CIPINIUK, Tatiana. Etnografia Em Escola Pública e Seus Desafios

9
RESUMO: Como proposta de trabalho, apresento algumas reflexões a respeito da pesquisa realizada entre os anos de 2008 – 2012 em duas escolas públicas na capital do Rio de Janeiro. Nesse contexto foram privilegiadas elaborações sobre os efeitos da socialização de alunos na incorporação da prática da escrita e leitura pelas modalidades de ensino de duas diferentes instâncias, municipal e estadual, denominadas consecutivamente “EJA” e “PEJA”. Para tanto, o propósito desse artigo é problematizar os desafios encontrados pelo pesquisador considerando o olhar etnográfico e a sistematização de seu método quando ele ainda se encontra em campo. Portanto, serão discutidos os movimentos situacionais provocados pelo trabalho de campo que pode ou não proporcionar bons ou parcos aproveitamentos metodológicos. Estes momentos de deslocamento da situação empírica são de grande relevância para elaborar quão significativa é, para o antropólogo, a forma como a entrada no trabalho de campo se constitui; e como os atos forjados sob a forma consciente e programada de uma pesquisa, sobretudo no caso da escola, que é uma instituição que possui, em sua dinâmica, uma rotina pautada sobre princípios pragmáticos de uniformidade e padronização, nem sempre se adapta aos preceitos instaurados pelo trabalho de campo. PALAVRAS-CHAVES: escola pública; trabalho de campo, etnografia. ABSTRACT: In this work I propose to reflect on research conducted between 2008 and 2012 in two public schools in Rio de Janeiro city. This research focused in particular on the effects of the socialization of students on the incorporation of reading and writing practices by the Vol.9 nº 17 jan./jun.2014 p. 83-91 ETNOGRAFIA EM ESCOLA PÚBLICA E SEUS DESAFIOS: UM OLHAR SOBRE MÉTODOS APLICADOS NO ITINERÁRIO DO TRABALHO DE CAMPO ETHNOGRAPHY IN PUBLIC SCHOOLS AND ITS CHALLENGES: AN APPRAISAL OF METHODS APPLIED DURING THE COURSE OF FIELDWORK Tatiana Arnaud C. Cipiniuk¹ ¹Doutora pelo programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. 83

description

CIPINIUK, Tatiana. Etnografia Em Escola Pública e Seus Desafios

Transcript of CIPINIUK, Tatiana. Etnografia Em Escola Pública e Seus Desafios

RESUMO: Como proposta de trabalho, apresento algumas reflexes a respeito da pesquisa realizada entre os anos de 2008 2012 em duas escolas pblicas na capital do Rio de Janeiro. Nesse contexto foram privilegiadas elaboraes sobre os efeitos da socializao de alunos na incorporaodaprticadaescritaeleiturapelasmodalidadesde ensinodeduasdiferentesinstncias,municipaleestadual, denominadasconsecutivamenteEJAePEJA.Paratanto,o propsito desse artigo problematizar os desafios encontrados pelo pesquisador considerando o olhar etnogrfico e a sistematizao de seu mtodo quando ele ainda se encontra em campo. Portanto, sero discutidos os movimentos situacionais provocados pelo trabalho de campoquepodeounoproporci onarbonsouparcos aproveitamentos metodolgicos. Estes momentos de deslocamento dasituaoempricasodegranderelevnciaparaelaborarquo significativa,paraoantroplogo,aformacomoaentradano trabalho de campo se constitui; e como os atos forjados sob a forma conscienteeprogramadadeumapesquisa,sobretudonocasoda escola, que uma instituio que possui, em sua dinmica, uma rotina pautadasobrepri nc pi ospragmti cosdeuni formi dadee padronizao, nem sempre se adapta aos preceitos instaurados pelo trabalho de campo.PALAVRAS-CHAVES:escolapblica;trabalhodecampo, etnografia.ABSTRACT: In this work I propose to reflect on research conducted between 2008 and 2012 in two public schools in Rio de Janeiro city. This research focused in particular on the effects of the socialization of students on the incorporation of reading and writing practices by the Vol.9 n 17 jan./jun.2014p. 83-91ETNOGRAFIA EM ESCOLA PBLICAE SEUS DESAFIOS: UM OLHARSOBRE MTODOS APLICADOS NO ITINERRIO DO TRABALHODE CAMPOETHNOGRAPHY IN PUBLIC SCHOOLS AND ITS CHALLENGES: AN APPRAISAL OF METHODS APPLIED DURING THE COURSE OF FIELDWORKTatiana Arnaud C. CipiniukDoutorapeloprogramadePs GraduaoemAntropol ogi ada Universidade Federal Fluminense.83teaching modalities of two different institutions, one municipal and the other state, referred to as 'EJA'and'PEJA'respectively.Thearticleexploresthechallengesencounteredbyresearchers, taking into account the ethnographic gaze and the systemization of the research methodology while they are still in the field. It discusses the situational movements provoked by fieldwork and theextenttowhichthesemayresultinmethodologicalimprovements.Theseshiftsinthe empiricalsituationarehighlyrelevantintermsofelaboratingthesignificance,forthe anthropologist, of how he or she enters the fieldwork site and how the actions developed in the conscious and programmed form of a research project especially in the case of a school, an institution whose dynamic is shaped by routines founded on pragmatic principles of uniformity and standardization are not always adaptable to the premises established by fieldwork.KEYWORDS:public school; fieldwork; ethnography.Oitinerriodapesquisaproduzidaparatesededoutoradoteveincionosegundo semestre do ano de 2011, com proposta de estudo sobre variaes e efeitos da socializao na incorporaodeultrapassaracondiodeanalfabetoemumaunidadedeensinopblico,no bairro de Copacabana, cidade do Rio de Janeiro. Na poca, a opo de pesquisa privilegiava uma unidade de ensino que atendesse a estudantes, em um momento especial de ciclo de vida, por todosconsideradotardio,equeseinteressavampordominaraprticadaescritaeleitura, incorporando o domnio da alfabetizao. Dentro dos preceitos do sistema de educao pblica brasileira,minhaoposerestringiuapesquisarasmodalidadesdeensinoEJA,nocasoda instncia estadual, ou PEJA instncia relacionada ao municpio, ambas abrangendo os processos ouprojetosdeeducaodejovenseadultosintegrantes,portanto,daetapadeeducao reconhecida como inicial. Antes de iniciar o trabalho de campo, realizei um levantamento sistemtico em bancos de dados que fazem parte de avaliaes realizadas por rgos municipais e estaduais no Rio de Janeiro. Tais levantamentos demonstraram uma compilao de dados quantitativos de unidades de ensino e dos respectivos bairros da cidade que comportavam as modalidades de ensino EJA e/ou PEJA, bem como de suas respectivas incidncias quantitativas em relao, sobretudo, ao nmero de alunos matriculados. Concomitantemente a este levantamento, comecei a percorrer escolas pblicas que se situavam prximas ao bairro onde resido (Copacabana), com o intuito de construir impresses do espao escolar, para alm das construes controladas e conscientes dos preceitos metodolgicos, mesmo sabendo que a cada espao escolar percorrido haveriam formas diferenciadas de percepo em funo de suas particularidades. Essa atitude proporcionou conhecer todas as unidades de ensino neste entorno, mas umadelasmechamouateno,diantedoquantitativodealunosadultosqueconversavam sentados em bancos de cimento, na pequena praa que se situava em frente escola, enquanto aguardavam a abertura dos portes para incio do turno noturno. Diante de tal situao, arrumei logo um lugar em um dos bancos prximos aos alunos e permaneci observando tal situao social, queemoutrosmomentosseriadespercebido.Esteestmulocontingente,caracterizado inicialmentecomoumamlgama,ouseja,umamisturadeelementosque,emboradiversose indefinidos, serviu no somente para que eu priorizasse aquela determinada escola em relao s outras pesquisadas e assim iniciasse o trabalho de campo; mas, sobretudo incitou interrogaes que at ento eram ignoradas e negadas como tais e, dessa forma, acabou se definindo como um espao a ser considerado e analisado.Assim, a opo por pesquisar a unidade de ensino no bairro de Copacabana se baseou, de forma simultnea, no resultado da prvia averiguao realizada a partir dos dados sobre escolas pblicas, entre diferentes escolas e bairros da cidade onde existiam as modalidades de ensino EJAouPEJA.Eaindasefundamentounaentocircunstnciaqueseformou,instigandoo encontrocontingenteentrepesquisadorepesquisados,singularizadospelaagregaoparaa espera da abertura dos portes da escola, instituio em que assumiam a condio de alunos.ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-9184Duranteoperododeconvivnciacomosalunos,queestouqualificandocomo, primeirafasedapesquisa,emmeioaoabundantematerialrecolhido,muitoseventose interaes de significados foram produzidos e comportamentos observados, de acordo com as relaes entre os alunos pesquisados e os diferentes vnculos criados entre mim e eles, sistema de interao que demarcou um momento especfico da anlise. Como tais eventos no podem ser reproduzidos em condies controladas, revisitar o mesmoespaodoanteriortrabalhodecampo,realizadoparaproduodadissertaode mestrado, aps dois anos de afastamento, manifestou-se como uma oportunidade no somente deaprofundaroutrosaspectosdapesquisaequenoforamabordadosnadissertaode mestrado, a saber, primeira fase da pesquisa, mas sobretudo de analisar e comparar perspectivas situadasemplanosdeconsequnciasecontrovrsias(Latour,1997),formadaspormeiode complexas determinaes situacionais. A revisitao ao espao da escola e de seus agentes, ou a segundafasedapesquisa,portanto,apontouparaaspectosindispensveissrepresentaes engendradaspelosarranjossituacionais.Afinal,oprocessodematuraodasconcepes formuladas e sua relao com os sujeitos que delas fizeram parte puderam ser mais bem aclaradas e compreendidas.Este segundo momento, ou a volta ao campo, foi marcado no apenas pelo reencontro com os alunos que, em sua grande maioria, continuavam a fazer parte da modalidade de ensino EJA naturmadealfabetizao,emboraalgunstivessemtrocadodeprofessor;mastambmpela delimitao que marcou a mudana de instncia da unidade de ensino de Copacabana de afiliao estadual para municipal, alm das alteraes concertadas pela renovada relao entre pesquisador e pesquisados.Embora o planejamento inicial da segunda fase da pesquisa tenha sido projetado para trabalhar com mais de uma unidade de ensino e outras modalidades de educao que prosseguem aps alfabetizao, nem sempre as condies da pesquisa permitem alcanar todas as elaboraes projetadas para aquele determinado plano. Isso no quer dizer que tais planos deixassem de ser realizados. Ao contrrio, neste cenrio de extenso e aprofundamento do objeto de estudo, mais de uma unidade de ensino (municipal) integrou a pesquisa, no caso, a escola municipal que se situa no bairro do Catete, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda que de maneira diferenciada, pelo menor nmero de material recolhido em funo do tempo que pude contar, acompanhei por dois meses duas turmas de alunos do primeiro e segundo ano do projeto de educao para jovens e adultos, (PEJA), modalidade de ensino subsequente turma de alfabetizao. Neste acompanhamento no foi possvel intensificar a anlise na escola municipal do Catetepormaistempo.Tambmnopuderealizaroacompanhamentodaturmade alfabetizao, visto que, segundo o agente de educao responsvel pelos alunos, a presena de uma pessoa nova na sala de aula poderia alterar o processo de aprendizagem. Para continuar na escola,eranecessriopassarporumasriedeformalidadesimpostas,preceitosescolaresde permanncianaunidadedeensino,advertidospelosagentesdeeducaoedirecionados especificamente ao trabalho de campo em questo. Tais formalidades impostas se exprimiram por meiodasubmissodoprojetodepesquisadatesecoordenadoriaregionaldeeducao (relacionada rea da escola), bem como aguardar sua aprovao por um perodo de, no mnimo, seis meses. Comonestaunidadedeensinoopoucotempodepesquisapermitiupoucos desdobramentos na relao entre pesquisados e pesquisador, acabei por intensificar a anlise na unidade de ensino em Copacabana, que no me exigiu qualquer tipo de formalidade at mudana da instncia estadual para municipal, diante dos prazos por mim assumidos para realizao da tese de doutorado. Entre interrupes e persistncias, a unidade de ensino que mais ocupou o tempo desta segunda fase e trabalho de campo foi a escola pblica de Copacabana. Em suas instalaes internas eexternaspermanecientreosquatroltimosmesesdoanode2011mesesdeoutubroe 85ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-91dezembro do ano de 2011. Neste nterim, fui avisada pelos agentes de educao que o regime estatutrio da unidade de ensino seria alterado para a instncia municipal, no ano de 2012, e que todo o corpo docente, assim como a diretora e a coordenao seriam tambm remanejados. Em seus lugares, outros agentes educacionais seriam realocados. Passei o ms de janeiro e fevereiro afastada do trabalho de campo, em funo das frias escolares dessa unidade, retomando o trabalho no incio do ms de maro. Quando retornei para o trabalho de campo, fui impedida, desta vez, de continuar pesquisando na escola de Copacabana. Pedi explicaes diretora, que j tinha sido substituda e que lamentou a situao, orientando-me quanto s regras que foram mudadas. Sem demora, esta mesma diretora me colocou em contato, por telefone, com um agente da coordenadoria de educao, que representava a regio e que se encontrava a escola. Nesta conversa, em que no houve espao para o dilogo, apenas tempo para transcrever o que foi falado, ouvi, de forma bastante enftica, que eu estava proibida de entrar na escola para qualquer tipo de pesquisa e que:Aescolaumambientesrioquedeveserrespeitado,porquenelaquese aprende a ler, escrever e se formar cidados e pessoas que aprendem a ter direitos e deveres; e no um lugar onde qualquer pessoa pode entrar e fazer o que bem entende,principalmentepesquisa.Voc,comoqualqueroutrapessoano concursada, no lotada nesta escola e est proibida de permanecer a. Por favor, entenda e queira se retirar. (agente de educao).Diantedetantosimpedimentos,resolviprocederemconformidadessituaes expandidas pelo trabalho de campo. Permaneci, portanto, na praa, em frente escola, durante o restante do trabalho de campo, onde todos os dias os alunos se reuniam antes e depois da aula. Permitir que a situao do trabalho de campo manifestasse caminhos no projetados anlise, possibilitouumaconsequenteexpansodaperspectivaabarcadapelapesquisaneste deslocamento de espaos fsicos e sociais. Neste sentido, para alm dos princpios de classificao que envolvem a categorizao do sujeito sem o domnio da escrita no universo letrado ocidental, o movimentosituacionalprovocadonotrabalhodecampoproporcionouumalargamentoda anlise, que acabou por me permitir avaliar como os processos e valores de construo da unidade de ensino, enquanto instituio, so formados por perspectivas contraditrias, assumidas ora por representaespadronizadasdedistanciamento,produzidasnoespaoescolar;orapor objetivaes que tendem a construir pertencimentos resignados.Assim, a forma como o meu afastamento se deu e o consequente deslocamento da anlise manifestou, no somente em termos metodolgicos, mas tambm em termos prticos, umaadesosignificativapesquisaporpartedospesquisados,sobretudopelosalunosque presenciaram o modo abrupto como se deu o processo de impedimento ao desenvolvimento da pesquisa no espao escolar. Muitos deles manifestaram descontentamento com minha sada do ambientedaunidadedeensinoefizeramquestodemanifestarseuapoiopesquisa, demonstrando um alto nvel de interao e participao nas entrevistas. Neste sentido, o espao da praa, lugar delimitado pelos alunos para troca de experincias por meio do ato informal da conversao, tornou-se um ambiente favorvel e bastante propcio para o desenvolvimento da pesquisa.Estes momentos de deslocamento da situao emprica foram de grande relevncia para elaborar quo significativa , para o antroplogo, a forma como a entrada no trabalho de camposeconstitui;ecomoosatosforjadossobaformaconscienteeprogramadadeuma pesquisa, sobretudo no caso da escola, que uma instituio que possui, em sua dinmica, uma rotinapautadasobreprincpiospragmticosdeuniformidadeepadronizao,nemsemprese adapta aos preceitos instaurados pelo trabalho de campo. Alm disso, as situaes criadas pela ocasio social do trabalho de campo, embora sejam norteadas pelo pesquisador, no podem ser previamente construdas ou resolvidas. Ao contrrio, devem ser analisadas em funo de suas 86ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-91sobredeterminaes, que so de extrema importncia para compreender a dimenso do objeto de pesquisa que envolve menos as questes dos por qus e muito mais a anlise do como. Ou seja, os estudos dos sistemas sociais que incluem o espao escolar nem sempre so adequados ao ritmo de pesquisa que abarca a anlise antropolgica. Neste sentido, pesquisar o ambiente escolar se apresenta como um grande desafio.Torna-se ento importante considerar que, no a esmo, no Brasil, para que seja iniciado um processo de pesquisa no ambiente escolar, necessrio que seja reunido um grande nmero de documentos e aprovaes prvias, que podem, no caso de uma recusa, inviabilizar a pesquisa. Todavia, no raro encontrar pesquisadores que possuem algum vnculo com a instituio escolar a ser analisada. Na bibliografia reunida para esta pesquisa, por exemplo, pode se constatar que a maioria das anlises empreendidas em instituies escolares est relacionada a pesquisadores que, em algum momento de suas vidas, se encontravam na condio de professores das escolas nas redespublicasouparticularesdeensino;oumesmovinculadosaprojetosdepesquisaque possuam importantes vnculos com a instituio escolar. o caso de: Lovisolo (1987), Dauster (1981) e Peregrino (2010), entre muitos outros.Se por um lado as condies de professor ocupadas por tais pesquisadores puderam facilitar acessos entrada no espao escolar, por outro lado, as circunstncias de naturalizao que oambienteescolartraz,paraquemopesquisa,condiesdepercepo,classificaoe interpretao pouco facilitadas, podem incidir de forma mais eficiente, quando a problematizao da anlise encontra-se impregnada pela forma como se observa um determinado fenmeno ou comoseviveumaexperinciaetnogrfica.Nestecaso,arelaodeobjetividade,mesmo sempre que relativa e perseguida ao se estabelecer a partir de pesquisadores e agentes sobre mltiplas imbricaes do espao escolar, podem ocorrer sob limites muito tnues. Enfim, podem se conjugar entre reconhecimentos de ns mesmos em relao ao outro quase como um efeito de reflexo que evoca nossa prpria existncia, seja de maneira imprecisa ou no. (Damatta, 1997). Portanto, desnaturalizar o contexto escolar, cujo universo to compartilhado pelo pesquisado quanto para o pesquisador, implica uma oportunidade de anlise irrefutvel para marcar a forma como as teorias e mtodos devem ser problematizados.Assim, ao retomar a pesquisa na unidade de ensino pblico localizada em Copacabana, pude reencontrar alguns poucos pesquisados que ora se encontravam em outras turmas, j no mais na modalidade de alfabetizao: ora outros que, em sua maioria, permaneciam em processo de domnio do alfabeto, na mesma turma de iniciao. Comofuireconhecidaporalgunsdospesquisadoslogonoprimeirodiade reaproximao,houveumaassimilaodaminhapresenaemsaladeauladeformamais acelerada do que na primeira fase da pesquisa, quero dizer, fui de imediato includa nas rodas de conversas, reapresentada aos alunos que j me conheciam e apresentada a outros que nunca me haviam visto. Esse foi o caso do Sr. Jos que, ao me reconhecer, foi logo me anunciando aos alunos de sua classe. Sua reao, ao me reencontrar foi muito diferente da primeira vez, quando me chamava de professorinha. Lembrou meu nome e identificou de imediato que eu estava com uma aliana no dedo de minha mo esquerda, indicando uma mudana na minha condio civil, que, para ele, diferenciava nossa relao anterior. Conforme dilogo realizado entre mim e ele:J: U? Casou? Ento agora voc no mais nossa professorinha!?T: Casei sim, mas isso vai impedir que eu continue sendo a professorinha?J: Claro, n? Agora voc no vai mais poder ficar aqui conversando com a gente todos os dias, vai ter que ir para casa cuidar do marido e das coisas de casa e do filho. J pegou barriga tambm?T: Acho que d para fazer as duas coisas, no ?J: Ih, t vendo tudo, j j seu marido vem aqui bater atrs de voc. menina v l hein, no vai arrumar confuso no casamento logo no incio, tem que ficar em casa 87ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-91cuidandodomarido,oestudovocvailevando!(JosMarques,alunodoEJA, empregado de edifcio).A forma pela qual fui reconhecida pelos pesquisados na retomada do trabalho de campo deslocou a condio de professora, que na primeira fase da pesquisa tambm foi assumida por mim. Esta nova condio, em que o estado civil sobrepujou a atribuio profissional, representou outros princpios de afinidade ou reconhecimento pelos alunos. Suponho que estava situada em condio que se vinculava de uma forma mais abrangente aos pertencimentos sociais dos alunos. Integrada,portanto,nosomenteasquestesquecircunscrevemainstituioescolar,mas tambm vida familiar. Isto , mais do que como uma professora, que estava ali para auxili-los no aprendizado da prtica da escrita e leitura, minha condio se alterou para algum que estava interessada em conversar sobre suas atividades, construdas dentro e fora da escola, e que, de alguma maneira, possua determinados atributos objetivados por identificaes com os alunos, sobretudo com as alunas. Esta perspectiva resultou em acesso a informaes que orientaram uma compreenso direcionada anlise de representaes e suas implicaes, abarcando no somente o espao escolar, mas os diferentes mbitos que constituem significados diretos sobre ele, tais comoaunidadefamiliar,ogrupodeparentesconsanguneos,bemcomosuasrelaescom vizinhos e colegas de trabalho.AbreveintroduoconduzidaporSr.Jos,aomereencontrar,situou-meemuma condioque,emboraestivessevinculadaunidadedeensino,faziatambmreferenciaa circunstncias que se encontravam fora do ambiente escolar. Esta situao se diferenciou de forma marcantedaprimeirafasedapesquisa,quandofuiapresentadaamaioriadosalunospela professoraecoordenadora,outorgandoaminhaposiodeformaassociadaaosagentesde educao. A condio de professorinha, considerada pelos alunos, fazia meno ideia de um certodistanciamentoquenomeescapoucompreensoquantoaalgumasdificuldades enfrentadas na primeira fase da pesquisa. Por outro lado, tambm no significou que a condio de pesquisadora tivesse se definido quando retornei ao trabalho de campo. Essa e outras atribuies foramlentamentereconstrudasnodesenvolvimentoeenvolvimentoentremimeosalunos pesquisados.O modo como o pesquisador se insere em trabalho de campo , em grande medida, considerado como uma circunstncia que demanda um investimento cuidadoso e de alto risco, tanto para o desenvolvimento da pesquisa como para seu possvel insucesso. Essas complexas circunstncias ficam ainda mais exacerbadas quando o ambiente a ser examinado, alm de possuir carcter normativo, definidor de produo e reproduo social, se inscreve em espaos muito rgidos,submetidosadinmicasparticularizadas,porrotinaspadronizadas,mantenedorasde socializaesdisciplinares,comoocasodasinstituiesescolarespblicasbrasileiras, fortemente vinculadas ao modelo de escola republicana.Neste contexto, atribui-se um domnio ou uma funo particular de ao para cada diviso ou compartimento dos espaos internos de uma escola, bem como para os objetos que fazem parte das diferentes composies. No caso da unidade de ensino por mim analisada em Copacabana, as divises foram manifestadas de forma notria desde o modo como a diviso das dependncias internas foi erigida, at organizao do material escolar disposto entre diferentes salas,corredores,ptio,banheiroseassimpordiante.Nointeriordassalasondeocorrem diariamente as aulas, h, em particular, uma intensa marcao de espaos entre os objetos que se caracterizam por escolares, como as carteiras ou mesas para escrita utilizada pelos alunos, a mesa do professor, a regio que circunda o quadro negro e a porta de sada, as janelas e os armrios, onde os materiais didticos so guardados.Entreoslimitesdasdisposiesdeobjetosescolareseosdomniosdeespao constitudosporagentesdeeducaoealunosemsaladeaula,haspectossublimadosque compemdiferentescondiesefunessociais.Citoesteambienteealgumasdesuas disposiesvinculadasaosrgidospreceitoscriadospelosagentesqueneleseinstituem,para 88ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-91demonstrar o quanto deve ser cuidadosa a entrada do pesquisador neste espao marcado por relaes que envolvem imposies de normas homogeneizantes e sistema de hierarquias.Noh,portanto,dentrodasaladeaula,espaosdemaiorneutralidade,ondeo pesquisador possa permanecer e exercer sua atividade. Qualquer lugar em que se dispuser a usar ser interpretado de forma objetivada, de acordo com os preceitos que fazem parte dos princpios e funes concebidas para este espao. Embora no seja nenhuma novidade essa situao para a anlise antropolgica, o caso especfico da sala de aula se apresenta de forma singular, quando seu contextomelhordescrito.Nestesentido,precisoconsiderarquesetratadeumespao fechado, que possui em sua dimenso a unidade de rea de trinta metros quadrados, onde alunos e agentes de educao so submetidos, em mdia por quatro horas dirias, s funes socializadoras que fazem parte de modelos e preceitos vinculados diretamente ao ensino da prtica de leitura e escrita do alfabeto grego. Neste campo delimitado por espacialidades prprias de tempo e ao rigidamente (ou parcialmente)controlados,oposicionamentoespacialeamovimentaoexercidapelo pesquisador devem ser levadas em considerao na anlise da pesquisa, posto que a eles podem ser associados papis sociais anlogos ao dos agentes de educao. Exemplifico: se o pesquisador permanece de p, circulando entre as carteiras onde os alunos supostamente esto sentados e executando suas atividades de escrita e leitura, a ele atribuda a funo de professor, isto , algum que tem a funo de auxiliar nas dvidas relacionadas s atividades propostas em sala de aula. Se o pesquisador se mantm sentado em uma das carteiras, da mesma forma como os alunos esto dispostos, sua atribuio se altera de forma contundente, assim como permanecer diante do quadro-negro e executar qualquer tipo de escrita ou ainda parar na porta de sada da sala e ali permanecer por algum tempo. Importanteconsiderarqueoambienteescolar,suasdependnciasinternaseas respectivas aes e movimentos que se instauram em sala de aula, abarcados por esse carter eminentemente padronizado e individualizado, so familiares ao pesquisador e, por conseguinte, requer um olhar atento s relaes de alternncias entre ele e os outros.No caso especfico desta pesquisa, a maior parte dos chamados outros se identificou comfaltaouparcodomniodaprticadaleituraeescrita,ratificandoumacondiode afastamento entre mim e eles, posto que, embora falssemos a mesma lngua, mantnhamos um afastamento velado e bem marcado, entre os muitos significados que a falta de domnio da escrita ouleituraevoca.Estadistinofoientopormimpercebidaesetornouemblemtica,no momento em que resolvi escolher uma carteira para me sentar e reiniciar a observao em sala de aula, situao aparentemente neutra, mas que em se tratando de movimentos realizados em sala de aula, conforme j mencionado, produziu consequncias epistemolgicas que cabem aqui uma ateno cuidadosa. Desenvolvo essa questo descrevendo o momento em que essa diferena foi marcada e registrada em pequeno trecho do meu dirio de campo.Desde o primeiro dia que voltei a essa escola, tenho usado bastante essa caderneta de anotaes e meu lpis e borracha durante as aulas, mas principalmente os utilizo nos intervalos entre as aulas, onde os alunos fazem sua refeio noturna. Sempre achei que minha discrio ao fazer as anotaes era muito convincente, porque, ao contrrio do gravador, no acreditava que estivesse gerando algum tipo de situao constrangedora para os pesquisados. Minhas anotaes, embora frequentes, eram discretas e, sempre que podia, as fazia aps uma conversa ou outra, raramente em ato, embora s vezes houvesse dados e termos que eu anotava por me parecer ter um sentido muito importante para quem falava. Mas hoje, percebi o quanto estava equivocada e que mais discreta que fosse, ao ficar sentada em uma das carteiras dos alunos escrevendo na caderneta, era exatamente essa ao que me diferenciava dos pesquisados. Sr. Joo me ajudou a perceber isso de forma contundente. Sr. Joo no foi fazer sua refeio e preferiu ficar na sala de aula. Disse que se sentia enjoado e por isso no queria comer nem ficar andando pra l e pra c no ptio. 89ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-91Disse que ia me fazer companhia. Aproveitei a ocasio para conversar um pouco sobre sua vida, mas ele me pediu para deix-lo quieto porque assim preferia. Eu, de imediato,orespeiteiecomeceiafazeroquesemprefazia:asanotaesno caderno. Foi quando Sr. Joo me perguntou: - O que tanto voc escreve nesse caderninhoazul?Euimediatamenterespondiqueeramalgumasanotaes importantesparaomeutrabalho.Eelecontinuou:-Masoququetanto importantequevocnoparadeescrever?Eurespondiqueescreviaalguns pensamentos e detalhes que no podia deixar passar e talvez esquecer.E a ele me disse: Por que voc no pega esses pensamentos e deixa guardado no lugar onde tem que ser, na cabea, u? Voc no usa a cabea no? Olhe pra mim, tenho quase quarentamuitomaisvelhoquevocemelembrodetudo,tudomesmo,no preciso ficar anotando as coisas em caderninho nenhum. Eu no, tenho tudo aqui presinho na minha cabea! Voc igual professora, escreve muito e no para nunca!Sessecaderninhoadevedarmuitosescritos.Possovertodoesse escreve-escreve? Eu disse que sim e entreguei a ele o caderno. De imediato ele olhouminhasanotaesfezumacaradedesgostoedisse:-Parecemaisum amontoado de coisas. E ficou olhando pgina por pgina. Depois de olhar tudo o que estava escrito, comentou:- no saber escrever as letras tem isso de bom, a gente no precisa de caderninho para lembrar das coisas! (Outubro, 2011).Opapelqueoantroplogoassumediantedeumoutrouniversoaserestudado abarcaumadimensodistanciadadequalquerrecomendadaneutralidade,referenciadapelo exerccio sistemtico de relativizao. Assim, a anlise da interao entre pesquisador/pesquisado mereceumexamemetodolgicominucioso,fundamentadonaampliaodosefeitosquea experinciaetnogrficanossubmete.Taisefeitosserefletem,emgrandemedida,na compreenso particular e enraizada das categorias ocidentais de conhecimento que aplicamos nossa prpria existncia frente ao outro. (Strathern, 2009). Aatentapercepoqueoeufazdooutro,nainteraoentrepesquisadore pesquisado,suscitaumredimensionamentocapazderelativizaranaturalizaoqueas representaes particulares, relacionadas ao conhecimento ocidental arraigado se faz presente. Neste caso, pela hegemonia que a cultura escrita exerce sobre o pesquisador frente falta do domnio da escrita e leitura do pesquisado. Ser pesquisador, portanto, pressupe estar inserido em uma perspectiva que se funda pela inculcao dos hbitos letrados racionalistas erigidos pela instituioescolarque,portanto,interagepormeiodecomposiesdepensamentoqueso menos articulados de forma oral do que escrita correspondendo a uma forma diferenciada de ordenao de ideias. Em outros termos, Todorov (2010) indica a importncia dessa ateno na percepo entre eu e o outro quando:Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que no se uma substncia homognea, e radicalmente diferente de tudo o que no si mesmo; eu um outro. Mas cada um dos outros um eu tambm, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos esto l e eu estou s aqui, pode realmente separ-los e distingui-los de mim. (Todorov, 2010, p.3).Paraproblematizaroprocessodesuperaodoanalfabetismoentrealunos adultos,torna-seprimordialcompreender,nosomenteoespaodos alfabetizados,doqualfaoparte,mastambmcompreenderarelaoentre pesquisadoepesquisador,portantoentenderasalternativasdetraduoentre representaesquenonecessariamentesoantinmicas,masquepossuem diferenas marcadas entre eu e eles e eles e eu. Deste ponto de vista, torna-seimprescindvelapresentarasquestesatinentesaosinteressesque subjazemprpriaatividadedescritivanofluxodosprocessosemcausanesse universo. Em busca do ato de debelar as vicissitudes que se projetam em funo da forma pela qualaproduodecoletadedadosetnogrficosengendrada,porobservaese problematizaescontextuais,considereirelevantetornarexplcitosalgunsaspectosquese 90ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-91encontram diretamente relacionados com a maneira de pensar proveniente do meio que fao parte, assim como da prtica prpria da antropologia e seu desenvolvimento enquanto teoria. Emltimaanlise,meusinvestimentosassumiramumasequnciaconsonante perspectiva que o trabalho de campo reclamou. Neste contexto foram consideradas de grande relevnciaaspreciosasinformaeseindicaessobreouniversodosalunos,pormeiono somentedacoletadedados,comotambmnaformacomofoidirecionadaapesquisapela incluso de oportunidades de anlise no planejadas e, mormente, pelo cumprimento do rigor metodolgico que demanda a anlise etnogrfica.NOTASEste afastamento no se deu de forma absoluta, posto que a proximidade da situao de campo, como de mesmo lugar onde resido, fez com que a convivncia com esses alunos fosse sempre realimentada.Refiro-me ao modelo que seguia os moldes iluministas de universalizao da educao escolarizada para todos os brasileiros de forma gratuita e obrigatria no ensino elementar.REFERNCIASDAMATTA, R. Relativizando: uma introduo antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.DAUSTER, T. et al. O cavalo dos outros: Resumo sobre o estudo a categoria social educao e os alunos do programa de alfabetizao funcional do Mobral. Tecnologia Educacional, 10 (4), Rio de Janeiro: Associao Brasileira de Tecnologia Educacional,maio/junho, 1981, pp. 16-22.LATOUR, B. Cincia em ao: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. So Paulo: Editora Unesp, 1997.LOVISOLO,H.A construo da modernidade: iluminismo e romantismo na educao popular. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1987.PEREGRINO,P.Trajetriasdesiguais:umestudosobreosprocessosdeescolarizao pblica de jovens pobres. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.STRATHERN, M. O Gnero da ddiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melansia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009.TODOROV, T. Descobrir. In:__TODOROV, T. A conquista da Amrica: a questo do outro. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 3-46.Recebido em: 08/01/2014Aprovado para publicao em: 29/05/2014ISSN 1809-5208e-ISSN 1981-4712Vol.9 n17Jan./jun.2014UNI OESTECAMPUS DECASCAVELp.83-9191