cisma 2: literaturacontraliteratura

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cismaISSN 2238-7013

idealizadores da cismaSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

2013, ano II, número 2, reedição 2016

editoresDaiane Walker AraújoGreta CoutinhoJuliano SalustianoLeda CartumMariana HolmsMayra CarvalhoPricila Inácio MartinsSofia Nestrovski

apoio discenteCarolina GiacomoGuilherme TauilNatália MartinsThiago Teixeira LopesTiago Bentivoglio

revisãoDaiane Walker AraújoGuilherme MirandaGuilherme TauilGreta CoutinhoJuliano SalustianoLeda CartumMariana HolmsMayra CarvalhoPricila Inácio Martins

Rodrigo TadeuSofia Nestrovski

projeto gráfico e diagramaçãoLucas Blat

ilustraçõesVitor Serrano

Agradecemos a Fabio Morábito pelos direitos de publicação de seus poemas “A tientas” e “El viento más que yo”.

Esta versão foi adaptada para leitura online. Os seguintes textos, publicados na versão impressa, tiveram que ser removidos, por questões de direitos autorais: Tradução de “Los dos reyes y los dos laberintos”, de Jorge Luis Borges, por Ana Carolina Gomes da Silva; Tradução de dois poemas de “Undécima poesía vertical”, de Roberto Juarroz, por Jean Luiz Palavicini

Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a revista cisma

[email protected]/revistacismawww.revistacisma.comwww.revistas.fflch.usp.br/cisma

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cisma

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editorial

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra “contra” reúne estes inúmeros diferentes significados: em oposição direta, em com-bate; em movimento contrário, hostil e impetuosamente; de en-contro a um ponto de apoio ou de resistência; como defesa ou proteção; para alívio ou extinção; de face para, de frente para; em discordância, em desacordo; sobreposto, justaposto; muito próximo, junto de; em troca, mediante. Colocar literatura con-tra literatura, assim, é não apenas opor as nossas ideias de li-teratura à própria literatura, como também posicioná-las de encontro com elas mesmas: dobrar a literatura sobre si, espe-lhá-la, aproximá-la de si e de nós que estamos em contato com ela. Quando organizamos uma revista de crítica literária, sabe-mos que estamos antes de tudo pensando sobre a literatura e so-bre a maneira como ela cria espaços de encontro e de diálogo. É por isso que o tema desta segunda edição da cisma procura tra-balhar com o contraste: o que acontece quando nós, na posição de graduandos que começam a tatear o meio literário, tentamos capturar ou definir aquilo que desde o princípio sabemos que é inabarcável ou indefinível? Como pensar a literatura contra ela mesma, e que espaço podemos criar para a sua crítica?

Mesmo que essas questões pareçam abstratas a princípio, elas nos levaram por caminhos bastante concretos e até mesmo urgentes. A partir do lançamento do primeiro número da cisma, nos vimos obrigados a discutir sobre aquilo que queremos para a revista, e aquilo que pensamos sobre crítica. E ainda tivemos de nos perguntar de que maneira seria possível – e proveitoso – nos distanciarmos e nos aproximarmos de uma forma de crítica feita por uma geração que não é a nossa. Discussões como essas motivaram a ida da equipe da revista ao Rio de Janeiro, em de-zembro de 2012, onde nos encontramos com alunos e professo-res da UFRJ, UFF, UNIRIO e Puc-Rio em um evento organizado por essas faculdades. Nossa participação foi uma maneira que encontramos para nos posicionarmos além dos muros da USP,

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conhecendo pessoas e opiniões novas, ao mesmo tempo que pu-demos levar uma amostra do que está sendo feito aqui dentro.

Possibilitar diálogos e trocas numa faculdade que costu-ma se concentrar no trabalho solitário, individual e até mesmo isolado, se tornou claramente um dos nossos maiores objetivos enquanto uma revista da graduação. E foi o levantamento de questões como essas citadas, assim como as nossas conversas e a viagem ao Rio, que nos fizeram perceber que tudo isso é, mais do que desejável, possível e factível. Percebemos que opor litera-tura contra literatura é, também, nos colocar em choque contra aquilo com que acabamos nos habituando – já que a literatura não deixa de ser uma maneira de nos libertar dos hábitos.

Para finalizar – e seguir no movimento sempre contra aqui-lo que tomamos como certo –, nada melhor do que a citação do poeta Fabio Morábito (cuja entrevista completa pode ser lida no final desta edição): segundo ele, o nosso próprio termo cunhado contraliteratura não cabe nem é necessário.

Eu não utilizaria o termo contraliteratura porque me parece que não diz nada. A literatura é suficientemente flexível e autocríti-ca para não ter necessidade desse termo. Ela mesma, constante-mente, está se ajustando, reelaborando, recusando, recuperan-do; de forma que deve se ter um pouco de pudor frente a certas denominações que podem satisfazer em algum momento um espírito volúvel, mas que simplesmente não têm consistência.

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Incerta memóriaIsabela de Vilhena Gaglianone

O poeta descobre a literatura: em torno de um poema de João CabralMarcos Vinícius Ferrari

Um céu, que não existeBruna de Carvalho

Máquina do tempo: a imagem do trem no blues e em “El perseguidor”, de Julio CortázarCarolina de Pontes Rubira

O ovo e a galinha: a alma imoralPedro Magalhães

O modus operandi do narrador machadiano em “O cônego ou metafísica do estilo”Marian Gabani Gimenez

Lugar do puro efeito: uma leitura para Roland BarthesLeda Cartum

Entrevista com Fabio Morábito

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Incerta memóriaIsabela de Vilhena Gaglianone

“Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar Declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque Multiplicam o número dos homens.”Jorge Luis Borges

Se questionássemos a história da literatura entendida como li-nha temporal dialógica de confrontos dos movimentos lite-rários com movimentos antecedentes, veríamos que talvez o que esteja por trás desta concepção seja uma ideia de história linear. A ela poderíamos então sobrepor outra possibilidade, a ideia de história circular. Para precisar, um circular espiralado com eixo móvel, em que a repetição é um conceito ontológico maior: uma chave de leitura deleuziana desdobrada para a lite-ratura, modulada de modo a podermos sugerir a concepção de uma ontologia da própria literatura,1 considerando-a sujeito de si, encarnada no artista literário, no escritor. O artista percebe a mobilidade do eixo histórico, vive o paradoxo da repetição. Nas palavras de Deleuze, “não se pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mudança que ela introduz no espírito que con-templa”, ou seja, “a não ser por uma diferença que o espírito ex-trai da repetição” (Diferença e repetição, p. 111): o eixo histórico é móvel, pois o presente constantemente imiscui-se ao passado e dele retorna, um espelho que reflete a diferença; o artista faz esse movimento, cria a si mesmo através da criação da forma, a partir da contemplação daquilo que o precede, enquanto su-jeito total ou parcial, de si ou da história: “Extrair da repetição

1 Dentro do experimento interpretativo do texto, falar em “ontologia da literatura” significa dotá-la da qualidade de existência enquanto um ser. Todavia, um ser peculiar, pois compreende uma longa história, desde quando houve pela primeira vez literatura, até hoje. Essa história é sua memória.

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algo novo, extrair-lhe a diferença, este é o papel da imaginação ou do espírito que contempla em seus estados múltiplos ou frag-mentados” (Ibid., p. 118). Para o artista, o presente é simbólico, qualquer perturbação ocasionada ao real, carrega-a consigo. Provocando a forma literária, ele preenche a si mesmo, mate-rializando a contemplação dos liames da representação da rea-lidade em pontos complexos, confrontando e efetuando a origi-nalidade de um presente a outro, do real ao mais profundo do próprio ser literário. Sempre em primeiro plano.2

Pensemos as associações psíquicas e os discursos inter-nos da literatura, ou seja, esse seu processo inconsciente através do qual dessacraliza a realidade ficcional, enquadra aquilo que passa desapercebido, literatura labiríntica, lúdica, que engendra algo no vazio aparente apontando-o como aquilo que está ocul-to somente porque falta ao seu lugar: o presente que passa leva--se consigo. Tomemos como guia a ideia de Bergson segundo a qual o presente é contínuo, graças à contraposição da percepção atual à lembrança: a memória permite uma relação ininterrup-ta do presente com o passado; o passado, por sua vez, torna-se consciência, é o alargamento das fronteiras do presente.3

Desse modo, podemos chegar ao cerne de nossa sugestão e pensar o autocanibalismo da literatura, o que significaria pen-sá-la como o resultado de um processo autofágico; pois o emba-te do presente com o passado literário é constante; a literatura digere e assimila os predicados parciais e simbólicos do passa-do aos predicados reais do presente – por isso, sempre móvel. O tempo é o substrato intelectual perspectivado, de onde emergem os planos passados intercalados na espiral histórica. Uma oração infinita, como uma ladainha, velando a si mesma. Os artistas li-terários são fragmentos desse tempo – os sujeitos, presentes, que amalgamam o confronto com o passado, sua reverberação; a for-ma que empreendem à literatura, considerando-os sujeitos dessa oração, é uma função adjetiva, a própria forma de seu desdobra-mento e de suas sequências e combinações: sujeitos gramaticais e sujeitos encarnados da literatura. A literatura é autofágica atra-

2 Essa expressão “primeiro plano” é emprestada de E. Auerbach (1892-1957), do primeiro capítulo de seu livro Mimesis (1946), em que ele diz: “[...] Há um desfile ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre de profundezas inexploradas. E este desfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano, isto é, sempre em pleno presente espacial e temporal” (pp. 4-5). “Falei mais acima do estilo homérico como sendo de ‘primeiro plano’, porque, apesar dos muitos saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente puro e único” (p. 9). Auerbach, respondendo a um diálogo entre Schiller e Goethe, identifica um efeito retardador existente na poesia homérica, cuja causa é o que ele define como uma iluminação uniforme, uma univocidade, uma constância do “primeiro plano”. 3 Cf. BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tomamos a ideia bergsoniana grosso modo, graças ao objetivo – apesar de que dela alça voo – de nosso texto, que não se pretende mais que um recorte sugestivo.

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vés deles, os artistas, os escritores, que reconhecem-se, enfren-tam-se, assumem-se nesse movimento constante de espiral de ida ao passado e volta ao presente.

Vejamos como isso acontece em Gombrowicz, considerado como emblemático da superposição caótica, literatura a redemoi-nhar sobre si, e em Borges, encarado como ícone da concavidade literária infinita, da literatura a engolir-se, em um movimento de autofagia indeterminada e interminável; não arrogamo-nos nem o direito nem a pretensão de enquadrar nenhum dos autores, ape-nas utilizamos algo do tratamento que deram a suas experiências literárias como símbolos de parte da movimentação da literatura. Manteremos em aberto, a nos acompanhar, uma ontologia, uma elucubração acerca da essência de sua existência, que aplicamos à própria literatura tomando-a num sentido literal como sujeito

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de si – ativo e com memória, atualizado nos artistas –, procuran-do um encontro com a questão artística, ainda perturbadora, do problema da representação; o ser da literatura, entendido como início e fim, em si, de uma aliteração retórica do mundo e do tem-po circular. A escolha dos dois autores é fruto da comparação feita pelo próprio Gombrowicz, que, afastado da Polônia pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e forçado a exilar-se du-rante décadas de penúria na Argentina, deparou-se com a incon-testável grandiosidade da literatura de Borges, a qual considerou completamente oposta à sua: “Ele está profundamente enraiza-do na literatura, e eu, na vida. Para dizer a verdade, sou antilite-ratura” (em “Prefácio a Gombrowicz”, de Susan Sontag, da edi-ção brasileira de Ferdydurke, p. 14). O desdém zombeteiro de Gombrowicz é interessante para a sugestão de artistas como su-jeitos encarnados da literatura, pois, levando-a a cabo, a oposição extremista que ele propõe, justamente para afastar-se de Borges, torna-se o que os une, num processo que entende a vida e a arte num mesmo sentido; a aproximação é pelo processo inconsciente da literatura a reverberar o tempo do mundo.

E já ninguém sabe discernir o que é real do que não existe, a verdade da ficção, o que se sente do que não se sente, o que é natural do que é pretensioso, e aquilo que d e v e r i a s e r 4 se confunde com aquilo que é, desclassificando-se e anulando-se mutuamente, um ao outro desprovendo-se de sua razão de ser. Ah, a grande escola do irrealismo! (Ferdydurke, p. 168)

O que significam as associações, a princípio aleatórias e aluci-nantes, de Gombrowicz? Seu absurdismo é psicológico, para-noico, o retrato do caos das arbitrariedades ordenado de ma-neira doentia, ininterrupta e profunda. Um coringa no baralho, se qualquer ordenação é plausível. Uma demência camuflada? Não. A contemplação de si mesmo enviesada, em que se desco-bre contemplando as associações, alheias. Gombrowicz mostra a concomitância dos dois lados da mesma moeda, o alcance do

4 Trata-se aqui de uma reprodução estilística fiel à formatação encontrada no texto citado, com a fonte em itálico e espaçamento atípico.

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dúbio, do ambíguo e do contraditório; ao mesmo tempo dá um sentido burlesco aos paradoxos. E um de seus grandes parado-xos é a eterna imaturidade, literalmente assumida – ainda que à sua revelia – pelo protagonista de seu primeiro romance pu-blicado, Ferdydurke. Partindo dessa imaturidade como questão criadora e vital, sua literatura parece personagem de si mesma e, ao mesmo tempo, concentra o drama da existência humana, da individualidade no seio do coletivo e do histórico; drama que só ao ser ridicularizado resguarda sua verdade: zombando da formação de si, Gombrowicz alça-a a uma verdade individual e filosófica. A busca de si torna-se condição para a liberdade inte-lectual. A imaturidade incorrigível afirma a eterna volta ao que já foi, o tempo que se revolve em si, reverberando-se, a repetição que é potência da própria memória e que, pelo humor e pela iro-nia, faz emergir o seu diferente. O indefinido, o imaturo, guar-da todas as possibilidades e, metaforicamente transposto para o tempo, amalgama o passado e o presente, é a própria potência da linguagem e do pensamento: uma grande memória ou uma grande amnésia de si, que recalca o que não elaborou, lembra-se e esquece-se aos poucos. Há, assim, uma impessoalidade por trás da busca do eu, que exige a investigação profunda da rela-ção desse eu – que, portanto, torna-se eidético5 –, com o tempo e com a memória; o eu, simultaneamente eidético e subjetivo, em formação, capta a reverberação do duplo que surge como eco, do fundo que emerge, do passado ao presente, a cada momento. Podemos pensar em Maurice Blanchot, que analisa a questão da morte, individualmente pessoal, metaforicamente impessoal:

É o fato de morrer que inclui uma subversão radical pela qual a morte, que era forma extrema do meu poder, não se torna somen-te o que me abandona, atirando-me para fora do meu poder de começar e mesmo de acabar, mas se torna o que é sem relação comigo, sem poder sobre mim, o que é desprovido de toda pos-sibilidade, a irrealidade do indefinido. Subversão que não posso me representar, que nem mesmo posso conceber como definitiva,

5 “Eidético” refere-se à dêixis, palavra cujo sentido depende do contexto. “Eu” ou “você”, por exemplo, são palavras que mudam de referente de acordo com os interlocutores ou receptores em um diálogo, apesar de serem, igualmente, as mesmas palavras, utilizadas da mesma maneira. O eu eidético, é, portanto, um eu geral.

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que não é a passagem irreversível para além da qual não há retor-no, pois ela é o que não se realiza, o interminável e o incessante... Tempo sem presente, com o qual não tenho relação ao qual não posso lançar-me, pois nele eu não morro, estou destituído do po-der de morrer, nele morre-se, não se para e não se acaba de mor-rer... Não o termo, mas o interminável, não a morte própria, mas a morte qualquer, não a morte verdadeira, mas, como diz Kafka, a chacota do seu erro capital... (L’espace littéraire, de Maurice Blanchot, apud Deleuze, Diferença e repetição, pp. 166-167)

Deleuze, sobre essa passagem de Blanchot, diz que é “como se surgissem mundos em que o individual já não é aprisionado na forma pessoal do Eu e do eu, nem mesmo o singular é aprisio-nado nos limites do indivíduo” (Ibid., p. 167); morrer é metáfo-ra para a possibilidade de pensar, ambos exigem a dissipação da subjetividade, o exceder dos limites, a substituição do atual pela virtualidade, em toda sua potência. A morte toma o lugar da pessoalidade, substitui a figura da vida singular que morreu, sendo que também jamais deixara de ser um momento imanen-te à vida; tem um caráter de exterioridade concomitante a um caráter de interioridade, ao mesmo tempo que afeta um indiví-duo, é completamente alheia a ele. A morte é a verdade do tem-po circular, circularmente descentrando-se, a potência do aca-so inteiro concentrado num momento: como potência irrestrita e única certeza, traduz a condição de possibilidade de se pen-sar o próprio pensamento, também semelhante à possibilidade de interiorizar a subjetividade impessoalizada do eu eidético; o que está em questão é o próprio inconsciente do pensamento. Mantendo ainda Gombrowicz a soar, é possível pensar sua au-torreferência como uma espécie de cartesianismo6 absurdo, a partir do qual o artista encontra-se em seu próprio interior. A busca de si e a busca de si na arte – na literatura – tornam-se uma só; o eu resultante abarca o homem moderno, em busca de sua individualidade enquanto vaga pelos mitos e sombras dos mo-numentos intelectuais erigidos pela história. Interessante por-

6 Teoria filosófica que hipervaloriza a percepção individual da existência como sendo a única verdadeira, atribuindo às demais existências (objetos, situações, valores etc.) como mera virtualização, ou criação produzida pelo “eu” primordial. Ou ainda, doutrina segundo a qual só existem, efetivamente, o eu e suas sensações, sendo os outros entes (seres humanos e objetos), como partícipes da única mente pensante, meras impressões sem existência própria.

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que a autorreferência revela a imaturidade alastrada do escritor, ao passo que também da própria literatura; se o presente retorna a todo instante do passado, como memória potencial do pensa-mento, ele em si é sempre imaturo. O deboche da abertura dos Diários de Gombrowicz,

Segunda-feiraEu,Terça-feiraEu,Quarta-feiraEu,Quinta-feiraEu.(P. 7)

É a fórmula excessiva da formação de si equilibrando-se na for-mação da própria literatura. A zombaria reside na tautologia de que um implica necessariamente no outro para Gombrowicz. É a provocação da forma literária, solipsista e insólita.

O escritor provoca a forma literária, encarnando o tem-po espiralado, o acaso inteiro contido num momento que res-guarda todas as possibilidades de combinação e dá sentido às ordenações aparentemente aleatórias. Mas e quando essa pro-vocação toma ares de fantástico? A ironia une-se à erudição e o humor da literatura em movimento autofágico desvela-se num momento complexo e infinito. Borges descreve a saga intelec-tual de Pierre Menard, um erudito que “dedicou seus escrúpu-los e vigílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente” (Ficções, p. 44), o Quixote:

Ele não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o Quixote. [...] Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. (Ibid., p. 38)

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O Quixote tomado como um fato, um complexo fato da história da humanidade e das ideias. Sua transposição literal para a con-temporaneidade, por si só, é assustadora, porque resiste a uma fatídica “caducidade final” da literatura e traduz imediatamen-te a história circularmente espiralada: “a história, mãe da ver-dade. [...] A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu” (Ibid., p. 43). A história enfim como hiato entre a memória e a expectativa, uma representação literal do presente voltando-se ao passado, a ele imiscuindo-se e dele sempre retornando, renovado. “Menard (talvez sem o que-rer) enriqueceu mediante uma técnica nova a arte detida e ru-dimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das articulações errôneas”, uma técnica que “povoa de aventura os livros mais pacatos” (pp. 44-45). Apesar disso, “como todo ho-mem de bom gosto, Menard abominava esses carnavais inúteis, capazes somente – dizia – de ocasionar o prazer plebeu do ana-cronismo ou (o que é pior) de nos deleitar com a ideia primária de que todas as épocas são iguais ou diferentes” (p. 38). Não é irrisório, ainda, citar outra passagem de Borges:

Eu diria que barroco é aquele estilo que deliberadamente esgota (ou procura esgotar) suas possibilidades e que lida com sua pró-pria caricatura. […] eu diria que é barroca a etapa final de toda arte, quando esta exibe e dilapida seus meios. O barroquismo é intelectual e Bernard Shaw declarou que toda atividade inte-lectual é humorística. Este humorismo é involuntário na obra de Baltazar Gracián; voluntário ou consentido, na obra de John Donne. (Prólogo a “Historia universal de la infamia”)

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É justamente John Donne quem diz:

Toda a humanidade é obra de um autor, em um único volume; quando um homem morre, não é que um capítulo se perca, ape-nas ele é traduzido para uma linguagem melhor; e cada capítulo deve assim ser traduzido. (citado por Jonathan Lethem em “O êxtase da influência: um plágio”, p. 117)

A autofagia literária é barroca, se pensarmos o barroco nesse sentido conferido por Borges; apesar de que esta “etapa final”, no tempo que se desdobra sobre si mesmo labirinticamente re-volvendo-se, é eterna, postergada porquanto houver escritores capazes de lidar com a caricatura inevitável, o embuste de si, que sobra de toda memória, minuciosa história do futuro pre-sente. Alain Badiou disse que Deleuze

foi o inventor, fazendo eco à virtude que ele concedia a Leibniz quanto à idade clássica, de um Barroco contemporâneo, no qual nosso desejo do múltiplo, da mestiçagem, da coexistência de universos sem regra comum, em suma nosso democratismo pla-netário, encontram onde refletir-se e desabrochar. (Deleuze – o clamor do ser, p. 17)

O barroco portanto como desdobramento necessário daqueles que se posicionam no mirante irrevogável da história do tempo circular, infinitamente multiplicada em espelhos opostos.

Há quem veja algo do processo histórico da literatura, que sugerimos processo literário autofágico, como processo de um doente terminal, a rever-se inútil e, desesperadamente, confor-mando-se com um diagnóstico de seu fim. Em um ensaio recen-temente publicado lê-se:

O único assunto que resta à escrita é o epílogo da literatura: a história das pessoas que perseguem a literatura, esfolando os joelhos nos rastros de sua passagem. E isso não é apenas um em-

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AUERBACH, Erich. Mimesis - A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

BADIOU, Alain. Deleuze – o clamor do ser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

BERGSON, Henri. Matéria e memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

______ . “Historia universal de la infamia”. In: Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo, Editora Graal, 2006.

GOMBROWICZ, Witold. Ferdydurke. São Paulo: Companhia das letras, 2006.

______ . Diario I. Madrid: Alianza Editorial, 1988.

LETHEM, Jonathan. “O êxtase da influência: um plágio”, in: Revista Serrote, n° 12, São Paulo: IMS, 2012.

YVER, Lars. “Nu na banheira, encarando o abismo (um manifesto sobre o fim da literatura e dos manifestos)”. In: Revista Serrote, n° 12. op. cit.

buste metaliterário ou solipsismo; é encarar as coisas de frente. [...] Está na hora de a literatura admitir o próprio fim em vez de brincar de marionete com seu cadáver. Devemos falar aberta-mente sobre a farsa de uma cultura que sonha coisas impossí-veis de serem criadas, pois essa farsa é nossa tragédia. (“Nu na banheira, encarando o abismo”, de Lars Yver, p. 168)

O ato aparentemente inócuo de revolver-se, pode ser, contu-do, compreendido como um desdobramento da literatura em si mesma através do tempo, múltiplo e fragmentado, conservado na memória. É a tragicidade da própria escrita, encerrada nos espíritos canibais dos escritores, que encarna o caráter barroco – ainda considerado no sentido dado por Borges – da literatura em si mesma.

Assim acaba a história do tempo: cabe-lhe desfazer seu círculo físico ou natural [...] e formar uma linha reta, mas que, levada pelo seu próprio comprimento, torna a formar um círculo eter-namente descentrado. (Deleuze, Diferença e repetição, p. 169)

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O poeta descobre a literatura: em torno de um poema de João CabralMarcos Vinícius Ferrari

João Cabral talvez estivesse de acordo com Octavio Paz, quan-do o poeta mexicano diz que a melhor biografia de um poeta são seus versos. De fato, ao percorrermos a poesia de Cabral, deparamo-nos o tempo todo com os traçados de uma geografia afetiva bastante peculiar (que inclui e aproxima Recife, Sevilha, Dacar, Quito e outros lugares onde o poeta serviu como diplo-mata) e com um vigoroso painel de gostos e predileções ar-tísticas pessoais (Miró, Le Corbusier, Francis Ponge, Lincoln Pizzie). Raramente frequentada, a poesia da memória, quando assumida pelo poeta (é o caso dos poemas de A escola das fa-cas, livro em que o memorialismo é nota dominante), oferece ao leitor menos o trajeto biográfico do homem que o itinerário de formação do poeta. É da poesia da memória que Cabral extrai a substância social de seus versos e as raízes da atitude ética que norteia sua obra. Engana-se, porém, quem pensa que as peças autobiográficas de Cabral redundam em evocação sentimental e nostálgica do passado ou, ainda, num afrouxamento daque-la poética rigorosa, racional, altamente intelectual, nada afeita a arroubos líricos e ao excesso subjetivo, que vinha se forman-do desde, pelo menos, O engenheiro (1945): antes, a perspectiva do poeta como sujeito empírico e histórico segue alimentando a produtiva e perene tensão entre lírica e antilírica, expressão e

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contenção, espelhamento e opacidade do sujeito.Em A escola das facas (1980), o título já aponta para um

processo de aprendizagem – aprendizagem do corte ou do cortante, que se dá no universo dos engenhos, dos canaviais, dos cassacos e trabalhadores do eito, íntimos do menino João. Aliás, como sinaliza Davi Arrigucci Jr. (“João Cabral: o trabalho de arte”, p. 27), o mundo do trabalho, enquanto “gesto, que ao dar corpo ao desejo, funda toda construção humana e lastreia nossa experiência histórica”, deita raízes profundas na noção cabralina de poesia como trabalho de arte. A “marca de huma-na oficina” (luz redentora que estoura ao fim de Morte e vida se-verina), as mãos que transmitem a vontade humana ao mundo exterior hostil, o embate necessário e às vezes acerado com a natureza, são todos valores básicos para o pensamento poético cabralino, os quais recebem do poeta síntese exemplar na lição valiosa que lhe transmitira “O ferrageiro de Carmona” (Crime na Calle Relator): “só trabalho com ferro forjado/que é quando se trabalha ferro/então, corpo a corpo com ele/domo-o, dobro--o, até onde quero”. Assim, compreende-se melhor tanto o elo-gio, muitas vezes reiterado, da poesia como construção racional de um objeto de linguagem quanto a galeria de “artes poéticas”, dedicadas a figuras como o toureiro espanhol Manolete, a bai-ladora andaluza e o cassaco de engenho que, embora díspares, são unificados por um mesmo senso ético de resistência e de ár-duo e consciente trabalho sobre sua matéria.

E se foi – como o atestam diversas entrevistas do poeta – com o Bandeira e o Drummond modernistas que Cabral (até então propenso a tornar-se jogador de futebol ou crítico de arte) decidiu virar poeta, foi com os empregados dos engenhos da família, nes-sa zona profícua do trabalho, que Cabral descobriu a literatura, não como arte destinada unicamente à apreciação solitária, mas como um fenômeno naturalmente social, como tecido vivo de im-passes, contradições e travamentos e que, por isso mesmo, con-tém, ao mesmo tempo em que dissipa, as marcas da desigualdade e da opressão. Veja-se o seu magistral “Descoberta da literatura”:

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No dia-a-dia do engenho, Toda a semana, durante, Cochichavam-me em segredo: Saiu um novo romance. E da feira do domingo Me traziam conspirantes Para que os lesse e explicasse Um romance de barbante. Sentados na roda morta De um carro de boi, sem jante, Ouviam o folheto guenzo, A seu leitor semelhante,Com as peripécias de espanto Preditas pelos feirantes. Embora as coisas contadas E todo o mirabolante, Em nada ou pouco variassem Nos crimes, no amor, nos lances, E soassem como sabidas De outros folhetos migrantes, A tensão era tão densa, Subia tão alarmante, Que o leitor que lia aquilo Como puro alto-falante, E, sem querer, imantara Todos ali, circunstantes, Receava que confundissem O de perto com o distante, O ali com o espaço mágico, Seu franzino com o gigante, E que o acabassem tomando Pelo autor imaginante Ou tivesse que afrontar As brabezas do brigante. (E acabaria, não fossem

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Contar tudo à Casa-grande: Na moita morta do engenho, Um filho-engenho, perante Cassacos do eito e de tudo, Se estava dando ao desplante De ler letra analfabeta De curumba, no caçanje Próprio dos cegos de feira, Muitas vezes meliantes).

Como “poema de iniciação” (o termo é de Antônio Carlos Secchin, em João Cabral: a poesia do menos, p. 285), “Descoberta da literatura” visivelmente arma, desde os primeiros versos, uma interessante articulação de aproximações e distancia-mentos, que dá conta desse lugar tenso e desconfortável que o poeta ocupa – posto, por assim dizer, entre a “Casa-grande” e a “Senzala”, entre uma certa expectativa de literatura e uma prá-tica popular, embora escrita, ainda muito dependente de um su-porte de oralidade (“letra analfabeta”). O sinal de diferença que separa um possível cânone da Casa-grande e os romances de cordel, na verdade, não parece resultar unicamente da confor-mação oral de que essa produção é originária. A condenação é social – condenados são os cegos de feira, autores dos folhetos e prováveis meliantes, o português estropiado (“caçanje”: língua crioula falada por povos angolanos e, por extensão, português “incorreto”), o público ouvinte (“cassacos de eito e de tudo”). Ainda mais: para a Casa-grande, aos romances de barbante – e aqui seguimos a pista lançada por José Pasta Jr. – certamente não caberia o rótulo “literatura”:

[…] a postura de recusa exemplar das chamadas artes do povo surge não das origens na matriz escrita tomada em si – de que a literatura aparece como a manifestação originária mais forte –, mas sim de uma determinada e específica concepção de litera-tura (e, por extensão, dos códigos “altos”). (“Cordel, intelectu-

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ais e o Divino Espírito Santo”, p. 64)

De acordo com o crítico, para determinados setores, por alguma razão impossibilitados de fruir e compreender as manifestações artísticas populares, a literatura é delimitada a partir de um re-corte já em si conservador, de uma concepção bastante estreita, que enfeixa sob o manto poderoso do “literário” apenas aqueles objetos estéticos que se lhe afiguram como obras: criação indi-vidual, original, homogênea quanto ao gênero e ao código a que pertence, integrante de um regime de produção e difusão sensi-velmente diverso daquele em que se insere a literatura de cordel e que é registrado pelo poema de Cabral. Por isso mesmo, o título do poema ganha outro contorno: descobrir os romances de cor-del é descobrir a literatura em sentido amplo, como arte da pala-vra, fora das limitações dos regimes discursivos próprios a esta ou àquela classe. É tomar contato (e vai nisso seu caráter conspi-rante) com aquilo que a ideologia familiar marginalizava ou es-condia. Des-cobrir: tirar a cobertura, trazer à tona, erguer o véu.

Como se disse, o poeta encontra-se entre dois universos estranhos um ao outro, os quais deveriam seguir imiscíveis (os parênteses que isolam a reação da Casa-grande, ao fim do poe-ma, são marcas desse desejo de distância), mas cuja confluência é permitida, vez ou outra, pelo regime de sociabilidade flexível e algo estranho da vida dos engenhos. De um lado, o poema acu-mula distâncias: não apenas a assimetria entre filho-engenho/cassacos de eito, mas também a discrepância entre a “roda mor-ta”, o “carro de boi, sem jante” – marcas da realidade precária de um engenho, ao que tudo indica – o “fogo morto”, e o “espaço mágico” das incontáveis peripécias de bravos gigantes, envolvi-dos em lances de crime e amor, lidos, entretanto, por um meni-no franzino, temeroso de que seus ouvintes, pouco acostumados às regras do jogo literário e à natureza do texto ficcional, o con-fundissem com o brigante. Por outro lado, o “folheto guenzo” (= muito magro) é semelhante ao seu leitor: por força da meto-nímia, folheto e menino aproximam-se por um nexo comum (o

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aspecto franzino do jovem poeta liga-se ao tamanho e às carac-terísticas do pequeno romance de barbante). A escolha do adjeti-vo, certamente, não é casual: o rio Capibaribe, eu lírico do longo poema narrativo O rio (1954), assim se refere ao menino do cais da Jaqueira (o próprio Cabral) que o via correr: “há na curva mais lenta/do caminho da Jaqueira/onde (não mais está)/um menino bastante guenzo/de tarde olhava o rio/como se filme de cinema”.

O “frágil assentamento do poeta em qualquer dos dois po-los” traduz-se também na organização formal do poema, que “se utiliza de um metro popular, típico de cordel (redondilha maior), mas se esquiva da tradicional cesura na terceira sílaba, e trabalha com uma rima difícil (-ante) em termos de contingente vocabular” (SECCHIN, Ibid., p. 287). Além disso, o uso da rima toante, vezo da poesia cabralina, em alguns versos (engenho/segredo, lances/migrantes), diverge do procedimento básico da literatura de cordel, a rima consoante.

Tensionado entre dois lugares sociais diferentes, ao mes-mo tempo próximos e distantes, a meio caminho entre dois có-digos literários, sem aderir totalmente a nenhum deles (se, por um lado, adota o verso popular de sete sílabas, por outro não abre mão da rima toante), o poeta lê os folhetos “como puro au-to-falante”, unicamente como mediador, portador de uma pala-vra alheia, incumbido de torná-la legível ao maior número pos-sível de pessoas. Mas, como é típico do regime de transmissão oral, ao Cabral-menino cabia não apenas ler, como também ex-plicar os romances de barbantes. A autoridade é o leitor e não o texto; é ele quem poderá ser interpelado por seus ouvintes e terá de se haver com saídas que não as do texto.

Se o poeta toma parte do ritual, se escapa à tutela familiar e descobre uma manifestação literária antes censurada, graças ao que intui que o domínio do discurso e a socialização da pala-vra são, antes de mais nada, “o exercício de uma consciência de lugar social” (Ibid., p. 285), se ultrapassa a barreira que separa dois universos distintos, mas não se coloca inteiramente no lu-gar de seu Outro social, cumpre então perguntar pelo sentido

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e pela repercussão dessa experiência formadora, em termos da poética do escritor. Ou, noutras palavras, por que o poeta não incorpora em seu poema os procedimentos formais típicos da literatura de cordel, sem reservas ou distâncias?

Parece útil voltarmo-nos a um pequeno ensaio teórico de Cabral, apresentado como tese ao Congresso Internacional de Escritores de São Paulo, de 1954, intitulado “Da função moderna da poesia”. Em linhas gerais, nesse texto, o poeta sustenta que o desenvolvimento da lírica no século xx permitiu aos poetas avançarem consideravelmente no tocante ao refino dos meios expressivos, à adequação da linguagem poética e à representa-ção mais fiel da realidade moderna. Todavia, em compensação, obliterou-se a contraparte orgânica da poesia – seu poder de co-municação. Desprezando o poder social e coletivo da literatura, os poetas, afirma Cabral, dão-se em espetáculo, entregam-se ao máximo individualismo, às imagens cerradas, a um tipo de es-crita intransitiva, que dissolve os elos necessários entre o poema, o poeta e seu público. O poema descolou-se da práxis, tornou-se excessivamente hermético e não encontra mais lugar em meio às exigências azafamadas da vida moderna. Diz Cabral no ensaio:

Cada tipo de poema que conheceu a literatura antiga nasceu de uma função determinada: ajustar-se às exigências da estrutura perfei-tamente definida do poema era, para o poeta, adaptar sua expres-são poética às condições em que ela poderia ser compreendida e, portanto, corresponder às necessidades do leitor. O poeta mo-derno, por não ser funcional, exige do leitor um esforço sobre--humano para se colocar acima das contingências de sua vida. O leitor não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica durante a sua rotina diária.

Ora, a “função determinada” e as “necessidades do leitor”, a adequação do texto às exigências próprias a seu gênero são atin-gidas em cheio pelos romances de cordel, no episódio narrado em “Descoberta da literatura”: entretanto, como os cassacos do

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eito não podem defrontar-se com a poesia em suas atividades normais, a literatura só pode emergir quando o trabalho silen-cia, quando a opressão cala em favor da imaginação.

Ainda em “Da função moderna da poesia”, Cabral propõe a reabilitação de formas literárias tradicionais, como a poesia narrativa, a sátira e a anedota ou os metros menores, caídos em desuso na modernidade. Contudo, isso não significa tomar as formas como a-históricas, ou recuperá-las sem mediações ou distanciamentos. Igualmente, a aspiração do poeta a uma poe-sia “funcional” não deverá horripilar aqueles já escaldados pela deformadora lógica utilitarista do capitalismo. O que está em jogo, segundo me parece, é a refuncionalização e a ressignifica-ção das formas da tradição que, gastas pelo tempo, adquiriram certa dicção mais impessoal, infensa ao exagero e à saturação do individualismo moderno e mais abertas à comunicação.

Assim, na construção Morte e vida severina, por exemplo,

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os mistérios e moralidades medievais e os autos pastoris do fol-clore pernambucano são convocados, mas despidos de sua fun-cionalidade religiosa e transcendental original e postos a servi-ço da denúncia das miseráveis condições materiais de vida da população nordestina. Nessas formas, que a pesquisa moder-nista relegou ao esquecimento ou das quais aproximou-se ape-nas com intenção paródica, Cabral vislumbrou algumas virtua-lidades afins à sua poesia: certo gosto pelas imagens concretas, o tom didático, o caráter “épico” (acentuadamente narrativo) da dramaturgia sacra etc.

Peter Bürger pergunta-se, a alturas tantas de sua Teoria da vanguarda, se a superação da autonomia da obra de arte – isto é, sua reinserção plena na práxis vital e no cotidiano das pes-soas – é mesmo desejável e se a distância entre a arte e a prá-xis não garantiria afinal “a margem de liberdade dentro da qual alternativas para o existente passem a ser pensáveis” (p. 114). Desejando restituir à poesia um vetor de socialização e comuni-cabilidade, dotá-la novamente de um poder transitivo, tal como se vê em “Descoberta da literatura”, Cabral não dispensa, em momento algum, no tocante a sua matéria e às formas de que se serve, a atitude reflexiva distanciada e o vigoroso lastro crítico que sustentam sua poesia, a qual, como toda obra de arte ver-dadeiramente grande, finda a leitura (ou a audição), dá a seus leitores rudimentos que lhes permitam pensar nas alternativas realmente capazes de transformar o existente.

ARRIGUCCI JR., Davi. “João Cabral: o trabalho de arte”. In: ______ . O guardador de segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

MELO NETO, João Cabral. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

PASTA JR., José Antônio. “Cordel, intelectuais e o Divino Espírito Santo”. In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 2003.

SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: INL, 1985.

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EscolhoParadoNa plataforma superior

Entre as pernasNo chãoAs compras num plástico

Longe do verso perto da prosaSem ânimo algumPara as sortidas sempre – Enquanto duram – Venturosas da paixão

Longe tão longeDo humor da ironiaDas polimorfas vozesSibilinasTranstornadas no ouvidoDa língua

Ali onde o chão é chãoAs pernas, pernasA coisa, coisaE a palavra, nenhumaOnde apenas se refrata

Um céu, que não existeBruna de Carvalho

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A ideiaDe um pensamento exauridoDe movimento

Entre dois trajetosDois portos(Duas lagunas)Duas doenças

Sublimes virtudes do acasoPor que não me tomaisPor dentroE me protegeis do frio de foraDa incessante, intolerável, fuga do enredo?Da escolha?

Não causaria escândalo dizer, de uma grande parte da produ-ção de Francisco Alvim, que há confluências entre sua poesia e propostas colocadas por alguns dos poetas brasileiros dos anos 70, agrupados hoje sob a classificação de poesia marginal. E, se tais confluências de fato existem, são originadas de um ponto comum facilmente identificável entre Alvim e os poetas mar-ginais: a desindividualização. Para o grupo, era determinante a tendência da coletivização da prática da escrita, transmuta-da em lugar-comum da comunicação, como se a poesia pudes-se – e devesse – oferecer campo de reconhecimento da fala sub-metida aos acordos do cotidiano; algo dessa descrição ressoa na poesia de Francisco Alvim, especialmente no caso dos poe-mas que compõem o livro Elefante. Mas estabelecer, de cara, tal identificação, parece-me arriscado; a leitura vem a se ofus-car pela excessiva luz imposta pelo reconhecimento com a dita poesia marginal.

“Escolho” é uma colisão na fluidez que conduz a leitura da maior parte dos poemas de Elefante, fluidez justificada por uma tonalidade leve, graciosa; e – por mais que isso não os pu-

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rifique de um certo veneno visto aí pela crítica1 – podem ser li-dos sem maiores implicações (embora alguns apresentem cer-ta contradição, algo que, deixado em suspenso, continua a nos perturbar,2 como em “Vizinho”).3 O poema, já no seu choque da primeira palavra, “parado”, obriga-nos a partilhar da experiên-cia do eu lírico, estagnado no particípio. Aquele que passava dis-traído pelos poemas/anedotas sente-se forçado a também parar e deixar-se verdadeiramente envolver. Assim, parece delinear – até por sua extensão maior em comparação a construções de um úni-co verso – um caminho de imersão. O nominalismo prosaico pre-sente nas duas estrofes seguintes, descritivas, transmuta-se num aprofundamento do, em falta de expressão melhor, “lirismo” que absorve o eu lírico, mas que, outrossim, não o retira de todo da si-tuação prosaica, constituindo um núcleo de tensão.

Os dois primeiros versos, apartados por estrofes, retomam algo da fragmentação dos poemas/anedotas que, em Elefante, configuram alguma parte isolada de diálogo, frase, provérbio, lugar-comum, destacados e ilhados na composição. Nas pala-vras de Cacaso, “tudo é familiar, reconhecível, singelo” (Não quero prosa, p. 311).

NegócioDepois a gente acerta

Luísa– Vim também saber se vocêJá leu o livro– Li. Tão romântico. Parece coisa de adolescente.Fecha a gavetinha à chave.Sandália florida blusa amarelaBraços morenos

Esses poemas de Alvim ressoam, sobretudo pela estrutura pró-pria ao diálogo, algo da realidade imediata, da conversa ouvida na rua, na televisão, na sala de casa. Esse realismo que se quer

1 A leitura de Roberto Schwarz, por exemplo, a qual ressalta nessa poesia ecos de um capitalismo violentamente progressista enodoado por relações aqui e lá patriarcais, e a miséria remanescente da congelada (porque irresolvida) modernização conservadora (expressão que Iumna Maria Simon utiliza em “Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969)”, In: América Latina: palavra, literatura e cultura. Vol. 3); trata-se, para Schwarz, de um certo viés marcado “pela notação crítico-realista, com alto teor de despropósitos sabidamente brasileiros”. In: “O país do elefante”. 2 “Diante dessas indagações todas predomina o sentimento de um certo mal-estar”, Cacaso. “O poeta dos outros”, In: Não quero prosa. p. 315. 3 Elefante, p. 30.

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simplesmente a transposição de uma realidade comum (e que, no entanto, não pode ultrapassar as raias da estetização) cul-mina num impasse à sedimentação formal de uma experiência passível de desdobramento,4 uma vez que a realidade mesma é “pobre em experiência comunicável” (BENJAMIN, Magia e téc-nica, arte e política, p. 198). Cabe, embora o contraste seja forço-so, citar Valéry.

Antigamente o homem imitava [a] paciência. Iluminuras, mar-fins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamen-te polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúci-das... – todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuo-sística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não conta-va. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado. (apud BENJAMIN, Ibid., p. 206)

Se há algo de que a vivência moderna numa grande metrópole não partilha é a paciência. Os poemas de Francisco Alvim, de um modo geral, formalizam-se de acordo com essa realidade impaciente, pragmática, fria (esse aspecto é o que mais o apro-xima do grupo dito marginal), quase sempre num humor escar-ninho, sobrevoando a ridicularização:

ArgumentoMas se todos fazem

Como se a voz que enuncia, implicitamente, risse para não cho-rar, uma vez que o que ridiculariza torna-se a matéria rebaixada da escolha poética – escolha quase obrigatória para a sobrieda-de realista de um poeta que quer olhar para o mundo. E, nesse mundo, os problemas concernentes à práxis não ultrapassam a razão instrumentalizada, em razão de que o signo poético se re-trai, exclui o transcendente, num gesto de autoesgotamento lin-guístico no que já está dado (deixando de lado a experimenta-

4 A experiência à que me refiro está fundamentada no conceito benjaminiano de experiência, que percorre uma vasta extensão dos seus ensaios, mas que está na base, sobretudo, de sua reflexão sobre “O narrador”. In: Magia e técnica, arte e política.

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ção com as possibilidades da linguagem). A isso parece aludir o verso de “Escolho”, em si mesmo problemático: “longe do verso perto da prosa”. Pois afinal é um verso. E também a secura des-critiva das duas estrofes anteriores: “Na plataforma superior// Entre as pernas/ no chão/ as compras num plástico” (lembran-do aqui a descrição nominalizada e sem vírgulas de “Luísa”). Existe algo de uma facilidade passível de resolução sem maio-res entraves, algo do comum da prosa que, como as compras no plástico, repousa no chão; de modo inverso ao que a idiossincra-sia da linguagem da poesia pode instaurar:

CorpoEnquanto mijaSegura a pasta

Entretanto, em “Escolho”, o esforço poético sobre o rasteiro, o denotativo, transluz e toma a forma de especificidade. Todo o começo do poema não apresenta nenhum verbo além da petrifi-cação daquele particípio inicial. A descrição, estagnada, entra-nha-se em uma falta de articulação, de entrelaçamento verbal, de organicidade e de movimento, endossados pela separação dos versos que estilhaça qualquer unidade (lembrando aqui o conjunto do livro, que, por seus poemas muito curtos e frag-mentados, forma um mosaico). As compras, por sua vez, estão no chão, embaladas pelo plástico: as imagens concretizadas em objetos reiteram o baixo e a superficialidade. No entanto, sua inscrição no poema não pacifica – antes constrói – uma tensão, opondo-se ao sujeito que se localiza na plataforma superior. Aliás, a própria presença desse sujeito parado perturba a impas-sibilidade do objetual posto pela descrição, radicalizando o va-lor da estagnação (por que o sujeito está parado? Por que nesse local? O que faz, ou melhor, o que exatamente não está fazendo? Qual é a reflexão em jogo, aonde pretenderia chegar?).

A quarta estrofe, cuja linguagem começa a exalar peque-nos sinais metafóricos (“sortidas venturosas da paixão”, por

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exemplo), traz um único verbo na expressão “enquanto duram”, fragmentando o “sempre”, em sua mesma referência às “sorti-das”. Tais “sortidas” podem ser as de um eu lírico cujas saídas, caminhadas, são elas “venturosas da paixão”, lembrando que a leitura de Elefante, por vezes, assemelha-se a um passar pelo co-tidiano registrando o que se ouve (entretanto essas sortidas se-riam venturosas da paixão, o que confere desejo de sublimação ao banal e retoma uma polarização). O verso seria de todo flui-do: “sem ânimo algum para as sortidas sempre venturosas da paixão”, se não fosse a interrupção da sentença intercalada, ex-tremamente significativa porque conjura também uma ruptura no “sempre”, como se à poesia do imediato não fosse concedido dizer “sempre”. Isso se converte em tabu para o eu lírico, “sem ânimo algum”. O empecilho e a estagnação tornam-se uma es-pécie de força da gravidade da qual a articulação do poema não consegue escapar. E aqui poderíamos supor que o eu lírico se refere à situação do fazer poético. Chico Alvim, “o poeta dos ou-tros”, nas palavras de Cacaso, é aquele que cede a voz, que es-cuta e captura, e essa, digamos, liquidificação transmuta-se em obstáculo ao autodesdobramento da voz poética. Questão que o olhar atilado de Drummond, em seu “Elefante”, já na década de 1940 pôde perceber.5

Se o leitor ainda não estiver convencido sobre a verve me-talinguística que percorre o poema, na próxima estrofe pode-mos observá-la com mais evidência. O poeta, ilhado num pon-to “longe tão longe/ do humor da ironia”, toma distanciamento crítico de sua poesia, analisando em tom sóbrio o próprio humor e a ironia dos quais se vale em tantos de seus poemas. O “para-do”, no início, não necessariamente alude ao “eu” (embora no final do poema esse “eu” venha à tona). A ambiguidade entre a singularidade e o genérico remete à questão do ceder a voz ao outro, copiar a fala do outro, construir-se, como poesia, a partir do outro. O outro que se atrita, o todo tempo, com a utopia da pura individuação, que nesse sentido não encontra espaço vasto para se aprofundar. Nessa estrofe, a instância até então não in-

5 A leitura do elefante drummondiano como metáfora da poesia no mundo moderno é de Iumna Maria Simon, “‘Anúncio da rosa’: O canto se oferta ao povo.” In: Poética do risco.

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dividualizada encontra-se longe “das polimorfas vozes/ sibili-nas/ transtornadas no ouvido/ da língua”. Parece-me que estes versos são descrições da poesia de Chico Alvim, aquela que es-cuta e recompõe a fala comum. Nessa observância, a reflexão é articulada numa linguagem notavelmente “literalizada”.6

A leitura verte para a costa verdadeiramente “lírica” des-sa ilha na qual está o poeta, da imersão no individuado, até pelo emprego da linguagem rebuscada que contrasta com o discurso nominativo e sem grandes transtornos dos dois primeiros ver-sos. De todo modo, essa “literalização” entra em contraste com o próprio conteúdo que, de um determinado ponto de vista, alu-de à vivência poética contemporânea (no sentido de que a vida cotidiana do trabalho não estimula ou favorece a experiência subjetiva, e que muitos dos poetas classificados como marginais gostariam, realmente, de se desindividualizar em favor da cor-rente literária coletivizada). Parece que todo o ceder a voz, o es-tar atento à fala alheia que logo vira fala própria, no poema, cul-mina em angústia. Expondo assim a vertente negativa de uma vivência “permanentemente presa ao presente”,7 o polo oposto da experiência. Experiência esta que ficou para trás. O poema, por conseguinte, descortina um estado de aporia do sujeito. A estagnação daquele eu lírico, antes apenas indicado pela plata-forma superior – porém não especificado –, particulariza o sujei-to, a um só tempo: trata-se, talvez, de um poeta inserido numa condição bem especificada do fazer poético.

A próxima estrofe traduz o esgotamento em si da poesia, que não transcende: “ali onde o chão é chão/ as pernas, pernas/ a coisa, coisa”. Estrofe que economiza nos verbos, apostando no efeito da repetição a qual, neste caso, parece servir à ênfase da coisa em si: o sujeito cede uma vez mais a voz ao objeto, elidin-do-se (mesmo porque se trata de uma expressão de uso comum). Mas o verso “e a palavra, nenhuma” quebra com a previsibilida-de da repetição (assim como este poema, junto a algumas outras exceções, quebra com o andamento geral do livro). O que vem à tona nesse verso é aquela extrema proximidade com a reali-

6 Tomo aqui o literário como o convencionado “bem escrever”, cuja linguagem algo pomposa é marcada, por exemplo, pelo uso da metáfora.

7 Recorrendo à canção “Olho de peixe” do álbum homônimo de Lenine, de 1992.

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dade empírica que os poetas marginais pretendiam conferir à palavra – a qual, porém, nunca se constitui em plena coincidên-cia com a coisa. A palavra, como forma de referenciar o mundo, mantém a distância do arbitrário, do artifício. A palavra não é a coisa – é precisamente nesse sentido que o poeta pode explorar suas possibilidades com a língua. Na poesia que se quer aproxi-mar da empiria, no entanto, a liberdade está vedada à palavra, já desgastada e tornada clichê. E que ao poeta impõe um proble-ma, uma vez que a linguagem afrouxa seu poder de resistência a determinada ordem social. Rende-se como um objeto de consu-mo, porque não elabora sua própria idiossincrasia, que abriria as portas a um pensamento outro: à articulação que oferece oposi-ção àquela ordem. O que, é preciso lembrar, não é o caso desse poema (mas talvez de certa poesia produzida na década de 70, resumindo-a um pouco grosseiramente).

A escolha vocabular dos últimos quatro versos dessa es-trofe faz reluzir a posição do inerte, agora pelo “pensamento exaurido de movimento”. Como se, numa possível articulação menos colada ao clichê, o movimento poético do eu lírico apon-tasse cada vez mais para um entranhamento, um confinar-se. Há, entretanto, algo que não se resolve. Roberto Schwarz, em seu mencionado ensaio sobre Francisco Alvim,8 diz que as vozes dos poemas, retiradas da fala comum, descontextualizadas, im-põem um enigma no que diz respeito ao seu efeito. Diz ele que “as palavras não são de ninguém em particular”. E, aqui, a dúvi-da paradoxalmente vem iluminar a leitura do poema. O pensa-mento exaurido de movimento primeiro pode girar em torno da própria poesia que, colada ao mundo, tenta apagar sua proprie-dade de referenciação, tornando-se pretensamente ela mesma aquilo que antes apenas significava (não se trata, no caso de tal poesia, daquela recriação derivada da idiossincrasia da imagem poética, no sentido em que o poeta cria uma realidade só com-preensível em si mesma, e a linguagem passa de mera funciona-lidade a apresentação9). Mas parado também está o próprio poe-ta, distanciado da poesia que ele, em outras ocasiões, produz.

8 “Elefante complexo”. Este tema é desenvolvido na parte intitulada “Cristiano ou Darlene?”.

9 Paz, O. “A imagem”, p. 137.

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Na distância reencontra a petrificação.

Onde apenas se refrataA ideia

De um pensamento exauridoDe movimento

Contudo, se mesmo a mera ideia de um pensamento exaurido de movimento se refrata, isto é, desvia-se, a aporia é comple-ta. Como se a busca desse sujeito (que não se sabe bem quem é, embora eu já tenha me adiantado em determinadas hipóteses) estivesse limitada a retornar sempre ao mesmo ponto, que é o da estagnação. Ao mesmo tempo, a condição de estagnado impe-le à busca, à reflexão sobre o que, então, fazer da poesia (senão transcrever o literal, o já dado).

A penúltima estrofe produz semanticamente sucessivas tentativas de colocação deste eu lírico, sempre entre duas coisas (que no início estava tão claramente localizado, embora já numa oposição entre o superior e o rasteiro). De modo análogo ao poe-ta que, literalizado e erudito, procura lidar artisticamente com questões que não necessariamente estariam em sua pretensão primeira. Isto deriva de um posicionamento seu, posto sob a luz da ponderação em “Escolho”. Vale ressaltar que as imagens des-sa estrofe endossam a noção do trajeto, do caminho, do porto (e, visualmente entre parênteses, duas lagunas – a laguna que não consiste nem na profundeza do oceano, nem no rasinho da beira da praia). O problema – buscar a dicção e ao mesmo tem-po ceder a voz – retorna obsessivamente, neste nem se aprofun-dar e nem se contentar com a poética rasa, sem encantamento, característica à produção marginal. Tão obsessivamente a pon-to de ser doença. Aqui o porto, que mais facilmente remexe no imaginário da viagem, da busca livre, transmuta-se num estar entre doenças, numa situação tal que nada se mostra, em verda-de, vantajoso ou preferível, tampouco benéfico. Situação que a

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realidade social contemporânea repisa.10 Trata-se de um estado de coisas petrificado (e reificado, para falar junto a Adorno) em que a crescente massificação da arte transmuta-a em mais uma ferramenta da ideologia, em favor do “andamento macio da ma-quinaria” (ADORNO, Notas de literatura I, p. 57). Maquinaria da qual a “desliteralização” converte-se em engrenagem.

Algumas oposições expostas ou insinuadas ao longo do poema são retomadas e enlaçadas (ainda que se conservando em aberto na interrogação) pela última estrofe. Esta inicia com um tom elevado, o qual se autoafirma pela escolha vocabular: “sublimes virtudes do acaso”, referidas pela segunda pessoa do plural. A tessitura evidentemente sublimada a que se entrega o poeta questiona sua escolha, isto é, a impossibilidade de fugir “do frio de fora”, de refratar-se. A “escolha” se opõe ao acaso e, no entanto, toda a poesia de Francisco Alvim parece ancorar-se no acaso. Há um jogo singular com a oposição entre o arbitrário e o refinadamente trabalhado (de que, na maior parte das vezes, o poeta se vale para compor a aparência do casual).

10 E que já esteve pior, evidentemente. Por exemplo, nos anos 70, em plena ditadura militar. O poema, embora de um livro de 2000, pode aludir a esta vivência social do passado, que de certa forma também contribuiu para o estabelecimento massivo de um sistema cujas consequências – a indústria cultural, por exemplo – tenderam a se agravar nas últimas décadas.

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O ritmo embebido numa atmosfera própria, de estagnação, pe-netrado por pausas, pelas palavras isoladas em versos, enjam-bements, repetições, dá sentido à aporia, mas também uma construção que aponta para algo (o poema termina numa in-terrogação, e a interrogação não é, por excelência, o estado do conformado). No entanto, é preciso lembrar que o apagamen-to da individualização, tornado recorrência numa determinada poesia, converte-se em questão tão problemática à lírica, que o poeta, na ausência da possibilidade de restaurá-la, entrega-se à tentativa de reflexão sobre seu próprio fazer; desdobramento que germina uma experiência estética possível, dando lugar a uma razão não voltada à imediatez da práxis. Toda a possibili-dade que daí surja, ainda que numa minúscula fresta, tal como num luar entre parênteses,11 numa rosa no asfalto, num “ama-nhã recomeço”, vem, por conseguinte, do rigor da reflexão jun-to ao zeloso labor técnico. O entregar-se, pura e simplesmente, não oferece essa possibilidade, e é aí que o poeta distingue-se da vivência estética marginal. É a este tema, também, que pa-rece aludir o poema “Céu”: à “felicidade pensada” do poema. À maneira de Drummond, cuja razão aguçada para dar voz à ne-gatividade (“há muitas sombras no mundo”12) o impelia ao en-tranhamento num mundo sombrio, submerso em angústia, en-travando-o face à aporia. Temas estes que “Escolho” circunda à sua maneira, e pelos quais parece tatear em busca de uma felici-dade possível e pensada: “O poema – luz de dentro/ fora”.13

ALVIM, Francisco. Poemas [1968-2000]. São Paulo: Cosac Naify. Coleção Ás de colete, 2004.

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática, 1978.

11 Como no poema “Opaco”, de Drummond. A ideia teve como ponto de partida a reflexão de Betina Bischof em seu Razão da recusa. Um estudo da poesia de Carlos Drummond de Andrade. 12 Verso do “Poema dedicado a Drummond”, Elefante, p.32. 13 Idem.

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“El métro es un gran invento, Bruno. Un día empecé a sentir algo en el

métro, después me olvidé... Y entonces se repitió, dos o tres días después.

Y al final me di cuenta. Es fácil de explicar, sabes, pero es fácil porque en

realidad no es la verdadera explicación. La verdadera explicación sen-

cillamente no se puede explicar. Tendrías que tomar el métro y esperar a

que te ocurra, aunque me parece que eso solamente me ocurre a mí. Es un

poco así, mira.”

Julio Cortázar, El Perseguidor

Muito se fala sobre as relações do personagem Johnny Carter, do conto “El Perseguidor”, com a vida de Charlie Parker, jazzis-ta cuja biografia foi, para Cortázar, inspiração declarada para a construção do personagem. Mas também é interessante notar o quanto Cortázar pôs de si mesmo em seu Johnny Carter, e que um dos episódios mais significativos vividos pelo personagem é reconstrução de uma experiência que Cortázar dizia ter cons-tantemente ao andar de metrô: a sensação de estar num lugar em que a relação ordinária entre espaço e tempo se modifica. Cortázar, numa entrevista a González Bermejo, narra a expe-riência vivida por ele e que se reproduz no conto: certa vez, an-dando de metrô, o autor começou a recordar uma viagem fei-ta com um amigo seu, relembrando detalhes, fatos e sensações.

Máquina do tempo: a imagem do trem no blues e em “El Perseguidor”, de Julio CortázarCarolina de Pontes Rubira

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Quando se deu conta, tendo chegado ao destino, as lembranças detalhadas, que precisariam de muito tempo para serem elabo-radas, haviam ocupado apenas um espaço de dois minutos en-tre uma estação e outra. Cortázar se questiona: como pôde se lembrar de tantas coisas num intervalo de tempo tão pequeno? O personagem Johnny Carter, num diálogo com Bruno, conta sobre a experiência similar que vive no metrô:

— Me puse a pensar en mi vieja, después en Lan y los chicos, y claro, al momento me parecía que estaba caminando por mi barrio, y veía las caras de los muchachos, los de aquel tiempo. No era pensar, me parece que ya te he dicho muchas veces que yo no pienso nunca; estoy como parado en una esquina viendo pasar lo que pienso, pero no pienso lo que veo. ¿Té das cuenta? Jim dice que todos somos iguales que en general (así dice) uno no piensa por su cuenta. Pongamos que sea así, la cuestión es que yo había tomado el métro en la estación de Saint-Michel y en seguida me puse a pensar en Lan y los chicos, y a ver el barrio. Apenas me senté me puse a pensar en ellos. Pero al mismo tiempo me daba cuenta de que estaba en el métro, y vi que al cabo de un minuto más o menos llegábamos a Odéon, y que la gente entraba y salía. Entonces seguí pensando en Lan y vi a mi vieja cuando volvía de hacer las compras, y empecé a verlos a todos, a estar con ellos de una manera hermosísima, como hacía mucho que no sentía. Los recuerdos son siempre un asco, pero esta vez me gustaba pensar en los chicos y verlos. Si me pongo a contarte todo lo que vi no lo vas a creer porque tendría para rato. Y eso que ahorraría detalles. Por ejemplo, para decirte una sola cosa, veía a Lan con un vestido verde que se ponía cuando iba al Club 33 donde yo tocaba con Hamp. Veía el vestido con unas cintas, un moño, una especie de adorno al costado y un cuello... No al mismo tiempo, sino que en realidad me estaba paseando alrededor del vestido de Lan y lo miraba despacio. Y después miré la cara de Lan y la de los chicos, y después mé acordé de Mike que vivía en la pieza de al lado, y cómo Mike me había contado la historia de unos caballos salvajes

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en Colorado, y él que trabajaba en un rancho y hablaba sacando pecho como los domadores de caballos... — Fíjate que solamente te cuento un pedacito de todo lo que estaba pensando y viendo. ¿Cuánto hará que te estoy contando este pedacito? — No sé, pongamos unos dos minutos. — Pongamos unos dos minutos — remeda Johnny. Dos minutos y te he contado un pedacito nada más. Si te contara todo lo que les vi hacer a los chicos, y cómo Hamp tocaba “Save it, pretty mamma” y yo escuchaba cada nota, entiendes, cada nota, y Hamp no es de los que se cansan, y si te contara que también le oí a mi vieja una oración larguísima, donde hablaba de repollos, me parece, pedía perdón por mi viejo y por mí y decía algo de unos repollos... Bueno, si te contara en detalle todo eso, pasarían más de dos minutos, ¿eh, Bruno? (Las armas secretas, pp. 74-75)

É interessante observar que Cortázar reconstrói essa relação com o tempo justamente dentro de um trem do metrô, já que o trem é uma das imagens mais fortes do blues e que ainda per-maneceu no jazz em standards consagrados como “Take the A’ train”, de Billy Strayhorn, música tema (signature tune) da or-questra de Duke Ellington. Mas antes de “Take the A’ train” falar do trem que circula dentro da cidade, o blues manteve uma rela-ção estreita com o “gigante de ferro”, iniciada com os cantos de trabalho entoados pelos afro-americanos que trabalharam na construção das primeiras estradas de ferro dos EUA. Durante o trabalho, era proibido conversar, então os trabalhadores can-tavam. As letras desses cantos possuíam a característica que se-ria comum em todo o blues country de falar sobre o cotidiano da comunidade e, dessa maneira, o trem passou a ser tema cons-tante nessas músicas. Depois da construção das linhas ferroviá-rias, e da mais extensa do mundo, a famosa Transcontinental (1869), quando os trens passaram a circular por muitas regiões dos EUA, o “gigante de ferro” tomou formas variadas no imagi-

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nário dos bluesmen.A ideia de que o trem promove uma passagem é algo cons-

tante no blues: é ele quem leva embora a mulher amada (“Love in vain”, Robert Johnson, 1937); a família e os amigos (“Long black train”, Lonnie Johnson, 1930); é ele quem povoa o desejo de quem quer deixar o campo ou voltar para ele (“Train fare home blues”, Muddy Waters, 1969).

O mais interessante, no entanto, é notar que essa passa-gem não se trata apenas daquela que se faz espacialmente, de um lugar a outro, mas também dentro do tempo: entrar num trem, sair do campo e ir à cidade, não é apenas deslocar-se es-pacialmente, mas ir para o futuro, esse futuro que está na cida-de. O som e a imagem do trem, sua presença, são parte desse homem do campo que foi para a cidade ou do homem que per-manece no campo e sonha com essa cidade. De qualquer modo, não importa onde esse homem esteja o trem permanece nele:

I was born in Dixie in a boomer’s shack,Just a little shanty by the railroad trackFreight train was it taught me how to cry,The holler of the driver was my lullaby.I’ve got the freight train blues (hee, hee, hoo)[…]Well, the only thing that makes you laugh againIs a south bound whistle on a south bound trainEvery place I want to goI never can go because you knowBecause I got the freight train blues (hee, hee, hoo)Oh, lawdy mama, got’em on the bottom of my ramblin’ shoes(Roy Acuff, Jimmie Riddle, “Freight train blues”, 1947)

Além do trem como símbolo de passagem para outro espa-ço e outro tempo, sua sonoridade também marca fortemente o blues. Talvez o nome mais expressivo para exemplificar essa característica seja do gaitista Sonny Terry,1 que em gravações

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como “Lonesome train” (1944) e “Train whistle blues” (1938), com seu talento para explorar as diversas possibilidades sono-ras da harmônica e de gritos característicos imitando o apito do trem. Para o bluesman, o trem é mais que um símbolo de progresso, é matéria para compor arte, assim como o é para Cortázar, que utiliza o trem para tratar da relação ilusória exis-tente entre homem e tempo.

A ligação do trem com uma espécie de viagem no tempo, observada no blues, está presente em “El perseguidor” e nas ex-periências que o próprio Cortázar costumava ter em suas via-gens de metrô, levando a conclusões como a que o personagem Johnny Carter procura explicar pela metáfora da valise:

Me empiezo a dar cuenta poco a poco de que el tiempo no es como una bolsa que se rellena. Quiero decir que aunque cambie el rel-leno, en la bolsa no cabe más que una cantidad y se acabó. ¿Ves mi valija, Bruno? Caben dos trajes y dos pares de zapatos. Bueno, ahora imagínate que la vacías y después vas a poner de nuevo los dos trajes y los dos pares de zapatos, y entonces te das cuenta de que solamente caben un traje y un par de zapatos. Pero lo mejor no es eso. Lo mejor es cuando te das cuenta de que puedes meter una tienda entera en la valija, cientos y cientos de trajes, como yo meto la música en el tiempo cuando estoy tocando, a veces. La música y lo que pienso cuando viajo en el métro. […] — Eh, sí, ahí está la cosa — ha dicho socorronamente Johnny. El métro es un gran invento, Bruno. Viajando en el métro te das cuenta de todo lo que podría caber en la valija. […] el métro me ha servido para darme cuenta del truco de la va-lija. Mira, esto de las cosas elásticas es muy raro, yo lo siento en todas partes. Todo es elástico, chico. Las cosas que parecen duras tienen una elasticidad...

1 Nome artístico de Saunders Terrell (1911-1986), músico do blues americano, mais especificamente do subgênero East Coast Blues, também conhecido como Piedmont Fingers.

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Piensa, concentrándose. — ...una elasticidad retardada — agrega sorprendentemente. (Las armas secretas, p. 230)

Essa consciência sobre o tempo é o cerne do conflito de Johnny, ela está em oposição àquela que se encontra no mundo ordi-nário. Esse conflito é mais consistente quando observamos as epígrafes do texto: o poema de Dylan Thomas, no qual se pede uma máscara capaz de manter o sujeito protegido do mundo e cujo título são as últimas palavras de Johnny Carter: “O make me a mask”; e o versículo 10 do segundo capítulo do Apocalipse: “sê fiel até a morte”, em que o anjo diz que não se deve temer o padecimento, pois a prisão não passa de uma prova impos-ta pelo demônio e que, aqueles que passarem por essa prova, receberão a coroa da vida.

Esse mundo hostil ao homem que aceita a natureza selva-gem da vida, se mostra logo nas epígrafes do conto e é o cenário no qual Johnny Carter, um homem sem máscara que o prote-ja, está destinado a viver. Esse é um conflito central no conto, que dita não apenas as atitudes de Johnny, mas também a rea-ção que o mundo externo tem em relação a elas. O mais interes-sante é que Bruno, narrador da vida de Johnny Carter, seu bió-grafo, chega a compreender que quem está em desacordo com o mundo é ele mesmo, não Johnny: Johnny não é uma vítima, um perseguido, mas um perseguidor, perseguidor da liberdade de ser um homem em estado puro e não uma tentativa frustra-da de perfeição como são os outros que ele observa. O mundo ordinário é uma farsa, não se trata da realidade, a realidade é o que Johnny vislumbra no metrô ou quando está tocando jazz, é o que Cortázar experimenta nos metrôs de Paris, é o modo como os bluesmen conectam-se com o futuro numa viagem de trem. Assim, Cortázar realiza uma inversão: o mundo extraor-dinário, criado, é aquele em que vivemos e que, comumente, é considerado ordinário; e o mundo ordinário é o mundo em

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estado puro, que, nessa ficção que se tornou a vida, soa como algo extraordinário.

A grande prisão de Johnny Carter é esse mundo extraordi-nário que não comporta o homem ordinário. A imagem da pri-são aparece no conto nos momentos em que são citadas as oca-siões em que Johnny foi para a cadeia ou para o hospício, além de numa música, que não tem a letra citada por Cortázar, mas que é cantada por Johnny enquanto ele e Bruno passeiam pela rua à noite. Johnny a chama de "a música do leopardo". Trata-se de “The cage” (1906), de Charles Ives, cuja letra diz:

A leopard went around his cageFrom one side back to the other side;He stopped only when the keeper came around with meat;A boy who had been there three hoursBegan to wonder, “Is life anything like that?”

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O animal selvagem, preso e condenado a uma vida que não é reconhecida como vida realmente, anda de um lado para outro dentro da própria cela: uma imagem que remete a Johnny que, com sua consciência sobre a natureza selvagem e indomável do tempo, está aprisionado por relógios e convenções sociais. E é justamente por ser tão absolutamente humano que termina por ser comparado a um deus ao tocar o sax alto: nesse mundo em que todos tentam ser deuses, subjugando a natureza ao criar para si mesmos o poder ilusório de dominar o tempo, o homem que é apenas um homem em sua forma mais absoluta termina, paradoxalmente, por ser tido como um deus, título odiado por Johnny. É esse mundo abissal do metrô que mostra a Johnny como a relação ordinária que os humanos mantêm com o tempo é um grande engano e é justamente a consciência desse fato que faz com que Johnny, esse homem sem máscara, esse leopardo que anda em círculos em sua jaula, passe a ter uma relação pro-fundamente conflituosa com a vida.

A fuga para Johnny está na viagem de trem e no jazz, os dois caminhos que ele encontra para burlar essa relação irreal com o tempo e vivenciá-la de maneira confortável. É também o trem o meio de fuga em direção ao futuro para o afro-ameri-cano trabalhador do campo ou o morador de cidades pequenas dos Estados Unidos da América. Quanto a Cortázar, é ele quem finalmente promove em sua literatura a passagem entre o mun-do em estado puro e o mundo mascarado, captando, através de Johnny Carter, a relação do homem moderno com o tempo a partir de um dos grandes símbolos da tecnologia do século xx, o “gigante de ferro”.

ARRIGUCCI, Davi. “A morte do autor”. In: O escorpião encalacrado - A poética da destruição em Júlio Cortázar. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Trad. Luís C. Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002.

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HOBSBAWM, Eric J.. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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“Talvez haja apenas um pecado capital: a impaciência. Devido à impaciência, fomos expulsos do Paraíso; devido à impaciên-cia, não podemos voltar.”“Todos os erros humanos são impaciência, uma interrupção prematura de um trabalho metódico.”Franz Kafka

“O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito.”Clarice Lispector

Há um episódio no poema épico Os trabalhos e os dias, cuja au-toria é atribuída a Hesíodo (séc. VIII a.C.), em que o autor nar-ra para seu irmão, Pérses, o conhecido “Mito de Prometeu e Pandora”. Conta-se que Prometeu, aliado dos homens mortais, roubou para eles o fogo, trazendo-o em oca férula. Zeus astu-cioso, quando ficou sabendo da traição de Prometeu, resolveu castigar os mortais:

[...] Ordenou então ao ínclito Hefesto muito velozmenteTerra à água misturar e aí pôr humana voz eForça, e assemelhar de rosto às deusas imortaisEsta bela e deleitável forma de virgem [...](Vv. 60-63)

O ovo e a galinha: a alma imoralPedro Magalhães

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Zeus então enviou Pandora para Epimeteu, irmão de Prometeu, com um jarro de presente em cujo interior estavam todas as ma-zelas que os humanos precisariam suportar. Uma vez aberto o jarro, os males se dissiparam e, depois do mal já feito, a tampa foi fechada, restando ali dentro apenas a Expectação (Esperança).

Etimologicamente, Prometeu simboliza a prudência e a previdência, porque conjuga as palavras pró (antes) e manthá-nein (saber, ver), enquanto o nome Epimeteu significa depois (epí) e pensamento (meteus). Nesse sentido, Prometeu é ra-cionalmente delimitado e sempre adivinha ou enxerga as coi-sas que vão acontecer antes delas acontecerem. Já Epimeteu é o reverso: só consegue se dar conta dos acontecimentos após terem acontecido – tanto é que não percebe a importância do conselho do irmão de nunca aceitar ofertas de Zeus e se deixa persuadir por Pandora.

Essa narrativa encaixa-se num contexto mais amplo – que são os ensinamentos que Hesíodo tenta incutir em Pérses, seu irmão tolo e vagabundo, que não quer saber de trabalhar. Nesse sentido, o poema serve de superfície a uma disputa que o autor

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travava com seu irmão: Pérses era um mendigo que não poupava gastos, de tal maneira que chegou a tentar subornar os reis que detinham as leis para que ficasse com a maior parte da heran-ça que também era destinada a Hesíodo. O aedo, então, resolve mostrar ao irmão e também aos “reis comedores-de-presentes” que só através do trabalho a longo prazo pode-se ser justo diante da ordem divina e, assim, ser recompensado com boas virtudes no julgamento que os outros fazem de nós.

É curioso que milhares de anos depois, encontremos emba-te parecido no conto “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector (em Felicidade clandestina, de 1971). O professor, austero e vir-tuoso, conta uma fábula parecida com o discurso hesiódico:

[...] um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesou-ro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casi-nha; e como não tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que terminara ficando muito rico. (p. 103)

Enquanto a aluna apresenta outro ponto de vista, concluído por uma moral oposta:

[...] levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesou-ros. (p. 105)

Talvez seja dentro desse contexto que se situe a chave de toda a obra de Clarice: o ser humano está preso dentro dele mesmo como um indivíduo sozinho e, uma vez colocado no tempo e posto no espaço sobre o torto caminho que precisa trilhar, sua racionalidade parece incapaz de reconhecer a realidade mais próxima – que se alegoriza constantemente pela figura do “ou-

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tro”, esse mistério desconhecido que pode estar dentro de nós mesmos e que a linguagem não alcança, pois se ramifica nas en-trelinhas clariceanas que servem ao rizoma (texto) como uma rede infinita de microrraízes que nunca conseguem atingir sua matriz. “As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me ten-tam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.” (Ibid., p. 99).

Se G.H. acaba por desprezar a esperança porque deixa de precisar dela ao longo de sua aventura interior de tentativa de revelação, Clarice parece nunca ter abandonado a expectação – substantivo que comporta um sentido negativo, ao contrário do primeiro, unicamente positivo. Isso se deve ao fato da incan-sável dúvida humana, gerada por um enigma guardado eterna-mente dentro do jarro de Pandora.

Nesse sentido, a autora insiste incansavelmente no mo-mento epifânico – revelação, integração, consonância – que po-demos identificar plenamente na primeira sentença do majes-toso conto “O ovo e a galinha”: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.” (Ibid., p. 49). Como afirma Berta Waldman:

Nada mais natural do que um ovo, de manhã na cozinha sobre a mesa. No entanto, os fenômenos naturais, para a autora, é que são os mais mágicos. A partir do primeiro enunciado do texto, postos no mesmo campo, aquele que vê e o objeto visto, tem-se que as duas partes veem e são vistas e encontram-se entrelaça-das num jogo ininterrupto de reversibilidades, até o momento em que numa inversão, tem-se “o ovo me vê”.(“A retórica do si-lêncio em Clarice Lispector”, p. 11)

A linguagem, dessa forma, parece abusar de uma certeza que nos é absurda e que, por isso, não queremos enxergar: qualquer nome pode se colocar como o sujeito do enunciado e o agente que move a fisicidade do mundo pode até ser inanimado.

Esse começo, aparentemente óbvio, presente na primeira frase do conto (aliás, também simétrico em sua forma, pois é

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composto de quatro tercetos), é entrada para o acentuado cará-ter hiperbólico do segundo parágrafo:

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembran-ça de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumen-to que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. (p. 49)

A autora nos revela a eterna vontade humana em querer dizer “o que está atrás do pensamento”. A narrativa moderna coloca a linguagem em choque ao revelar a desordem do caos em que vivemos: seria então a obra de Clarice uma espécie de Realismo Cósmico, justamente por ser relativo?

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não que-brá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossí-vel entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos. (p. 50)

A escrita clariceana é na velocidade da luz.Estamos diante da incapacidade humana de enten-

der o ser-outro no Ser – a segunda frase do conto carrega um sentido arbitrário: “Olho o ovo com um só olhar” (grifo meu):

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“Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo”. A autora adota um procedimento estético inusitado (aliás, já utilizado na literatura brasileira em poemas como “Maçã”, de Manuel Bandeira): esse olhar humano, apesar de nunca alcan-çar o inefável por meio da linguagem, consegue se espantar quando enxerga o pequeno no grande, o finito no infinito, o pe-recível no eterno:

[...] Dentro de ti em pequenas pevidesPalpita a vida prodigiosaInfinitamenteE quedas tão simplesAo lado de um talherNum quarto pobre de hotel.

Clarice e Bandeira provam que só há o presente – o tempo é uma dimensão. Nossa ideia de passado e futuro é puramente ilusó-ria. Se tentássemos voltar no tempo, tudo poderia retornar da mesma forma que acontecera. Por isso, a poesia de Bandeira e a epifania clariceana se assemelham no que revelam da memória como presentificação do instante, construto do real em eterni-dade presente. Clarice faz com a linguagem o que a física faz com a matemática (que também é uma linguagem). Deus não possui razão humana – nós que o criamos à nossa imagem e se-melhança. Porque só existe o outro, que está em nós. Sendo hu-mano, é impossível saber a verdade: esse é o impasse clariceano. Verdade é apenas uma palavra. Até do ponto de vista biológico da digestão, é impossível descobrir alguma consistência verda-deira do “outro”: quando se come carne de boi, por exemplo, as proteínas bovinas que absorvemos, indispensáveis para a nossa sobrevivência, são transformadas pelas nossas enzimas digesti-vas em proteínas humanas. O que resta do boi em nosso organis-mo é expurgado. Não conseguimos enxergar verossimilhança nem se nos reduzirmos ao átomo, o menor pedaço da matéria. Para Clarice, tanto em relação à matéria como em relação à lite-

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ratura há algo que se excede em sua forma – esse algo, quantum da substância, é aquilo que está em tudo ao mesmo tempo – deus – a revelação daquilo que se diferencia e se assemelha no mesmo instante em que é. Como escreve a autora acerca do contato de Marcel Pretre com “A menor mulher do mundo”:

No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E – como uma caixa dentro de uma caixa, dentro de uma caixa – entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria. (p. 68)

O que acontece é que a existência humana é um eterno emba-te entre natureza e cultura. Em contraposição ao título-conceito Animal moral, criado por Robert Wright e pela psicologia evo-lucionista, Nilton Bonder formula a nossa Alma Imoral. Porque o corpo pode ser usado como instrumento cultural e ser o res-ponsável pela maioria dos nossos hábitos, mas para preservar-mos a nossa espécie, precisamos negar a cultura e afirmar nos-sa natureza, como em um quadrado semiótico. Nesse sentido, encontra-se a imoralidade de nossa alma, que busca incessan-temente transgredir o corpo. Sendo assim, Bonder põe em seu livro a questão da tradição versus traição, pois, se não trairmos nossa tradição − nossa personalidade linguístico-discursiva, nosso pensamento e nossa natureza aliada ao nosso corpo indi-vidual −, enfim, não haverá a transgressão – única possibilidade de nossa imortalidade humana. Confirma o autor:

Porque o homem de Neanderthal poderia ter morrido e desapa-recido não fosse sua evolução, seu rompimento com a integrida-de de seu corpo para cumprir com o destino que lhe deve ter sido profundamente penoso e “imoral” – sua mutação e transforma-ção. Só a alma transgressiva, só a traição evolucionária ao esta-blishment do corpo e do corpo moral, resgata a verdadeira pos-sibilidade de imortalidade. (“I - A imoralidade da alma”, p. 15)

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Quando Eva oferece a maçã a Adão e este aceita, é como quan-do Pandora abre seu jarro a Epimeteu. Adão, ao comungar do Pecado Original, sente vergonha porque se reconhece nu. A pri-meira vez que um homem utilizou sua racionalidade foi pra se revelar à sua nudez, assim como Epimeteu só percebeu que os homens eram mortais depois que apenas a esperança havia fi-cado presa dentro da caixa. Reconhecer a própria nudez é des-cobrir o pertencimento ao mundo do qual somos fruto; em ou-tras palavras, é afirmar que o sentido da vida é a procriação, que morreremos e, que, sem a descendência, mataremos nossa es-sência, alterando toda a seleção natural. Por isso o homem ten-ta desesperadamente cobrir o Universo que se abre a sua fren-te com universos de sentido – é desesperador não entender, não encontrar algo mais, lidar com a solidão. Cada ser humano vive em uma bolha fechada, só vivemos a partir de nossa impressão genético-semiótica pessoal, individual e essencialmente in-transferível. “Ter nascido era cheio de erros a corrigir”, confir-ma Clarice (“Os desastres de Sofia”, p. 102).

Perdemos quando mordemos a maçã – metáfora do pró-prio papel da linguagem. Queremos voltar para casa na infinita odisseia da vida dentro da eternidade da existência. – O ser hu-mano quer ser livre; não. Na verdade, é como não ser preso. E esta tarefa é impossível para nós, que acabamos sempre sufoca-dos, debaixo da terra, no ar, no vácuo, querendo voltar ao ventre materno, ensaiando a vida e esperando Godot.

É difícil admitir que competimos com o outro para a ma-nutenção das espécies. Só existimos para sermos hospedeiros de bactérias, assim como o ovo só existe para ser comido:

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. – O ovo des-nuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome. [...] O ovo é a alma da galinha. (“O ovo e a galinha”, p. 50)

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O ovo é literalmente o outro dentro da galinha, do qual ela de-pende. Mas a galinha é desajeitada, assustada e “tem o ar cons-trangido” apenas para a nossa manutenção? De quem é a culpa? “Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que exis-tem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Este olhar é o da alma.” (BONDER, contracapa à Alma imoral).

Um outro sistema de oposição importante na obra de Clarice é entre fato versus ato. Como exemplificou José Américo Pessanha: o crime de Ofélia foi ter matado o pinto, o do profes-sor de matemática, abandonar o cão, “pois não tem forças para em si mesmo matar a criminosa sobre-vivência, feita de não ser ele mesmo sua própria alma, feita de ser ele apenas um mes-tre em racionalizações [...]”(“Clarice Lispector: o itinerário da paixão”, p. 192). Já o crime da narradora do ovo foi tê-lo olhado, pois percebeu que era responsável pela agonia da galinha, mas que sem a galinha e sua agonia, não sobreviveria, pois preci-sava ferver o ovo para dar de comer a seus filhos que estavam despertando para o café da manhã. Entender um fato é um pro-blema, pois não há como escapar do ato que faz o fato; quere-mos reconhecer o irreconhecível – o que nos faz fazer o ato e porque entendemos o fato. O ser humano é tão inteligente que sabe que sua racionalidade serve para não reconhecer nem a si mesmo totalmente, porque estabelece uma relação de depen-dência com o outro. Será que tal necessidade de reconhecimen-to existe fora de nós?

“Etc., etc., etc.”, é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A ga-linha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de ‘galinha’. A vida interior na galinha con-siste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue. (“O ovo e a galinha”, p. 53)

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A literatura clariceana apresenta uma perspectiva completa-mente antirracional – não somos nosso pensamento. Somos a fome, somos o sangue, somos a morte. Porque não conseguimos nunca ter controle sobre a vida, a existência é que nos controla. É necessário perder, sabemos disso. A linguagem não diz tudo – não diz mesmo o essencial ou o necessário, nem o que quere-mos que ela diga. A ação em “O ovo e a galinha” consiste num processo mecânico do ambiente doméstico: o ciclo cotidiano da alimentação é colocado desde o ovo sobre a mesa até o momen-to em que a narradora simplesmente se deixa levar pela meta-morfose de um processo do qual faz parte:

De repente olho o ovo na cozinha e só vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem for-ça de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele foi me adormecendo. [...] Só entendo ovo quebrado: quebro--o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à exis-tência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício. (Ibid., pp. 54-55)

À maneira de G.H., que busca através da paixão a consumação do amor com o ódio, o momento em que as narradoras agem na matéria que estão nos in(formando) – experimentando a trans-cendência na própria natureza ora quebrando o ovo, ora degus-tando a gosma da barata – é justamente aquele em que o fluxo do pensamento se interrompe e age no Ser (o eu e o outro): esse movimento da ação, em outras palavras: da interação personifi-cada do narrador interagindo como numa terceira pessoa com a matéria descrita, leva o leitor ao auge da expectativa – o que nos resta após a consciência da inviolável lei que o universo nos

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impõe, qual seja: a transformação? Esse nível de acontecimen-tos nos leva a uma questão mais profunda, que envolve as fron-teiras do artístico: será possível a criação se o abstrato reduz-se ou eleva-se à matéria (ovo quebrado, barata morta) mas nunca a alcança completamente? Diria o professor Alcides Villaça: “É na extremada comunhão entre o narrar da experiência e a ex-periência do narrar – operação sobre abismo – que se suspende o discurso de Clarice, como numa extraordinária flutuação de matéria” (“A possibilidade de narrar e existir”).

As narradoras foram geradas para duas vidas e para duas mortes que se dividem entre realidade e literatura. O drama continua sendo o mesmo de Édipo da peça de Sófocles: não foi a relação incestuosa o que mais incomodou o rei de Tebas, as-sim como o que mais incomodava a autora não era fazer par-te da orgia de existir. Ambos parecem estar destituídos da figu-ra que os criou e a pergunta que se fazem não é fácil: onde se está exatamente? Clarice, voz humana, não podia saber quem era por detrás das máscaras, talvez por isso precisou matar Macabéa e morrer como Rodrigo S.M. Fica outra questão: é pos-sível amar apesar da individualidade de nossa criação estar fa-dada a um limite? Ou, quando se chega a esta conclusão é que finalmente se ama?

Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos re-veladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então não é necessário o disfarce: em-bora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é mais necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E pou-cos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se volun-tariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.

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E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, a aqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse per-mitido adivinhar vagamente. (“O ovo e a galinha”, p. 55)

A ausência de identidade, que também se dá quando se ama (“quando não se dá nome à identidade das coisas”), ou pelo me-nos, a sua junção e transmutação, é o que nos pode fornecer a maior das liberdades quando a vida nos parece uma condenação:

Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamen-te para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo man-dada? Pois venho notando que tudo o que é erro me tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso ou confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigido a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é traição mesmo. (Ibid., p. 58)

O que há por detrás da mente humana? Há algo maior além da consciência? Ou não nos será possível este tipo de redenção: crer e entender? E se não for possível saber do mistério que nos rodeia, que nos incide, que nos transcende, será possível viver-mos e sermos felizes?

Por isso, talvez, Clarice consiga amar a expectação, quiçá essa a única forma do escritor se manter vivo, quando o leitor vira a página outrora escrita por um pensamento que embora não mais estando, revive em outra consciência: “[...] Já me foi

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dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reco-nhecendo! com o coração batendo de emoção eu pelo menos não compreendo! com o coração batendo de confiança, eu pelo me-nos não sei” (Ibid., p. 59). A mudança se faz independentemente de nossa vontade, de agentes somos transformados em objetos pelos outros. O ovo é o que fazemos do ovo – o “outro” é linguisti-camente o nosso próprio instrumento de manipulação. “E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras.” (Ibid., p. 59)

A realidade desse conto mostra matéria viva se interco-municando com matéria morta por ondas físicas que apenas existem, e que não nos entendem porque “viver não é vivível”. Mas, “se o ovo for impossível”, ainda continuaremos a ter a possibilidade de olhá-lo: é. Então – livre, delicado, sem mensa-gem alguma para nós – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até essa janela que desde sempre deixamos aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de nossa palidez.

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“Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua cabeça, que os mede.”Machado de Assis, "O cônego ou metafísica do estilo"

Um diálogo, montado a partir de excertos do texto bíblico Cântico dos cânticos, situa o leitor de “O cônego ou metafísica do estilo” no âmbito do sagrado. Chamado pelo narrador de “velho drama de Judá” (p. 528), esse texto é, então, identificado como a “melo-dia” da elaboração linguística, o pano de fundo que, não se con-tendo como tal, emerge orientando a estruturação linguística, a articulação entre as duas classes da língua que buscam retratar a concretude – inclusive concretude da maior abstração, da reali-dade – a saber: substantivo e adjetivo. É nas mãos e na mente do cônego Matias que o ofício dessa articulação linguística é levado a cabo, mas é o narrador que toma o poema bíblico costurando-o à tarefa de escrever, levando-o além do mero intertexto.

O narrador do conto dirige o leitor à mente do religioso e o faz passar por toda a filosofia da linguagem, posta inconsciente-mente em prática pelo cônego, e conhecer seu aspecto fisiológi-co ao alcançar sua cabeça e vasculhar o funcionamento cerebral do personagem. A partir desse momento, a barreira entre a vi-são objetiva e distanciada do narrador e a elaboração linguística

O modus operandi do narrador machadiano em “O cônego ou metafísica do estilo”Marian Gabani Gimenez

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da personagem parece ruir. Narrador e personagem se fundem, porque o primeiro é capaz de conhecer o mais íntimo proces-so mental do religioso, ambos entrando quase em condição de equivalência. É essa condição, aliás, que está no cerne da “causa primeira” da linguagem do cônego e que se deixa transparecer (ou melhor, é levada à superfície pelo narrador) por todo o texto e em diversos eixos.

O Cântico dos cânticos é um poema aparentemente laico que retrata de forma lírica o amor entre um homem e uma mu-lher, mas que está inserido no cânone bíblico, possibilitando, ou mesmo dirigindo, uma leitura que, se não religiosa, toma todos os outros livros canônicos da Bíblia como pressupostos e base interpretativa. Há dois eixos centrais no Cântico: os amantes se exaltam entre si, mas há uma busca de um pelo outro que nunca se finda, porque o encontro nunca se realiza. O primeiro capítu-lo, por exemplo, já ilustra esse movimento com o desejo da ama-da de união com o amado (Ct 1:2 e 4) sendo intercalado por mo-mentos de exaltação (Ct 1:2 e 3). O amor do Cântico convive lado a lado com a angústia da solidão (Ct 5:8). A procura pelo amado é incessante, e o encontro nunca é efetivo, como se não fosse possível (Ct 5:6). Busca e desejo movem o poema, porque a pre-sença do amado é sempre fugidia (Ct 3:1 ou 1:7,8). A linguagem é o único ponto comum dos amantes (Ct 6:12 e 8:5): “os aman-tes só conseguem comunicar-se por intermédio do mundo, da metáfora” (LANDY, “O cântico dos cânticos”, p. 327). A inter-pretação recorrente da Igreja Católica toma o poema como uma belíssima alegoria da relação de Jesus Cristo com sua Igreja, em que o amado valeria Cristo, e a amada, a Igreja. Em suma, a re-lação mundana entre homem e mulher valeria a relação divina entre Cristo e a Igreja, talvez elevando a primeira à condição de sublime, ou mesmo suprimindo as diferenças entre as duas relações, transformando-as no “mesmo”, processo esse mui-to presente na obra de Machado de Assis, segundo Villaça, em “Machado de Assis, tradutor de si mesmo”.

A leitura do narrador nos transporta à leitura aparente-

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mente laica do Cântico, porque poderia colocar a relação entre os amantes como equivalente àquela entre substantivo e adje-tivo, relação esta que chega à sexual, originando, neste último caso, o “estilo”. Entretanto, dentro da tradição bíblica, a relação sexual é a união perfeita entre homem e mulher, que os torna uma só carne (Gn 2:23), refazendo a imagem e a semelhança di-vinas (Gn 1:27). A união sexual seria a equivalência perfeita, em que o Homem vale Deus. Segundo essas diferenças entre “esti-lo”, Homem e Deus sucumbiriam diante do ofício do exegeta e autor de sermões.

Seguindo essa leitura, o estilo é levado à mesma condição mítica de Deus e dos primeiros homem e mulher. Substantivo e adjetivo são Sílvio e Sílvia, a sibilação da língua, são o silvo da comunicação que perpassa o início e o fim de todo esse “vasto mundo incógnito” mitológico, porque “rompem por entre em-briões e ruínas”, coloca o autor no conto (p. 531), deslizando por entre “umas raízes latinas, [...] um salmo, [...] um pentâmetro” e por “coisas velhas e novas” (p. 530). São o casal cujos nomes só se diferenciam por um morfema de gênero, remetendo ao casal primevo que, desde a Gênese (Gn 1:27) até depois da Queda (Gn 3:22), é todo imagem e semelhança divinas: na Vulgata,1 Adão e Eva são VIRO e VIRagO; na King James2 são MAN e woMAN; no original, se dominasse Machado de Assis o hebraico bíblico, ’IŠ e ’IŠah (Gn 2:23). A “metafísica do estilo” de Matias, toda ela elabo-ração metafórica, é a linguagem fundida à sua condição mítica, e o mito que só se realiza na expressão linguística, processo se-melhante ao observado por Cassirer em “O poder da metáfora”:

De fato, mesmo a mais primitiva exteriorização linguística já exi-gia a transposição de um certo conteúdo perceptivo ou sensitivo em sons [...], de modo que, até a forma mítica mais simples só pode surgir em virtude de uma transformação, pela qual uma de-terminada impressão é levantada por sobre a esfera do comum, do cotidiano, do profano, e impelida para o círculo do “sagrado”, do significativo do ponto de vista mítico-religioso. (p. 105)

1 Tradução da Bíblia feita por São Jerônimo para o Latim entre os séculos IV e V. Ainda é a versão oficial utilizada pela Igreja Romana. 2 Tradução inglesa da Bíblia publicada pela primeira vez em 1611.

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Sendo a metáfora, por excelência, o local linguístico em que as diferenças se desfazem e as semelhanças são engrandecidas a ponto de se tornarem equivalências, ela é o elo entre os mundos do mito e da linguagem:

Aqui [nos pensamentos linguístico e mítico] rege uma lei que se poderia chamar lei de nivelação e extinção das diferenças espe-cíficas, pois cada parte do todo se apresenta como este mesmo todo, cada exemplar de uma espécie ou gênero parece equivaler à espécie toda ou ao gênero todo. (Ibid., p. 109)

A história de Romeu e Julieta, citada pelo narrador, também equivaleria ao “velho drama de Judá”, a diferença residindo apenas na escolha entre um ou outro: “E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a lin-guagem seria a de Romeu: ‘Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol.’ Mas em cérebro de eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras” (p. 530). Toda essa filosofia da estruturação da linguagem, ou “metafísica do estilo”, que se deixa conduzir pelo Cântico dos cânticos, tem lugar na “cabeça do Cônego Matias”, ou seja, na mente da autoridade religiosa. Na estruturação religiosa, par-ticularmente no catolicismo, a autoridade assume a função de intérprete da tradição e, portanto, da literatura sacra. Não se trata, entretanto, de um mero “arquivo” de doutrinas: o líder re-ligioso é doutrina e tradição encarnadas e a única possibilida-de de realização dessas, uma vez que a sua leitura das Sagradas Escrituras é a única válida, ou, ao menos, a única divinamente inspirada. O sacerdote torna-se “tradutor” de Deus.

Se esse é o Deus que se manifesta no Antigo Testamento es-sencialmente através da palavra (Ex 20:1; Dt 18:18), e que surge no Novo Testamento, segundo a teologia trinitariana aceita pela Igreja, encarnado em Jesus Cristo, o chamado “Palavra/Verbo que se fez carne” (Jo 1:14), o eclesiástico que tem domínio exclusi-vo sobre o texto bíblico, sobre a Palavra/Verbo, penetra o conhe-cimento do próprio Deus, não apenas colocando-se como profeta,

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mas partilhando da posição da divindade, processo semelhante ao do narrador do conto, que mergulha na mente do religioso e é capaz de descrever cada processo linguístico que aí ocorre. A natureza reconhece a equivalência do cônego Matias ao divino – “[...] o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. [...] Toda a natureza parece as-sim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito” (p. 530) – porque reage diante dele como o faria diante de Deus.

Nesse jogo de substituições, a equivalência plena se dá no rito. Na religião israelita presente no Antigo Testamento, o sa-cerdote é responsável por um dos ritos mais importantes: os sa-crifícios. Através do sacrifício, o homem se aproxima de Deus, limpando-se de sua condição de impureza e, assim, cumprindo a grande demanda divina: “Sejam santos porque Eu, o Senhor, o Deus de vocês, sou santo” (Lv 19:7). É exigido do homem o seu alinhamento perfeito à condição divina, a equivalência plena. No Novo Testamento, base da teologia da Igreja, o Cristo crucifi-cado equivale ao rito do sacrifício veterotestamentário (Hb 7:27), assim como a Santa Ceia equivale à refeição em memória do sa-crifício do chamado Cordeiro de Deus (Jo 1:36) tido como liber-tador, ressignificando, em última análise, o êxodo israelita (Ex 12:14). A liturgia católica, equivalendo-se à oferta sacrificial, se apoia na crença de que, enquanto o pão ázimo da ceia é o corpo, o vinho é o sangue de Cristo (Lc 22:19-20), e essa transubstan-ciação3 só ocorre quando ambos são consagrados pelo sacerdote. Através da liturgia, e somente por meio da autoridade sacerdotal, o fiel partilha da “morte de Cristo”, afirmando-se ele também como filho de Deus. Em suma, a palavra e a autoridade do bispo ou arcebispo assumem a mesma capacidade transformadora, vi-vificadora e até criadora de Deus, reforçando essa posição divina da autoridade religiosa. A figura do religioso no conto, portanto, reafirma não só a origem mítica da linguagem e do estilo, mas também esse jogo de equivalências que se dá na elaboração lin-guística, tanto dos sermões de Matias quanto do próprio conto.

No caso da construção do conto, a autoridade religiosa é

3 A doutrina da transubstanciação é uma das bases da liturgia católica, tendo sido elaborada oficialmente no Quarto Concílio de Latrão (1215) e reafirmada, em oposição à doutrina protestante, no Concílio de Trento (1545-1563).

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equivalente ao próprio narrador, que se apresenta como alguém encarregado de uma missão quase evangelista: “Não me inter-rompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar” (p. 528). Desse modo, o narrador se propõe a confidenciar ao leitor, tal como o evange-lista, a Verdade – nesse caso, a verdade por trás de uma compo-sição linguística. Assim como o sacerdote conduz o serviço re-ligioso, até que a comunhão entre Homem e Deus seja perfeita, o narrador conduz o leitor por toda a gênese da linguagem até sua realização completa. Assim como a palavra divina demanda um trabalho exegético confiável e aceitável por eclesiásticos, o narrador é capaz de conhecer a mente e a língua do cônego de modo mais preciso que ele próprio, uma vez que “Sílvio e Sílvia” continuam sua busca mesmo no plano da inconsciência. Até um diálogo com o leitor é forjado, sugerindo, mais que uma narra-ção distanciada de fatos (ainda que metafísicos), um “levar pela mão” ludibriante. Ao descrever o ofício de “escritor” do cônego, o narrador, como que se valendo do seu próprio argumento de autoridade, aponta-o como a ligação entre o sagrado e o profano: “A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão” (p. 529). Aquele que trabalha a linguagem, portanto, se coloca na rotura do espaço profano (“olhos no chão”) que per-mite a comunicação com o divino (“olhos no céu”). Nessa rotu-ra, no cimo mítico de sua onisciência, está o próprio narrador, também ele artífice da linguagem. É ele que, levando o leitor ao seu “sistema, do qual não é fácil sair” (VILLAÇA, “Machado de Assis, tradutor de si mesmo”, p. 10) reconhece que a composição de um sermão (ou seja, de um discurso que se propõe a procla-mar a verdade sobre algo, tal como o conto é a proclamação da verdade e da “causa primeira” da linguagem) é criação e orde-nação em oposição ao Caos, como a palavra divina da Criação se opõe ao Caos Primordial da terra vazia e sem forma (Gn 1:2):

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Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filo-sofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, no-ções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. (ASSIS, “O cônego ou metafísica do estilo”, p. 531)

O desfecho do conto é a realização plena da linguagem, em que “Sílvio” e “Sílvia” se encontram, migrando da inconsciên-cia para a consciência, até que sejam eternizados, indo “jun-tinhos ao prelo”. Paralelamente, a composição do conto está completa, adjetivo e substantivo se tornaram um, e a lingua-gem cumpriu seu papel ao tornar possível a equivalência plena dos fatos à fatura literária, ambos termos utilizados por Alcides Villaça. Findado o tratado de metafísica, resta agora que ele al-cance o prestígio e seja aceito como verdade definitiva, segun-do pretendia o narrador:

Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. [...] As fi-losofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. (pp. 528-529)

Ao tratar o conto como “esta página”, o narrador assume a po-sição do autor-filósofo – ainda que um autor ficcional como Brás Cubas – e é interessante ele ter mais voz que o cônego, que em um primeiro momento pareceria ser a personagem central. Tendo o narrador-autor em suas mãos toda a construção da personagem, não é de surpreender que, ao mesmo tempo que traz consigo toda a carga de valores de uma figura religiosa, o cônego Matias é instrumento de negação dessa elaborada “metafísica do esti-lo”: o próprio nome “Matias”, mesmo no campo da religião, re-mete a uma substituição que não alcança equivalência plena, ou nem busca essa equivalência, uma vez que não se desejaria um novo apóstolo cujas diferenças em relação a Judas pudessem ser

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suprimidas (At 1:16-26). Mais do que isso, a figura do cônego é deslocada de sua posição sacerdotal – na verdade, ocupada pelo narrador e por suas ordens de “creia” e “não creia” – porque é “or-namento” do clero (p. 529), como indica seu cargo, cargo honorá-rio. Espacialmente, Matias está deslocado do sagrado, a igreja, uma vez que seu sermão é encomendado para uma festa. Além da duvidosa construção da personagem, o narrador insiste em conduzir e manter um diálogo com o leitor, diálogo que, entre-tanto, é manipulado tão descaradamente a ponto de já pressupor o discurso exato do interlocutor. O leitor, dessa forma, torna-se também construção do narrador, algo evidente durante todo o texto, por exemplo: “Senhora minha, confesse que não entendeu nada. — Confesso que não” (p. 529), trecho que reafirma o tom de autoridade religiosa desse narrador, quase um confidente.

Se o discurso escatológico do narrador no terceiro pará-grafo, em que tudo será destruído diante da grandeza de sua fi-losofia (ou por meio dela), sugere uma busca pela condição da perfeita equivalência, ao leitor atento não passarão despercebi-das as intervenções ardilosas e ousadas do típico narrador ma-chadiano. O dia último em que “o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum” (p. 528) é por volta de 2222, ano que, se por um lado é numericamente representado por pares perfeitos (sendo o par mínimo o número 2, há nessa data apocalíptica quatro números 2, duas vezes o par 22, entre outras possibilidades combinatórias), por outro, em relação à data de publicação do conto, é um futuro tão distante que se po-deria dizer inalcançável. As referências ao Cântico dos cânticos corroboram essa ideia de um projeto inatingível, uma vez que, como já foi dito, a relação dos amantes é de busca, mas uma bus-ca que nunca se finda porque o encontro nunca se realiza, geran-do angústia e solidão. Sílvio e Sílvia, fossem o Amado e a Amada do Cântico, como sugere em primeiro plano o narrador, não che-gariam juntos ao prelo, mas desfaleceriam no desejo e na busca eterna em meio ao Caos da mente do cônego. Desse modo, essa verdade universal em que a linguagem alcança a realização ple-

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na de equivalência e unidade é lançada ao utópico.O mesmo narrador que cria um plano superficial em que a

linguagem é a ordenação que, em seu aspecto criador, suplanta e até suprime o Caos, é o que emerge de um plano mais profun-do para negar esse sistema. Ora, o narrador machadiano, sendo criação linguística, está amarrado à linguagem, e a negação do sistema de equivalências é a própria denúncia de sua posição de “tradutor”, como também sugere Villaça. “O cônego ou meta-física do estilo” surge como uma espécie de manifesto do nar-rar machadiano, construído a partir do estilo narrativo que tanto chamou a atenção de estudiosos. O modus operandi do narrador de “O cônego” é o primeiro passo para a emersão do narrador so-cial, com toda sua volubilidade, explicitada por Roberto Schwarz (“A viravolta machadiana”), e do suposto narrador de caráter autobiográfico de Meyer. O jogo de equivalências da superfície é ironizado por esse narrador que caminha livremente por sua cela, emergindo de um plano em parte oculto nas profundezas da narrativa quase como o homem subterrâneo, a exemplo do que diz Meyer (“O homem subterrâneo”) ao tentar descrever o próprio Machado de Assis em sua literatura, demasiado lúcido e consciente para se deixar converter por sua pretensa metafísica.

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Da maneira como costumamos perceber o tempo: como se hou-vesse uma linearidade necessária aos acontecimentos, uma li-nha que subjaz à continuidade do que vivemos e que desenha a lógica; tudo parece estar costurado por relações de causa e efei-to – daí a pergunta constante que nos fazemos: por quê? Qual é a causa deste efeito que sentimos? Costumamos ligar imedia-tamente aquilo que chamamos de efeito percebido a uma cau-sa anterior que o explique e justifique, que o pontue no tempo e nos permita lidar com ele; costumamos acreditar que tudo o que percebemos como causa nos levará necessariamente a um efeito, e por isso o projetamos a partir da luz que a causa nos dá. Remetemos o presente a um passado, projetamos o presente num futuro, e a partir dessas perspectivas para frente e para trás é possível traçar uma linha no tempo: linha que revela a evolu-ção potencial das coisas no desenrolar de suas consequências; linha que permite adivinhar muitas vezes o que se seguirá, de acordo com o pontilhado que ela imprime no mundo; linha que traça o passado como uma espécie de realidade virtual que ates-ta a verdade do presente.

Para conceber uma causa a partir de um efeito, é preciso isolar do mundo as coisas que nos interessam e, como num labo-ratório esterilizado, esquecer que elas fazem parte de uma rea-lidade maior que as cria e contorna: lidar com elas através de um ponto de vista que as cerca, direciona, especifica. Assim, por

Lugar do puro efeito: uma leitura para Roland BarthesLeda Cartum

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exemplo: se tropeço em um degrau, caio e me machuco – esse é um efeito e irei em busca da causa que o provocou: posso encon-trar uma explicação científica clássica, e dizer que foi a atração gravitacional do planeta Terra que me atraiu para o chão; ou uma explicação psicológica, percebendo que eu estava distraída, com outras coisas na cabeça e não percebi o degrau; uma explicação supersticiosa, ao notar que não estava com sorte nesse dia e por isso tropecei; uma explicação religiosa, interpretando a queda como um sinal divino de que eu não deveria ter ido na direção para onde o degrau me levava; uma explicação astrológica, veri-ficando que a posição dos astros não estava a meu favor naquele instante; uma explicação materialista, colocando a responsabi-lidade da queda no degrau, que era mais alto do que o padrão; e assim indefinidamente. Cada uma dessas possíveis causas aca-ba por excluir todos os outros fatores potenciais, ao eleger ape-nas um deles como explicação: isolamos o acontecimento do mundo, o reduzimos a um olhar e, a partir disso, podemos ver clara e logicamente uma relação necessária de causa-efeito; as-sim, mesmo sentindo a dor do machucado, me conformarei com ele porque terei encontrado a sua origem racional.

Em Guerra e paz, Leon Tolstói trabalha com as diferen-tes concepções de História para interpretar os acontecimentos. Esta passagem a seguir, além de muito representativa da ma-neira como Tolstói percebe os eventos históricos, nos interessa profundamente para compreender como se dá essa constante necessidade de localizar as causas:

Quando a maçã fica madura e cai – por que cai? Porque a gravi-dade a atrai para a terra, ou porque sua haste está murcha, ou porque ela secou no sol, ficou muito pesada, o vento a derrubou, ou porque um menino que está embaixo da árvore quer comer a maçã? Nada é a causa. Tudo isso é apenas a coincidência das condições sob as quais ocorre qualquer acontecimento vivo, or-gânico, elementar. E o botânico que acha que a maçã cai por-que a celulose se decompõe, e coisas semelhantes, terá tanta ra-

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zão, e tanta falta de razão, quanto o menino que está embaixo da árvore e diz que a maçã caiu porque ele queria comê-la e rezou para ela cair. (p. 278)

Enquanto nos concentramos em identificar uma causa possível para um acontecimento, estamos sempre o cercando e sempre o reduzindo, porque será preciso encerrá-lo numa cápsula fora do tempo para poder explicá-lo e ter razão.

Essa operação nos persegue constantemente porque es-tamos inseridos em um mundo de linguagem: conhecemos o mundo pelas palavras que designam, e por isso já estamos desde o princípio, ao nomear, reduzindo as coisas para direcioná-las. Na sua Leçon (Aula) inaugural ao Collège de France, em 1977, Roland Barthes esclarece:

No momento em que ela é proferida, mesmo que seja na intimi-dade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder. […] Assim que eu enuncio, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento por repetir aquilo que foi dito, por me alojar confortavelmente na servidão dos signos: eu digo, afirmo, assento o que repito. Na língua, então, servidão e po-der se confundem inelutavelmente. (Oeuvres complètes Vol. I a V, Tomo I, p. 432)1

A língua é sempre um direcionamento, e falar é estar a serviço desse olhar que nos antecede; é dentro da língua que concebe-mos o mundo, a partir das relações de causa e efeito. Enunciar uma palavra é recorrer a toda uma dimensão de passado que carrega consigo a carga de tudo o que já foi feito dela: o presen-te, dentro da língua, é um tempo que tem uma dívida com o pas-sado, porque só pode ser proferido graças a sua anterioridade. Nesse sentido, a relação com a língua é diferente de qualquer outra relação – não apenas porque todas as relações que temos são mediadas pela língua que as define e situa, mas também porque as palavras são abstratas e inapreensíveis, e assim só po-

1 Todas as traduções do francês são livres, de minha autoria.

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demos falar agora porque outros já falaram antes: a língua con-tém todo o seu passado. É por isso que a língua, na sua utilidade cotidiana, tende a inclinar-se sobre um passado que se coloque como sua causa. A explicação de qualquer fenômeno é uma de-manda verbal, e respondemos a essa demanda quando selecio-namos uma causa que, no tempo, justifica a realidade em que estamos e a enquadra dentro de um poder que nos conforma e resigna. Estamos então a serviço dessa causa anterior e exterior.

Sobre essa linha necessária que enxergamos através dos acontecimentos no tempo, criada pela linguagem, e sobre o seu contraste com uma percepção mais imediata das coisas, Henri Bergson desenvolve:

A linha que medimos é imóvel, o tempo é mobilidade. A linha está inteiramente feita, o tempo é aquilo que faz com que tudo se faça. A medida do tempo nunca versa sobre a duração en-quanto duração; contamos apenas um certo número de extre-midades de intervalos ou de momentos, ou seja, em suma, de paradas virtuais do tempo. […] como então [a duração] aparece-ria a uma consciência que quer vê-la sem medi-la, que quer cap-turá-la sem precisar pará-la, que se tomaria enfim ela mesma por objeto, e que, espectadora e atriz, espontânea e refletida, se aproximaria até fazer com que coincidam a atenção que se fixa e o tempo que foge? (BERGSON, La pensée et le mouvant, pp. 3-4)

Aqui, chegamos a esta virada importante para começar a ler a obra de Roland Barthes: de um lado, a constatação da necessi-dade de conceber o tempo através da linguagem, a serviço de um poder externo, que imobiliza as coisas para poder capturá--las, defini-las e explicá-las; de outro, a consciência da mobili-dade indomável do tempo, da impossibilidade de definir as coi-sas por sabê-las todas parte de um mesmo movimento. Como conciliar essas duas consciências? E como lidar com a segunda, que parece escapar à nossa apreensão justamente por recusá-la?Uma consciência que procura a duração distanciando-se da ten-

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tativa de medi-la ou de pará-la; consciência que é, ao mesmo tempo, espectadora do tempo e atriz irremediável desse tempo a que ela assiste; consciência que opera tanto na espontaneida-de que o acontecimento tido como um movimento único pode proporcionar quanto na reflexão que a linguagem desse aconte-cimento produz: essa é a coincidência entre as coisas que costu-mamos distanciar, como se fossem separadas e isoladas, e que, de repente, sob o olhar intuitivo de quem reúne os aparentes contrários, se tornam não apenas muito próximas, mas também uma só e única coisa. Como diz Bergson:

[A intuição] apreende uma sucessão que não é justaposição, um crescimento por dentro, o prolongamento ininterrupto do pas-sado num presente que penetra no futuro. É a visão direta do espírito pelo espírito. Nada mais está interposto; ponto de re-fração através do prisma do qual uma face é espaço e a outra é linguagem. No lugar de estados contíguos a outros estados, que se tornarão palavras justapostas a palavras, eis a continui-dade indivisível, e assim substancial, do fluxo da vida interior. Intuição significa então consciência; mas consciência imediata, visão que por pouco se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência. (Ibid., p. 27)

Nos afastamos da necessidade da palavra como interposição do objeto, isolamento do mundo para localização de explica-ções – e nos colocamos junto da palavra assim como junto da coisa. Dentro desse movimento, que exclui as interrupções e que procura conceber o passado e o presente como uma mesma refração, se dá a suspensão da ideia de causa-efeito; a procura por coincidir a causa no efeito e o efeito na causa. “Essa trapa-ça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução perma-nente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”, diz Barthes em sua Leçon (p. 433).

Ouvir a língua fora do poder que lhe parecia necessário

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e intrínseco: o que é chamado por Barthes de literatura é uma relação com a linguagem que se coloca à parte dos caminhos científicos e que não procura algo externo ao próprio movimen-to das palavras para as coisas. Não há exteriorização possível, pois não há mais uma concepção de tempo que coloque o passa-do como uma realidade virtual e potencial, sobrevoando o pre-sente enquanto sua causa. Na literatura, o passado não é mais simplesmente anterior, evidente apenas porque procuramos fis-gar a causa de um efeito: o passado se torna da mesma maté-ria que o presente. É uma percepção sinestésica da linguagem: “Tenho uma doença: eu vejo a linguagem” (BARTHES, Roland Barthes par Roland Barthes, p. 164) – a linguagem se faz presente enquanto matéria real, palpável e visível, assim como todas as coisas que nos rodeiam; e por isso ela não nos distancia ou isola da realidade total, mas antes nos reúne a ela. Se a linguagem era uma forma de inserir os acontecimentos passados na atualida-de e, assim, ligar um tempo que já foi àquele que ainda é, através de uma linha causal; isso se transforma a partir do olhar literá-rio, que deixa de conceber a palavra apenas como evidência e atestado de um passado, apenas como um vetor que direciona as coisas e as relaciona: ver a linguagem é percebê-la tão real quan-to a realidade que nos cerca, e por isso não mais uma casca ou transparência das coisas, mas coisa em si mesma. No momento que a palavra se torna matéria de realidade, o mundo todo é en-tão recheado dessa mesma imensa realidade que exclui as cau-sas e por isso as coloca no exato mesmo lugar daquele efeito que continuamos a sentir: daí a ideia de consciência imediata, que não sabe sobre as coisas, mas sabe as coisas; não utiliza a lingua-gem, mas a festeja.

A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa dis-tância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os

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homens. O que ela conhece dos homens é aquilo que podería-mos chamar de grande estrago da linguagem, que eles traba-lham e que os trabalha […] Porque ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o sa-ber reflete incessantemente sobre o saber, segundo um discur-so que não é mais epistemológico, mas dramático. (BARTHES, Leçon, p. 434)

É a partir de muitas perspectivas e ao longo de toda a sua vida que Roland Barthes pesquisa esse efeito sem causa, esse momen-to do presente que não interroga sobre um passado e por isso vive em si mesmo, estrela que emana luz para todos os lados. Desde a polêmica criada com Sur Racine (Sobre Racine, 1963), quando Barthes se desliga do autor como causa da obra e pro-cura perceber a escritura enquanto puro efeito independente da exterioridade a que costumávamos ter a necessidade de ligá-lo, a investigação desse autor e crítico está muito mais em conceber e descrever os efeitos do que na tentativa de ligá-los e relacio-ná-los a uma possível causa. Cada um de seus passos se coloca diante de uma das faces desse efeito múltiplo e infinito: seja lo-calizando-o no leitor e na leitura da literatura, como no processo de análise textual; seja com a tentativa de escrever um romance próprio, que reproduzisse o efeito surtido por determinados ro-mances já escritos; seja na investigação de outras artes, como a música e a fotografia, a partir da vontade de capturar o efeito de um “formigamento no corpo”; seja, ainda, na sua identificação com o discurso amoroso. São tentativas de capturar o efeito sem remetê-lo à causalidade com que costumamos imediatamente associá-lo: o efeito puro.

Para começar a compreender como Barthes concebe esse tempo que independe da lógica causa-efeito, é interessante to-mar o exemplo da relação que Barthes estabelece com a fotogra-fia. Em La chambre claire (A câmara clara, 1980), pensar uma fotografia é percebê-la não como uma demonstração do passa-

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do (ou seja, como um atestado da causalidade anterior), mas sim como uma atualização desse passado; nesse sentido, a foto torna o que já aconteceu tão real quanto o que acontece agora: “aquilo que vejo não é uma lembrança, uma imaginação, uma reconstituição, um pedaço da Maya, como a arte prodigaliza, mas o real no estado passado: a um só tempo o passado e o real” (Ibid., La chambre claire, pp. 855-856). Assim, Barthes não está preocupado com um passado concebido como uma realidade potencial que serviria de prova ou evidência do presente em que vivemos; mas, antes, com uma concepção de tempo que ultra-passe a linearidade para operar dentro da pureza de um efeito que é simplesmente percebido, recebido, sentido. O fato de que a fotografia nos coloca diante de algo que necessariamente acon-teceu, tendo assim um caráter verossímil, provoca em nós uma relação com o passado muito diferente daquela cotidiana:

A Fotografia não diz (forçosamente) aquilo que não é mais, mas apenas e de certo aquilo que foi. Essa sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não toma necessariamente o cami-nho nostálgico da lembrança [...] mas, para toda foto existente no mundo, o caminho da certeza: a essência da Fotografia é ra-tificar aquilo que ela representa. (Ibid., p. 858)

O passado não acontece mais por meio da lembrança ou da cau-salidade; é a identificação de uma coincidência entre o que já foi e o que ainda é: a confirmação inflada do passado pelo presente, e assim também do presente pelo passado. Como disse Bergson, trata-se de uma consciência imediata, tanto que é difícil distin-gui-la do objeto que ela vê, assim como é difícil, diante de uma fotografia, distinguir o passado do presente.

Em “On échoue toujours à parler de ce qu’on aime” (“Malogramos sempre ao falar do que amamos”, 1980), é a mú-sica que provoca uma reflexão integrante desse mesmo movi-mento: Barthes afirma que a maior significação da música é “produzir efeitos sem que tenhamos que nos interrogar sobre as

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causas, já que elas são inacessíveis. A música constitui uma es-pécie de primitivo do prazer: ela produz um prazer que procura-mos sempre reencontrar, mas nunca explicar; ela é então o lugar do puro efeito” (Ibid., p. 909). Este último texto de Barthes tal-vez seja aquele em que essa ideia do puro efeito se enuncie com mais simplicidade e precisão. O dito prazer primitivo é esse que sentimos antes de formulá-lo, já que se dá dentro da sua própria formulação: antes que o desejo se crie, e com ele a falta, cria--se a sua satisfação – e então só percebemos que havia o desejo no momento em que ele se realiza; como se o desejo fosse uma invocação do objeto, e o objeto uma evocação do desejo. É por isso que, diante de uma obra musical, simplesmente não ocor-re àquele que a escuta a necessidade de interrogar-se quanto ao motivo, quanto à causa do efeito provocado: não há causa possí-vel, pois o que se formula dentro desse efeito é completamente inédito. Esse caráter de novidade imprevisível é aquele que re-cheia de atualidade a obra de arte, e é tão presente e amplo que atualiza também o passado: considerando que estamos diante de algo absolutamente novo, é a própria obra que cria a possi-bilidade de desejá-la – ou seja, só desejamos porque o desejo se cumpre. Daí surge o efeito puro: um efeito tão imenso, de uma totalidade tão abrangente, que revela a continuidade indivisível do tempo: visão do espírito pelo espírito (BERGSON, La pensée et le mouvant, p. 27).

“A literatura faz do saber uma festa” (BARTHES, Leçon, p. 435). O olhar que a literatura instaura, assim como aquele ins-taurado pela música ou pela fotografia, na pesquisa constante de Barthes a respeito das percepções no corpo, é um olhar que perverte a realidade discursiva e normativa por se colocar em seu centro, por evidenciar o desejo fundamental que reside em todo discurso, por formular esse desejo e torná-lo núcleo estelar da obra. A identificação do desejo é da maior importância para a compreensão do efeito que sentimos em nosso corpo quando estamos diante de uma obra de arte. Falar de desejo é pensar o discurso do desejo, pensar as diferentes maneiras como formu-

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lamos aquilo que desejamos, e colocar o próprio corpo como tema e centro de todas as reflexões, como realidade no texto. E se o desejo é em si mesmo a falta, o discurso do desejo é sem-pre aquele de alguém que procura: um discurso que segue na procura de si mesmo. Ao considerarmos que só se pode pensar o desejo através das palavras, percebemos que é possível in-terpretar esse discurso assim como qualquer outro, da mesma forma como fazemos com o discurso literário. Barthes escreve Fragments d’un discours amoureux (Fragmentos do discurso amo-roso, 1977) na procura não apenas por compreender a maneira como o amante formula seu próprio desejo, mas também e so-bretudo na procura por tatear o efeito do desejo.

Ao investigar o discurso amoroso, Barthes identifica, em nossa realidade cotidiana, a constante procura por formular o desejo e conhecê-lo. A obra de arte e o efeito que ela causa não estão isolados do mundo e do cotidiano: é a percepção de que o discurso amoroso faz parte de um movimento – aquela continui-dade indivisível de Bergson – que inclui tanto a literatura quanto o tempo e toda a vida. É essa percepção que permite a Barthes investigar tão livremente o discurso do desejo, colocando-se também como amante e por isso incluindo explicitamente a si mesmo na sua investigação. Quanto mais ele se afasta do dis-curso científico, assim, mais se aproxima de um discurso que abarca a vida, e por isso está apto a reconhecer os efeitos no cor-po, já que coloca o próprio corpo em discurso. A única maneira de conhecer e tatear o efeito, sem interrogar quanto às causas, é a instauração de um espaço possível para esse efeito dentro da linguagem que costuma negá-lo com veemência.

Não é à toa, então, que Fragments d’un discours amoureux é um livro que se faz pela descontinuidade, por fragmentos que não se unem claramente uns aos outros e são uma unidade em si mesmos. Não é a primeira vez que Barthes escreve através de fragmentos (esse estilo transpassa toda a sua obra, e é justifi-cado em um de seus primeiros textos, “Notes sur André Gide et son ‘Journal’” [“Notas sobre André Gide e seu ‘Diário’”]: “A in-

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coerência me parece preferível à ordem deformadora” – Ibid., p. 33), e essa forma condiz muito com a suspensão da lineari-dade de causa-efeito: é uma escritura que não procura seguir uma argumentação lógica, mas que se faz através de momen-tos, revelações, pontos. Interessante observar que é justamente esse caráter descontínuo do fragmentário que nos coloca diante da continuidade do tempo: deslocados da concepção linear em que uma coisa sucede à outra, em que uma palavra é justaposta à outra, nos vemos diante de um tempo que se faz por percep-ções, que trabalha com efeitos e que, ao invés de procurar orde-ná-los e assim deformá-los, prefere a incoerência de quem não está preocupado em ligar todo efeito identificado a uma causa que o explique.

Mas Fragments d’un discours amoureux talvez seja o livro em que Barthes explora a forma fragmentária de maneira mais livre e descomprometida, possivelmente pelo fato de se colocar desde o início como “amante que fala e que diz”, e assim se dis-tanciar do compromisso com a lógica e com a causalidade. Cada um dos tantos fragmentos do livro, que se colocam como verbe-tes de uma espécie de dicionário do discurso amoroso, explora as possibilidades e efeitos de uma palavra do apaixonado; e to-dos os fragmentos têm esse caráter de procura de si mesmos, como se estivessem na constante tentativa de se capturarem. Qualquer um deles pode ser demonstrativo da percepção de Barthes do discurso amoroso como forma verbal que também suspende a linearidade, a concepção desse discurso como lugar do puro efeito dentro da linguagem cotidiana.

Tomemos aqui dois exemplos de verbetes que tratam dire-tamente da ideia de causa-efeito e da maneira como o apaixona-do se coloca diante disso: em “Contingences” (“Contingências”), Barthes cria uma oposição entre a causa e a estrutura ao pensar no incidente para o apaixonado:

No incidente, não é a causa que me detém e repercute em mim, é a estrutura […] Eu não recrimino, não suspeito, não procuro as

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causas; eu vejo com pavor a amplitude da situação na qual estou preso; eu não sou o homem do ressentimento, mas da fatalida-de. (O incidente é para mim um signo, não um indício: o ele-mento de um sistema, não a eflorescência de uma causalidade). (Ibid., Tomo V, Fragments d’un discours amoureux, p. 99)

Assim como em sua Leçon, Barthes diz que a literatura não é epistemológica – ou seja, não opera indagando quanto às po-laridades causais do processo cognitivo –, mas dramática; as-sim também, para o apaixonado, o incidente não se dá dentro de uma cognição causal: como alguém diante de uma fotogra-fia, que percebe o passado como um signo dentro do presente, o apaixonado vê a força do incidente enquanto estrutura, signo. O incidente tem uma força em si mesmo, e não enquanto indício de algo externo ou anterior a ele: é um elemento, uma estrutura, uma fatalidade, um puro efeito.

No verbete “Signes” (“Signos”), é a dor da impossibilidade de se provar o sentimento amoroso que mais uma vez coloca a mesma questão:

Os signos não são provas, já que qualquer um pode produzir sig-nos falsos ou ambíguos. Daí resulta depreciar-se, paradoxal-mente, a onipotência da linguagem: uma vez que a linguagem não garante nada, eu a tomarei pela única e última garantia: não acreditarei mais na interpretação. Do meu outro, receberei toda palavra como signo de verdade; e, quando eu falar, não coloca-rei em dúvida que ele receberá como verdade aquilo que direi. [...] para que uma coisa seja segura, é preciso que ela seja dita; mas também, uma vez que ela é dita, ela é provisoriamente ver-dadeira. (Ibid., p. 263)

Aqui, evidenciando o caráter inverossímil da linguagem – di-ferente daquele da fotografia, que é um atestado de verdade –, Barthes observa que, justamente por esse caráter, o signo tem a possibilidade de se converter em uma verdade em si mesma,

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independentemente da interpretação que se possa fazer dele ou da possível realidade que o antecede: a verdade habita o sig-no amoroso, e os amantes acreditam nesses signos não como provas de uma causa que levaria a eles, mas como causa em si, como efeito em si.

Creio que toda a obra de Barthes, de qualquer ponto e por qualquer ângulo, pode ser lida como causa e efeito em si mes-ma. Mesmo que tenha havido momentos em que Barthes, de al-guma forma, negou essa possibilidade de fugir da linha causal dos acontecimentos, também essa sua negação acabou se tor-nando – de um ponto de vista geral de sua obra – uma confir-mação da constante vontade de suspender essa linha. Pois é ao admitir que ele pode se contradizer, e por não ter medo de ne-gar a si mesmo e assim deformar uma potencial linha evoluti-va de sua obra, que Barthes trabalha fora da linearidade, numa escritura fora do poder. Há um corpo que habita essa obra, uma verdade que se formula sempre dentro da obra, e que faz o lei-tor habitar também o próprio desejo, formulá-lo, reconhecê-lo e mesmo realizá-lo na leitura, a partir das imagens que se fazem e desfazem na escritura descontínua de Barthes. O fato de que, em muitos momentos de sua vida, ele acabou por se contradizer (como quando afirmou a morte do autor e pouco depois escreveu uma espécie de autobiografia, por exemplo), o torna não menos confiável, mas, pelo contrário, muito mais real dentro de uma concepção de tempo e pensamento que ignora a necessidade da coerência e procura estar sempre se renovando, a partir do mo-mento presente. Como diz Leyla Perrone-Moisés a seu respeito:

Acusam-no de “seguir a moda”, esquecidos de que a moda, con-siderada em certo nível, é algo muito sério, é o sistema de formas que define uma época. Por outro lado, qualquer pretensão a uma visão intemporal dos fenômenos é ilusória. A abertura de Barthes à contemporaneidade, sua permanente disponibilidade para o novo, são as qualidades que seus detratores veem como defeitos. (PERRONE-MOISÉS, Apresentação a Barthes, crítica e verdade)

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No final de sua vida, em sua conferência ao Collège de France em 1978, “Longtemps je me suis couché de bonne heure” (“Durante muito tempo deitava-me cedo”), Barthes declarou o seu desejo de escrever um romance. Dentro do livro À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), ele identificou uma terceira forma criada por Proust, reunião entre a Metáfora e a Metonímia – já que a obra proustiana não se coloca nem exatamente como Romance (por trabalhar também no registro da Metáfora, ao procurar saber o que quer dizer, e assim ser autorreflexiva), nem exatamente como Ensaio (por não deixar de trabalhar no regis-tro da Metonímia, desdobrando pequenos episódios em narrati-vas longas e cheias de personagens); é aí que Barthes encontra a possibilidade de uma terceira forma, que inclui tanto a refle-xão quanto a narração. A partir disso, ele anunciou o próprio de-sejo de abrir espaço para um romance utópico. A obra final de Barthes – ou ao menos é esse o seu desejo – finalmente faria dele um escritor, e não mais um crítico; enfim, ele teria a possibilida-de de falar as coisas, e não mais falar sobre as coisas.

Essa terceira forma – “instância [da] verdade dos afetos, e não aquela das ideias” (BARTHES, Tomo V, Longtemps je me suis couché de bonne heure, p. 469) – que Barthes tanto quis bus-car ao preparar um romance que parece nunca ter sido verdadei-ramente escrito; essa forma que ele investiga desde o início da sua vida, ao abarcar os diários de Gide ou a reflexão histórica de Michelet; essa forma que incita sua reflexão e motiva sua escri-tura: ela permeia silenciosamente todos os textos de Barthes e os recheia de uma substância real que provoca em nós, leitores, um efeito análogo àquele que sentimos diante de uma obra de arte, seja um texto literário ou uma música, ou mesmo diante de um sentimento como o amor. Diferentemente da crítica literária tradicional, os textos de Barthes nunca se centram simplesmen-te no autor e sua obra, nunca são satélites que giram em torno desses objetos; ao contrário, é como se sempre o autor e a obra fossem possibilidades de pensamento e narração, e Barthes fa-lasse a partir deles, criando algo novo. O que ele cria, e o que

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repercute na leitura, é o efeito do corpo que formiga e se expan-de, porque se reconhece na escritura e a partir dela formula o próprio desejo que não sabia se possuir, e que se realiza dentro do texto, junto do texto. Barthes é precisamente aquela cons-ciência definida por Bergson como simultaneamente especta-dora e atriz, espontânea e refletida; que reúne a Metonímia e a Metáfora num mesmo movimento, e se desloca da necessidade científica da crítica de ligar os efeitos reconhecidos a causas ne-cessárias, para aderir à incoerência da realidade. Ao aceitar a convivência entre coisas que se negam entre si, e que por isso ultrapassam a concepção lógica linear que procura explicá-las, Barthes não deixa de ser um pesquisador – mas a sua pesquisa é aquela procura contínua e inesgotável que forma o escritor, e não o cientista.

“Que Lúcifer criou ao mesmo tempo o amor e a morte?” (Ibid., p. 468). É isso que Barthes se pergunta constantemente, é essa pergunta que ele nos provoca constantemente: e seus tex-tos não são a tentativa de respondê-la ou de pontuá-la, mas de formulá-la de novo, mais uma vez, e outra ainda – pois não há resposta possível (e essa talvez seja a única resposta possível).

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TOLSTÓI, Leon. Guerra e paz. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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Fabio Morábito nasceu em Alexandria, Egito, em 1955. Filho de pais italianos, viveu na Itália e chegou ao México na adoles-cência. Elegeu o espanhol como sua língua literária para com-por poemas, contos, ensaios e narrativas infantis. Também tem importante trabalho como tradutor do italiano para o es-panhol, de que é exemplo a tradução da poesia de Eugenio Montale. Sua obra poética está reunida no volume La ola que re-gresa (Fondo de Cultura Económica, 2006). Recentemente foi publicado no Brasil Quando as panteras não eram negras (Ed. 34, 2008). A entrevista para a Cisma foi concedida na ocasião de sua participação como conferencista e leitor de poesia no I Encontro Internacional de Poesia Hispano-Americana, reali-zado entre 18 e 19 de outubro de 2012 na FFLCH/USP.

A Tientas

Cada libro que escriboMe envejece,Me vuelve un descreído.Escribo en contra

entrevista

Fabio Morábitopor Mayra Moreyra Carvalho e Priscila Genelhú

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De mis pensamientosY en contra del ruidoDe mis hábitos.Con cada libroPago un viajeQue no hice.En cada página que acaboCumplo con un acuerdo,Me digo adiósDesde lo más recóndito,Pero sin alcanzar a ir muy lejos.Escribo para no quedarEn medio de mi carne,Para que no me tiente el centro,Para rodear y resistir,Escribo para hacerme a un lado,Pero sin alcanzar a desprenderme.

*

El viento, más Que yo,Se fuma este cigarroEntre mis dedos,Dejándome el placerDe sólo tres o cuatro bocanadas,Que te digo,Porque, acostada, no me oyes.El sol, el viento y la mareaTe ensordecenY cuando me levantoPara dar dos pasos,Viendo mis huellas que se imprimenEn la arena,Pienso que esas pisadas mienten,

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Que ya no piso asíDesde hace no sé cuando;Son huellas de otroQue sobrevive en mis pisadas, pues las míasSon mucho menos elocuentes.Tu, en cambio, que me vesCompleto e indivisible,Sabes mejor que nadie cómo soy mortal,Cómo mis huellas en la arena me describenY cómo se plasma en ellas lo que soy,Sabes mejor que nadie cómo no escucharme.1

Como o segundo número da nossa revista se dedica a pensar o tema “Literatura contra literatura”, gostaríamos que comentasse o que pensa acerca das definições de literatura, dos gêneros, das adjetivações que se dão a ela, da tradição, do cânone.

Bom, seria preciso perguntar-se, por exemplo, o que seria “contraliteratura”. A denominação dos gêneros ainda serve para algo porque nos dá um ponto de referência para entender quais são as rupturas, desvios que se produzem na literatura e, concretamente, nos gêneros. Antes havia um otimismo definitório já que todos entendíamos do que falávamos quando falávamos o que é a poesia, a narrativa, um ensaio, e agora não me parece que tenhamos entrado em uma crise epistemológica,

quero dizer, ainda entendemos e distinguimos perfeitamente um poema de um relato ou um ensaio de uma obra de teatro. Contudo, claro, as fronteiras certamente se atenuaram. Agora se permitem divagações ensaísticas em um relato, inclusive nos próprios poemas, o que antes havia sido tachado de torpeza. Agora, entretanto, não somente não são torpezas como quase são necessárias. Mas tudo isso já acontece há muitíssimo tempo. A crise da lírica, por exemplo, data dos primeiros anos do século xx. Não estamos dizendo nada novo, nem na literatura nem na pintura, ao postular essas rupturas, onde discursos diferentes se mesclam e formam algo heterogêneo que nos deixa, aparentemente, sem pontos de orientação. Eu acredito que, nesse sentido, me parece que a necessidade de romper fronteiras se dá sobretudo

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quando estamos frente a produtos que são demasiado conservadores. Para dar um exemplo concreto: costuma-se dizer que Vargas Llosa foi muito propositivo no início e depois se acomodou demais em uma ideia muito tradicional da narrativa e quase do século xix. Nesse sentido, dá vontade, então, de dizer: temos que romper esses moldes tão anacrônicos, o que não quer dizer que não desfrutemos dessas normas, porque, temos que ser honestos, o gosto sempre está um pouco atrás da inteligência crítica e ainda podemos ser arrebatados por obras muito conservadoras em sua concepção, ainda que, por outro lado, sintamos necessidade de uma renovação. Então, eu creio que a possibilidade de ruptura de gêneros é uma questão, mas isso não significa que tudo anterior tenha se tornado de repente ilegível. Eu não utilizaria o termo "contraliteratura" porque me parece que não diz nada. A literatura é suficientemente flexível e autocrítica para não ter necessidade desse termo. Ela mesma, constantemente, está se ajustando, reelaborando, recusando, recuperando; de forma que deve se ter um pouco de pudor frente a certas denominações que podem satisfazer em algum momento um espírito volúvel, mas que simplesmente não têm consistência. Talvez, quando se estabeleceu no

grupo de vocês essa proposta, também estivessem pensando no conceito. É difícil para mim, mas entendo, sim, que na literatura há uma parte que é contraliterário, que sempre está buscando a renovação e a crítica do que conseguiu. Mas isso não significa que, como muito se diz, “o livro morreu”, “o autor morreu”, “o romance morreu”, “a literatura morreu”. Me parece uma ingenuidade.

Você escreve em espanhol, mas nasceu no Egito e seus pais são italianos. Pode nos falar um pouco sobre sua relação com as línguas e seu trabalho literário?

Isso foi meramente uma questão da minha vida. Aprendi espanhol relativamente tarde, aos quinze anos, e, durante muito tempo, meu idioma materno, o mais forte para mim, foi o italiano. Já não é mais, porque o idioma vai se atrofiando com o passar do tempo, como músculo que não se utiliza. Porém, não existe tampouco o músculo perfeito, de fato, todos os dias, sinto que cometo erros em espanhol, tanto na fala quanto na escrita. Aí está a interferência do italiano, porque são duas línguas muito similares. Deve ser algo muito parecido com o que ocorre com o português e o espanhol. Exatamente a proximidade é uma

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grande vantagem, mas também é uma grande desvantagem, porque possibilita mais as interferências, as mesclas. Me perguntaram muitas vezes: “Você pensa em italiano?”, “Sonha em italiano?”, “Xinga em italiano?”, “Faz amor em italiano ou faz em espanhol?”. E eu devo dizer que não, creio que me apropriei o suficiente do espanhol para senti-lo como minha língua literária, não somente minha língua cotidiana. Tem outra coisa que aprendi com isso: alguém escreve não somente com sua língua, escreve com sua cultura que o rodeia. Quando eu estive, uma época, vivendo um ano em Roma, de tanto ouvir minha língua materna, claro, este músculo atrofiado funcionou outra vez. Então me deu vontade de escrever poesia e escrevi alguns poemas. Não os levei a sério. Quer dizer, do ponto de vista estritamente técnico, me saíam muito bem, inclusive até com mais desenvoltura rítmica que em espanhol. Mas sentia que não estava dizendo nada interessante, e penso que não estava dizendo nada interessante porque eu não me via como pertencente a uma geração literária italiana. Eu era uma espécie de estranho, de intruso que sabia muito bem o idioma, mas que não sabia dar forma a ele como escritor em companhia de uma geração e então faltava a mim o diálogo com outros escritores de minha própria

geração. Aí descobri que esse é um fator muito importante na formação de um escritor, porque não escrevemos só com uma língua, escrevemos com uma companhia, com outros escritores com os quais compartilhamos uma cultura atual, do aqui e do agora. Se nos falta essa cultura, temos simplesmente o idioma, mas um idioma não é suficiente para fazer literatura.

E encontra essa geração de escritores no México?

Sim, claro. Já a partir dos quinze anos, comecei a me apossar do idioma e, com esse domínio meramente linguístico, surgiu também o domínio cultural, eu falava um idioma que expressava meu entorno. Teria sido impossível que eu tivesse escrito em italiano, porque já era um idioma que não tinha nada a ver com aquilo que me refletia. Sinto que nem aprendi espanhol, sinto que o assimilei, como uma espécie de exercício respiratório. Considero o italiano e o espanhol meus idiomas maternos, quer dizer, não os aprendi, não tive que fazer esforço de aprendizagem. Me foram dados de presente.

Em alguns poemas seus, como em “A tientas” e “El viento, más que yo”, nos pareceu muito forte a questão da alteridade. Não só o

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reconhecimento do outro, como também o fato de saber que o sujeito é uma entidade porosa, não uma instância de segurança. Pode nos falar um pouco sobre isso?

Não é um sentimento que eu sempre tive, e talvez tenha a ver com esse aspecto linguístico de haver migrado de uma língua para outra. Mas, efetivamente, há sim, em mim, a experiência de uma mudança muito abrupta, passando de uma cultura e de uma língua a outra em uma idade um pouco difícil, quando ainda não se é dono si mesmo e então se vê obrigado a transformar-se em outra coisa de uma maneira um pouco às cegas ou tateando. Eu creio que o escritor é assim. Todo escritor tem esse problema com a alteridade. Não tem uma consciência muito sólida de si mesmo e por isso escreve, escreve justamente para encontrar-se, encontrar esse eu, esse contorno, essa figura. Há uma sensação de irrealidade em todo escritor em maior ou menor medida. Kafka talvez seja o exemplo paradigmático de escritor que se sentia inapto para a vida, incapaz de viver. Mas eu creio que é uma constante em todos os escritores, até os que parecem mais seguros de si. Há essa sensação de não saber viver ou conviver, ao passo que os outros o fazem de uma maneira natural, e existe

a necessidade de suprir essa carência através de imaginar mundos distintos. Isso é a literatura: imaginar sempre que somos diferentes do que somos, não só como escritores, mas também como leitores. Um leitor, quando compra um livro de poesia ou compra um romance, o faz por quê? O faz porque, no fundo, quer sair de si mesmo, de sua vida e espera secretamente que o livro mude sua vida. Eu penso que sempre, por trás do gesto de abrir um livro, existe essa fantasia. Talvez não signifique mudar a vida de uma forma traumática, violenta, instantânea, mas pode pouco a pouco minar o que sou agora. Por isso creio que lemos: não para ser mais o que somos, senão menos. Não se pode esquecer que o escritor antes de tudo é um leitor. Escreve os livros que não pude ler ou que gostaria de ler. O maior prazer está na leitura. Para mim não há uma grande diferença entre o leitor e o escritor. Eu escrevo uma frase, coloco um ponto, e imediatamente intervém o leitor que sou e lê essa frase da maneira mais objetiva e desprendida possível do escritor para poder julgá-la. Pode-se corrigir a partir desse desdobramento. Se o escritor não consegue desdobrar-se no leitor que há dentro dele, não pode escrever. O leitor, que é alguém que não escreve, na realidade, participa tanto da literatura como aquele que a cria. Obviamente, não pode haver um

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escritor sem leitores. O diálogo entre os dois é importantíssimo.

É possível afirmar que em sua poesia, assim como em suas histórias, há sempre um enigma, algo a descobrir?

Sim, pode ser. Há em mim uma necessidade de colocar-me frente ou a um objeto ou a uma situação cotidiana e tratar de entrar para ver que outras coisas saem para além das aparências. Para dar um exemplo, tenho um poema sobre os balanços e o primeiro verso é “Los columpios no son noticia” (“Os balanços não são notícia”), ou seja, não representam nada importante, jamais um balanço vai aparecer em um jornal como notícia. É um objeto muito simples. O poema é a indagação de que, na realidade, uma parte de nós não desceu dos balanços. Quando o menino se balança, chega um momento em que lhe dizem: “acabou”, ele desce e acabou o jogo. Meu poema postula que há uma parte que segue se balançando. Sempre há um problema, um enigma, que não tem solução e não é que eu pretenda encontrá-la, mas dizer: aqui há um problema que não foi resolvido. Até em coisas tão simples. É como uma poesia que se faz perguntas. Para mim, a poesia é problematizar sempre. Talvez o leitor possa encontrar outra forma

de olhar as coisas. Creio que esse é um dos objetivos da literatura, mostrar-nos o que vemos de uma maneira diferente. Como se as coisas tivessem capas diferentes. Acostumarmos a não nos satisfazer com um primeiro olhar, mas saber que sempre pode haver outra forma de ver. Creio que essa é a função do escritor.

Lemos uma entrevista em que você dizia que as entrevistas com os escritores o aborreciam um pouco, suas palavras foram “Pode ser mais interessante a visão de um leitor, que a do próprio escritor”. Já descobriu algo de sua própria obra, pelas palavras de um leitor, e de que maneira a recepção de seus poemas e contos pelos leitores influenciou sua obra ao longo dos anos?

É uma boa pergunta. Eu creio que sim, mas não saberia como. Na verdade, há uma parte da opinião do crítico e do leitor que me interessa muito e outra que não me interessa de maneira alguma. O que me interessa, quando um leitor me diz que leu um livro meu, sobretudo, é que ele tenha gostado do livro, que lhe transmita uma emoção, que me diga: “não perdi meu tempo ao ler seu livro”. Com isso, eu me dou por satisfeito. Mas já não me dá tanta curiosidade saber por que o livro o mudou, por que

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gostou, por que se emocionou. Sinto que, uma vez que termino o livro, esse livro já não me pertence. Ou seja, eu já não tenho que me responsabilizar pelo meu livro, tenho que me responsabilizar enquanto estou escrevendo, tratando de escrevê-lo o melhor possível. Mas, uma vez que está terminado o livro, esse livro é tão estranho a mim como é estranho aos demais. Já o escrevi, já cumpri minha tarefa e agora, que o livro viaje sozinho, resolva-se sozinho. É como um filho, é preciso cuidar dele, é preciso protegê-lo, mas, uma vez que o filho já é independente, que faça sua vida. E o que menos se deseja é que a vida dele se pareça com a sua. O filho que reproduz o pai é um filho frustrado. Espera-se que o filho tenha uma vida própria, que se distinga do pai, que viaje pela vida. Então, não me perguntem pelo meu filho, perguntem a ele próprio. Da mesma maneira, meu livro, vejam como vocês o leem e se gostam ou não gostam, mas não quero saber mais. Por um lado, nunca nos desprendemos de nossos livros e se dizem “esse livro é muito ruim”, nos dói muito. Mas se nos dizem “é muito bom”, com isso está

tudo bem. É um pouco estranho, mas comigo acontece assim. Com os críticos, é uma relação muito difícil. Mesmo quando um crítico é muito elogioso, sempre nos dá a sensação de que não entendeu o que nós queríamos dizer. Mas por outro lado não é assim, talvez ele tenha entendido mais coisas que o escritor entendeu. O escritor é leitor de seu livro tanto como os outros o são. Por isso, digo que não se deve crer muito nos escritores em suas entrevistas. O que diz um escritor sobre seu livro não tem mais importância do que o que pode opinar um leitor. Além disso, muitas vezes o escritor tende a defender-se, justificar-se, melhorar, magnificar sua obra. Não é o testemunho mais confiável. Por isso, deve-se ter muita cautela com o que um escritor diz de seus livros.

1 “A tientas” foi publicado originalmente no livro De lunes todo el año e “El viento más que yo” no Alguien de lava. Ambos se encontram também em seu volume de poesia reunida, La ola que regresa. Agradecemos ao autor pela permissão de os publicarmos aqui. Referências bibliográficas MORÁBITO, Fabio. La ola que regresa. Primera edición, México: FCE, 2006.

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Ana Carolina Gomes da Silva é aluna de Letras – Português e Espanhol, na USP.

Bruna de Carvalho é mestranda do programa de Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês da USP.

Carolina de Pontes Rubira é aluna de Letras – Português e Espanhol, na USP. Estudou a influência do jazz na narrativa de Julio Cortázar, com orientação do Prof. Dr. Jorge de Almeida. Publicou o artigo “O jazz na narrativa de Julio Cortázar” no primeiro número da cisma.

Isabela de Vilhena Gaglianone é aluna de Filosofia na USP e colaboradora resenhista da Livraria 30porcento.

Jean Luiz Palavicini é qualquer coisa entre a faculdade de filosofia e o lirismo das folhas.

Leda Cartum formou-se em Letras – Português e Francês, na USP no final de 2012. É autora do livro As horas do dia – pequeno dicionário calendário (7Letras, 2012) e corroteirista do curta-metragem “Estação”, que foi participante da Competição Oficial de Cannes em 2010.

Marcos Vinícius Ferrari é aluno de Letras – Português e Russo na USP. Desenvolveu pesquisa de iniciação científica sobre a obra de João Cabral de Melo Neto, com financiamento do CNPq.

Marian Gabani Gimenez é aluna de Letras – Português e Hebraico, na USP.

Mayra Moreyra Carvalho é estudante de Letras – Português e Espanhol, na USP, onde desenvolve pesquisa de iniciação científica na área de Literatura Espanhola sobre a poesia de Federico García Lorca.

Pedro Magalhães é graduando do curso de Letras – Português e Espanhol, na USP, assíduo interessado em C. Lispector, segundo ele a maior escritora que já existiu.

Priscila Genelhú é aluna de Letras – Português e Espanhol na USP.

Vitor Serrano nasceu em Setúbal (Portugal) no final dos anos 80, estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e vive e trabalha atualmente em Lisboa.

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colaboradores

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