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1 Cinzas e Neve ~ Célia Correia Loureiro ~ “Give me one last kiss, For soon such distance Will stretch between our lips” City and Colour

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Cinzas e Neve

~ Célia Correia Loureiro ~

“Give me one last kiss,

For soon such distance

Will stretch between our lips”

City and Colour

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o supermercado, parei no corredor perante as caixas coloridas de

diversas marcas conhecidas de chocolates. Devo ter crescido.

Devo ter envelhecido. Devo ter-me acostumado à solidão. E

então, com o queixo enterrado na gola de um casaco cor de leite com café que me

lembra a Segunda Guerra Mundial, oiço os teus pés atrás de mim.

À luz pardacenta do corredor volto-me mas já sei que és tu. És tu porque a

tua presença, o teu calor intrínseco, me envolve já os ombros.

“És a mulher mais gulosa que jamais conheci”, dizes, com uma mão na

prateleira e outra no bolso da parka. A tua camisa axadrezada por baixo é-me uma

velha conhecida; corri as mãos pelo interior dos seus botões, pelas avenidas da tua

pele…

As nossas bocas a oceanos de distância; as nossas bocas outrora fundidas. É

isso que me dança nos olhos – as cinzas dessa fogueira – quando me falham

N

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palavras para te responder. Para te cumprimentar. Para te dizer que já sabia que

eras tu.

Por muito que a neve e a Serra me estejam na pele, jamais me habituei ao

frio. Estremeço. Num café não muito longe, pousas uma chávena de chocolate

quente no espaço exíguo da mesa à minha frente. Lá fora neva. A Catedral está

coberta por finos flocos desse açúcar gelado que é a neve. Lembras-te, quase te

dizem os meus olhos, lembraste de sorver esses mesmos flocos da minha boca?

“Estás mais cheiinha”, dizes, com um risinho endiabrado. Memórias dos teus

lábios nas minhas pálpebras. “És magra demais”, dizias na altura, e agora acrescentas

“Estás bem assim”.

Fico calada. Arrastaste-me para o interior forrado a pedra granítica do café

que te deu na gana. Nos nichos das paredes, velas bruxuleiam de modo intimista,

incomodativo. A nossa intimidade foi atropelada por um comboio há tanto tempo…

É a mesma boca, a tua, no entanto. Mais fina, menos delineada e rodeada

de barba, mas é a mesma. Desvio os olhos da tua cara, dos teus contornos, mas só

porque me é mais familiar do que o meu próprio reflexo no espelho. Desisti de

brincar com o fogo. Não te olho.

Tu sorris, os dentes reluzem e os ombros encolhem-se num trejeito bem-

disposto. A luz que sempre emanou de ti continua lá, como se não tivesses tido um

dia de preocupações na vida. Pergunto-me mentalmente se ainda me lês os

pensamentos.

“Como vais?”

“Bem, obrigada”, devolvo, sem grande entusiasmo.

“Diz-me coisas.”

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“Coisas”, não me apetece colaborar mas fui incapaz de te dar as costas

quando me apontaste aquele recanto acolhedor do outro lado da estrada.

“Ouve”, procuraste-me os olhos e forçaste-te a sorrir. Senti o canto dos teus

lábios, a insistência dos teus olhos, a chamarem-me sorrisos ao rosto. Mantive-o

disciplinado, estático. “Já passou tanto tempo… não podes esquecer?”

Sibilei um riso irónico por entre os dentes, um sopro sardónico que voltou a

emudecer-te. Parecias disposto a escutar-me - quem sabe eu estivesse agora disposta

a falar? Cruzei os braços e arqueei uma sobrancelha. O chocolate quente arrefecera

por inteiro e o teu café já fora totalmente sorvido. Podíamos ir embora, agora?

Esquecer que nos tínhamos sequer reencontrado? E de súbito a curiosidade tomou-

me. Havia algo que eu queria realmente entender e não coloquei a pergunta de

modo dócil:

“O que é que andas a fazer por aqui?”

“Por aqui como assim? Pela tua rua ou pela Guarda?”. Fizeste um sinal ao

rapaz do balcão, que assentiu. Viria quando pudesse. “Sempre gostei daqui.”

“Ai sim?” Acenei como se compreendesse, sem entender nada. “Nunca

quiseste saber disto para nada. Quando o teu pai morreu fugiste o mais depressa

que pudeste.”

“Foi diferente.” Só me apetecia articular outro “Ai sim?”.

“E então porquê?” A minha brusquidão encrespou o rapaz, que entretanto

se aproximara com a conta.

“Não vamos embora, quero outro café”, fizeste-lhe um gesto para levar dali

o papel com os cálculos.

“Se calhar devíamos ir”, ameacei, estendendo a mão para a mala que tinha

pousado na cadeira livre.

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“Ficamos”, declaras, categoricamente, sem aspereza, como se soubesses que

não terias de forçar-me a ficar.

“Não tens onde ir? Não trouxeste nada do supermercado” – notei.

Apoiaste os cotovelos no tabuleiro da mesa e juntaste as mãos, soltando um

longo suspiro. Levaste uma mão ao cabelo e desalinhaste-o com um gesto que te é

atrozmente habitual. Segurei a respiração para não denunciar o meu nervosismo.

“Cristina” começaste, apelando à minha paciência e espetando-me uma faca

no peito ao pronunciares o meu nome, “dessa vez foi diferente porque não tinha

nada que me prendesse aqui. Querias que fizesse o quê? Não há nada no interior”,

parecia a coisa mais natural do mundo para se dizer e sempre soube que pensavas

assim. Mas e saber que nunca fui suficiente para que ficasses? “Bem sabes que

passei um mau bocado longe de vocês todos” - Mas não longe de mim em específico, “E

entretanto conheci a …”

“E devia ter ficado por aí”, interrompi, atirando a mala que não era

propriamente pequena para a mesa, consciente de que o meu pé ainda não parara

de se mexer debaixo da mesa. “Ainda não entendi o que estás aqui a fazer. É uma

resposta assim tão difícil?”

“Vou reabrir o restaurante do meu pai.” Ai sim?

“Ai vais?” Deve ter-me fugido a cor da cara e, de repente, estavas recostado

na cadeira e tinhas-te posto a rir, “O que foi? Acho muito bem, parabéns.”

“Mentira”, cortaste, sacudindo-te um pouco mais no riso que me era como

uma velha cantiga da infância, entranhado até aos ossos. O novo café chegou e

controlaste-te um pouco. Prosseguiste, ainda com o divertimento a bailar-te nos

olhos. “Mentira. Estás é a pensar que vais começar a fintar-me sempre que possas.

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Quem sabe comeces a sair menos de casa. Quem sabe mandes alguém por ti ao

supermercado…”

Continuas a ler-me os pensamentos. Fiquei automaticamente em desvantagem.

“Não”, volvi, secamente.

Não sabia bem onde pousar os olhos e tu continuavas a tagarelar.

“Já sei que o teu irmão se casou”.

“Ah, ias recebendo notícias daqui?”

“Notícias de casa, sim”.

Sacudiste a cabeça com naturalidade e fizeste um trejeito com os lábios que

te é particular. E voltas a rir-te com descaramento. Realmente… levas tudo tão a

sério quanto abater os inimigos nos jogos de guerra com que te divertias nas

consolas. Um menino grande em quem, em tempos, apostei todas as minhas fichas.

“Isto agora é a tua casa, então? Agora que os teus pais só existem sete

palmos de terra abaixo de nós, agora que a tua irmã foi estudar para Hamburgo,

agora que o teu irmão finalmente comprou a porcaria da rulote e anda Europa

afora com a mulher e os filhos, é que voltaste?”

“Fico feliz por saber que a minha irmã decidiu voltar a estudar aos quarenta

anos e que o meu irmão e os meus sobrinhos se divertem por aí afora, como dizes”,

depois acrescentaste, mais suavemente, “Mas se calhar é a minha vez de arrumar a

minha vida”.

Uma espécie de tinta negra recaiu-me sobre a vista, toldou-me os sentidos.

Estava maluca por te deixar vir sentar-te assim, ao cantinho de um café, comigo e

com velinhas acesas e neve no exterior, a falar-me baixinho no teu tom de sempre,

rouco e arrastado. O mundo era para mim um lugar pior depois de ti.

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Volto a sacudir violentamente a mala contra a mesa, num chocalhar de

frascos e chaves, e desta vez ponho-me de pé. Detesto-te. Não vês? A minha aversão

a ti e aos teus modos macula-me a alma e a existência. Não é saudável odiar-se

alguém assim e já te odeio há demasiado tempo. De pé olhei-te, decidida:

“Vou-me embora. Obrigada por me avisares que és tu que andas a despregar

as tábuas do restaurante. Beijinhos”. Dei-te as costas.

“Senta-te e bebe o chocolate quente”, aconselhaste, muito seguro de ti e de

que eu continuava a mesma; a que fica, a que espera, a que se submete e se expõe.

Olhei sobre o ombro para o homem de perna cruzada à mesa. Sorrias

pacientemente. Ui, estavas tão certo de que eu ficaria! De que eu me vergaria. De

que me aprisionarias outra vez… De que estava só a fazer-me de difícil, a lançar-te

armadilhas para testar o quanto me querias…! Mas dei por mim a amar-me mais do

que nunca nesse momento em que soube que estavas iludido. Sorri-te.

- “Adeus”, articulei, e encaminhei-me para a porta tomada de uma energia

desconhecida.

“Precisei de tempo, está bem?”, Insistes, sem te levantares ou ergueres a voz.

Como estávamos sozinhos no silêncio absoluto do café e do dia gelado, ouvi-te

com clareza. A curiosidade venceu-me:

“Tempo para quê?”

“Para me dar conta de onde é o meu lugar. Para me dar conta de que te

amava”, depois, agudizando a intensidade do olhar, tentaste matar-me de novo –

“de que ainda te amo”.

“Vai à merda.”

Foi tudo o que disse, sem levantar a voz e sem esconder o ressentimento,

antes de bater a porta do café na tua cara de deboche.

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Brincaste comigo, pensei, enquanto caminhava rua abaixo sem, na realidade,

ver coisa alguma. Pisaste-me, usaste-me, magoaste-me propositadamente. Fizeste de

mim pior pessoa e voltaste a chamar-me, de armas em baixo e olhos de

arrependimento. Beijos de arrependimento. Se o meu arrependimento matasse,

cairíamos ambos dos nossos pedestais. Ah pois caíamos.

Não era assim quando me conheceste. Quando puseste as mãos em mim.

Quando me destruíste, até ao último pedaço de dignidade, de paz interior, de que

jamais fui detentora. Surgiste-me no caminho e desviaste-me para atalhos. Meteste-

me uma venda nos olhos e puseste-me a mentir, a enganar, a trair, a ludibriar. É um

milagre ser aceite na terra onde nasci depois do que me levaste a fazer.

Puseste-me a fingir. Fingiste comigo, fingimos juntos, fingimos um para o

outro. A cada vez que havia uma grande aproximação – francamente patrocinada

por ti – seguia-se um buraco de distanciamento maior ainda. Dizias que de

momento só querias saber do trabalho. Mudavas de cidade. Envolvias-te com

alguém. Metias-te numa relação. Apaixonavas-te.

Eu tinha de compreender, não? Com a crise e essas coisas todas, não ia

exigir-te sacrifícios, certamente? O sacrifício de ficar. O sacrifício de me dispensares

dois minutos quando a crise estava aí... Tinhas de te fazer à estrada, às horas ou a

um qualquer rabo de saias que te levasse da melancolia constante em que andavas

submergido.

Sim, claro, eu espero, eu amo-te. “Não esperes, querida. Segue a tua vida, és das

pessoas que mais valorizo no mundo, não quero impedir-te de viver”. Mas viver o

quê? Viver de quê? Viver que vida longe de ti? Sem ti? Queria ser eu a salvar-te dos

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teus traumas e das tuas nostalgias. Quis tanto ser eu a pôr-te um riso genuíno no

rosto e uma alma nova, não escaqueada, no peito…

Tenho vergonha de mim própria – implodi – porque sou incapaz de

reconhecer a mulher que sou hoje na mulher que fui às tuas mãos. Estou destruída,

uma vez mais. Como é possível? Tropeço porque uma cortina de lágrimas me tolda

a visão. Digo a mim mesma que é do dia cinzento, do céu e da atmosfera enublada.

Não consigo meter a chave da livraria na fechadura assertivamente. O peso da

contrariedade, contudo, avoluma-se no meu interior. Cerro os dentes, gemo e

apetece-me bater em alguém. Começar uma guerra.

“Continuas a mesma”, o mesmo fantasma persegue-me, assombra-me.

Ponho-me de pé a tempo de te ver parado no passeio oposto, com um

sorriso complacente e idiota nos olhos e as mãos nos bolsos da parka. Pareces-me

um pai a contemplar a filha desajeitada. Detesto também isso em ti. A falsa sensação

de que vais pegar-me ao colo e resolver tudo por mim. A vez em que o tentaste

desististe a meio e deixaste-me a braços com o dobro dos problemas e metade da

disponibilidade emocional para encará-los.

“O que é que queres? Pára de fingir que me conheces”, disparei, voltando a

separar a chave correcta do molho e a tentar inseri-la na fechadura.

“Trabalhas aí? Estavas no horário de almoço e foste comprar chocolates ao

supermercado?” Riste mais um pouco, sozinho. “Está frio cá fora, deixas-me

entrar?”

“É evidente que não.”

“Porquê?” Na prática, não tenho argumentos para te manter fora. “Porque

não fica bem um homem do teu tamanho numa livraria deste tamanho.”

“Tenho encolhido. Achas que posso ver se passo na porta?”

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“Não.”

“Por favor?”

Entrei na livraria e deixei a porta fechar-se. Geralmente não tinha um

fantasma do passado a querer imiscuir-se nela. Tinha acabado de tirar o chocolate

do bolso do casaco, combatendo o impulso de espreitar pela janela e ver se já te

tinhas ido embora, quando a porta se abriu. Revirei os olhos e dei uma dentada

pouco generosa na tablete.

- “Chocolate de leite e avelãs?”, não te confirmei a assertividade. “Devias

alimentar-te melhor.”

Silêncio. Cirandaste pelo pequeno espaço, de os olhos nos livros.

Costumavas gostar de ler, era uma das coisas pelas quais te amei; a imagem de nós

dois deitados na cama a ler antes de adormecer. Ambos de óculos, como aliás

precisávamos, e de pijama às riscas.

“O que me aconselha, senhora livreira?” – Tentaste.

"Crime e Castigo" - Decidi dar-me ares de profissional.

"Já li".

"Metamorfose?"

"Agora rastejo?" – Soltaste uma risada sonora, espontânea.

"Lolita?"

"Induzi alguém em erro?"

"Pena que não tenha um livro sobre a Madame Butterfly…" - reflecti,

encostando-me ao balcão e mordiscando o chocolate, pensativa, na ânsia de ajudar

o meu cliente – "Que tal o Madame Bovary?"

“Madame Bovary c’est toi” – tagarelas, chamando-me Emma Bovary.

“Tenho em stock uma edição antiga, leva esse?”

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“Não.” Reparo que lá fora voltou a nevar. A tablete finda-se na minha boca

e continuas ali, como se fôssemos dois estranhos ou, pior, dois velhos conhecidos.

“Não queres sugerir-me o Anna Karénina? No âmbito dos adultérios, acho

gravíssimo não mo teres sugerido.”

Sorrio-te sardonicamente. Dou três passos, ergo o título em questão de uma

pilha de romances e pouso-o sobre o balcão. Olho-te antes de inserir a compra na

máquina registadora.

“É este que vai levar? Aproveite que está com vinte por cento de desconto”,

os meus olhos devem reluzir de ironia, espero que reluzam.

Esboças m sorriso. Pareces feliz com esta troca de farpas. Dou-me conta de

que foi sempre assim; dardejávamos sobre o outro durante horas e depois acabava

tudo com um abraço de boa noite. Ou um beijo. Ou cama. Depois … bem, depois

deixámos de poder dardejar fosse o que fosse, pelo menos em público. Remetemo-

nos ao silêncio durante algum tempo e, por fim, cometemos – recorrentemente – o

maior dos nossos erros: O que me desgraçou para sempre. Graças a ele deixei,

momentaneamente, de gostar de mim. Muita gente, graças a ele, deixou de gostar

de mim.

“Quanto é?”

Disparo uma soma avultada que corresponde ao custo do volume.

Para meu espanto, tiras a carteira do bolso traseiro das calças e vasculha-la,

escolhendo um cartão.

“Escolheste-me um barato, não foi?”

“Só o leva se quiser”.

“Levo-o porque há muito que o quero”, estendes-me o cartão.

Passo-te o talão e sustento o mesmo sorriso de olhos inexpressivos:

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“Muito obrigada, conduza com cuidado.”

Prendes-me a mão sobre o balcão ao receber o talão. Seguro-te o olhar como

se fosses um simples cliente atrevido. O meu pulso queima.

“Não dizes volte sempre?”

“Neste caso aplica-se mais o volte nunca”, retruco, seca, sabendo que não

vale a pena debater-me para livrar a mão.

“Não menti quando te disse que amo”, os teus olhos escurecem, como que

tomados de seriedade.

Estremeci porque passei metade da vida a desejar ouvir essas palavras.

Entretanto já desisti delas. A ser sinceras vêm justamente quando aprendi a ser feliz

sozinha.

“Agora anoitece cedo, pegue no livre e faça-se à estrada.”

“Não vou para longe. Sais a que horas?”

“Ainda assim devias ir andando”, insisto, fitando-te com severidade.

“Ouviste?” A tua voz é um sopro intimista, vulnerável e, simultaneamente,

firme – “Amo-te.”

“E então? Quantas vezes to disse e me respondeste com silêncio? Não muda

nada, ficam as mentiras do passado.”

“Nunca te menti a ti”, lembras-te, erguendo as sobrancelhas para dar ênfase

à suavidade das palavras.

“Pois não, mas fizeste-me mentir a todos por ti.”

“Vais culpar-me por aquilo que fizemos juntos?”

A tua voz soou tão suave que me senti em falta por um instante. Tive de

evocar todos os motivos pelos quais me é vital odiar-te.

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“Se me tivesses dado ouvidos de início, nunca tínhamos tido de enganar

ninguém”, acrescentei, transparecendo alguma da mágoa. “Ao menos eu sabia o

que queria.”

“Não estava preparado”, concluíste, com aspereza, e soltaste-me o pulso.

“Obrigado pelo muito que me quiseste. Diz-me só que ainda me queres. Juraste que

me amarias para sempre, lembras-te?”

Foste-me, em tempos, essencial para sorrir. Para respirar. Para sair da cama

no inverno, calçar botas de neve, enfiar cinco camisolões e vir trabalhar.

“Não me conhecia bem. E agora sou eu que não estou preparada para mais

furacões na minha vida. Respeita isso” Fechei o sorriso falso.

O ambiente da loja, coberto de efeitos natalícios e a cheirar a couro e a papel

empoeirado, coincide com tudo o que imaginei para nós. Eu a beber chocolate

quente, tu a passares por mim com um livro em punho e a beijar-me a têmpora. Eu

a listar as vendas do dia à mão e tu a incitares-me a pôr de lado a minha aversão à

tecnologia: “Usa o computador, Cristina…”, “Mal sei mexer nisso”, responderia

eu. Eu a agasalhar mal os nossos filhos para a Serra e tu a desfazeres os botões

selados à pressa dos seus casacos com gola de pele de carneiro.

“Já não me amas ou não queres furacões na tua vida? Parece-me que ambas

as hipóteses têm solução.”

“E que soluções seriam essas?” – Cruzo os braços, irritada.

“No primeiro caso não me deve ser difícil trazer-te isso de volta, se dizias

que me amavas tanto”, como não reagi, prosseguiste. “No segundo caso posso

assegurar-te que só quero calmarias.”

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Ri-me por entre os dentes, descrente. Descruzei os braços e fitei-te com

desprezo:

“Ao menos conheces-te a ti próprio? Quantas vezes não me deste a entender

que era desta? Ao final da décima tentativa comecei a sentir-me um bocado ridícula.

Cresci, enrijeci e aprendi. Agora volta para casa e espera uns dias. Vai aparecer

alguém mais interessante, vais ver.”

“Não vai, não. E no passado nunca te disse que te amava, pois não?

Conheço-me agora melhor do nunca”, olhaste-me com intensidade, desesperado

por passar uma mensagem que se gravasse em mim a ferros. “Já entendi que és a

mulher da minha vida.”

“E que argumentos sustêm essa teoria? É que a mim parece-me feita de ar”.

Por muito que a situação me parecesse semelhante a tantas outras, é verdade que

jamais usaste a cartada “amo-te” ou “és a mulher da minha vida”. Isso é novidade,

o que não garante a sua veracidade.

“Quando estávamos juntos eu era feliz”, começaste, procurando as palavras

certas, e eu bem sei que sempre te debateste com elas, “era estupidamente feliz,

Cristina”. As lágrimas que me subiram aos olhos eram impossíveis de evitar, mas o

meu rosto não te transmitiria qualquer indício de rendição. “Mas a distância

estragava sempre tudo. Desaparecia por dois dias, conhecia uma mulher, voltava

com ela. Tu via-la ou vinhas a saber disso, afastavas-te. Eu julgava que era feliz e

que estava na hora de tu também seres. Depois ela ia-se embora, ou eu mandava-a

para fora da minha vida. E dava-me conta da falta que me fazias… Quando te

reencontrava sentia o conforto de rever uma velha amiga e, passado não muito

tempo, desejava-te outra vez como mulher. Aconteceu sempre assim, bem sabes.

Menti-me a mim próprio, ou simplesmente era demasiado ignorante para ver, mas a

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verdade é que te amava já e que te amei sempre e o meu corpo sempre soube

disso”.

“Confias ao teu corpo a tarefa de determinar por quem estás apaixonado?”

Revirei os olhos num trejeito dramático de compreensão – “Então já entendi

porque é que foram tantas. Ele nunca se recusou a ninguém, pois não?”

“Não é assim. Lembras-te daquele episódio em que...?”

Como é que ele podia trazer ao de cima aquela espécie de recordação

vergonhosa? Enrubesci de fúria mas não me permiti acanhamentos:

“Qual? Aquele em que estávamos todos juntos - eu, tu, o meu marido, a tua

mulher - e te lembraste de ter uma erecção por me veres a dançar de vestido?”

“Não era um vestido qualquer”, sussurras, e os olhos reluzem ao recordar.

Pois não, era o vestido; aquele em que não tiveste de me recordar que nos

havíamos beijado da primeira vez, quando éramos ambos livres de compromissos.

“Julguei que me desprezavas”, depois acrescentei, recostando-me no balcão

e encolhendo os ombros, “eu desprezava-te. Já nos tínhamos separado, já tínhamos

outras vidas.”

“Mentira, nunca me desprezaste”, adiantaste, revirando suavemente as

curvas dos lábios num sorriso confiante sobre o balcão.

Vivemos uma vida de intimidade lado a lado e estávamos proibidos um ao

outro. Tudo porque me rejeitaste quando éramos livres e encetaste uma relação

feliz com a minha Marina.

Agora não sinto nada; não estremeço por causa do homem de camisola

axadrezada, casaco grosso e mãos enfiadas nas calças de ganga. Essa barba está mal

feita, reparo, involuntariamente, mas isso não me transtorna. O nó que tenho no

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estômago é de outra espécie, é o incómodo de me ver confrontada com os

fantasmas que demorei tanto a exorcizar.

“Tens razão, desprezava-me a mim por te amar e por te querer depois de

tudo. Depois de te encantares pela prima que te apresentei, quando já sabias que te

amava para além de tudo, depois de te casares com ela e depois de sermos todos

testemunhas das relações uns dos outros, como se eu e tu fôssemos a única união, o

único fio condutor, das nossas vidas e, apesar de ligados a outras pessoas, fossem

elas os actores secundários e não nós. Nunca entendi, palavra de honra que nunca

entendi” dei voz às dúvidas que julguei nunca respondidas, “porque é que me

perseguias pelos corredores da casa de férias e dizias que querias estar comigo,

quando à frente de todos nem me olhavas e, quando olhaste, aconteceu aquilo.

Porque é que fizeste isso? Sabias bem que eu não concebia a vida sem ti, que me

autodestruiria e a todos, de boa vontade, ao primeiro sinal teu.”

Os olhos cintilaram-te de ressentimento:

“E também sabia que eras casada com o meu irmão.”

“O que não te impediu de te enrolar comigo, só de o confessares”, interpus,

sorrindo friamente.

“Sabes bem que só te casaste com ele...”

“Não te atrevas!” Interrompi, furiosa. “Não te atrevas a cair nos lugares-

comuns de quem não sabe a história, a nossa história. Eu não me casei com o teu

irmão para estar perto de ti nem para me vingar de ti. Não me casei com ele para te

causar ciúmes, que ademais nunca tiveste. Eu casei-me com ele porque ele me

apoiou quando eu caí de joelhos por causa de ti e porque ele me queria há anos, em

silêncio, e era a principal testemunha do modo como brincavas comigo e me

descartavas. Era o meu ombro. E depois foi a minha vez de desfazer alguém.”

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“Nunca pensei que usasses o Francisco para me fazer ciúmes, mas estás

enganada; eu ardia neles”, fechaste o rosto e ruborizei de fúria:

“Eu amava-o. Era outro tipo de amor mas amava-o”, garanti, inflexível – “E

mesmo sendo teu irmão, meteste-te a organizar-nos férias a quatro e encafuaste-me

na cozinha com a Marina a fazer filhoses no Natal. Foi um teatro autêntico, mas eu

não podia recusar-me a isso, eras a pessoas mais importante do mundo para o

Francisco…! Ele queria acreditar que eras feliz e havia obrigações morais, não? Eu

nunca me envolveria contigo, nunca me permitiria pensar em ti sendo tu casado

com a minha prima e tu nunca farias qualquer comentário desagradável que fosse,

sendo eu a mulher do teu irmão”.

“E, ainda assim”, encostaste-te a uma das estantes, cruzando os braços e

olhando-me com simplicidade, “quis-te até me doer a garganta quando te vi dançar

com aquele vestido”.

“E eles perceberam, e eu tive de limpar as lágrimas à minha prima

humilhada e de dizer-lhe que estava enganada, que não era por mim que estavas

assim”, pior, mas isso não te disse, tive de convencer-me de que não dancei para te

provocar, envergando uma peça de roupa que, nos nossos tempos de solteiros, me

puxaste até à cintura, desfazendo-me com os teus caprichos uma vez mais, “e o meu

marido, teu irmão, percebeu. Fingiu que não, mas não era tolo. Por isso pergunto-

te; o que mudou agora? Eu estou sozinha e feliz, tu geralmente costumas aparecer

quando eu conheço alguém, que é para te certificares que quando fores velho me

tens aqui, seca, enrugada, disposta a mudar-te fraldas e a aquecer-te botijas de água

quente. O que mudou agora, vá?”

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O olhar que me dirigiste intensificou-se, como se te custasse falar, e fizeste-lo

num misto de suavidade e aspereza que me garantiu que era sincero e que, agora

sim, me punha as pernas a tremer.

“Penso em ti a toda a hora. Penso no erro que cometi, parece-me que, por

fim, vejo. Agora que só nos ficou a distância, não é? Como se daqui aí aonde estás

estivesse o Mar Vermelho. Agora que só temos isso e os males do passado, as

inconsequências da juventude, só penso em ti. Só penso nas palavras que me dizias,

nos avisos que me fazias. Só me vem à cabeça a intensidade das tuas lágrimas

quando descobriste que andava enrolado com a tua prima e, mais tarde, o ar digno

que te deste quando tiveste de vir ao nosso casamento. Só me vem à ideia o

monstruoso que fui, porque a Marina era só uma novidade, era tua prima, era uma

manobra de diversão. Não podia casar-me contigo, Cristina, não podia ficar

contigo. Não vês que era novo demais? Estúpido demais? Teríamos estragado tudo,

teríamos batido um no outro, ter-nos-íamos desrespeitado ao ponto de agora mal

nos reconhecermos na rua. Seríamos um cancro na história pessoal do outro.”

“Tu és um cancro na minha história pessoal, Henrique.” Garanti,

solenemente. “Um holocausto, uma Chernobyl, uma bomba atómica, um 11 de

Setembro, uma guerra mundial, um genocídio, um fascismo, um Katrina, um

cometa há 60 milhões de anos, um Pearl Harbour, uma invasão da Polónia, um

terramoto de 1755, um golpe de estado, um muro em Berlim ou uma KGB, uma

glaciação, uma epidemia de cólera. Tu és um cancro na minha vida, Henrique.”

“E tu és uma luz na minha, Cristina”, sentenciaste, com a maior humildade

que jamais te testemunhei.

Quis magoar-te, quero tanto magoar-te… jamais te deixarei tão mal quanto

me deixaste a mim…

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“Viraste poeta”, murmurei, inexpressiva (por dentro quebrei).

Sorriste tristemente:

“Sim, virei solitário”.

É noite. Fechei a porta da livraria atrás de nós e caminhamos lado a lado.

Continuas a tentar explicar o quanto te arrependeste mas tudo o que revejo são os

olhos do meu marido, do teu irmão, ao dar connosco enroscados como gatos no cio

na casinha de apoio à piscina. “Há quanto tempo andas a foder a minha mulher?”

Ainda me chega esse grito do passado.

O que contava para ele era o irmão, a traição do irmão. Eu tornei-me

automaticamente numa ordinária que nem um olhar merecia. Sabia tão bem o que

era ser desfeita pela crueldade do amor! E agora era eu quem roubava a tua

integridade aos olhos do Francisco. Não lhe posso devolver isso…

O erro é teu mas também foi meu. Eu é que sobrevalorizei a minha força

interior, eu é que não me conhecia bem e dispus-me a passar a restante vida ao lado

do irmão do amor da minha vida sem o trair, nem sequer em pensamentos. Bastou

o casamento da minha prima contigo balançar para dar comigo mergulhada em ti

outra vez. Continuava uma extensão de ti, sombra tua.

Sinto-me suja, duma sujidade que nem com caridade poderei lavar de mim.

Há uma pessoa no mundo que me odeia para além do racional, que é o Francisco.

E há outra que me odeia ao ponto de me desejar a morte, que é a minha prima. E

há a minha mãe com vergonha de mim e o meu pai a não me olhar de frente.

Como fui capaz de dormir com o marido da sua sobrinha?

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Os nossos ombros não se tocam. As luzes públicas tornam a atmosfera

pardacenta. O chão está coberto duma fina camada de neve quebradiça. Vais

silencioso mas quase te oiço os pensamentos.

“Fica comigo, Cristina. Não achas que perdemos tempo demais?”

“Perdemos, mas a culpa não foi minha e mudei de religião. Agora convenci-

me de que não somos feitos um para o outro”.

Obrigas-me a parar em frente a ti, imobilizas-me o braço sem o forçar e

ficamos frente a frente.

“Mas não vês que estavas certa? Não há mulher que não me entedie, não há

mulher que me estenda os desafios que me punhas” sussurraste-o com tanta

carência que as lágrimas me corriam involuntariamente dos olhos. A nossa é uma

história de desperdício. “Ainda vamos a tempo de ter uma família, só temos de fechar

os ouvidos a todos e resolver isso entre nós. Não dizias que o teu sonho era ser mãe

dum filho meu?”

Soltei um riso quebradiço que se elevou numa nuvem de fumo branco:

“O meu sonho era ser feliz. Parece-te que depois do mal que causámos

mereçamos alguma felicidade?” Durante anos não houve quem me convencesse de

que o nosso lugar não era juntos. Mas o passado tem um papel demasiado

importante na história. Insisti: “O que é que me disseste na altura?”

“Que depois do sofrimento que tínhamos causado devíamos ficar

separados” respondeste, com precisão e reserva, puxando-me de encontro ao peito.

As parkas, os cachecóis, as camisolas interiores polares impediam-nos de

sentir fosse o que fosse. Para mim, simplesmente tinhas eliminado a distância entre

nós para me ouvir melhor. Respiravas agora tão perto que os meus pulmões

absorviam o ar que os teus expeliam.

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“Mas eu estava enganado desde sempre. O nosso lugar era juntos, andei por

aí a desperdiçar tempo e esforços quando estiveste sempre ali.” Os olhos, com

laivos de mel por entre o negro café, procuravam um recanto sensível da minha

alma onde eu capitulasse.

“Agora é tarde”, não resisti a erguer a mão enluvada para o teu rosto.

Fechaste os olhos demoradamente, absorvendo a minha carícia. “Quando

chegarmos àquela esquina ali vamos cada um para o seu lado, está bem? A partir

daí não quero ver-te nem voltar a falar contigo, pode ser? Entende”, pedi, com

alguma doçura, “não me importo de te ver feliz, mas já não creio que a tua

felicidade esteja em mim. Entende que não fomos feitos um para o outro, só nos

traríamos mais mal, a nós e a quem nos rodeia. Esperam-me em casa.”

“Quem?”. Não respondi e prosseguiste. “Então porque é que a vida só me

parece fazer sentido quando te insiro nela? Voltei por ti, não foi por porcaria de

restaurante nenhum.”

Encostaste a testa à minha e os lábios ficaram a centímetros dos meus. Os

meus tremiam, enregelados.

“Porque estamos ligados um ao outro, sempre estivemos, mas podemos

quebrar aqui o cordão. Eu já larguei a minha ponta, agora tens de fazer o mesmo.

Além disso só me queres agora porque não me podes ter.”

“Não é por isso, Cristina”, cingiste-me a cintura e trouxeste-me para mais

perto.

Os lábios roçaram nos meus quando te dispuseste a explicar:

“É porque só agora aprendi a distinguir o trigo do joio. Diz-me que não tens

ninguém.”

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“Se me amas redime-te do mal que me causaste. Jura que depois daquela

esquina”, apontei a rua que descia para a esquerda, envolta em cinzas e neve, “não

voltarás a procurar-me. Promete e eu acredito no teu amor. Digo-te até que também

te amo”, custou-me a sair, mas precisava de admiti-lo perante mim própria. “mas

amo-te o suficiente para nos querer saudavelmente longe um do outro.”

“A Marina perdoou-me e foi à nossa união sagrada que faltei. Fala-me bem

quando me vê, embora não queira grandes conversas. Não consegues perdoar-me

também?”

“A Marina sabe que já não lhe podes fazer mal de novo.”

“E a ti? Achas que faria mais mal? Só quero passar o resto dos meus dias a

fazer-te feliz, a fazer-nos felizes. A compensar-te por cada lágrima…”

“Não sei se me farias mais mal, mas sei que poderias, se te abrisse essa

porta”. Ajeitei-te o cabelo escuro e curto junto à testa e sorri-te, comovida. “Bem

sabes que nunca consegui meter-me nas tuas mãos sem ser a cem por cento, de

olhos vendados e os pés nus sobre vidros.”

“Agora só haverá seda sob os teus pés.”

“Agora já não haverá os meus pés”, beijei-te o queixo, porque se não te

baixares dificilmente te chego aos lábios. O teu cheio inebria-me. “Promete-me o

que te pedi. Se gostas um bocadinho que seja de mim promete-o.”

Falei tão suavemente que compreendeste, finalmente compreendeste, que é

a despedida e que é este o final que quero atribuir à nossa história. Amar-te-ei

sempre, mas isso já te tinha dito e o “sempre” tem um prazo de validade vitalício.

Acenas afirmativamente contra a minha testa. Tens os olhos fechados e o

peito, sob as camadas de roupa, em desatino. Agora sabes como me senti uma e

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outra, e outra vez. Nunca deixaram de haver obstáculos. Estamos condenados à

distância.

Beijámo-nos. É tão desconcertante quanto me recordo. Jamais um homem

me exigiu tanto num beijo; magoas-me ao prender-me o lábio por entre os dentes,

depois cura-lo com suavidade, voltas a castigá-lo, a dar-lhe de beber, a desenhá-lo

com a língua, a tomá-lo por completo, a estreitar-me a ti. Obrigas-me a afastar-me e

a regressar. Toda a nossa história num beijo e lágrimas a correrem-me pelas faces

quentes num final de tarde de frio rigoroso.

A cada vez que um se afasta um pouco o outro puxa-o para mais perto,

prolongando a despedida por mais alguns segundos. A cada vez que te puxo a nuca

de encontro à minha boca oiço-te a respiração entrecortada, arrastada. Doí-te a

garganta da angústia. Eu sei, eu sei como é, também a minha arde. Estou prestes a

quebrar. Quando me deixares vou quebrar.

É praticamente noite quando nos separamos por fim. Sorrio-te. Enfiaste as

mãos trémulas nos bolsos como se de repente fizesse mais frio. Semicerraste os

olhos para me veres a fim de não te esqueceres das minhas cores e contornos.

Apertas rigidamente a boca, numa agonia muda. Não temos direito de ser felizes depois

do mal que causámos, precisas de ter consciência disso.

“Sê feliz”, desejo-te.

Acenas, mas não te moves. Incito-te a avançar. Vais virar para a esquerda,

eu sigo em frente. Lá pões os pés a mexer e a deixar um rasto de pegadas na neve.

Não olhas para trás.

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Caminho sobre as tuas pegadas sem as preencher por completo e vejo-te as

costas desaparecer na esquina. Também eu avanço, ajeitando a alça da mala no

ombro, e prossigo em frente.

Não tinha dado muitos passos, com o coração em cacos e as lágrimas a

escorrerem para a gola e a arrefecerem aí, quando ouvi um resfolegar atrás de mim.

Rio-me e as lágrimas dispersam ainda antes de me virar. És teimoso como tudo,

vens convencer-me de que o teu amor é genuíno e que, por isso, não vais respeitar o

meu pedido de não vir atrás de mim. Não vais desistir.

Preparada para me atirar para os teus braços, dou meia volta nos

calcanhares. “Fizeste-me chorar outra vez…” ia a dizer.

A rua está deserta e meros jornais revolteiam, cinza em neve, revolvidos

pelo vento.

Ninguém me espera em casa.

Fim

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