinares da biopolítica contemporânea.

Com isso em mente, vale a pena notar que as expectativas políticas depositadas por Agamben em práticas profanadoras só podem colocar--se como dotadas de forte potencial renovador por pressuporem uma Lei normativa que talvez não exista mais. Isso vale também, por dife-rentes razões, para Judith Butler e Deleuze. A paródia orienta a crítica ao operar por meio da corrosão da legitimidade do sistema de justifica-ção de crenças da instância hegemônica de poder. Ela pressupõe, assim, uma Lei que precisa garantir a legitimidade de seus enunciados ao es-conder suas contradições e seus interesses. Uma Lei que precisa organi-zar e naturalizar processos de separação entre sagrado e profano, Lei que, por sua vez, teria como correlato a posição de falsas consciências marcadas pelo desconhecimento ideológico. Como se estivéssemos ainda às voltas com figuras da ideologia dependentes das temáticas da reificação, da falsa consciência e da alienação na dimensão da aparência.

No entanto, nada disso é certo atualmente. E bem provável que a contemporaneidade esteja diante de uma situação histórica na qual a própria Lei normativa tende a funcionar de maneira paródica e auto-derrisória. Se esse for realmente o caso, o que dizer então de práticas políticas que procuram tirar sua força subversiva da paródia em contextos

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socioculturais nos quais o poder já ri de suas próprias injunções? Não seria o próprio Agamben quem melhor nos mostrou essa autoderrisão do poder através da compreensão da centralidade da lógica da exceção enquanto suspensão legal da Lei, como se esta já trouxesse em si mesma o embaralhamento de seus modos de aplicação? E não seria seus exem-plos profanadores a melhor exposição da estrutura disciplinar de uma lógica da soberania que ele mesmo nos ensinou a ver? O próprio Agam-ben parece compreender o caráter arriscado de sua aposta ao reconhecer que “todo dispositivo de poder sempre é duplo: por um lado, isso resul-ta de um comportamento individual de subjetivação e, por outro, da sua captura numa esfera separada”52.

No entanto, o que fazer quando os dispositivos de poder parecem mimetizar nossas próprias ações profanadoras? Agamben é o primeiro a reconhecer que, em sua fase terminal, o capitalismo não é outra coisa que um dispositivo gigantesco para capturar comportamentos profana-dores. O que o deixa ao menos com a tarefa de fornecer critérios seguros de distinção entre uma profanação de real conteúdo disruptivo e seu simulacro, essa secularização operada pela lógica contemporânea do capitalismo. Agamben chega a indicar modos de realizar tal tarefa ao defender distinções entre uso profanador e consumo pensado como submissão dos objetos ao gozo advindo do direito de propriedade, objetos submetidos à lógica utilitária do serviço dos bens. Mas não é certo que os exemplos por ele escolhidos desempenhem bem essa fun-ção de partilha. Pois talvez tais exemplos apenas demonstrem como “a anomia mais desenfreada mostra sua paródica conexão com o nomos”, evidenciando “sob a forma de paródia, a anomia interna ao direito, o estado de emergência como pulsão anômica contida no próprio coração do nomos” 53. Da mesma maneira, não seria sintomático que todas as práticas subversivas tematizadas por Deleuze (masoquismo, fetichismo) e por Butler (processos de desorientação da diferença binária de sexos) apareçam atualmente como motivos maiores das representações dispo-nibilizadas pelo universo mercantil do consumo?

Aqui, não se trata apenas de afirmar, na melhor tradição da ideia frankfurtiana de “dessublimação repressiva”, que o discurso do capita-

52 Ibidem, p. 79.53 Idem, Estado de exceção (São Paulo, Boitempo, 2005), p. 110.

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lismo tardio precisa do gozo administrado que impulsiona a plasticidade infinita do universo do consumo, ou seja, da regulação do gozo no in-terior de um universo mercantil estruturado e controlável. Pois deve-mos lembrar que uma reflexão sobre a anatomia das ações políticas deve atualmente dar conta do fato de que o poder não funciona mais por “administração reguladora do gozo”, mas por uma certa “administração da insatisfação” que faz com que a própria ruptura do ordenamento social seja movimento estimulado e interno à sua própria perpetuação. O pior equívoco político é imaginar que nos contrapomos a uma lógica que, simplesmente, talvez não exista mais.

Por fim, talvez a forma com que Deleuze, Butler e Agamben, cada um a sua maneira, apelam para o poder disruptivo do desejo a partir da ressignificação dos fantasmas que o aprisionam impeça o campo políti-co de ter a força de romper exatamente com a estrutura fantasmática que o coloniza. Talvez eles demonstrem que precisamos, não de uma política do desejo, mas de uma política ascética, ou seja, que não passe mais pela politização do sexo e do corpo. Pois em uma situação históri-ca na qual as formas hegemônicas de vida no capitalismo se fundamen-tam em uma economia libidinal capaz de absorver a indeterminação anômica da pulsão, a desarticulação das estruturas identitárias, talvez só reste à política retirar o corpo e o sexo do centro do poder. Não para mais uma vez reprimi-los, mas para liberá-los de dispositivos de controle capazes de absorver até mesmo a diferença. Retirar o corpo e o sexo do centro do poder significa afirmar que o poder nada pode dizer sobre eles, que a política nada pode dizer sobre eles. Uma ausência de palavras que mostra como sexo e o corpo são liberados quando eles são postos em um regime de indiferença em relação à diferença54. Quando essa indiferença for alcançada, a economia libidinal que hoje é a mola da política poderá ser desativada.

54 A respeito de uma política da indiferença em relação à diferença, ver principalmente Alain Badiou, Saint Paul ou la fondation de l’universalisme (Paris, PUF, 1997).

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o eSgotamento da forma crítIca como valor eStétIco

Nada é fornecido por esse método,mas muito é tirado.

Arnold Schoenberg, Style and idea

O carteiro nunca assobiará Schoenberg.Steve Reich, Writings about music

Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há mui-to tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento. Ela está em casa em um mundo em que perspectivas e prospectos vêm ao caso e ainda é possível adotar um ponto de vista. As coisas neste meio tempo caíram de maneira demasiado abrasante no corpo da so-ciedade humana.1

Podemos partir dessa frase de Walter Benjamin a fim de tentar dar conta de certos processos hegemônicos em marcha na constituição da forma estética atualmente. Eles dizem respeito àquilo que críticos de artes visuais, como Hal Foster 2, chamam de “esgotamento da forma crítica como valor estético”. Esgotamento que estaria exposto de manei-ra mais clara nas transformações da relação crítica entre arte e domínios hiperfetichizados da cultura (publicidade, moda, música tonal, quadri-nhos, pornografia etc.) em relações de “cumplicidade desafiadora”, como diria o simulacionista Ashley Bickerton. Relações nas quais a crítica como “distância correta” a respeito da fascinação fetichista parece entrar defi-nitivamente em colapso em prol da elevação da mera repetição de con-teúdos hiperfetichizados a esquema geral da produção artística. Tal colapso tem como resultado maior o advento de certa estetização da razão cínica. Nesse sentido, vale a pena retornarmos à análise do esquema hegemônico de determinação da forma crítica que foi uma das marcas

1 Walter Benjamin, Rua de mão única (São Paulo, Brasiliense, 1995), p. 54.2 Ver Hal Foster, The return of real (Cambridge, MA, MIT Press, 1996).

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maiores do modernismo, a fim de melhor avaliarmos as causas de seus impasses, assim como a natureza das figuras que lhe sucederam.

Forma crítica e desvelamento dos mecanismos estruturais de produção

Conhecemos, por exemplo, um dos impulsos hegemônicos de crí-tica à aparência estética no modernismo. Ele está sintetizado em uma noção de crítica como dispositivo de distanciamento em relação a con-teúdos miméticos. Pois se trata de definir a obra de arte moderna como aquela capaz de se estruturar através da estetização da distância que devemos tomar em relação às organizações, aos processos, às represen-tações e aos valores que aparecem de maneira naturalizada na realidade social. Dessa forma, ela deve impor a autonomia de seus processos cons-trutivos, negando com isso qualquer semelhança fundamental com or-ganizações funcionais vistas como naturais no interior de realidades sociais historicamente determinadas. A crítica a mímesis aparece, assim, como peça maior da definição da racionalidade das obras. Por outro lado, essa negação da afinidade mimética é figura da crítica por insistir que os modos de organização funcional naturalizados são locais em que a ideo-logia se afirma em toda a sua violência – isso se compreendermos a ideologia fundamentalmente enquanto reificação de modos de disposi-ção dos entes. Trata-se, assim, de pensar a racionalidade estética como setor privilegiado da crítica social da ideologia.

Esse tema clássico é o que levou, por exemplo, Clement Green-berg a compreender o impulso crítico da obra de arte moderna a partir da abstração da pura forma que se afirma contra tendências fi-gurativas. Sabemos, por exemplo, o que animava afirmações como: “O fato é que, até agora, o modernismo na arte, se não na literatura, se sustentou ou fracassou por seu ‘formalismo’”3. Por trás dessa noção de “formalismo” estava a crença de que a arte deve saber afirmar o primado da autonomia de seus processos construtivos a despeito de toda e qualquer afinidade mimética que a realidade social oferece como aparência.

3 Clement Greenberg, “A necessidade do formalismo”, em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.), Clement Greenberg e o debate crítico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997), p. 127.

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Tal afirmação do primado da autonomia da forma poderia ganhar a figura de obras capazes de tematizar seus próprios modos de produção, seus próprios processos construtivos. Lembremo-nos novamente de Greenberg, quando este afirma:

O não figurativo ou o “abstrato”, se deve ter validade estética, não pode ser arbitrário e acidental, mas deve derivar da obediência a algu-ma injunção ou princípio de valor. Essa injunção, uma vez que se re-nunciou ao mundo da experiência comum, extrovertida, só pode ser encontrada nos próprios processos ou disciplinas pelos quais a arte e a literatura já haviam imitado a natureza. Esses meios tornam-se, eles próprios, o tema da arte e da literatura.4

Dessa maneira, a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “distância correta”, seus próprios processos construtivos, forma que já traz em si a negação da naturalização de sua aparência como to-talidade funcional. Esta ideia é central: as obras fiéis à forma crítica se-riam capazes de organizar-se a partir de protocolos de desvelamento de seu processo de produção. As obras que se organizam a partir desse impul-so crítico têm, como dizia Hegel, os intestinos fora do corpo.

Notemos, no entanto, que a racionalidade dessa noção de forma de-pende de um conceito de crítica como passagem da aparência para a essên-cia, como movimento de desvelamento. Trata-se de expor, através de uma passagem para a essência, os modos de produção que determinam a confi-guração da aparência. Na verdade, tudo funciona como se a estruturação da forma crítica seguisse os moldes “clássicos” de uma certa crítica marxis-ta do fetichismo e uma arqueologia psicanalítica do sentido latente5.

Sabemos que um dos processos fundamentais presentes no fetichis-mo da mercadoria diz respeito à impossibilidade do sujeito de apreen-der a estrutura social de determinação do valor dos objetos em virtude de um regime de fascinação pela “objetividade fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit) daquilo que aparece – fascinação vinculada à natu-ralização de significações socialmente determinadas. Uma certa crítica

4 Idem, “Vanguarda e kitsch”, em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.), Clement Green-berg e o debate crítico, cit., p. 30.

5 Ver a respeito desta última, por exemplo, Jacques Rancière, L’inconscient esthétique (Pa-ris, Galilée, 2001).

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do fetichismo se organizaria a partir daí através da temática da alienação da consciência no domínio da falsa objetividade da aparência e das rela-ções reificadas. Alienação que indicaria a incapacidade de compreensão da totalidade das relações estruturalmente determinantes do sentido.

Vimos no segundo capítulo como a tomada de consciência resul-tante do trabalho da crítica pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime de relações não reificadas que garantam a transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido. O que vale para a crítica social vale também para a arte. Pois, da mesma maneira, haveria uma totalidade de relações que poderia, de direito, ser revelada em sua estrutura através das obras de arte. As obras apareceriam como locus de manifestação de uma verdade que é clarificação progressiva do material em razão da possibi-lidade de posição integral de processos construtivos. Processos muitas vezes recalcados, marcados pelo véu do esquecimento, mas que pode-riam vir à luz através de mecanismos de interpretação e rememoração inscritos no próprio cerne da obra. Lembremos ainda que o impulso em direção ao que está fora da cena da aparência pode também transfor-mar-se em exposição do que é ob-sceno, do que estaria por baixo da cena enquanto arcaico ou informe. Por mais que isso possa parecer es-tranho, os programas de retorno ao arcaico e de desvelamento estrutural mostram-se unificados em certas estratégias comuns de crítica.

Michael Fried é um caso exemplar de como tal regime de reflexão sobre a forma estética pode funcionar. Para ele, o valor estético na mo-dernidade é fundamentalmente vinculado à possibilidade da obra de servir de palco para a posição do processo de clarificação progressiva dos mecanismos de produção do sentido. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmação de que “o teatro é a negação da arte”6. O teatro aqui não é o teatro brechtiano, que transforma a cena em locus de ma-nifestação de operações de distanciamento capazes de desvelar os modos de produção da aparência. Teatro é, para Fried, o nome de uma ima-nência com a literalidade que impede o sujeito de transcender a coisi-dade (objecthood) em direção a uma Outra cena, na qual os processos construtivos poderiam ser revelados. Daí Fried poder afirmar que “a

6 Michael Fried, “Art and objecthood”, em Gregory Battcock, Minimal art: a critical an-thology (Berkeley, University of California Press, 1968), p. 125.

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pintura modernista chegou a perceber como imperativa a suspensão de sua própria coisidade”7.

Racionalização serial

Não deixa de ser sintomático encontrar, na música, o espaço origi-nário para o desenvolvimento das potencialidades dessa forma crítica hegemônica no modernismo. Colocação menos insuspeita por vir de um crítico das artes visuais, no caso, o próprio Clement Greenberg:

Em razão de sua natureza “absoluta”, da distância que a separa da imitação, de sua absorção quase completa na própria qualidade física de seu meio, bem como em razão de seus recursos de sugestão, a música passou a substituir a poesia como arte-modelo [...]. Nortean-do-se, quer conscientemente, quer inconscientemente, por uma no-ção de pureza derivada do exemplo da música, as artes de vanguarda nos últimos cinquenta anos alcançaram uma pureza e uma delimita-ção radical de seus campos de atividade sem exemplo anterior na história da cultura.8

A afirmação não poderia ser mais clara: a música teria imposto, às outras artes, uma noção de modernidade e de racionalização do material vinculada à autonomização da forma e de suas expectativas construti-vas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer afinidade mimé-tica com processos e elementos extramusicais9.

O que Greenberg tem em mente é um longo e heteróclito movi-mento de constituição da racionalidade da forma musical, movimento fundamental para a definição das expectativas críticas da forma musical, a partir principalmente de Arnold Schoenberg, e que herda motivos próprios ao debate em torno da “música absoluta” no romantismo ale-

7 Ibidem, p. 119.8 Clement Greenberg, “Rumo a um mais novo Locoonte”, em Glória Ferreira e Cecília

Cotrim (org.), Clement Greenberg e o debate crítico, cit., p. 52-3.9 Na verdade, Max Weber foi o primeiro a perceber que a música fornecia o padrão de

racionalização que deveria vigorar no campo das artes. A respeito desse processo de constituição da legalidade própria da esfera musical, ver, por exemplo, Max Weber, Fundamentos racionais e sociológicos da música (São Paulo, Edusp, 1996).

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mão. É a isso que Greenberg alude ao falar da “natureza absoluta” da música em sua “pureza”.

Grosso modo, podemos chamar de “música absoluta” certa noção que via na música instrumental, desligada de textos, de programas, de funções rituais e “pedagógicas” específicas, o veículo privilegiado para a expressão ou pressentimento do “absoluto” em sua sublimidade e o es-tágio de realização natural da racionalidade musical. É a proximidade com tal temática que permitirá a Schopenhauer, cuja filosofia da músi-ca influenciou bastante Schoenberg, afirmar: “Não podemos encontrar na música a cópia, a reprodução da ideia do ser tal como se manifesta no mundo”; ela é “cópia de um modelo que não pode, ele mesmo, ser representado diretamente”, pois “a música, que vai para além das ideias, é completamente independente do mundo fenomenal”10.

Esse impulso de autonomização da forma musical será fundamen-tal para que teóricos posteriores, como Eduard Hanslick, insistam em levar tal processo ao extremo. Ao afirmar que a música nada mais era do que “formas sonoras em movimento”, Hanslick demonstrava plena consciência de estar adentrando em um estágio histórico de racionali-zação do material musical que permitia a consolidação da esfera musical em sua legalidade própria. Legalidade própria que o leva a afirmar:

Se se perguntar o que se há de expressar com esse material sonoro, a resposta reza assim: ideias musicais. Mas uma ideia musical trazida in-teiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de sentimento e pensamentos.11

O impulso de Schoenberg na constituição de uma forma crítica per-de muito de seu solo natural se não tivermos tais balizas em vista12. Quan-do Schoenberg afirma: “Faz-se música a partir de conceitos”, a fim de

10 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação (São Paulo, Unesp, 2005), par. 59.

11 Eduard Hanslick, Do belo musical (Lisboa, Dom Quixote, 1986), p. 42.12 Não é por outra razão que Dahlhaus nos lembra: “Os trabalhos pelos quais Schoenberg

se aproxima e finalmente atravessa a fronteira da tonalidade pertencem a gêneros como a sinfonia, o quarteto de cordas e as peças líricas de piano, ou seja, gêneros típicos da música absoluta” (Carl Dahlhaus, Schoenberg and the new music, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, p. 99).

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lembrar que o objetivo maior da forma é a inteligibilidade de “ideias musicais” compostas pela unidade funcional e expressiva de ritmo, melo-dia e harmonia, sabemos claramente que é Hanslick e sua noção de auto-nomia da forma que serve aqui de guia13. Essa exigência de visibilidade da ideia ordenadora das disposições formais do material leva Schoenberg a pensar a verdade na música como uma questão de possibilidade de posição dos procedimentos de construção responsáveis pela determinação de relações racionais entre elementos musicais. Há, assim, uma exigência fundamental de transparência das obras. Visibilidade que leva o com-positor à procura da “clarificação progressiva do material natural da música”14, através, por exemplo, de um conhecido combate contra tudo que é ornamento. Combate este que é figura da recusa a estabelecer dis-tinções hierárquicas entre notas ornamentais “não harmônicas” e notas essenciais, já que a forma musical só deve dar lugar àquilo que contribui para a visibilidade integral da ideia musical. A esse respeito, muito já se disse sobre o sentido das similitudes estratégicas entre as “construções racionais” de Schoenberg e de arquitetos como Adolf Loos.

Mas essa noção schoenberguiana de ideia musical se torna incompre-ensível se partirmos de uma perspectiva meramente “formalista”, no sen-tido mais restritivo do termo. Essa é uma questão importante, já que o projeto musical de Schoenberg nos lembra que “formalismo” não é a marca de alguma forma de abandono de expectativas expressivas. Tal como já em Hanslick, a ideia musical é o que permite a realização cons-trutiva de exigências expressivas, ou seja, ela é o que deve unificar constru-ção racional e expressão subjetiva. É a fidelidade a exigências expressivas que leva Schoenberg a afirmar, de maneira surpreendente, que “a arte é, em seu estágio mais elementar, uma simples imitação da natureza. Mas logo se torna imitação em um sentido mais amplo do conceito, isto é, não mera imitação da natureza exterior, mas também da interior”15.

O recurso ao vocabulário da imitação poderia parecer nos recolocar nas vias de uma racionalidade mimética como protocolo de constituição

13 Ver, por exemplo, Arnold Schoenberg, Style and Idea (Berkeley, University of California Press, 1984), p. 121.

14 Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, em Gesammelte Schriften XII (Digitale Bibliothek Band, 1999), p. 69.

15 Arnold Schoenberg, Tratado de harmonia (São Paulo, Unesp, 2000), p. 55.

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da aparência estética. No entanto, ao contrário, a expressão dessa “natu-reza interior” só poderá ser posta através da crítica à aparência funcional das obras. A natureza dessa crítica à aparência como motor da racio-nalidade de obras que aspiram à modernidade foi claramente identifi-cada por Adorno ao afirmar que “nele [em Schoenberg] o momento realmente revolucionário é a mudança de função da expressão musical”16. Essa frase é mais decisiva do que parece, já que normalmente aceitamos que o aspecto realmente novo da experiência musical de Schoenberg estaria presente em sua maneira de criar totalidades funcionais sem re-correr ao sistema tonal.

A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper com o fato de que “desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como verdadeira musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada, mediada, ou seja, como aparência de paixões”17. Segundo essa leitura, a expressão esteve paulatinamente subordinada a uma gramática das pai-xões e dos afetos, gramática que faria com que a particularidade dos mo-mentos expressivos fosse sempre fetichizada e submetida à generalidade conciliadora, que constitui o primeiro princípio da aparência estética. O esgotamento do sistema tonal é também esgotamento de uma gramática de expressões que se naturaliza no uso reiterado de cadências e elementos que desempenham sempre a função de um “sistema de representações”. A “emancipação da dissonância” em relação ao esquema antecipação–reso-lução, emancipação a respeito da qual fala constantemente Schoenberg, não seria outra coisa que a possibilidade de construir ideias musicais ca-pazes de desvelar uma expressão recalcada pela gramática do sistema to-nal. Recalque produzido por uma aparência que submete a expressão singular aos ditames de uma linguagem sedimentada.

Nesse sentido, não deixa de ser ilustrativo que Schoenberg se inte-resse por Freud e por sua noção de interpretação das formações do in-consciente como revelação do que se aloja em uma Outra cena18. Ao

16 Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit., p. 44.17 Idem.18 Lembremos, nesse sentido, o que Schoenberg diz a respeito de Erwartung : “É impossível

ao homem sentir apenas uma coisa por vez. Sentimos milhares de coisas ao mesmo tempo. E essas milhares de coisas não se adicionam, da mesma maneira como uma maçã e uma pera não se adicionam. Elas divergem. É essa multiplicidade de cores, de formas, esse alogicismo próprio a nossas sensações, alogicismo inerente às associações de ideias, a

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interpretar obras estéticas, Freud parte do princípio de que a verdade da obra não coincide com sua letra, já que a aparência estética oblitera uma dinâmica pulsional que só pode aparecer a partir de operações arqueoló-gicas de procura do sentido. “Eu percebi constantemente”, dirá Freud, “que o conteúdo [Inhalt] de uma obra de arte me apreende mais que suas qualidades formais e técnicas.19” Esse comentário inocente é, na verdade, a exposição de todo um programa estético. Trata-se de revelar o pensa-mento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo Freud, é a “intenção do artista” [Absicht des Künstlers], ou seja, seus desejos inconscientes e suas moções pulsionais) através do ato de “descobrir [herausfinden] o sentido e o conteúdo do que é representado [Dargestellten] na obra de arte”20. Dessa maneira, o entrelaçamento entre estética e pulsional serve para Freud desdobrar um horizonte de visibilidade integral das obras. Por outro lado, com sua teoria das pulsões, Freud permitiu a reconfigura-ção de uma categoria estética fundamental como a expressão.

Para Schoenberg, tal exigência de visibilidade afirma-se como res-gate do que não se apresenta através da linguagem reificada de um tonalismo que aparece como bloqueio às aspirações da “pressão pela verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”21. Tal aspiração à plena visibilidade chega a fazer com que Schoenberg afirme, a respeito de Pierrot lunaire: “A expressão sonora dos movi-mentos dos sentidos e da alma são de uma imediatez quase animal. Como se tudo fosse diretamente transposto [Fast als ob alles direkt übertragen wäre]”22.

Procurar uma forma capaz de ser a transposição direta da ideia musical na dimensão do que aparece, ideia que procura realizar exigên-cias expressivas que não se reconhecem na gramática dos sentimentos reificada pelo tonalismo, é o que leva Schoenberg ao dodecafonismo. Aqui, vemos como ele realiza, enfim, um impulso partilhado pelo mo-

não importa qual reação dos sentidos e dos nervos que quero em minha música” (Ar-nold Schoenberg, Carta a Ferrucio Busoni, agosto de 1909).

19 Sigmund Freud, “Der Moses des Michelangelo”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fis-cher, 1999), v. X, p. 172.

20 Ibidem, p. 173.21 Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit., p. 137.22 Arnold Schoenberg, Berliner Tagebuch (Frankfurt, Propyläen, 1984), p. 34.

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dernismo de “crítica da reificação e do fetichismo através da reconstru-ção de um pensamento estrutural”.

Adorno sempre insistiu no fato do uso schoenberguiano da série procurar convergir a tentativa de conservar exigências de expressão do que não se reconhece na imagem naturalizada do mundo e um princí-pio construtivo e transparente de relação. A esse respeito, Schoenberg não cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho: “Ainda posso asse-gurar coerência e unidade, mesmo que existam vários elementos constru-tivos da forma importantes, assim como auxílios à compreensibilidade, que não uso”23. Orgulho de quem podia, ao mesmo tempo, oferecer um protocolo de crítica à aparência reificada e assegurar um princípio au-tônomo de racionalização e legibilidade das obras.

De fato, ao racionalizar todas as incidências do material musical através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja automaticamente reportado a esse padrão transcendental de justificação que é a série, a música poderia liberar-se da aparência costurada pela naturalização do sistema tonal. Ao mesmo tempo, graças à onipresença da série, seu tema é seu próprio processo de construção. Ela é o que realiza exigências de “obediência a alguma injunção ou princípio de valor”24 a respeito das quais falava Greenberg. Dessa forma, Schoenberg mostrava como a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “distância correta”, seu próprio processo de construção (a série), forma que já traz em si a negação da naturalização de sua aparência como totalidade fun-cional. Lembremos, por exemplo, este momento em que afirma: “Mi-nha música não parte da visão de um todo, mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e esquema preconcebido, mas sem uma verdadeira ideia visualizada do todo”25. Trata-se de insistir que sua música não naturaliza totalidades funcionais (como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu processo de construção através da posi-ção do plano e do esquema. Tal afirmação é feita na expectativa de levar o sujeito à necessidade de ouvir a estrutura e o plano construtivo. Esse é o sentido fundamental da “audição estrutural” exigida por Schoenberg.

23 Arnold Schoenberg, Style and Idea, cit., p. 107.24 Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (org.),

Clement Greenberg e o debate crítico, cit.25 Ibidem, p. 107.

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Pois, para o Schoenberg do período dodecafônico, a verdade era uma questão de construção formal coerente, e não de adequação a regras natu-ralizadas de disposição do sonoro. Nesse sentido, podemos seguir a afir-mação feliz de Antonia Soulez: “Segundo Schoenberg, que toma do lógico esse ideal sintático do verdadeiro, a música pensa na mesma me-dida em que, por e através dela, articulam-se leis do verdadeiro segundo uma certa gramática”26.

A racionalização e seu extremo

Sabemos como algo dessa noção de forma crítica capaz de desvelar a aparência estética servirá de guia para boa parte da vanguarda musical da última metade do século XX. É pensando no advento de tal forma que Pierre Boulez, por exemplo, falará de uma “necessidade incontor-nável da linguagem musical”, que deve obedecer a “leis absolutas da história”. Boulez quer, com isso, levar ao extremo a “desnaturalização” da racionalidade musical do tonalismo. “A era de Rameau e seus prin-cípios naturais está definitivamente abolida”, diz Boulez, a fim de insis-tir que nenhum resquício da linguagem musical deve ficar imune a uma crítica da reificação. “Àqueles que irão me objetar que, partindo do fe-nômeno concreto, obedecem à natureza, às leis da natureza, eu respon-derei, sempre segundo Rougier: ‘damos o nome de leis da natureza a fórmulas que simbolizam a rotina da experiência’.27”

Tal crítica à reificação da linguagem musical não irá poupar nem sequer Schoenberg. Ao contrário, o dodecafonismo de Schoenberg aparece para Boulez como um fracasso histórico, como um “roman-tismo-classicismo deformado”. Para Boulez, se a música serial de Schoenberg estava destinada ao fracasso, era porque “a exploração do domínio serial foi feito de maneira unilateral; falta o plano rítmico, e mesmo o plano sonoro propriamente dito, as intensidades e os ata-ques”. Ou seja, “a série intervém, em Schoenberg, como um mínimo denominador comum para assegurar a unidade semântica da obra;

26 Antonia Soulez, “Schönberg: penseur de la forme”, em Makis Solomos, Antonia Soulez e Horacio Vaggione, Formel/informel (Paris, L’Harmattan, 2003), p. 120.

27 Pierre Boulez, Penser la musique aujourd’hui (Paris, Gallimard, 1975), p. 31.

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mas os elementos da linguagem assim obtidos são organizados por uma retórica preexistente”28.

O que Boulez afirma é: o dodecafonismo não realizou seu próprio programa crítico de nos liberar de toda aderência natural aos materiais através da posição de um conteúdo de verdade construtivo. Isso, só um serialismo integral, procedimento que submeta todos os parâmetros sonoros (intensidade, duração, altura e timbre) a um pensamento serial, poderá realizar. Assim, Boulez afirmará: “As funções harmônicas, por exemplo, não saberiam colocar-se agora como funções permanentes; os fenômenos de tensão-distensão não se colocam em absoluto nos mes-mos termos que outrora e, sobretudo, não mais de maneira fixa e pe-remp tória”29. O que está em jogo, pois, é o aprofundamento de um mesmo programa de constituição da forma crítica através da autonomi-zação absoluta de seus processos construtivos.

Boulez leva assim o ideal construtivo do pensamento serial dodeca-fônico ao extremo. Esse ideal enquanto verdade da forma musical não teme seguir uma tendência várias vezes presente no modernismo: a re-construção da racionalidade da forma musical a partir de parâmetros fornecidos pela racionalização científica. “Quando se estuda o pensa-mento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época sobre as estrutu-ras (do pensamento lógico, das matemáticas, da teoria física...), perce-be-se, claramente, o imenso caminho que os músicos ainda devem percorrer antes de chegar à coesão de uma síntese geral.30” A afirmação não podia ser mais clara: o ideal da razão musical deve ser procurado no pensamento estrutural que anima as matemáticas e a ciência. Fato que não escapou a Adorno:

Podemos dizer que os serialistas não inventaram arbitrariamente a ma-tematização da música, mas confirmaram um desenvolvimento que Max Weber, em sua sociologia da música, identificou como a tendência dominante da mais recente história musical – a progressiva racionaliza-ção da música. Ela alcança sua realização na construção integral.31

28 Idem, Apontamentos de aprendiz (São Paulo, Perspectiva, 1983), p. 244.29 Idem, Penser la musique aujourd’hui, cit., p. 25.30 Ibidem, p. 28.31 Theodor Adorno, Swierigkeiten, em Gesammelte Schriften XVII (Digitale Bibliothek,

1999), p. 269.

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Mas sigamos ainda o jovem Boulez. O termo “estrutura” não é aqui aleatório. De fato, há certo estruturalismo musical em Boulez que é claramente assumido pelo próprio. O material musical vale integral-mente em razão das relações que ele estabelece. Boulez, citando Rougier, define seu programa:

“O método axiomático permite construir teorias puramente formais que são redes de relações, deduções totalmente prontas. Desde então, uma mesma forma pode ser aplicada a diversas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, com a única condição que esses obje-tos respeitem entre eles as mesmas relações que aquelas enunciadas entre os símbolos não definidos da teoria.” Parece-me que tal enuncia-do é fundamental para o pensamento musical atual; notemos princi-palmente a última parte.32

Isso apenas mostra claramente como, para Boulez, e agora seguindo textualmente Lévi-Strauss, não haveria oposição alguma entre forma e conteúdo (entendido aqui como o material musical), entre estrutura e aparência, pois a forma já organiza previamente as possibilidades de significação da matéria a ser formada, isso mesmo quando ela admite o acaso33.

32 Pierre Boulez, Penser la musique aujourd’hui, cit., p. 29.33 Essa racionalidade musical é capaz até mesmo de englobar a irracionalidade do acaso

como elemento estruturador de seus procedimentos. É isso que vemos no texto “Alea”. Pensando principalmente na “musica da indeterminação” própria à John Cage e em seu impulso de “perda total do sentido global da obra”, Boulez procura transformar o acaso em elemento construtivo previamente codificado. “Busca-se desesperadamente dominar um material por meio de esforço árduo, tenso, vigilante e por desespero o acaso subsiste e se introduz por mil frestas impossíveis de calafetar... ‘E está bom assim!’. Não obstante, o último ardil do compositor não seria absorver esse acaso? Por que não domesticar esse potencial e forçá-lo a dar-se conta e a prestar contas? Introduzir o acaso na composição? Será loucura ou, ainda, uma tentativa vã? Pode ser loucura, mas uma loucura útil. De qualquer modo, adotar o acaso por fraqueza, por facilidade, entregar-se a ele, é uma forma de renúncia que se subscreve sem negar todas as prerrogativas e hierarquias envolvidas na obra criada. Como conciliar então composição e acaso?” (Pierre Boulez, Apontamentos de aprendiz, cit., p. 47). É a respeito dessa luta entre o determinado e o indeterminado no interior da forma musical, dessa “organização do delírio”, para falar como Boulez, que Foucault dirá, sobre o compositor francês: “Trata-se de dar a força de romper as regras no ato mesmo que as implementa” (Michel Foucault, Dits et écrits II, Paris, Gallimard, 1998, p. 1040). No limite, isso levará a forma bouleziana a uma situação de abertura constituti-va. Lembremos a esse respeito que, a partir dos anos 1970, a maior parte do trabalho composicional de Boulez será uma recomposição contínua de suas próprias peças.

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Ideologia transparente e retorno à mímesis

No entanto, sabemos como, principalmente a partir dos anos 1960, a arte abandona progressivamente esse programa de subtração da fascina-ção fetichista pela aparência através da posição de uma forma capaz de tematizar, de maneira integral, seus próprios processos construtivos. Ao contrário, as obras foram pensadas cada vez mais como espaços de repe-tição mimética da realidade social fetichizada. Tendência que pode ser encontrada através de um longo movimento de retorno ao tonalismo, ela nos forneceu, em seus melhores momentos, o padrão de uma crítica da crítica. Adorno, por exemplo, percebeu claramente que recorrer nova-mente à mímesis com a realidade social mutilada, realidade cuja represen-tação musical mais bem acabada seria o tonalismo, era o único modo de impedir que o formalismo serial de um programa estético de tematização autorreflexiva dos processos construtivos das obras não se transformasse em hipóstase de totalidades funcionais que não são mais capazes de levar em conta a resistência dos materiais às operações de sentido. Uma das funções maiores de sua Filosofia da nova música consistia exatamente em fornecer os protocolos de inversão da racionalidade dodecafônica em modo puro e simples de dominação do material, e isso a fim de com-preender tal inversão no interior da crítica à racionalidade instrumental com seus múltiplos processos de dominação da natureza.

Por essa razão, Adorno está disposto até mesmo a insistir que a arte não deveria mais procurar o absoluto de sua subtração integral ao fetiche através da autonomização integral de sua esfera e da consolidação de um sistema estrutural fechado de produção de significações. Na verdade, ela deveria repetir mimeticamente a realidade fetichizada, já que “a arte é obrigada [a confrontar-se com o fetiche] em virtude da realidade social. Ao mesmo tempo em que se opõe à sociedade, ela não é, no entanto, capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior à sociedade”34.

No entanto, essa exigência de retorno à realidade social fetichizada foi muitas vezes compreendida no interior de um quadro de deposição da forma crítica. Se voltarmos nossos olhos para as artes visuais, veremos críticos como Pierre Restany (que escreve na mesma época em que Adorno pensava uma Teoria estética baseada no resgate da mímesis)

34 Theodor Adorno, Ästhetische Theorie (Frankfurt, Suhrkamp, 1973), p. 201.

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chegar a afirmar que “a arte abstrata recusava por definição todo apelo da realidade exterior: arte de evasão e de recusa do mundo, correspondeu à manifestação extrema de uma visão pessimista da condição humana”35, mas as vanguardas pós-1960 seriam realistas por terem superado esse “mito negativo”. Daí esta definição peculiar de realismo: “O realismo não discute nem o contexto nem o cenário de sua vida: identifica-se com o real [que, em uma situação social de integração de todas as esfe-ras de valores à dinâmica do fetichismo da mercadoria, só pode signifi-car real da forma-mercadoria, ou seja, posição da forma-mercadoria como dispositivo fundamental de constituição de nossa experiência da realidade – o que a pop art compreendeu de maneira absolutamente clara], nele se insere, se integra”36. Ao tematizar essa adesão da arte à realidade social, Restany chega mesmo a prever uma mudança radical da função social da arte que só será sentida de maneira decisiva a partir dos anos 1980: a transformação do potencial disruptivo da arte de van-guarda em glamour disponibilizado para os setores de consumo conspí-cuo, como a moda e o design.

No mundo automatizado de amanhã, o problema capital será a utili-zação do tempo livre. O artista aparecerá então, não mais como um pária ou um revoltado, mas como o engenheiro e o poeta de nossos lazeres. Seu papel na sociedade será central e determinante, ele se verá promovido aos mais altos níveis da hierarquia tecnocrata.37

Podemos tentar entender tal esgotamento da forma crítica levando em conta problemas internos à racionalidade da forma estética no sécu-lo XX38. Mas devemos também estar atentos para uma dimensão “exte-rior” do problema que é normalmente negligenciada.

Grosso modo, é possível afirmar que a concepção de forma crítica que vigorou de maneira hegemônica no modernismo tem força em si-tuações históricas nas quais a ideologia pode ser pensada como recalca-mento de seus pressupostos, como bloqueio da passagem da aparência

35 Pierre Restany, Os novos realistas (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 111.36 Ibidem, p. 140.37 Ibidem, p. 150.38 Tomo a liberdade de remeter ao meu artigo “Fetichismo e mímesis na filosofia adornia-

na da música”, Revista Discurso, São Paulo, Alameda, n. 37, no prelo.

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para a essência. A obra de arte se estrutura a partir da dinâmica dispo-nível à crítica social com suas temáticas da alienação da consciência no domínio da reificação da aparência. A ideia benjaminiana de crítica como “distância correta” só pode ser operativa diante de mecanismos ideológicos dessa natureza. No entanto, ela será marcada com o selo da obsolescência ao deparar-se com uma realidade social na qual a ideolo-gia não responde a tais coordenadas.

Nesse sentido, devemos insistir neste diagnóstico, já comentado em capítulos anteriores, sobre a ideologia ser, atualmente, autoirônica. Dessa forma, a crítica como “correta distância” seria impossível porque a ideo-logia já opera, a todo momento, uma distância reflexiva em relação àquilo que ela própria enuncia. Ou seja, a forma crítica esgotou-se por-que a realidade internalizou as estratégias da crítica.

De Stravinsky ao novo tonalismo: uma arqueologia da forma cínica

Esse é o quadro social de análise do que poderíamos chamar de “novo tonalismo”, ou seja, dessa tendência cada vez mais hegemônica na contemporaneidade de retornar à noções como centro tonal e pul-sação regular. Tendência maior no contexto musical anglo-saxão (Steve Reich, John Adams, Terry Riley, Phillip Glass, Thomas Adès, Howard Skeptom, entre outros) e eslavo (Arvo Pärt, Schnittke, Penderecki).

Primeiro, devemos salientar que o retorno ao uso de materiais tonais na composição musical traz problemas simétricos àqueles pos-tos pelo retorno à mímesis nas artes visuais da segunda metade do sé-culo XX. Nos dois casos, materiais e procedimentos alvos de críticas estéticas virulentas retornam, mas normalmente sem força para preen-cher as funções outrora desempenhadas e sem a capacidade de operar no interior de uma lógica da naturalização. Depois da emancipação da dissonância, não há como se servir do sistema tonal enquanto princípio organizador de totalidades funcionais e de progressão harmônica fun-damentado de maneira segura. O que nos deixa com a questão de saber o que pode significar retornar a um material que traz as marcas de sua impotência e de seu esgotamento sócio-histórico, material em crise de legitimidade. Posição de esgotamento e crise nem sempre partilhada. Basta lembrarmos aqui o que afirma Steve Reich: “Para mim, princípios

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naturais de ressonância e da percepção musical humana não são limita-ções; são fatos da vida”39, e isso a fim de insistir que a realidade de um centro modal é realidade tanto em músicas ocidentais como não oci-dentais. No entanto, mesmo no caso de Reich não há exatamente um uso do tonalismo enquanto sistema funcional de progressão, mas como princípio de encadeamento de repetições e de gravitação unificadora dos momentos.

Mas da mesma forma que a música forneceu às artes do século XX um padrão de racionalidade da forma crítica através dos protocolos de autonomização reflexiva da forma, ela talvez tenha sido a primeira arte a fornecer uma figura de esgotamento de tal racionalidade através de um tratamento paródico do que se coloca como aparência estética. For-ma paródica que ganha paulatinamente centralidade à medida que a ideologia vai se revelando como ideologia da ironização. Essa forma, ao invés de organizar-se como uma crítica da aparência por meio da visi-bilidade integral da estrutura, organiza-se como a submissão integral do material a um “princípio de estilização”. O material aparece normal-mente como o representante de um estilo codificado, elemento congelado como uma imagem-clichê. A obra torna-se “jogo” com materiais feti-chizados. Caminho que poderia nos levar, simplesmente, à composição de obras “regressivas”, se tais materiais fetichizados não fossem tratados como aparências postas como aparência. Dessa maneira, a forma paródica realiza cinicamente o programa que a forma crítica, na modernidade, colocou para si: portar em si mesma sua própria negação, já ser, em si mesma, a performance de uma distância correta em relação a sistemas naturalizados de representações (como é o caso do sistema tonal).

Novamente, é Adorno quem compreendeu essa estranha comple-mentaridade entre crítica e paródia ou, ainda, entre crítica e cinismo. Nesse quadro, sua confrontação entre Schoenberg e Stravinsky tende a ganhar outro contorno. Essa discussão me parece atual, já que Stravinsky, de maneira sintomática, pode nos oferecer o quadro de compreensão para a racionalidade dos dispositivos formais que estruturam vários pro-gramas-chave no interior do novo tonalismo. Há, por exemplo, uma li-nha reta que vai de Stravinsky até John Adams e Thomas Adès.

39 Steve Reich, Writings about music (Oxford, Oxford University Press, 2002), p. 159.

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Da multitude de questões que Adorno endereça à obra de Stra-vinsky, guardemos principalmente sua maneira de vê-la como um jogo infinito de máscaras. Jogo que se torna mais visível através da passagem de Stravinsky em direção ao neoclacissismo.

Normalmente, a crítica indica o neoclassicismo do balé Pulcinella, de 1920, como o momento de uma virada nos procedimentos composicionais de Stravinsky, mas Adorno insiste que A história do soldado, de 1918, já é composta a partir de procedimentos que determinarão a forma musical, em Stravinsky, de maneira cada vez mais hegemônica. Isso porque, a partir de A história do soldado, o único material de composição será o material mutilado vindo de formas gastas do sistema tonal, materiais po-bres, convenções deterioradas que se mostram enquanto tais. Adorno já indicara algo dessa tendência ao perceber que, em virtude do princípio artístico da recusa e de certo anti-humanismo, os momentos de inflexões expressivas em Stravinsky eram, normalmente, sucessões sonoras elemen-tares. Desde Petrushka, a expressão torna-se grotesca, risível e conjugada apenas a uma gramática claramente posta como ultrapassada, como se “a imago do deteriorado e decrépito devesse transformar-se no remédio con-tra a desintegração [Zerfalls]”40. Esse remédio contra a decadência do to-nalismo sintetizado com imagens de elementos deteriorados do próprio sistema será, não apenas o motor da fase neoclássica de Stravinsky, mas também procedimento composicional maior para a compreensão do que está em jogo no resgate contemporâneo do tonalismo.

A esse respeito, devemos levar a sério a afirmação adorniana de que o compositor que segue a lógica em operação nas obras de Stravinsky compõe com “ruínas de mercadorias [Warentrümmern]”, no sentido de assumir formas e elementos fetichizados que se afirmam enquanto tal, como se esse material já estivesse previamente criticado, como se trouxes-se em si sua própria negação e afirmasse sua própria impossibilidade de desempenhar suas “funções naturais”. É isso que Adorno tem em mente ao dizer que Stravinsky compõe como quem “ritualiza a liquidação”41 (Ausverkauf, “liquidação”, no sentido de proposições como “uma loja em liquidação”). Daí a ideia adorniana de afirmar que isso nada mais é do que uma forma musical paródica, forma que apresenta todos os seus

40 Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit., p. 135.41 Ibidem, p. 166.

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materiais entre parênteses, como se estivéssemos diante de uma “música feita a partir da música”, ou de uma montagem de músicas mortas, música feita contra a música.

Tudo se passa como se o fazer tomasse consciência de si através da ironia e se afirmasse abertamente enquanto tal. Música que, de maneira cínica, zomba da norma com o mesmo fôlego que a afirma, ou seja, forma estética capaz de suspender a norma exatamente ao segui-la. Maneira astuta de conservar e repetir materiais esgotados do ponto de vista de situação sócio-histórica. É por causa desse ponto que Adorno pôde afirmar, em 1962:

Stravinsky continua sendo um escândalo porque, prestidigitador du-rante toda a vida, ele fez aparecer (Erscheinung) a inautenticidade da objetividade através de uma feição caricata. O que afastou sua música de todo provincianismo é que ela nunca deixou de mostrar seus tru-ques, como apenas os mágicos inimitáveis podem se permitir.42

Sua consciência de que apenas uma “linguagem orgânica em de-composição” era possível à música que aspira a afirmar-se como forma crítica nos leva a indicá-lo como exemplo privilegiado de alguém que procura expor o colapso da distinção entre arte e fetichismo, mas no interior de estruturas claramente fetichizadas.

É claro que sempre se pode dizer que “a música de Stravinsky é mais do que meramente idêntica à consciência reificada. Ela a ultrapassa (hinausreiche) na medida em que a contempla em silêncio e silenciosa-mente a deixa falar”43. No entanto, ela é a forma do paradoxo de uma consciência reificada autorreflexiva ou de uma falsa consciência esclare-cida. Forma de uma consciência cínica que repete os gestos musicais de uma consciência reificada, mas que demonstra a todo momento, seja pela excessiva força, seja pelos cortes e pelas justaposições, tomar distân-cia de seu próprio gestual.

Se pensarmos em compositores contemporâneos como John Adams (“o maior compositor da América”) e Thomas Adès, veremos que tais processos composicionais continuaram, mas levados ao paroxismo.

42 Idem, Quasi una fantasia, em Gesammelte Schriften XVI (Digitale Bibliothek Band, 1999), p. 383.

43 Ibidem, p. 385.

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Entre Adès e Adams passa o mesmo discurso de disponibilização inte-gral dos materiais musicais de todas as tradições possíveis e de mobili-zação de tais materiais em uma organização musical que visa o grande público. O mesmo Adams que teve a sagacidade de afirmar: “Minha música é como uma grande lixeira. Eu não recuso nada”44. É verdade. Em Harmonielehre, de 1984-85, por exemplo, há espaço para harmonias de jazz, orquestrações de música de filme dos anos 1950, pulsação de rock e insinuações dodecafônicas. A princípio, nada fica fora de seus processos de justaposição e colagem. O título já é uma paródia do Tratado de har-monia, de Schoenberg, último dos grandes tratados de harmonia da his-tória da música e editado no momento em que o próprio Schoenberg já demonstrava que os caminhos estavam abertos para o abandono do to-nalismo. Tudo se passa como se Adams se colocasse no limiar desse mo-mento histórico, mas para fornecer sua própria versão a respeito do que se abre a partir do esgotamento das funções construtivas do sistema har-mônico tonal. Abre-se uma era da disponibilização integral do material e livre uso de formas. Livre uso perfeitamente ilustrado pelo próprio Adams a respeito de outra de suas peças, Grand pianolla music, de 1982: “Pense em Beethoven e em Rachmaninoff tomando banho no mesmo box com Liberace, Wagner, The Supremes, Ives e John Philip Sousa”45.

No entanto, para que sequências pianísticas de glissandos e arpeggios dignos de Liberace convivam de maneira relativamente “harmônica” com desenvolvimentos cromáticos wagnerianos é necessária uma gran-de dose de indiferença em relação à resistência dos materiais através da redução destes a um gênero de imagem sonora submetida a princípios gerais de estilização, ou seja, à condição de clichês. Só dessa forma, Adams pode trabalhar seus materiais sonoros de forma tal que, ao final, eles pareçam construir uma totalidade orgânica incapaz de ferir os ouvidos acostumados à forma-sonata e digna dos momentos áureos do tonalis-mo. Em um incrível passe de mágica, a multiplicidade de materiais pare-ce transformar-se em um grande contínuo, em que tudo pode entrar e sair sem abalar o solo seguro de um desenvolvimento que esconde suas justaposições. Passe de mágica possível porque a composição virou um

44 Stéphane Lelong, Nouvelle musique (Paris, Ballard, 1996), p. 21.45 Andrew Clements, Unity from diversity, disponível em <http://www.earbox.com/inter009.

html>.

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“jogo de máscaras”, no sentido de um jogo musical sobre a própria música – palavras usadas por Adams a fim de caracterizar seu próprio trabalho e que, não por acaso, repetem o diagnóstico adorniano sobre Stravinsky. Nada mais exemplar aqui do que o segundo movimento de Century Rolls, de 1996: uma paródia das Gymnopédies, de Satie, que já está indicada no próprio título do movimento, Manny’s gym. Paródia feita da articulação entre as modulações de Satie e arranjos de piano-bar.

Adams teria certamente outra versão para tal ecletismo pressuposto pelo discurso da disponibilização integral do material. Em um tom claramente afirmativo, ele falaria da multiplicidade que compõe a “América” enquanto espaço livre das hierarquias e distinções que mar-caram a “velha Europa”. O ecletismo de sua música seria apenas o resultado de um “retorno à experiência ordinária”, que na era da urba-nidade tudo mistura, e às formas musicais enraizadas em práticas comunais de interação social. Esse tom afirmativo da “entificação” da vida cotidiana seria, ainda, acompanhado pelo espiritualismo de Emerson e Thoureau. É dessa forma que Adams pode afirmar ter percebido que a música dodecafônica estava divorciada da experiência comunal, sem problematizar o fato de que esse divórcio era o resultado do esvaziamen-to da própria noção de “experiência comunal” na era da universalização da forma-mercadoria.

No entanto, não deixa de ser sintomático que essa “estetização musical de um plano de imanência” vinculado à multiplicidade pura disposta no campo de experiências comunais seja conjugada através de fortes doses de ironização dos materiais com os quais as obras são compostas. Na verdade, as obras só podem realizar suas promessas de ima-nência através da ironização, exatamente como era o caso das exigências de “autenticidade” que animavam o programa estético de Stravinsky. No fundo, tratava-se de uma autenticidade que só podia realizar-se de forma irônica. Cinismo adequado para a estetização dos modos contemporâneos de funcionamento da ideologia. Dessa forma, valores que deveriam produzir obras capazes de criticar materiais e processos de produção reificados acabam por permitir a conservação desses mesmos materiais e processos através de sua ironização, produzindo com isso uma paradoxal “distorção performativa”.

Nesse sentido, a obra de Thomas Adès representa um problema suplementar. A herança minimalista de Adams ainda marca sua música

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com exigências de clareza na escrita, exigências derivadas do pulso re-gular e do máximo uso de recursos muitas vezes reduzidos. É verdade que não se trata mais de recursos minimais como os que caracterizam Phrygian Gates ou Light over Water (embora obras tardias como Lolla-palooza, de 1995, ainda devam ser compreendidas nessa chave), mas mesmo em peças de construção complexa como Chamber Symphony, de 1992, nota-se claramente o esforço de Adams para dar visibilidade a um conjunto reduzido de ideias norteadoras da forma. Algumas obras de Adès, ao contrário, tendem a partir do que poderíamos chamar de “ambientes desetruturados”, que tendem à informidade. Os primeiros compassos de Concerto conciso, de 1997-98, são muito claros nesse sen-tido. As estruturas que se organizam de maneira frágil e instantânea são baseadas, é claro, em clichês musicais que subsistem em contextos que não lhe são próprios. Clichês que remetem a inflexões da gramática mu-sical convencional ou da própria tradição modernista (reduzida ela tam-bém à “imagem musical”). De fato, os únicos elementos organizadores são “fetiches em ruínas” ou formas que são destruídas da mesma maneira que uma criança destrói brinquedos e depois tenta remontá-los à força (os casos exemplares aqui são o tango de Arcadiana e o “tecno” de Asyla, movimento chamado ironicamente de Ecstasio). Essa forma consegue absorver sua própria desestruturação, sem com isso colocar em questão a noção de que só há ordem através de materiais fetichizados. Dessa maneira, ela flerta com o informe sem abandonar a sustentação de um princípio de organização a respeito do qual ela faz toda questão de enfa-tizar sua descrença. Como já foi dito, mesmo o informe pode servir para sustentar uma Ordem que vigora por meio de sua própria descrença.

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concluSão

A intenção última é a de introduzir um mínimo de negatividade no debate acadêmico, revelando o que há de frágil na

segurança moral-ideológica que está em sua base mais funda.

Bento Prado Jr., Erro, ilusão, loucura

Até aqui foi questão de expor o cinismo como categoria adequada para dar conta da dinâmica própria a processos de racionalização social que parecem constituir o fundamento de formas hegemônicas de vida na fase atual do capitalismo. Partindo da noção de forma de vida como conjunto de sistemas de ordenamento e justificação de processos de interação social nas esferas do trabalho, do desejo e da linguagem, este livro procurou insistir na convergência de mutações profundas que ocorrem nos modos de socialização do desejo, assim como nos modos de reprodução material da vida e de constituição de critérios de funcio-namento e crítica da linguagem. A constituição de sexualidades por meio de relações paródicas com identidades, o advento de um novo espírito do capitalismo através do jogo flexível com estruturas normati-vas duais, em que Lei social e imperativos de satisfação irrestrita se adaptam em uma nova economia libidinal própria ao mundo do con-sumo e do trabalho, uma linguagem marcada pela produção reiterada de distorções performativas paradoxais que se fazem sentir mesmo em campos avançados da produção estética, todos esses casos foram lidos como sintomas maiores de mudanças profundas nos processos de racio-nalização social organizadas a partir da temática do cinismo.

Tais mutações, por sua vez, foram inseridas em um quadro que não é limitado apenas pelos objetos de uma crítica social, mas aspira a desdo-brar-se como espaço de determinação de setores importante para a crítica da razão, já que se tratou de mostrar a solidariedade entre os impasses de racionalização social e um conceito de racionalidade pensado fundamen-tal como normatividade intersubjetivamente reconhecida.

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No interior desse processo, desenhou-se uma espécie de diagnósti-co de nossa época como era da ironização absoluta das condutas, de flexibilização das identidades e de constituição de modos de operação em situação de generalização de anomia e indeterminação. No entanto, um crítica poderia ser levantada, pois tal diagnóstico não parece dar conta das levas de tentativas de reconstrução conservadora de vínculos sociais substancialmente fundamentados que nos submergem de tem-pos em tempos. “Fomos longe demais com a liberalização” é um tipo de frase que se ouve constantemente e logo vem acompanhada de um destacamento policial nas fronteiras e um grito de respeito ao hino nacional e às nossas tradições comunitaristas travestidas de universalis-mo. Ou seja, a indeterminação não parece ser algo que nos provoca um gozo cínico, mas que nos leva a correr em direção à recuperação de vínculos substanciais em tradições aparentemente arruinadas.

O fato é que não podemos perder de vista a solidariedade profunda entre opostos aparentes: ironização das formas de vida e paz social ar-mada. Trata-se, no fundo, de impor uma escolha forçada. Ou um modo de experiência social da diferença que se realiza em formas que trazem em si mesmas sua própria negação e nos prometem o prazer da indeter-minação, o gozo da anomia, ou a procura pela reconstituição social de vínculos substanciais patrocinada pela polícia e pelas estruturas discipli-nares de sempre (Igreja, Nação, família etc.). Diante dessa situação, devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de esco-lha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movi-mento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma ma-neira mais complicada de não andar. Nossas formas hegemônicas de vida podem muito bem conviver, ao mesmo tempo, com a geografia mental da liberalização e da restrição. Afinal, não há dificuldade alguma em de-sejar a plasticidade infinita da “viagem aleatória da libido” e amar ouvir de vez em quando a voz firme do ministro da Justiça.

A esse respeito, vale a pena lembrar que sabemos, ao menos desde Hegel, que a ironização resultante da crítica à inautenticidade de nossas formas de vida pode muito bem interverter-se e dar lugar à tentativa de realização forçada de retornos a vínculos sociais substanciais através

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Conclusão • 203

de formas de reformismo conservador1. Ou podemos muito bem pensar em situações de interversão constante e organicamente articulada, como nos indica com precisão Deleuze e Guattari:

As sociedades modernas civilizadas definem-se por processos de desco-dificação e desterritorialização. Mas o que desterritorializam de um lado, elas reterritorializam de outro. Essas neoterritorialidades são ge-ralmente artificiais, residuais, arcaicas [pois já foram marcadas pelo trabalho de séculos de desencantamento]; no entanto, são arcaísmos com funções absolutamente atuais, são nossa maneira de “bricolar”, de esquadrinhar, de reintroduzir fragmentos de código, ressuscitar códi-gos antigos, inventar pseudocódigos e jargões.2

A descrição não poderia ser mais precisa. A estrutura bipolar de nossas formas de vida é uma maneira astuta de controle, já que o verda-deiro controle ocorre quando se impõe a nós a chantagem de uma escolha forçada.

* * *

Por fim, gostaria de responder a uma questão constantemente le-vantada por ocasião da apresentação de capítulos deste livro em forma de conferências. Pois pode parecer que o saldo dessa forma de pensar o cinismo como modo de racionalização social, com a consequente falên-cia de um modelo hegemônico de crítica social, só parece nos levar a alguma forma mais rebuscada de aporia. Situação própria àqueles que percebem o desgaste da força mobilizadora da crítica sem, no entanto, fornecer de maneira clara os móbiles de processos renovados de recons-trução de vínculos sociais. Situação de quem percebe a urgência de um

1 Nesse sentido, só podemos estar de acordo com Honneth quando este afirma que, “no individualismo romântico [que teria se tornado projeto generalizado em nossas socieda-des], o vazio interior e a pobreza de ação são compensados por um retorno à voz da própria natureza; e porque essa orientação pelas disposições internas e pelos estados emotivos também acaba impelindo cada vez mais profundamente a um processo de autorreflexão infinita, busca por fim um apoio nos poderes tradicionais da fé e de uma religião pré-crítica” (Axel Honneth, “Patologias da liberdade individual”, Novos Estudos, n. 66, jul. 2003, p. 85).

2 Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-Oedipe (Paris, Seuil, 1971), p. 306.

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sofrimento que nos leva à recusa de modos de pensar e formas de vida que nos parecem arruinados, mas tem dificuldades em indicar o padrão de normalidade que poderia curá-lo.

De fato, se este livro se contentou em conservar-se, em larga medida, nessa posição “negativa”, é por acreditar que a função urgente do pensa-mento é nos levar a um desespero conceitual. A tarefa filosófica atual pede o demorar-se diante do esgotamento dos esquemas conceituais que visam orientar a ação e o julgamento. A todo momento, o pensamento encon-tra-se diante da pressão de questões como: “Que fazer?”. Questões dessa natureza não devem e não podem ser respondidas.

Não devem porque a resposta é apenas uma defesa contra o trabalho de desarticulação, que só pode ser efetuado pela pulsação demorada da questão. Esse trabalho, se realmente realizado, é o trabalho mais urgente. Devemos dizer isso porque todo programa filosófico relevante é solidá-rio de um acontecimento histórico que força o pensamento a recons-truir quadros conceituais. A filosofia hegeliana era solidária da Revolução Francesa; a filosofia de Adorno, do caminho aberto pela Segunda Esco-la de Viena. Nessa articulação entre reflexão filosófica e confrontação com o campo dos acontecimentos encontra-se o motor de toda elabo-ração conceitual. É sempre o espanto diante do acontecimento que nos leva a pensar. Mas há acontecimentos que se manifestam apenas quan-do fechamos os olhos. Anteriormente, quando se voltava para si, encon-travam-se os pontos cardeais de uma teologia travestida de natureza interior. Agora, temos essa inquietude sem rosto, essa colisão sem ave-nida que vemos, como dizia Hegel, todas as vezes que encaramos um homem nos olhos. Toda a peculiaridade de nossa época talvez venha do fato de não encontrarmos um fato que esteja à altura desse aconteci-mento. Daí talvez a estranha sensação de que nossa primeira tarefa con-siste em acelerar o desabamento. Mesmo que estejamos em uma situa-ção histórica que se sustenta exatamente por ser um desabamento em forma de mercadoria.

Talvez isso apenas nos lembre que questões como “Que fazer?” não podem ser respondidas. Não podem porque só são respondidas através de sua dissolução. O verdadeiro desespero conceitual produz uma ação que satisfaz à urgência. Se ainda não há ação que satisfaça a urgência é porque não fomos suficientemente longe com nosso desespero. Por isso, toda acusação de niilismo diante desse tipo de perspectiva é apenas uma

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Conclusão • 205

injúria, não uma análise. A acusação de niilismo é apenas a última arma daqueles que têm medo de a crítica ir “longe demais”, pôr em questão o que não deveria ser questionado; medo de a crítica deixar de ser com-paração entre valores e caso para voltar-se contra nossos próprios valores fundamentais. Pois é da essência do pensamento voltar-se contra si mes-mo para ser fiel a si mesmo. É da essência do pensamento a força ater-radora da dissolução. Nada prometer, para poder tudo cumprir.

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“Dialética, ironia e cinismo” apareceu pela primeira vez com o tí-tulo “Dialética, ironia e cinismo: sobre a leitura hegeliana de O sobrinho de Rameau” em Revista Artefilosofia, Ouro Preto, n. 2, 2006.

“Was ist Zynismus?” apareceu pela primeira vez com o mesmo tí-tulo em Douglas Garcia (Org.), Destinos do trágico (Belo Horizonte, Autêntica, 2007).

“Sobre um riso que não reconcilia” apareceu em uma versão redu-zida na revista Margem Esquerda, São Paulo, n. 5, 2005. A versão inte-gral foi publicada primeiro em francês (com o título À propos d’un rire qui ne réconcilie pas) em Mark Alizart (Org.), Fresh Théorie III (Paris, Léo Scheer, 2007).

“Para uma crítica da economia libidinal” é o desenvolvimento de um artigo que primeiro apareceu com o título “Um supereu para a so-ciedade de consumo” em José Luiz Aidar e Christian Dunker, Žižek crítico (São Paulo, Hacker Editores, 2004). Uma segunda versão, in-completa, foi publicada na revista Ide, São Paulo, n. 37, 2008.

“Sexo, simulacro e políticas da paródia” é o desenvolvimento de um artigo com o mesmo título publicado na Revista do Departamento de Psicologia – UFF, Niterói, n. 18.1, 2006.

“O esgotamento da forma crítica como valor estético” foi publica-do, com o título “Le nouveau tonalisme et l’épuisement de la forme critique” na Revue Filigrane, Paris, n. 3, 2006, e em Vladimir Safatle e Rodrigo Duarte (Org.), Ensaios de música e filosofia (São Paulo, Huma-nitas, 2007).

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