cisma 4: enquanto tudo acontece

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cismaISSN 2238-7013

idealizadores da cismaSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

2014, ano III, número 4, reedição

editoresAna Luísa RodriguesBernardo Dias CeccantiniBruna ThalenbergGreta CoutinhoHenrique AmaralLucas Alves FerreiraMilena VaralloPatrícia Anette Schroeder Sofia Nestrovski

revisãoAna Luísa RodriguesBernardo Dias CeccantiniBruna ThalenbergCaroline Micaelia Danilo HorăDaniel VarleseGabriel ProvinzanoGuilherme TauilHenrique AmaralIsabela BenassiLucas Alves FerreiraMilena VaralloPatrícia Anette SchroederSofia Nestrovski

projeto gráfico e diagramaçãoLucas Blat

capaLucas Blat

ilustraçõesIsabela Benassi

fotografiasVitor Serrano

Esta versão foi adaptada para leitura online. Os seguintes textos, publicados na versão impressa, tiveram que ser removidos, por questões de direitos autorais: Tradução de dois poemas de Ingeborg Bachmann, por Matheus Guménin

Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a revista cisma

[email protected]/revistacismawww.revistacisma.comwww.revistas.fflch.usp.br/cisma

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editorial

As eleições, a Copa do Mundo, o primeiro aniversário dos pro-testos de junho, o cinquentenário do Golpe Militar, o centenário da Primeira Guerra Mundial… Não faltarão grandes aconteci-mentos em 2014. Pensando nisso, ou melhor, tentanto resistir a essa espécie de euforia difusa, nós da Revista cisma propuse-mos a seguinte reflexão: que tipo de crítica é possível fazer com tantos acontecimentos ao redor? Que tipo de literatura?

Vejam bem, não se trata de eleger um ou mais tipos de crí-tica e de literatura em detrimento de outros. Até porque somos um grupo de editores preocupados antes em dar voz a alunos de graduação que se atrevam à tradução e à crítica literária, que em defender este ou aquele gênero literário, esta ou aquela cor-rente crítica.

As questões que colocamos trouxeram à tona o problema da possibilidade de reflexão “no calor da hora”, pois, se por um lado as manchetes escancaram a todo instante os temas, por ou-tro o tumulto parece encobrir as formas de tratá-los. Felizmente, apenas parece. Pois o que os ensaios aqui reunidos mostram é que há, sim, inteligência crítica e artística, apesar – ou talvez por causa – dos acontecimentos.

Refletindo agora sobre os textos que compõem este quarto número da cisma, observamos que eles se valem de duas estra-tégias principais. A primeira dá vazão à dimensão da literatura que de fato acontece, seja nas polêmicas, nos festivais literários ou nos literais happenings. Desse ponto de vista, a arte de alguma maneira se irmana da rotina, e esse parentesco parece oferecer ao crítico o acesso para que ele penetre na obra e a investigue, agora desde dentro. Referimo-nos principalmente ao texto que aborda o filme Azul é a cor mais quente e àquele sobre a polêmi-ca recente em torno de Tom Zé. Também cabe nesta descrição o ensaio dedicado ao Projeto Wu Ming, coletivo italiano responsá-vel por diversos best-sellers, ainda que não se acomode aos supos-tos lugares-comuns de uma literatura amplamente comercial.

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A segunda estratégia, inversa, consiste em voltar-se ao passado, mas não para furtar-se ao desafio do presente, e sim para bus-car naquele o termo de comparação (ainda que implícita) tam-bém necessária ao exercício crítico. É o caso, por exemplo, da resenha que (re)descobre em A casa de farinha, livro póstumo de João Cabral de Melo Neto, o modo como nele se combinam crítica social e reflexão sobre a linguagem. Ou de outra rese-nha, que surpreende em Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens Cavalcanti, o diálogo tenso – e contemporâneo – entre as referências explícitas e o pastiche puro e simples.

Essas observações preliminares talvez ajudem o leitor a se aventurar pelos textos, assim como nos ajudaram a apresen-tá-los. Afinal, o mergulho nos acontecimentos e a referência a algo já estabilizado continuam a ser boas estratégias para re-fletir. A escolha final, leitor, cabe a você: ler a cisma no silên-cio do seu quarto ou em trânsito pelas ruas da cidade, enquanto tudo acontece.

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Blowing Up: por uma crítica da traduçãoPatrick Gert Bange e Sofia Glória de A. Soares

1,2,3, gravando!Isabela C. C. A. Mota

O Projeto Wu Ming: possibilidades narrativas e intervenção políticaJosé Antônio de Oliveira Salomé

Resenha de Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens Cavalcanti Maurício Gomes

Alguns fragmentos do discurso amoroso de Barthes no filme La vie d’Adèle, de Abdellatif KechicheAna Luísa Rodrigues

Resenha de Notas sobre uma possível A casa de farinha, de João Cabral de Melo Neto Marcos Vinícius Ferrari

Corredores da história-museu Stefano Manzolli

Aqui Copa Coca acolá fazendo propaganda do Tom Zé Patrícia Anette Schroeder Gonçalves

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Blowing-up: por uma crítica da tradução Patrick Gert Bange e Sofia Glória de A. Soares

A partir de discussões sobre arte e verdade, realidade e ilu-são, procuramos analisar o filme Blow-up, de Michelangelo Antonioni, que constitui uma tradução do conto “As babas do diabo”, de Julio Cortázar, com o intuito de pensarmos uma críti-ca possível para o ano de 2014.

I – As babas da fotografia

“O signo mundano surge como substituto de uma ação ou de um pensamento, ocupando-lhes o lugar. Trata-se, portanto, de um signo que não remete a nenhuma outra coisa, significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que usurpou o suposto valor de seu sentido.” (Gilles Deleuze, Proust e os signos, p. 6)

O trecho de Gilles Deleuze destacado de Proust e os signos re-mete-nos à discussão proposta por Platão acerca da problemáti-ca da mimesis ao indicar que o signo mundano substitui, ocupa o lugar de algo, não o representa. Nos capítulos “O simulacro” e “Mostrar”, de O trabalho da citação, Antoine Compagnon identifica um tipo de construção que se faz através do afasta-mento da verdade. Dessa maneira, essa construção não man-tém com a verdade qualquer relação de semelhança e constitui

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uma má imagem, criadora de ilusão: o simulacro. A afirmação de Deleuze é, então, importante para pensarmos a condição de simulacro. Em Proust e os signos, Deleuze arquiteta um sistema de leitura de Em busca do tempo perdido, reorientando a obra de Proust para o futuro: a Recherche é um trabalho de aprendiza-gem do tornar-se escritor. Assim, dentro da obra operam os sig-nos mundanos, bem como os signos amorosos e os da arte. Os signos mundanos, que nos interessam aqui pela sua similarida-de com o conceito de simulacro, são como que a primeira cama-da, a mais superficial, uma vez que se reportam à não-existên-cia, ao nada, ao vazio.

O filme Blow-up expõe uma questão cujo debate é impres-cindível para a modernidade e para a pós-modernidade: a foto-grafia, sua relação com o homem e com o mundo. Esta seção do artigo se dedica às cenas em que o fotógrafo se esforça para recriar as circunstâncias da situação fotografada, bem como às cenas de retorno ao parque. O início da montagem da narrati-va fotográfica sucede a cena da primeira revelação de algumas fotos do parque, depois de 1 hora e 34 segundos de exibição do filme. Na perspectiva do espectador, a escolha de um enquadra-mento inusitado marca o início da cena de organização dos fa-tos: a câmera está posicionada atrás de um sofá onde se encon-tra o fotógrafo. Dele, vê-se apenas parte da cabeça e de uma das mãos. Ao fundo, há duas fotografias penduradas lado a lado. Ele acende um cigarro. É nesse momento, a despeito de uma expe-riência corporal limitada, a experiência do não saber radical, que ele se precipita a construir uma realidade que o ultrapassa, uma realidade que a fotografia espelha perfeitamente. Depois de revelar várias fotos e organizá-las segundo a lógica de seu pensamento, o fotógrafo, agora como um detetive, está visual-mente cercado pelas fotografias fixadas na madeira ou na pare-de da sala. Cercado pelo seu simulacro produzido, já que, como afirma Compagnon, “é o outro, o usuário e o enganado, que faz o simulacro, que é responsável por ele”), o fotógrafo parece es-tar num labirinto1 – à semelhança do que é sua casa/estúdio – de

1 A ideia de reconhecer a casa/estúdio do fotógrafo como um labirinto está na palestra de Patrick Pessoa sobre o mesmo filme, no livro A história da filosofia em 40 filmes (2013).

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autoengano, malicioso e instigador do erro. A busca pela verdade dos fatos introduz o fotógrafo numa

lógica de leitura exaustiva, porém não há o que possa ser lido objetivamente, daí a necessidade de preencher a imagem com discurso. Susan Sontag, no capítulo “O mundo-imagem”, argu-menta que o processo fotográfico redefine a realidade como algo a ser investigado. Ainda segundo a autora, a manipulação foto-gráfica desconstrói continuidades e lança ao espaço fragmentos de revelação. Novamente nos encontramos numa situação que requer a organização dos fatos numa sequência linear. Ao se de-dicar ao trabalho de construção de um sentido a princípio ine-xistente, o fotógrafo fixa as fotos na parede ao mesmo tempo em que dispõe os fatos numa narrativa, e, sob essa perspectiva, ele se torna um leitor de signos.

Através de sucessivas seleções e ampliações, e de posse de uma inquietude interminável por não conseguir desvendar o “segredo” das fotos, o fotógrafo refaz o caminho percorrido pelo olhar da mulher da foto e encontra um vulto de homem ar-mado em meio aos arbustos. Sob o choque da súbita revelação, ele acredita que salvou a vida do homem fotografado que acom-panhava a mulher. Mais tarde, porém, ele percebe a presença de uma mancha no chão e conclui tratar-se de um corpo. A partir desse instante, completamente envolto pelas babas do discurso fotográfico, ele acredita ter presenciado um assassinato e se es-força para comprovar concretamente o acontecimento. Em ou-tras palavras, o fotógrafo se agarra à expectativa de encontrar o real, conceito que Jean Baudrillard, autor do livro Simulacros e simulações, coloca em xeque, como se verá a seguir. É importan-te notar o destaque dado à fotografia “conclusiva”, a que parece demonstrar a presença do cadáver na cena. O fotógrafo a man-tém separada de todas as outras, num local à parte, sugerindo que ali a realidade se deu: ele acredita que a fotografia o permi-tiu acessar a verdade.

Na primeira cena de retorno ao parque é noite e, depois de o fotógrafo passar por um local onde, ao fundo, há um letrei-

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ro luminoso (apresentando a sigla FOA), a câmera se concen-tra, estática, por alguns instantes nesse objeto. O formato da sigla nos remete ao de uma arma,2 e, aqui, esse símbolo funcio-na como o prenúncio de um assassinato. Porém, a quem ou a que ele se refere? Ao suposto corpo encontrado pelo fotógrafo no parque naquela mesma noite? Ao discurso construído pelo fotógrafo em busca da verdade? À noção de realidade concreta buscada pelo fotógrafo ao longo do filme? Não é possível saber ao certo. Não sabemos sequer se a ida ao parque se concretizou.

Na manhã seguinte, depois de passar a noite numa festa na casa de um amigo, o fotógrafo retorna ao parque à procura de evidências (fotografáveis) que comprovassem o assassinato. Ao se aproximar do local onde na noite anterior estava o corpo, ele se surpreende com a sua ausência. Restou o nada, a falta. Sobre esse processo de desapontamento, Deleuze afirma que “a decepção é um momento fundamental da busca ou do aprendi-zado: em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto não nos revela o segredo que esperávamos”. A decepção coloca o fotógrafo num caminho de aprendizado. Ele se abaixa e a câmera focaliza a parte posterior da sua cabeça. Ele olha para o céu, a câmera realiza o trajeto do seu olhar e, poucos instantes depois, ocorre uma quebra de plano: ele está de pé, pensativo, percebe que a linearidade não se dá, não garante um sentido. O mecanismo da quebra da linearidade cinematográfica utilizado por Antonioni constitui um erro, uma imperfeição, uma quebra. Esse gesto dialoga com o que Baudrillard aponta como a inexis-tência da realidade. Para ele, não há correspondência, não há re-presentação: o espelho fotografia/mundo está quebrado.

A passagem de cena tratada acima dialoga com o segun-do aparecimento da sigla FOA, com o mesmo formato de arma. Quando a equivalência ideológica entre fotografia e realidade se rompe, o letreiro reaparece e se acende, o que nos permite es-tabelecer uma relação com a morte da realidade. Esse momento marca, segundo Baudrillard, a viragem decisiva dos signos que ocultam algo rumo àqueles que não se referem a nada. Contudo,

2 A ideia de perceber que o letreiro luminoso tem formato de arma está na página sobre cinema FilmSite, cujo endereço é http://www.filmsite.org/blow.html (acessado em 16 de novembro de 2013).

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o fotógrafo ainda não tem plena consciência do jogo hiper-real.

II – Os palhaços hiper-reais

“A finalidade da análise ideológica continua a ser restituir o pro-cesso objetivo, é sempre um falso problema querer reinserir a verdade sob o simulacro.” (Jean Baudrillard, “A precessão dos simulacros”, p. 39)

No princípio e no final do filme Blow-Up o espectador é sur-preendido por figuras circenses, carnavalescas, bagunceiras: os palhaços de Antonioni. São as primeiras figuras que invadem o plano estático da câmera, que filma as janelas de um prédio cin-za. O recurso é, naturalmente, estético e não poderá ser consi-derado gratuito. O fato de eles invadirem o plano estático da câ-mera já os coloca em uma categoria avessa à ordem das janelas cinzas. O barulho que fazem, também. A câmera, depois de girar com os palhaços, para seu foco, por meio segundo, em uma obra de arte pública, muito geométrica e regular. Como se vê, há uma disritmia entre a bagunça dos palhaços e a ordem da realidade, que a câmera flagra. Adiante, os palhaços estacionam o carro em que vêm montados e saem correndo, começando por bagunçar algumas damas, que parecem da alta sociedade. Nisso, há um corte: a câmera filma uma espécie de clínica, com muitas gra-des no primeiro plano, de onde saem algumas pessoas, dentre as quais está (o espectador de primeira viagem talvez não o perce-ba) o personagem principal, o fotógrafo, cujo nome não se sabe. A cena silenciosa funciona em um registro radicalmente distin-to da gritaria dos palhaços, no mesmo registro, pode-se dizer, da obra de arte geométrica de há pouco. Acompanhamos os perso-nagens um tanto, quando a câmera atua um novo corte: de vol-ta aos palhaços barulhentos, que correm por entre alguns car-ros, dentre os quais um de uma transportadora chamada “Road Transport Contractors”. Depois de alguns planos no ritmo cin-zento das pessoas que saíram da clínica, voltamos aos palhaços,

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que, dessa vez, enquanto a câmera foca duas freiras que dobram a esquina, aproximam-se correndo, aos gritos, passando por um guarda real inglês e depois pelas duas freiras, que saem corren-do. A descrição desses primeiros momentos do filme permite in-terpretar os palhaços como agentes da galhofa: os palhaços riem do real, fazem escárnio dele. Ou, baudrillardamente, matam o real: a vida burguesa, a logística do capital, o trânsito, a segu-rança nacional, Deus. Há, claro, já aí uma diferença do tom dos palhaços, se comparado ao de Baudrillard, cuja escrita sugere uma gravidade: é grave para Baudrillard falar da morte do real, falar do que chama de “hiper-real”, isto é, a irreferência pura, o império dos simulacros, que são a quarta fase da imagem, se-gundo a qual “ela [a imagem] não tem relação com qualquer rea-lidade: ela é o seu próprio simulacro puro”. Nesse sentido, em-bora anunciem uma posição baudrillardiana, eixo teórico para pensá-los, os palhaços são mais felizes, porque parecem propor um modo de lidar com a hiper-realidade, especialmente na cena final. Baudrillard, ao longo do primeiro capítulo, só faz implo-dir a sensação do real, com todos os seus exemplos: o escândalo Watergate, Deus, a medicina, a psicanálise, os líderes de gover-no, a exumação de Ramsés, a Disneylândia, os comunistas, os socialistas, a arte. O leitor de Baudrillard está sentenciado ao luto da realidade. A percepção de que o texto de Baudrillard so-licita um luto de seu leitor permite ler seu texto em compara-ção com o filme por uma chave freudiana, possível a partir de Luto e melancolia. Esforçando-nos por não psicologizar os dois autores, podemos dizer de suas respectivas posições filosóficas e estéticas: ao menos no primeiro capítulo, Baudrillard não atra-vessa um luto, tudo que faz é recorrer a inúmeros exemplos que flagram a falência do real, sua morte, a era dos simulacros pu-ros. Está, portanto, trabalhando a saída de uma melancolia e en-veredando o caminho do luto do real – “isso nos levaria a rela-cionar a melancolia com uma perda de objeto que foi retirada da consciência, à diferença do luto, no qual nada do que diz respeito à perda é inconsciente” (Freud, Luto e melancolia, p. 51, grifo nos-

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so). Baudrillard, por essa via (talvez uma via anti-baudrillardia-na), está trazendo à consciência a perda do real, como Antonioni também está, como se viu na seção I. O diretor de Blow-Up pa-rece atravessar o mesmo luto, mas, à diferença de Baudrillard, Antonioni restitui a “capacidade de escolher um novo objeto de amor” (Ibid., p.47) nos últimos momentos do filme.

No fim do filme, os palhaços reaparecem andando de car-ro, no parque, onde o fotógrafo está, tendo acabado de verificar que o cadáver que vira não está mais lá. O carro dá uma volta no parque. A câmera filma de dentro da quadra de tênis. O fo-tógrafo os vê, enquanto desce umas escadas. Os palhaços com-pletam a volta e param o carro, enquanto o fotógrafo os obser-va. Correm para a quadra de tênis, dois deles entram, os demais formam uma fila de observadores junto à grade. Os dois pa-lhaços de dentro da quadra se “aquecem” com suas bolas e ra-quetes invisíveis. Posicionam-se e começam a jogar com a bola invisível. O personagem se aproxima, junta-se para assistir ao jogo na ponta da quadra. Os palhaços acompanham a bola invi-sível com o olhar. A câmera foca em alguns deles. A bola acerta a grade, na frente de uma palhaça que observava. O fotógrafo ri. Em seguida, também parece acompanhar sutilmente a trajetó-ria da bola com os olhos. A bola cai no fim da quadra, a palha-ça vai buscar e encara o fotógrafo, brincando com ele. Ele sorri. A câmera foca a bola, acompanhando-a pelo ar, dançando jun-to com ela. Os palhaços que observam vibram em silêncio com um ponto marcado. O palhaço que joga bate muito forte na bola, que ultrapassa a grade da quadra, indo parar fora dela. A câme-ra acompanha a bola, na grama, até ela parar. A palhaça pede que o fotógrafo vá pegar. Todos os palhaços olham estáticos, tão diferentes do início do filme. O fotógrafo corre até a bola, deixa a câmera no chão. Pega a bola e a arremessa de volta para a qua-dra, observando a trajetória que a bola invisível faz no ar. O fotó-grafo acompanha com o olhar a continuação do jogo. O som da bola quicando e da raquete batendo na bola, agora, são audíveis. O fotógrafo é filmado de longe, do alto, no centro da tela. Pega

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de volta sua câmera. E desaparece. O final é admirável. Em sua interpretação do filme, aliás, fundamental para este trabalho, Patrick Pessoa apoia-se em Nietzsche para pensar a obra, pre-tendendo tratar do nascimento da filosofia contemporânea: a fi-losofia que descobre o perspectivismo, isto é, a morte de Deus. A despeito das duas posições categóricas da filosofia, a saber, a realista e a idealista, Nietzsche afirma:

Uma vez que a palavra “conhecimento” possui antes de mais nada um sentido, o mundo é passível de ser conhecido: mas ele pode receber outras significações. Ele não possui nenhum sentido por detrás de si mesmo, mas inumeráveis sentidos: “Perspectivismo”. (Nietzsche apud Costa & Pessoa, p. 37)

Por essa via, a leitura da última cena com os palhaços aponta um modo de lidar com o perspectivismo: entrar para o jogo da ambi-guidade, que nega a existência de uma bola de tênis total em si. Daí a câmera dançar com o não-sentido-total, quando acompa-nha a bola que não existe. Nós adicionamos a possibilidade de ler a cena, não com o pressuposto filosófico da morte de Deus, como faz Pessoa, mas também com o da morte da realidade: o jogo que os palhaços jogam é o da hiper-realidade de que fala Baudrillard, um jogo certamente, para nós, mais grave do que o jogo da morte da totalidade de um objeto. Os palhaços encenam o simulacro puro e convidam o fotógrafo, antes esperançoso da existência de uma realidade, para lidar com ele. Como? Diante da imposição da hiper-realidade, os palhaços bagunçam de uma vez a insistência à crença na realidade, advogada pelas freiras, pela guarda nacional inglesa, pela alta burguesia, pelo capitalis-mo, pelos artistas nostálgicos da obra de arte geométrica, aque-la que deseja a ordem do sentido e da realidade das coisas. O si-mulacro detona essas esperanças, os palhaços parecem sabê-lo, mas, a despeito disso, jogam com a hiper-realidade, até mesmo riem dela, propondo uma saída: a criação de uma linguagem, que é naturalmente simulacro, mas um simulacro sabido, a per-

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da sabida da realidade. Tendo atravessado esse luto, os palhaços não matam o humor, o riso, tampouco a possibilidade da arte. O fotógrafo, quando devolve a bola de tênis hiper-real, parece dar sinais de entrar para o mesmo jogo, com uma nova lente para a sua câmera: não a lente total, nem a lente real, mas uma lente hiper-real, que não se nega a fazer uma bela fotografia, atitude cuja prova é o próprio filme.

Walter Benjamin que é, como Nietzsche, necessário5 para o pensamento de Baudrillard, como foi para o pensamento de Guy Debord, escreve sobre Proust e sua asma em seu ensaio, que Sergio Paulo Rouanet traduz como “A imagem de Proust”:6

Os médicos ficaram impotentes diante dessa doença. O mesmo não ocorreu com o romancista, que a colocou deliberadamente a seu serviço. [...] A asma entrou em sua arte, se é que ela não é responsável por essa arte. Sua sintaxe imita o ritmo de suas cri-ses de asfixia. (p. 48)

À maneira do Proust de Benjamin, Antonioni põe a serviço da arte a falta de ar do real.

III – Tradução como crítica literária

Escolhemos trabalhar com o filme de Antonioni, de 1966, que conserva o conceito de simulacro como enigma, e que é uma adaptação, ou uma tradução do conto de Cortázar, publica-do pela primeira vez em 1959. Depois de 47 anos de Blow-up, e de 54 da publicação do conto, e escrevendo de 2013, pergunta-mos: que tipo de crítica é possível fazer em 2014? Que tipo de crítica é possível no ano da Copa no Brasil? Dois anos antes das Olimpíadas? Dois anos depois da Rio+20? Um ano depois do país receber a Copa das Confederações, a Jornada Mundial da Juventude, o Rock in Rio? Uma pergunta que talvez pareça indiferente aos que entendem a universidade como ilha, mas uma pergunta-chave para quem a entende no centro das coisas.

5 Aqui, estamos pensando especialmente no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em que Benjamin fala da perda da aura da obra de arte.

6 O título original é Zum Bilde Prousts.

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Ao leitor de Baudrillard, ao leitor que está com o simulacro na ponta da língua, não será possível passar ao largo de um acon-tecimento como a Copa impunemente, principalmente quan-do, no Brasil, a Copa ocupa, comparativamente, o lugar de Disneylândia. Sobre a Disneylândia, fala Baudrillard:

Na Disneylândia desenha-se, pois, por toda a parte, o perfil ob-jectivo da América, até na morfologia dos indivíduos e da mul-tidão. Todos os valores são aí exaltados pela miniatura e pela banda desenhada. Embalsamados e pacificados. Donde a pos-sibilidade [...] de uma análise ideológica da Disneylândia: se-lecção do american way of life, panegírico dos valores america-nos, transposição idealizada de uma realidade contraditória. Decerto. Mas isto esconde uma outra coisa e esta trama “ideo-lógica” serve ela própria de cobertura a uma simulação de ter-ceira categoria: a Disneylândia existe para esconder que é o país “real”, toda a América “real” que é a Disneylândia (de certo modo como as prisões existem para esconder que é todo o so-cial, na sua omnipresença banal, que é carceral). A Disneylândia é colocada como imaginário a fim de fazer crer que o resto é real, quando toda Los Angeles e a América que a rodeia já não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação. Já não se trata de uma representação falsa da realidade (a ideologia), trata-se de esconder que o real já não é o real e portanto de salvaguardar o princípio de realidade. (pp. 20-21, grifo nosso)

Como não entender os grandes eventos que o Brasil recebe, a “realidade” do progresso, como uma estratégia para cobrir a irreferência pura? Como, em meio a tantos acontecimentos, aprender a decepção? Como traduzir o trajeto do luto do fotó-grafo aprendiz, que perde a “realidade” (da verdade, da lineari-dade, do progresso, do avanço)? Como entrar no Maracanã para ver palhaços jogando? Como traduzir um jogo hiper-real?

A lição que Antonioni, leitor de Cortázar, ensina, é a de empreender uma crítica literária por meio de um exercício de

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tradução. Não uma tradução de uma língua em outra, mas uma tradução de uma linguagem em outra linguagem: da literária para a cinematográfica. Convidamos o crítico Antonioni para o ano de 2014, para ler com ele Cortázar: “e depois do ‘se’, o que porei, como vou fechar corretamente a oração? Mas se começo a fazer perguntas não contarei nada; é melhor contar, talvez con-tar seja uma resposta, pelo menos para alguém que esteja lendo”. Antonioni, em sua releitura de Cortázar, dá um segundo passo: o diretor de Blow-up conta e lê ao mesmo tempo. Por isso, é um leitor interditado diante da expectativa de ler a realidade, inclu-sive a realidade do conto, e um escritor-cineasta que engendra uma crítica fora da lógica melancólica: um jogo hiper-real, não o de futebol, mas o jogo que o futebol, as Olimpíadas, todo o gran-de Progresso encobrem. Como em Proust, aprendiz de escritor segundo Deleuze, uma crítica que se esforce por “fazer sair da penumbra” . Uma crítica por uma tradução em linguagem.

ANTONIONI, Michelangelo. Blow-up. Grã Bretanha/ EUA, 1966, 111 min.

BAUDRILLARD, Jean. “A precessão dos simulacros”. In: Simulacros e simulações. Trad. Maria da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

COMPAGNON, Antoine. “O Simulacro” e “Mostrar”. In: O Trabalho da Citação. Trad. Cleonice P. B. Durão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

CORTÁZAR, Julio. “As babas do diabo”. In: As armas secretas. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012.

COSTA, Alexandre & PESSOA, Patrick. “Blow-up (Michelangelo Antonioni)”. In: A história da filosofia em 40 filmes. Rio de Janeiro: Nau, 2013.

DELEUZE, Gilles. “Os tipos de signos”; “O aprendizado”. In: Proust e os signos. Trad. Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

PROUST, Marcel. Tempo redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2004

SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

PÁGINA sobre cinema: http://www.filmsite.org/blow.html (acessado em 16 de novembro de 2013).

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1, 2, 3, Gravando! Isabela C. C. A. Mota

O livro de estreia de Aline Rocha, lançado no final de 2013 pela Editora Patuá, não poderia ter outro nome: Gravando!. Anúncio inicial, o que acontece após “gravando!” se eterniza. Essa é uma das relações que temos com esse termo que nasceu nos sets de filmagens para indicar o começo das gravações, momento em que tudo para e se volta à construção da cena. O cinema, assim como a fotografia, carrega em sua essência uma característica: precisa da simultaneidade entre o que é registrado e a ação de registrar. Além de se vincular, em maior ou menor grau, com a realidade material que nos cerca. Portanto, de alguma forma, o presente e a criação dele estão ligados ao vídeo e à foto. Susan Sontag fala do início da produção cinematográfica:

Naquele primeiro ano, 1985, produziram-se dois tipos de fil-me, propondo para o cinema dois possíveis modos de ser: ci-nema como transcrição do real, vida não encenada (os irmãos Lumière), e cinema como invenção, artifício, ilusão, fantasia (Meliès). Mas essa nunca foi uma oposição verdadeira. Para as primeiras platéias que assistiram ao filme Chegada de um trem à estação La Ciotat, dos irmãos Lumière, a transmissão por uma câmera de uma imagem banal era uma experiência fantástica. O cinema começou no assombro, o assombro de que a realidade pudesse ser transcrita com tamanho imediatismo mágico. Tudo no cinema é uma tentativa de perpetuar e reinventar aquela sen-sação de assombro. (Questão de ênfase: ensaios, p. 156)

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Esse “imediatismo mágico” do qual fala Susan Sontag ainda nos perturba, já que existe um teor de imortalidade naquilo que se registra. Hoje, com câmeras, inclusive nos celulares, regis-tramos tudo o que podemos, somos até capazes de questionar se o que não foi fotografado ou filmado de fato aconteceu. As câmeras nos fazem sentir que existimos, e registrar o presente o torna real. Da mesma forma que as grandes produções criam suas realidades, criamos a nossa, qualquer pessoa pode ter seu momento “gravando!”. Com isso, estamos construindo nossas vivências o tempo todo, não como na memória que se transfor-ma através da passagem do tempo, mas no próprio presente, no gerúndio, assim como o título do livro.

Aline Rocha coloca seu olhar crítico sobre essa espetacula-rização da vida. Em seus poemas, trata de amenidades, banali-dades, utilizando uma linguagem muito coloquial e humor leve, que acaba por aproximá-la da poesia marginal. A autora critica a idealização da vida, colocando luz sobre a vida comum. Ao to-mar por tema o cotidiano, dando a ele seu olhar poético, ela o torna importante, já que a poesia é uma forma de eternizar. A delicadeza de sua obra está justamente nisso: denunciar a vida glamourizada, mostrando que ela é uma farsa distanciada da realidade, e valorizar a vida que de fato existe. E ela o faz justa-mente glamourizando as vivências triviais. O poema que abre o livro, homônimo, é uma espécie de síntese desse olhar crítico, mas nem um pouco moralista:

Gravando

Porque a gente só sabe amar feito cinemaA gente é tudo frescoE precisa ter a maldita cenaDo casal correndo na chuva do beijoEm câmera lentaOu a gente ama feito novelaAquele melodrama todo

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A gente devia era desligar a câmeraPra se amar, apagar as luzesDevia era se amar no camarimMe espera na saída

Nos identificamos com o imaginário de amor romântico, que, justamente por ser idealizado, é colocado em todo seu pieguis-mo. Junto com o eu lírico, fazemos o caminho gradativo da fren-te para atrás das câmeras (“desligar a câmera”, “apagar as lu-zes”, “se amar no camarim” e “me espera na saída”), onde a vida é mais sincera e privada, não com menos fascínio ou menor importância.

Ademais, a criação de um jeito diferente de amar que sub-verte o que seria o único jeito que a gente sabe (“porque a gente só sabe amar feito cinema”), é uma forma de idealizar tanto o amor quanto a ação autêntica. O poema coloca essa forma indis-ciplinada de amar como mais verdadeira, simplesmente porque ela existe.

Outra delicadeza da autora foi conseguir reproduzir a for-ça do “imediatismo mágico” do cinema em suas poesias de for-ma perspicaz. Logo tudo se vincula ao presente. Grande parte dos poemas está nesse tempo verbal, e mesmo os que estão no pretérito parecem estar acontecendo (no gerúndio) na retina do leitor. De natureza plástica, acompanhamos os poemas como em um filme que passa no presente da leitura. Susan Sontag, ainda no ensaio citado, propõe uma forma de ver a sétima arte:

Tudo começa com aquele momento, cem anos atrás, quando o trem entrou e parou na estação. As pessoas trouxeram os filmes para dentro de si, assim como a plateia gritava alvoroçada, e até se abaixava, à medida que o trem parecia vir na direção deles. Até o advento da televisão esvaziar as salas de cinema, era com uma visita semanal ao cinema que as pessoas aprendiam (ou tentavam aprender) como caminhar com elegância, como fu-mar, como beijar, como brigar, como se entristecer. Os filmes

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nos davam dicas sobre como ser atraente, como por exemplo... parece bacana usar capa de chuva mesmo quando não está cho-vendo. Mas tudo o que se levava dos filmes para casa era ape-nas uma parte da experiência mais vasta de perder-se em ros-tos e vidas que não eram os nossos – o que é a modalidade mais abrangente de desejo corporificada pela experiência do cinema. A experiência mais forte era simplesmente render-se ao que es-tava na tela, ser transportado por aquilo. As pessoas queriam ser sequestradas pelo filme. (pp. 156-157)

O espectador da poesia de Aline Rocha também é sequestrado por ela, assim como os filmes, ela nos leva para além do envol-vimento, embarcamos nas cenas criadas com simplicidade no ritmo envolvente que colabora com sua forma imagética e que apela para nossa imaginação visual, nos deixamos levar. Nos identificamos com os poemas, ao ponto de que, ao sorrir na lei-tura, estaríamos rindo de nós mesmos e de nossas contradições.

A compulsão por gravar, filmar, memorizar tudo o que acontece, faz parte de um desejo de não deixar que a coisa aca-be, que o tempo passe, que haja fim, e no mais extremo, que a morte chegue. Deste modo o agora é o lugar onde tudo é possí-vel, ele não é o passado que não volta e nem o futuro que ainda não chegou. Temos o presente em nossas mãos e isso nos põe ativos, com todos os perigos que isso implica. Isso é tratado no poema “O Sangue”:

Se quando escovar os dentes pela manhã sentir o gosto de sangue

E perceber na água avermelhada a substância vitalSe em dias ensolarados lamber o suor que lhe pinga da caraE sorver algo mais espesso mais adocicadoOu ainda se coçar os cabelos enquanto dirige eVoltar as mãos ao volante agora castanhoSe o amigo mostrar cicatrizes permeadas de vermelhidãoSe o pigmento ameríndio envolver tua escrita

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Se no teto notar manchas que antes não existiamOu nas paredes tal qual mofo porém há algo errado com a corSe quando distraído caminhar pela paragem dos diasE perceber no vão enegrecido uma poça de sangueTenha cuidado

O sangue é o elemento que expõe a contradição entre se perce-ber vivo ou estar morrendo. Com a percepção de que esses fatos não são opostos e sim implicados, fica claro o grande risco que vem com a latência de estar vivo: a certeza da morte. E essa cer-teza nos coloca em nostalgia, não com o que fomos, e sim com o que somos, porque logo não seremos mais. Temos saudade do hoje enquanto ele ainda está aqui.

Esse clima nostálgico envolve o livro todo. A escolha le-xical que nos remete a outras décadas colabora para instalá-lo, com gírias dos anos 70 e 80, empréstimos americanos e a po-esia marginal, que vem no léxico mais solto, na mensagem di-reta, ainda no tema cotidiano e no humor que é doce e desbo-cado. Proporcionando, desde a ressignificação de um infame si, pero no mucho ( “saudade dá pero no mucho”), piada antiga que fazemos com a língua espanhola, até algo mais gracioso, como brincar com a importância do correio elegante, elemento de pa-quera, e portanto de aflição, entre crianças e adolescentes nas quermesses (”correio elegante é prelúdio do bilhetinho na gar-rafa/ atravessando sete mares por você”).

Em meio a tantas recordações e um dia a dia supercomum, temos marcas da atualidade: o metrô de São Paulo, o ex-prefei-to Gilberto Kassab, a polêmica da busca da aprovação prévia de biografias. Essas marcas nos trazem para um presente pontual, o tornam menos atemporal, assim o hoje do qual estamos falan-do é o contemporâneo. A frase saudosa dita por gerações passa-das: “no meu tempo é que era bom” também é adequada para essa obra, posto que aqui o “no meu tempo” é o hoje, atual e da-tado. Com isso, ao mudar nosso ponto de vista sobre o presente, a autora está mudando nosso ponto de vista sobre o contempo-

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râneo, que, como o presente do livro, é melhor porque é concre-to, e não virtual como o passado ou o futuro.

Aline Rocha nos diverte com universos tão nossos, tão do nosso tempo. Com uma atmosfera que vai desde filmes hollywoodianos exibidos na Sessão da tarde até a saudade mais verdadeira do agora que nunca volta e dói nostálgico. Ela propõe um jogo de inversões, nem um pouco moralista, no qual ora a vida se torna o máximo e a arte não é nada, ora a arte é o melhor que se pode fazer da vida.

ROCHA, Aline. Gravando. São Paulo: Patuá, 2013.

SONTAG, Susan. Questão de ênfase: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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O Projeto Wu Ming: possibilidades narrativas e intervenção política José Antônio de Oliveira Salomé

O objetivo deste texto é realizar uma apresentação breve das principais questões levantadas pelo coletivo italiano Wu Ming, com foco nas caraterísticas e discussões literárias do projeto, mas sem ignorar o lado político, fundamental para a compreen-são do tipo de narrativa que o grupo propõe, desde suas origens no Luther Blissett Project em meados da década de 1990.

As reflexões aqui apresentadas terão como base tanto os textos ficcionais, como o best-seller Q , publicado sob o pseudôni-mo Luther Blissett, o romance 54 e o “objeto narrativo não iden-tificado” New Thing, da autoria de Wu Ming 1 – todos com tradu-ções brasileiras – e ensaios escritos pelos integrantes do grupo.

Pós-modernismo, neoliberalismo e projeto luther blissett

As últimas décadas do século xx viram florescer o debate em torno do pós-modernismo, que de um modo mais amplo poderia ser relacionado com um período histórico pós-moderno, com ca-racterísticas próprias na política, ciências, artes, estudos da mí-dia etc. Alfonso Berardinelli identifica nesse período o momen-to máximo do século americano e uma “alienação” europeia, que transforma a modernidade em “peça de museu” (“Poesia e gênero lírico: vicissitudes pós-modernas”, pp. 177-178).

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Apesar de divergências entre os críticos a respeito do pós-mo-dernismo, alguns pontos são em geral comumente aceitos: es-gotamento e contestação das narrativas mestras surgidas nos séculos xvii e xix; a ideia de “morte da arte”; o ato de escrever como jogo meta-narrativo; a ironia e a paródia como elementos constitutivos; a recusa em distinguir arte erudita “superior” e arte popular “inferior”, ou cultura de massas. Entre os críticos que buscam o viés “positivo” do pós-modernismo, Arthur C. Danto relaciona a ideia de “fim da arte” nas artes plásticas com a de morte das grandes narrativas, onde o artista teria liberdade de escolher entre todas as formas do passado, sem precisar se reportar a alguma “narrativa mestra” pré-definida (Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história, pp. 3-23). Entre os muitos críticos que apontam os aspectos negativos do pós-modernismo, em especial no contraste com o modernismo, o mais citado talvez seja Fredric Jameson, para quem a ideolo-gia pós-modernista dialoga com o momento do capitalismo fi-nanceiro internacional (“Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism”, p. 55), além de Terry Eagleton, que vê uma ne-gação pós-moderna a qualquer tentativa de mudança das con-dições sociais (2006, pp. 352-357). No que se refere à questão da prosa, Berardinelli aponta o best-seller pós-moderno como prin-cipal característica do período, em que o vínculo com a indús-tria cultural revelaria os sintomas da mentalidade de uma épo-ca, além de dar origem a uma prosa que não “consola, não cria problemas, ensina e diverte” (Berardinelli, “O best-seller pós--moderno: de O Gattopardo a Stephen King”, p. 165).

Se por um lado é possível identificar que muitos escritores tenham assumido pressupostos pós-modernos em suas obras, seria natural que nem todos partilhassem das mesmas ideias, de modo que autores com visões das mais díspares acabaram enquadrados pela crítica como pós-modernos.

Em 1999, sob o pseudônimo Luther Blissett, foi publicado na Itália o romance Q , um best-seller traduzido em diversas lín-guas (Q: o caçador de hereges, 2002). A princípio, Q partilha de

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características apontadas no pós-modernismo em geral, em es-pecial pelo que Linda Hutcheon chama de “meta-narrativa his-toriográfica” (Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção, pp. 63-64), por se tratar de um romance histórico ambientado durante as perseguições religiosas do século XVI, misturando linguagem erudita com a de ficções populares, nos moldes dos romances de Umberto Eco, por exemplo.

O mistério em torno da identidade do autor por trás do pseudônimo poderia ser facilmente relacionado com escritores como Thomas Pynchon ou J. D. Salinger, que evitaram ao lon-go dos anos qualquer aparição pública, o que gerou discussões sobre as razões da reclusão ou mesmo sobre sua real existên-cia, que muitas vezes superou o debate em torno da obra. O que diferenciava Luther Blissett era que o pseudônimo não escon-dia um autor, mas sim um coletivo surgido em Bolonha e que desde meados da década de 1990 divulgava textos de “sabota-gem cultural” e praticava verdadeiras ações de guerrilha, pelas quais discutia e contestava o modo como a mídia transforma co-tidiano em espetáculo, tudo sob o lema “qualquer um pode ser Luther Blissett” (Blissett, Guerrilha psíquica, pp. 15-26). Apesar do núcleo italiano, ações atribuídas a Luther Blissett foram rea-lizadas em diversos países. A lista de influências do grupo pas-sa pelas culturas punk e cyberpunk das décadas de 1970 e 1980, pelo romantismo alemão, por Karl Marx, pelo budismo e pelos estudos sobre os mitos, na busca da criação de um herói popu-lar e ao mesmo tempo sem rosto, para que fosse identificado não com um sujeito mas com a comunidade. Colaborou para as ações do grupo o uso da internet como meio de divulgação, vín-culo de fundamental importância para o estabelecimento pos-terior do Wu Ming.

As ações da “comunidade aberta Luther Blissett” chega-ram ao auge durante os protestos ocorridos durante as reuniões do G8 (grupo das sete nações mais ricas do mundo e a Rússia), entre 1999 e 2000, especialmente durante as chamadas “bata-lhas de Seattle e Gênova”, quando a crítica teórica transformou-

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-se em prática e milhares de jovens protestaram nas ruas contra os desmandos do capital por meio dos chefes de Estado. Em um primeiro momento poderia ser dito que os protestos ocorridos não teriam conseguido resultados práticos (uma ideia que pode-ria ser vinculada ao racionalismo de mercado) e teriam tido re-percussão limitada. Porém, a crise econômica de 2008 nos EUA e na União Europeia demonstrou as fragilidades da economia neoliberal e trouxe insatisfação popular em diversos países cen-trais; também a chamada “primavera árabe” que derrubou ou pôs em crise inúmeros governos no norte da África e Oriente Médio, somada aos protestos de 2012 na Turquia e no Brasil, tra-zem muitos dos procedimentos do Luther Blissett. No caso do Brasil, a confusão – e a distorção de fatos – por parte da grande mídia e de governantes durante as manifestações de junho de 2013 teve muito de sua origem no funcionamento descentraliza-do e anônimo e na mobilização prévia via redes sociais de gru-pos como os Anonymous, os Black Blocs, e na atuação da “Mídia Ninja” (ver Torturra, “Olho da rua”).

Surge Wu Ming

Com origem tão identificada às tecnologias de comunicação e à crítica da mídia, surpreende o fato de Q passar longe de qualquer assunto relacionado; porém seu cenário histórico, a Alemanha do século XVII durante a Guerra dos Trinta Anos, permitiu a construção de um personagem que pudesse simbo-lizar as aspirações do grupo em relação ao “herói sem rosto” e apontou o que seria o melhor caminho para agir dentro da in-dústria cultural em uma nova fase. Em 2000 ocorre o seppuku, suicídio ritual das fileiras italianas de Luther Blissett, o que não impedia a utilização do nome por qualquer um que assim de-sejasse. Cinco dos ex-integrantes do grupo fundaram o coleti-vo Wu Ming, “sem nome” em mandarim. Diferente do Projeto Luther Blissett, o Wu Ming é exclusivamente voltado para a es-crita, sem a realização de ações no “mundo real”, o que não sig-

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nifica negação em participar do debate político. Ao direcionar seus esforços unicamente para a realização de um projeto literá-rio, os integrantes do Wu Ming passaram a discutir com maior intensidade certos pressupostos da escrita contemporânea, qua-se sempre dentro das próprias obras. Os cinco integrantes origi-nais receberam um número ao lado do pseudônimo como única identificação individual, o que permite o reconhecimento do es-tilo de cada um em suas obras individuais, mas mantém o foco nos textos. Apesar dos nomes dos integrantes originais serem conhecidos, o grupo evita ao máximo relacionar nomes e rostos com as obras, o que será respeitado neste trabalho. A escolha de um nome comum aos integrantes, e a própria opção por um pro-jeto coletivo, são formas de criticar aquilo que Jameson deno-mina “cultura da imagem e do simulacro” do pós-modernismo (op. cit., p. 58).

No processo de criação e divulgação do Wu Ming, o conta-to com o público é fundamental; como prova, temos as centenas de participações em debates e encontros com leitores para di-vulgação dos livros, parte do sistema por trás das editoras, o que não pode ser confundido na concepção do grupo com marketing pessoal ou culto à imagem do artista. No processo de recepção da obra, a intermediação é feita pelo mundo escrito e pela pala-vra oral diante do leitor, ao invés da intermediação por imagens, dominada na sociedade contemporânea pela televisão (Zekri, La littérature dans l’empire des images: miroir ou écran?, p. 122)

O vínculo com a rede mundial de computadores foi refor-çado como meio de contato com o público e, em uma atitude ainda incomum, todos os livros do grupo, mesmo se publicados por grandes editoras, e as suas traduções em diversas línguas, estão disponíveis gratuitamente na página do grupo, o que in-dica uma tomada de posição clara em relação à livre circulação de ideias e informações e bate de frente com iniciativas de res-trições, por parte de empresas e artistas, à disponibilização gra-tuita de músicas, livros e qualquer obra intelectual ou artística.

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A obra

O primeiro livro publicado pelo Luther Blissett, Q , parece ini-cialmente seguir a fórmula da meta-narrativa historiográfica comum ao pós-modernismo, representada na Itália pelos li-vros de Umberto Eco (mas também por alguns escritos de Italo Calvino após a trilogia Os nossos antepassados). Por um lado, a narrativa se vale do uso de tradicionais modelos do romance do século xix, da literatura de massas e das narrativas pulp norte--americanas do século xx, misturando aventura de capa-e-es-pada com história de espionagem. Por outro lado, ao leitor mais atento não escapa o uso alegórico de personagens e aconteci-mentos históricos dos séculos xvi e xvii, que remetem às refle-xões sobre o momento da Europa em geral, e da Itália em par-ticular, no final do século xx (União Europeia, integração dos países do antigo bloco comunista, conflitos étnicos e religiosos nos Bálcãs, xenofobia em relação aos imigrantes, política eco-nômica neoliberal). É preciso destacar que o desaparecimen-to de Luther Blissett e o surgimento do Wu Ming não fez estes mesmos integrantes abandonarem o universo ficcional criado em Q , que foi reaproveitado no romance Altai, publicado em 2009 pelo coletivo Wu Ming.

O primeiro romance publicado com o nome Wu Ming foi 54, cuja narrativa move-se entre Itália, Iugoslávia, Estados Unidos e União Soviética nos anos pós-Segunda Guerra Mundial, com personagens reais ligados ao mundo da televisão e cinema, má-fia e veteranos da resistência italiana durante a ocupação ale-mã na guerra. Enquanto costura uma trama ficcional nos mol-des dos romances de espionagem, o texto também dialoga com problemas contemporâneos, em especial as questões de simula-cro e do espaço ocupado pelas celebridades midiáticas. Nas úl-timas páginas, o grupo incluiu algo que passaria a ser comum em seus livros, inclusive nos escritos individuais e projetos pa-ralelos: uma espécie de apêndice com informações sobre fatos e pessoas reais que surgem ao longo do romance. Nesse apên-

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dice, explicam referências à cultura pop contemporânea e apre-sentam fontes de consulta e bibliografia para os leitores. Longe de transformar a ficção em ensaio ou texto acadêmico, o objeti-vo de tais complementos à história é reforçar posições do grupo sobre o papel da narrativa no mundo contemporâneo, algumas delas que serão discutidas a seguir.

O uso da linguagem e de ícones da cultura pop é uma constante nos livros do Wu Ming. Astros da TV e cinema, jaz-zistas, músicos de rock, todas ocupam algum espaço nas obras cujo tempo de enunciação esteja ligado ao século xx, do mesmo modo que figuras históricas cuja existência só pode ser acessada por poucos documentos sobreviventes, o que indica um cuida-do especial do Wu Ming com a pesquisa para a produção de seu material narrativo. Em New Thing, de Wu Ming 1, a agitação da década de 1960, os movimentos pelos direitos civis dos negros e as ações dos Black Panthers são o pano de fundo para uma his-tória que envolve assassinatos de músicos de jazz de vanguar-da. Em uma narrativa polifônica, composta por vários narrado-res, relatórios policiais e reportagens, os últimos dias de vida do saxofonista John Coltrane costuram os capítulos do livro. Wu Ming 1 não somente utiliza o recurso do apêndice com a origem das informações utilizadas, como também explica o processo de criação do livro.

Para uma compreensão das posições de Wu Ming sobre as questões que envolvem o trabalho do grupo, o longo ensaio da autoria de Wu Ming 2 “La salvezza di Euridice” (“A salvação de Eurídice”, 2009), tratado como a declaração da poética do grupo. O ensaio pretende deixar claro qual o objetivo do cole-tivo ao tratar da realidade, não como uma representação exata, mas como parte integrante da obra (portanto justificando o uso da pesquisa histórica), sem fechar a narrativa na representação realista; pois o texto de ficção deve conter elementos visioná-rios, metáforas, símbolos e analogias e, especialmente, o uso de imaginação como fundamento para que o texto apresente pon-tos de vista diferenciados, como forma de criticar as convenções

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afirmadas ideologicamente. O texto apresenta considerações que envolvem também o papel da língua, da transformação so-cial, e o papel do narrador no mundo contemporâneo:

Não se trata de uma sensibilidade especial, mas da familiarida-de no uso de uma ferramenta do ofício. O escritor não é o al-batroz de Charles Baudelaire, capaz de grandes voos no céu, mas desajeitado com suas asas no convés do navio. O escritor é um marinheiro que aprendeu a voar com as palavras. (p. 188, tradução nossa)

O que o Wu Ming parece sugerir é uma nova relação entre narração e experiência que parece evocar as considerações de Walter Benjamin sobre o ato de narrar e de Theodor W. Adorno sobre a perda da experiência no mundo contemporâneo (Respectivamente, o ensaio sobre “O narrador”, e as Notas de literatura I).

O “new italian epic”

Provavelmente um dos mais importantes e debatidos textos do grupo tenha sido o ensaio “New Italian Epic”, (Wu Ming 1, 2008), onde o autor apresenta sua percepção de que existiria um conjunto de obras italianas, de aparência diversa, mas com raízes comuns, todas escritas a partir de meados da década de 1990. De modo geral seria possível identificar nessas obras di-ferentes tentativas de superar debates relacionados à questão do pós-modernismo.

Além dos livros publicados pelo próprio Wu Ming, o en-saio enquadra autores como Valerio Evangelisti, Giancarlo de Cataldo, Andrea Camilleri, Carlo Lucarelli, Massimo Carlotto (os três últimos advindos do gênero policial e depois partin-do para o que Wu Ming 1 classifica como “romances históricos mutantes”), Pico Cacucci, Giuseppe Genna, além do best-sel-ler Gomorra, de Roberto Saviano, denominado no ensaio como

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“objeto narrativo não identificado”. Todos os autores citados te-riam uma preferência pela forma romance, mas com preocupa-ções ensaísticas e com pesquisa em arquivos para fundamentar seus livros, mas sem o abandono da experiência na “estrada”, o que dificultaria o enquadramento em gêneros. Dentre as carac-terísticas citadas, muitas poderiam ser encontradas no trabalho de escritores pós-modernos. A diferença fundamental entre os autores citados no ensaio e a escrita pós-moderna seria a recusa à “fria ironia”, tão caraterística das últimas décadas do século xx. Segundo Hutcheon quem usa de ironia “sai do reino do ver-dadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do desditoso [...]. A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas dizem. Mentir faz o mesmo, é claro...” (op. cit., p. 32). Para o Wu Ming, o uso da ironia em outros momentos históricos configuraria um abalo moral em certezas, mas diante do rela-tivismo pós-moderno generalizado teria perdido sua força e se tornado incapaz de desvelar a ideologia dominante.

O grande marco contemporâneo, segundo Wu Ming 1, foi o ataque terrorista aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. Ele marca o fim de um período, cujo auge foi representado pelo mundo após a queda do Muro de Berlim, com o domínio da ideologia ligada à Nova ordem mundial, baseada na democracia americana e no liberalismo vitorioso, que reflete na arte e na lite-ratura do período na forma de atos indulgentes, citações em exa-gero, paródia, pastiche, remake, revivals irônicos ou nostálgicos, além de várias outras características relacionadas com o pós--modernismo: “os anos noventa não foram somente ‘o decênio mais ávido da história’ (segundo a definição de Joseph Stiglitz), como também o mais iludido, megalomaníaco, autoindulgente e barroco” (Wu Ming 1, 2008, p. 4, tradução nossa). Portanto, uma junção de consumismo acelerado e visão irônica de mun-do não seria um ambiente que favorecesse a narrativa ficcional. O 11 de setembro teve resultados específicos ao ambiente cultu-ral italiano, país com questões históricas do pós-guerra, posição geográfica estratégica durante a Guerra Fria, instabilidade in-

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terna causada pela existência de um grande partido comunista, movimento operário forte, crime organizado e corrupção. Tudo isso, seguido de crises políticas, liberou energias diferentes do que acontecia com o pós-modernismo e a discussão do fim da história no resto do mundo após o fim da Guerra Fria.

O sentido do uso do termo “épico” para denominar o con-junto apresentado não teria nenhuma ligação com o teatro de Bertolt Brecht, mas antes com a própria produção das obras, “épicas” por serem grandes e ambiciosas. Os problemas expos-tos também possuem dimensões épicas, assim como o próprio processo de escrita, que pode levar anos. Os romances tratariam de feitos históricos, míticos, heroicos ou aventurosos: guerra, viagens de iniciação, luta pela sobrevivência, contadas de den-tro de conflitos maiores e decisivos da história. A narração funde elementos históricos e lendários e até mesmo sobrenaturais. As raízes literárias podem ter as mais variadas origens, mas passam pela própria tradição italiana do romance histórico (como Os noi-vos, de Alessandro Manzoni, obra inaugural do romance italiano moderno), além do contato com outras tradições, como o roman-ce latino-americano (realismo mágico), e a obra de James Ellroy somada à linha italiana de narrativas populares, como romances e quadrinhos policiais. Por fim, a recusa do experimentalismo na forma não se repete na linguagem, como forma de causar o “estranhamento” do leitor diante dos problemas apresentados.

Em todos os casos o texto é o centro, pois, diferente de ci-nema e televisão, ele exige do leitor a imaginação e a partici-pação como co criador da obra. Dentro das narrativas existe a valorização do “olhar oblíquo”, que explora diversos pontos de vista: a multidão se torna o “herói”; o uso de histórias basea-das em “linhas do tempo alternativas”, nos moldes da literatu-ra fantástica, como modo de expandir o potencial narrativo; o conceito de obra aberta, no sentido de contestar o formato das leis de direitos autorais e de tornar possível que outros retraba-lhem o que já foi feito – o que aproxima a literatura das técnicas de remix. Por trás de tudo é que deve existir uma posição ética

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do narrador: ele não pode simplesmente contestar se a verdade é ou não possível, mas justificar suas posições.

O que Wu Ming 1 identifica no conjunto de obras do “New Italian Epic” acaba se tornando também uma busca de signifi-cado da arte no mundo contemporâneo, significado que teria sido completamente perdido, segundo Giorgio Agamben, entre os séculos xviii e xix (O homem sem conteúdo, pp. 98-99). Por trás de tudo o que é apresentado por Wu Ming 1 – e também por Wu Ming 2 em “La salvezza di Euridice” – existiria o projeto de criar um novo estatuto para a “pro-dução” (sic) artística e rein-tegrá-la ao mundo da vida, à experiência e ação humana, que a estética, segundo Agamben teria separado (O homem sem con-teúdo, pp. 121-122).

Considerações finais

Ao tratar, no fim da década de 1980, sobre um possível fim da arte, ou da experiência estética relacionada à arte, Giulio Argan comentou:

Nunca o mundo foi tão ávido e pródigo de imagens como hoje. O aparato tecnológico-organizativo da economia industrial não limita, e sim potencia a função da imagem. Existem gran-des indústrias que produzem e vendem apenas imagens: o cine-ma, a radiotelevisão, a publicidade, etc. Sem a informação por meio da imagem, não existiria cultura de massa, e a cultura de uma sociedade industrial não pode ser senão uma cultura de massa. (p. 509)

O maior risco que Argan via na arte contemporânea seria a transformação do artista em um técnico da imagem ou, no caso de poetas, técnicos da língua, na busca de uma reinserção da arte na vida. O que o artista deveria evitar é a “renúncia à au-tonomia de sua disciplina, colocá-la a serviço de um sistema de poder” (Arte moderna, p. 509). O consumo, que guia a sociedade

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contemporânea de forma destrutiva, não deveria ser aceito pas-sivamente pela arte. De modo simultâneo o crítico questionava as relações entre arte e cultura de massa, ainda no contexto dos anos finais da Guerra Fria, quando a opção que a União Soviética apresentava à questão estética já havia se revelado como uma ausência de opção, “mera propaganda política” (Ibid., p. 511). É esse o tipo de pergunta que se coloca o Wu Ming, a recuperação ou manutenção de uma experiência narrativa em plena socieda-de de consumo, o trabalho e o uso com as imagens e palavras que essa sociedade disponibiliza ao mesmo tempo em que de-monstra a lógica perversa de seu funcionamento. O que pode-mos ver no Wu Ming não é a negação da possibilidade de esco-lha, mas uma busca ética, que justifique as escolhas realizadas.

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Embora a maioria dos mapas insista em contradizê-lo, não há no mundo quem possa assegurar a existência legítima e incon-testável da Bulgária, o que torna forçoso descobri-la ou ao me-nos inventá-la: assim poderíamos resumir o pressuposto bá-sico de O púcaro búlgaro, última novela de Walter Campos de Carvalho, publicada em 1964. Atravessado pelo humor nonsen-se, o texto narra os preparativos para a viagem definitiva rumo à descoberta ou à invenção da nação búlgara – viagem que, no entanto, jamais abandona o terreno das elucubrações e do dis-curso, consumindo-se na mais absoluta imobilidade.

Não deixa de ser curioso que o autor mineiro tenha aban-donado a literatura logo após narrar essa insólita expedição, com direito a todo o mistério que cerca a figura quase míti-ca do viajante desaparecido. Em outras palavras, Campos de Carvalho foi à Bulgária para nunca mais voltar (sua obra este-ve “sumida” até 1995, quando foi reeditada pela José Olympio). Contudo, há quem ainda o procure, como nos mostra o roman-ce de estreia do carioca Augusto Guimaraens Cavalcanti, que já no título diz a que veio: Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (7Letras, 2012).

Se buscássemos definir o texto de Augusto Cavalcanti, po-deríamos dizer que se trata de um romance-colagem, já que a

Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho, de Augusto Guimaraens CavalcantiMaurício Gomes

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narrativa, para além das colagens fotográficas entre os capítu-los, se constrói não apenas pela imitação do estilo carvalino, mas também pela citação direta dos textos de Campos de Carvalho. Como afirma o próprio Augusto Cavalcanti em Fui à Bulgária, “as aspas entram em estado festivo de decomposição”, de for-ma que as palavras do autor mineiro se mesclam de forma qua-se indistinta às do autor carioca. A partir dessa incorporação, ao que parece, o romance desenvolve-se em três níveis distintos, embora complementares: na investigação da Bulgária enquan-to metáfora, no desenvolvimento de Campos de Carvalho como personagem e no comentário da obra carvalina.

Entre todos esses níveis, o que julgo de maior interesse é o primeiro, não só por render as melhores páginas do romance, mas sobretudo por sublinhar a precisão de Augusto enquanto lei-tor de Campos de Carvalho. Nesse aspecto, creio, Fui à Bulgária vai ao âmago d’O púcaro búlgaro: a Bulgária é tomada como sig-no misterioso, significante sem significado preciso, converten-do-se numa forma de pensar as possibilidades da própria lingua-gem frente ao mundo – a Bulgária, como significante, existe, mas é preciso buscar seu significado, daí o sentido da viagem.

Isso tudo, mesmo que de forma implícita, está posto na no-vela de Campos de Carvalho, mas no texto de Augusto Cavalcanti é retomado, exposto e retrabalhado sob forma de especulação constante. Dessa forma, a Bulgária converte-se em metáfora para o insondável, para tudo o que está muito para além do óbvio; um estado de suspensão da certeza, reino eterno das perguntas sem respostas e dos bailes de máscaras da subjetividade:

Aliás, para muitos bulgarósofos, a Bulgária só nascerá de fato, no dia em que cada búlgaro for respeitado em toda a sua abs-tração, sem roteiros prévios. Esta Bulgária ainda estaria no úte-ro de um nó dos acontecimentos ainda por vir. Os nossos tan-tos “eus” se dissolveriam aqui, na sustentação latejante de uma irresolução, no cárcere das perguntas em solução, germinando sem maiores culpas. (p. 63)

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É, portanto, a partir da reiterada especulação sobre o “estado búlgaro” que Fui à Bulgária se constrói, em meio a referências que vão de Barthes a figuras da seleção de futebol búlgara – em que o humor pretendido, no entanto, volta e meia se aproxima da piada gasta e cansativa. Em meio a isso, há o comentário da obra carvalhina e a busca por ampliar seus sentidos possíveis, de lançá-la à condição búlgara, poderíamos dizer: “No alto da Gávea, em sua cada vez mais nublada disputa geográfica, Walter Campos de Carvalho começava a escrever o seu O púcaro búlga-ro (1964) – livro de sondagem do insondável” (p. 13).

Avaliando em linhas gerais o romance de Augusto Cavalcanti, fico em dúvida sobre a recepção do texto pelos leito-res que desconhecem a obra do autor mineiro. A forma intensa como Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho está liga-do ao Púcaro búlgaro e à obra carvalina em geral me faz pensar se, em sua busca por Campos de Carvalho, o autor carioca não acabou por esquecer a si mesmo, transpondo o limite da refe-rência construtiva para ingressar no terreno do pastiche puro e simples. Em outras palavras, é provável que o leitor de Fui à Bulgária, a fim de lhe atribuir sentidos, sinta grande necessida-de de ir à obra do autor mineiro, o que me faz crer que o texto de Augusto Cavalcanti acerta mais como incentivo para novos leitores de Campos de Carvalho do que como romance em si.

CAVALCANTI, Augusto Guimaraens. Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

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Alguns fragmentos do discurso amoroso de Barthes no filme La vie d’Adèle, de Abdellatif KechicheAna Luísa Rodrigues

“A figura é o amante em ação.”Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso (1977)

Desde o começo de seus estudos, Roland Barthes mexeu com um tema bastante delicado para os pensadores de sua época: o método de se fazer crítica literária. Para isso, ele reformulou também as ideias sobre a definição de literatura, onde o papel do autor termina e de que forma começa a análise do crítico. Ao contrário do que se costumava fazer na época, e do que ainda é bastante feito hoje, Barthes propõe transferir o lugar do crítico literário para o de recriador da obra e não o de um simples intér-prete. Alguém que, com sua análise, recriasse de alguma forma o texto, tornando-se um coautor.

Para fundamentar essa ideia, Barthes fez a distinção entre os conceitos de sentido e significação. O autor divide essas duas ideias para explicar que o sentido de um sistema significante é o conteúdo dele; enquanto a significação é o processo sistemáti-co da produção desses sentidos. A literatura não se enquadra no lado do sentido, pois não é mensagem, mas fim em si própria. A linguagem não denuncia ou relata o mundo em que vivemos, mas

1 Este texto foi fruto do curso de Perspectivas da Crítica Francesa, ministrado pela prof. Claudia Consuelo Amigo Pino no segundo semestre de 2013 na faculdade de Letras — USP.

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cria um novo, este, agora, regido apenas pelas leis próprias a ela. Portanto, não sendo a literatura o sentido, mas o processo

linguístico de produção dos sentidos, a crítica literária não pode-rá buscar, por meio de sua análise, interpretar uma obra. Passar da simples leitura à análise é mudar a intenção de lugar: é dei-xar de desejar a obra para desejar a própria linguagem. Ainda no processo da escrita, Barthes vê os primeiros traços dessa rela-ção autor-leitor já se formando. A literatura, para ele, é um siste-ma deceptivo, conceito que pode ser explicado por suas próprias palavras em Crítica e verdade: “O escritor concebe a literatura como fim, o mundo lhe devolve como meio; e é nessa decepção infinita que o escritor reencontra o mundo, um mundo estranho, aliás, já que a literatura o representa como uma pergunta, nun-ca, definitivamente, como uma resposta” (p. 31).

A função da crítica é, portanto, descrever o funcionamen-to desse sistema produtor de significação. Entender não o que a obra significa, mas as etapas e escolhas do autor para chegar à significação. Desse modo, o texto crítico literário deseja tam-bém possuir sua própria linguagem e está submetido às mesmas exigências que a linguagem literária. O sentido do texto crítico está tão suspenso quanto o da literatura. Essencialmente meta-linguística, a análise ganha qualidade, então, não por seu com-promisso em expor a verdade, mas por sua validade, eixo prin-cipal de seu sistema.

Barthes considera também a linguagem literária como es-sencialmente conotativa e não denotativa, ou seja, o que interes-sa para a literatura não é o significado (aquilo que é denotado), mas o próprio poder conotativo do signo linguístico. O conceito de signo linguístico é o que vai iniciar os estudos da semiologia e, futuramente, da própria semiótica.

Em Fragmentos de um discurso amoroso (1977), já no fi-nal de sua vida, Barthes reúne em uma espécie de antologia Goethe, Platão, Diderot, Freud, Nietzsche, entre outros, con-versas entre amigos e pensamentos soltos. Visando analisar o modo como cada um desses autores retrata os mesmos temas,

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Barthes está mais uma vez provando que o objeto do crítico li-terário nada mais é do que o texto. Não vem ao caso em qual século viveu o autor, qual era sua posição política, a qual corren-te literária ou filosófica ele fazia parte. O que importa aqui é o modo como cada um deles pensou, um dia, os signos literários recorrentes no discurso amoroso.

O filme La vie d’Adèle, traduzido no Brasil por Azul é a cor mais quente, traz muitas das figuras analisadas por Roland Barthes. Dirigido pelo franco-tunísio Abdellatif Kechiche, o filme estreou no festival de Cannes em 24 de maio de 2013. Baseado no romance em quadrinhos Le bleu est une couleur chaude, de Julie Maroh, o filme teve uma grande repercussão na Europa e no mundo.

O longa-metragem apresenta com naturalidade o cotidia-no da jovem Adèle (Adèle Exarchopoulos) em um cenário que se limita entre sua casa e o colégio. Suas amigas da escola a incen-tivam a se aproximar de um menino de outra sala para namorá--lo e ter finalmente sua primeira relação sexual.

O ritmo cotidiano e pacato se quebra quando Adèle esbar-ra com Emma (Léa Seydoux) e a vê como uma figura exata que reúne todos os seus desejos. Talvez ela pudesse descrevê-la ali como alguém adorável. A protagonista se encanta não apenas pelo olhar sensual de Emma, ou pelo jeito que esta joga seu ca-belo, mas por entender que dentro daquele objeto estão todos os seus desejos que, em um encontro único, ela descobriu. Não é apenas com Emma o encontro, mas com uma parte de si mesma que ela percebe a existência pela primeira vez, até então, ador-mecida: “É isso! É exatamente isso (que eu amo)” (Fragmentos de um discurso amoroso, p.12). O olhar que as duas trocam, seguido pelo modo como Adèle se distrai, não vê os carros e invade a rua, mostra o enunciado da fascinação, estado atual da personagem.

Após esse encontro, nada mais na vida de Adèle está no mesmo lugar. O relacionamento com o menino já não faz mais sentido. Na escola, ela não consegue ser honesta com suas ami-gas e em casa está sempre com a cabeça em outro lugar. É ape-

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nas no momento em que sonha com Emma e acorda se mas-turbando que a história se revela. Porém, o prazer é algo tão poderoso a ponto de se tornar assustador para Adèle que come-ça a sentir-se culpada pelo que sente. O choro que ocorre após o orgasmo durante a masturbação é um símbolo do prazer e da dor que esse novo sentimento envolve.

No dia seguinte, na aula de literatura, a professora ensi-na mitologia grega e alerta, em um papel quase de oráculo, que a tragédia é inevitável. Após a aula, Adèle volta a se encontrar com Emma em um bar e as duas conversam pela primeira vez. Desse ponto em diante elas começam a sair juntas, construindo memórias e a cada conversa elas se conhecem um pouco mais. Mais do que conhecer uma a outra, Emma ajuda Adèle a enten-der seus desejos homossexuais e a afirmá-los para a sociedade, ainda que a menina sofra preconceito das amigas na escola.

Porém, nessa parte do filme, a escola já não tem mais tanta importância e passa a ser pano de fundo para o relacionamen-to das duas, que começa a tomar completamente o enredo da história. As cenas de longa duração das relações sexuais, suas conversas no parque, câmeras fechadas nos sorrisos são alguns detalhes que mostram, com delicadeza, o amor entre as duas. Como encontramos no livro de Barthes, há duas afirmações do amor. Com certeza Emma e Adèle estão, nesse momento, vi-vendo a primeira, em que o deslumbramento pela pessoa ama-da faz com que a ideia de um futuro pleno seja instaurada na relação: “sou devorado pelo desejo, pelo impulso de ser feliz” (Fragmentos de um discurso amoroso, p. 18). Porém, após esse momento de exaltação, vem um longo túnel, onde a dúvida co-meça a surgir, ameaçando o contrato até então estabelecido.

Interessante destacar que a partir desse momento vemos uma mudança estética no filme. Emma, inicialmente com ca-belos azuis bagunçados, pinta-os de loiro e muda seu corte. O azul, inicialmente a cor mais quente, esfria, assim como o rela-cionamento das duas. Emma está envolvida com o lançamento de sua exposição e Adèle tenta sentir compaixão de seu sofri-

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mento. Porém, vemos no comportamento de Adèle exatamente o que define Barthes: o sofrimento de Emma no processo de tra-balho de sua exposição deixa Adèle de lado, fazendo-a se sentir anulada. “Já que o outro sofre sem mim, por que sofrer em seu lugar?” (Ibid., p. 72). É a partir dessa dúvida que as duas come-çam a se distanciar.

Adèle começa a viver um estado de abismo. Não encontra mais aquela imagem inicial em que via em seu objeto, que a fazia sentir-se plena e segura. Algumas discussões começam a acon-tecer entre elas, cenas do desgaste comum a uma relação que ca-minha para o fim. O diálogo que as duas constroem não é mais algo que fazem juntas, mas um exercício linguístico no qual as duas desejam castrar a outra de toda ou qualquer palavra. A cena é interminável, como explica Barthes, já que ela é uma disputa pela linguagem e não pela resolução dos problemas em si.

Adèle vê-se perdida dentro dessa relação e começa a ter um relacionamento paralelo com um homem do trabalho. Em uma noite, voltando para casa de carona com ele, Emma vê os dois no carro e descobre a traição. O diálogo é intenso, triste e longo porque é o último, porque é o fim. Inicialmente, Adèle nega o envolvimento com outra pessoa, mas as duas passam por um momento de constrangimento, exatamente do modo como ele é definido: “o peso do saber silencioso: eu sei que você sabe que eu sei” (Ibid., p. 83). Uma vez revelada a verdade, Emma ex-pulsa Adèle de sua casa. A protagonista tenta tudo que pode, gri-ta, chora e implora o perdão, mas algo já foi quebrado naquele contrato que um dia fora tão bonito, puro e verdadeiro. Ela ain-da pede um último abraço como forma desesperada de buscar a plenitude um dia alcançada, também em vão. A cena acaba, enfim, pelo cansaço das duas, que desistem.

Desse momento até o final do filme, Adèle experimenta a sensação da ausência. Apesar de ter sido ela quem foi embora da casa, é Emma quem parte: “Ora, só existe a ausência do outro: é o outro quem parte, sou eu quem fica” (Ibid., p. 35). Sendo Adèle a protagonista da história, a ausência só pode ser contada por

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ela, por quem fica. Sua personagem se constitui pela ausência da outra. Adèle não sente mais prazer dando aula, indo ao parque, ficando em casa. É o abismo, novamente, mas dessa vez quase que conscientemente, como escolha da personagem: “lamenta-va jamais poder desaparecer voluntariamente, quando tivesse vontade” (Ibid., p. 6).

Adèle começa, então, a suportar a ausência e esse movi-mento nada mais é do que o esquecimento. “Pois, se não esque-cesse, eu morreria” (Ibid., p. 37), diz Barthes analisando o jovem Werther. É essa a condição de sua sobrevivência. A última cena do filme é Adèle caminhando, saindo da exposição de Emma, consciente do vazio que aquele amor tem dentro dela, mas livre para ir aonde quiser e ser o que ela é, ou ainda, livre para existir de um jeito novo, como aprendeu com seu primeiro grande amor.

Barthes une ideias comuns ao discurso amoroso em um texto só, costurando cuidadosamente cada figura que apare-ce, formando ao final do livro um verdadeiro tecido – uniforme e coerente. Uma base pronta para ser utilizada por quem aceitar o desafio. Desde o prefácio, intitulado “Como é feito este livro”, o escritor deixa clara a abertura de sua obra: “Tal código, cada um pode preenchê-lo ao sabor de sua própria história. [...] O que aqui pudemos dizer da espera, da angústia, da lembrança nunca passará de um modesto suplemento, oferecido ao leitor, para que este dele se aproprie, adicione, subtraia e passe-o a outros” (Ibid., p. 19).

Façamos, então, como propõe Barthes. Se tanto a literatura como o texto crítico literário criam uma linguagem própria, ana-lisemos as imagens dos discursos amorosos palavra por palavra. Até porque, citando mais uma vez o prefácio de seu livro, “as pa-lavras nunca são loucas (no máximo perversas)” (Ibid., p. 21).

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2011.

______ . Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KECHICHE, Abdellatif. La vie d’Adèle. França, 2013, 179 min.

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Notas sobre uma possível A casa de farinha, de João Cabral de Melo NetoMarcos Vinícius Ferrari

Em 1966, o auto Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), foi levado à cena pela primeira vez, musicado por Chico Buarque, na premiada montagem do grupo do Teatro Tuca de São Paulo. No mesmo ano, Cabral deu início à escrita de outro auto – A casa de farinha –, em que novamente o rigor da construção poética aliava-se à dicção popular. Contrariando a mitologia pessoal do poeta, segundo a qual a encenação do auto natalino teria desagradado a Cabral, A casa de farinha parece desdobrar e aprofundar preocupações já esboçadas em Morte e vida severina e, vindo a lume quase quinze anos após a morte do escritor, incide luz renovada sobre a obra cabralina ao compro-var a organicidade e a coerência de um projeto poético original, em que a tensa investigação da linguagem e a crítica social ali-mentam-se mutuamente.

A casa de farinha ocupou Cabral durante quase três déca-das; a cegueira, entretanto, não permitiu que o poeta concluísse a obra. Antes de morrer, entregou a sua filha Inês manuscritos e folhas datilografadas que apresentam todo o material reunido àquela altura pelo poeta e ora publicado: notas de pesquisa, es-quemas, hipóteses, citações, ideias ainda soltas, esboços de en-redo que se vão abrindo em múltiplas soluções dramatúrgicas e aqueles que seriam os versos iniciais do auto. Percorrer esse

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mosaico sedutor é empreender uma viagem pelo método criati-vo de João Cabral, ainda hoje objeto de fascínio e mistificação. Pouco a pouco, enquanto o poeta põe de pé a sua casa de fari-nha, descortina-se a luta corpo a corpo com a palavra de que conhecíamos apenas o resultado acabado, a pedra já lapidada, o metal já domado. Recolhendo fragmentos dispersos, o leitor atento segue as pegadas deixadas pelo grande poeta e vai edi-ficando na imaginação o seu próprio poema, num caminho de volta que também é de ida. E se falamos aqui de um poeta para quem a materialidade da palavra e a concreção do signo poético ocupavam lugar privilegiado, outro interesse reside em acom-panhar a tortuosa batalha de Cabral com a folha em branco: à medida que a cegueira avança, a caligrafia do poeta visivelmen-te tropeça, a letra antes nítida e elegante torna-se, muitas vezes, borrão indistinto.

Embora Cabral tenha realizado uma pesquisa minuciosa a respeito das casas de farinha nordestinas, destinadas à moa-gem da mandioca e à fabricação artesanal da farinha, é certo que, antes de tudo, vai buscá-las nos espaços da própria memó-ria, nas casas de farinha que ele próprio conhecera e que, em meados da década de 60, encontravam-se em vias de extinção e substituição por mecanismos industriais de produção. É jus-tamente aí que reside o nó dramático do auto, de acordo com o projeto do poeta: diversas personagens reúnem-se de madru-gada numa casa de farinha e ali descobrem que esta funciona-rá pela última vez. A dúvida quanto ao futuro dá margem às mais desencontradas ilações: uns, pessimistas, acreditam que a casa de farinha será fechada, vendida ou se transformará numa grande fábrica; outros, otimistas, sustentam que ela será refor-mada ou ampliada.

O embate entre otimismo e pessimismo e a expectativa em relação ao destino da casa de farinha carreiam a tensão dramáti-ca que anima o auto. As anotações de Cabral sinalizam para uma arquitetura poética basicamente dupla: como não há propria-mente ação, o auto seria todo sustentado por duelos verbais que

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ora apontariam para o polo positivo, ora para o negativo. A inten-ção didática do texto se deixa entrever no andamento dialético que Cabral planejava imprimir ao poema: o diálogo, em conso-nância com as regras dramáticas mais convencionais, afigura-se como choque de vontades, como expressão de contrários, numa cadeia em que cada fala surge como antítese da anterior.

A composição das personagens, a que Cabral dedica parte significativa das notas de seu itinerário criativo, incorpora a ten-dência à abstração e à desindividualização dos autos medievais. Todas as personagens são identificadas pelo grupo a que perten-cem e pela função que exercem no interior da casa de farinha: carregadores, raspadoras, raladoras, prensadores, quebrado-res etc. A crítica à face alienante do trabalho evidencia-se ainda mais na identidade existente entre a psicologia das personagens e a função que executam: as raspadoras, que descascam e lim-pam a mandioca de sua pele de terra, abririam o auto com uma visada otimista e quase infantil; os raladores, que transformam violentamente a mandioca numa massa informe, rebateriam o otimismo das primeiras com um pessimismo radical; o prensa-dor, que espreme a mandioca e separa a massa compacta da ma-nipuera venenosa, surge como personagem contemporizadora e representa a síntese em relação aos dois grupos anteriores. E as-sim prossegue a ciranda de personagens, enlaçadas num jogo de afirmação e negação altamente elaborado e consciente, como mostra o detalhado planejamento de Cabral.

Os versos que deveriam abrir o auto já instalam a tensão exi-gida e dão mostra do que viria adiante: o “bom dia” corriqueiro, moeda corrente da comunicação intersubjetiva, é investigado em suas diversas possibilidades, revelando as incertezas daque-les que aguardam na casa de farinha e expondo a contradição entre o cumprimento cotidiano e o futuro difuso que os espera:

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[Os carregadores]– Bom bom-dia, minha gente,– Bom dia para os presentes.– Bom dia, futuramente.– Bom dia, ainda no ventre.

[As mulheres de descascar] – Bom dia tem que dizerQuem chega a todo presente.– Bom dia é como Dizer bom dia é tirarO chapéu, cumpridamente – Bom-dia não antecipa O dia que espera em frente.– Nem bom-dia tem a verSe é sol ou chuvadamente. [Os carregadores]– Nós respondemos bom-diaA quem amigavelmente.– Retribuímos o chapéuSem tirá-lo, mulhermente.– Não há bom-dia ao pé da letra;Sei que ele nada promete.– Que bom-dia pode terQuem ouviu: trabalhe e espere?

[As mulheres de descascar]– Vocês que chegam de foramO bom-dia é de valer?– Por que aqui de madrugadaCorujamos sem saber?– Bom dia é o que precisamosQuem está aqui sem saber.– Que floresça num bom diaO dia que está a florescer.

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Conforme o poeta-engenheiro desenha o mapa de sua casa de farinha, vai tornando-se clara a estrutura dupla do seu poema dramático. O choque fundante entre otimismo e pessimismo pode, quando avultam os boatos acerca da transformação da casa em indústria, ceder espaço ao embate entre tradição e mo-dernidade. Contrapõem-se didaticamente o fabrico artesanal da farinha e a sua produção em escala industrial: o que os sepa-ra é a possibilidade de a farinha, produto final, trazer as marcas vivas do processo, a marca humana intransferível, elemento éti-co fundamental para a visão humanista de trabalho defendida por Cabral neste e em outros momentos de sua obra:

– Quem já viu que a farinha Possa dispensar a sova,O suor, o amassar de mãosO torrar cantado com trovas– Essa nova fábrica que vemSubstituir aquela nossaSerá capaz de trazerÀ farinha a marca nossa.(grifo do poeta)

Ronda A casa da farinha o fantasma da modernização conserva-dora, aliás, já divisado nos passos finais de Morte e vida severina, quando as ciganas leem a sorte do recém-nascido e o vislum-bram sujo, não da lama do mangue, mas da graxa de uma fábri-ca. A ironia aguda e o humor negro de Cabral também compare-cem no projeto de auto na figura do “Doutor Sudene” (referência explícita à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, órgão criado em 1959). Como uma espécie de Godot ou um ins-petor-geral gogoliano, o Doutor Sudene percorreria o auto como figura, a um tempo só, presente e ausente: embora não se revele, algumas personagens depositam nele suas esperanças de que a casa de farinha continue tal e qual, outras culpam-no pelo fe-chamento da casa e pelas desgraças daí decorrentes, até o pos-

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sível desfecho – quando alguém, finalmente, comunica aos de-mais que Sudene não é gente. Numa das anotações de Cabral, lê-se: “um auto assim coletivo e cheio de personagens impede que o espectador se identifique com algum. Botar o Dr. Sudene é importante, mas não creio que ele seja o herói. Foi bom botá--lo para eu poder gozar a Sudene. Mas não creio que ele seja he-rói: como Godot não é herói” (p. 72). O poeta parece desconfiar de reformas incapazes de alterar a estrutura geral e que apenas perpetuam as desigualdades sem atacar-lhes a raiz.

Em resumo, o funcionamento de uma casa de farinha in-clui as seguintes etapas: colher a mandioca, limpá-la (“descas-car com a quicé/ dessa coisa da cor de terra/ da cor de sujo, do que é”), despi-la da feiura da terra (“temos de despi-la do feio/ desse coroscão concreto/ temos de despindo fingir/ que o mun-do real é secreto”), raspar, amassar, espremer, secar a água, pe-neirar, torrar, até que se obtenha a brancura e a pureza da fari-nha – mais que alimento, símbolo. A eleição da casa de farinha como motor do auto não é arbitrária. Como no melhor João Cabral, aqui a acurada reflexão sobre a sociedade insinua-se também como reflexão metalinguística: não estariam inscritas em todas essas atividades concretas índices de sua própria ati-vidade poética, centrada no obsessivo trabalho sobre a matéria, no desbaste do fútil e do excessivo, na depuração, na redução, no menos? A “faca só lâmina” com que o poeta perfura o denso real e descasca o objeto poético reflete-se de viés nessa humil-de casa de farinha em que, ao transformar a raiz impregnada de terra em alimento, conclui-se que “o mundo tem mãos de terra/calos na vida e nos dedos”.

Não nos é dado o resultado final de A casa da farinha. A incompletude do texto e as suas muitas lacunas são fartamente compensadas pelo raro encanto de acompanhar de perto o poe-ta em sua oficina e compreender o tecido (refinado, embora o alvo seja a voz popular e prosaica) da renda de nervos que é a es-crita cabralina. Trata-se, sem dúvida, de obra muito bem-vinda, que vem se juntar às outras criações de um poeta que orientou

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seu projeto estético no sentido de desnudar a aura do poema e revelá-lo como máquina de comover, como mecânica impessoal e antilírica, como linguagem que recai sobre si mesma, desven-dando mais que alimentando seu próprio mistério. Ao adentrar os bastidores da labuta poética, mergulhamos fundo no univer-so de Cabral, cuja obra sempre aguçou no seu leitor a “vontade de corrê-la/ por dentro, de visitá-la”.1

MELO NETO, João Cabral de. Notas sobre uma possível A casa de farinha. Organização de Inez Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

______ . Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

1 “A mulher e a casa”. In: João Cabral de Melo Neto. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. 218.

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Corredores da história-museuStefano Manzolli

No museuCarlito Azevedo

Para Antônio Risério

No museu vidro e acrílicoProtegem a máscara katchina hopi

No depósito de lixo meninos brincamCom a máscara contra gases da 1a guerra—Engenhoca mecânica movimentaA máscara articulada haida

Esplende e flameja a máscara de ferroDa monja inexorável de lezama—O escudo pintado de maprikA efígie de antepassado adu

No foyer soupault e bretonPosam com máscaras navajo—Agora o vazio: objeto invisívelDe giacometti: antimonumento ao queSumiu (mas por trás de tudo issoJá foi prece, carne, calafrio)

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Carlito entra no museu – eis a cena.

Silêncio e contemplação diante das máscaras que, outrora, fo-ram deuses e, diante de seus próprios rituais, invocaram a paz ou o grito de guerra, a chuva ou a devastação. O poeta passeia calado diante dos monumentos à História que se erguem camu-flados de entidades. Então, escreve e dedica ao amigo antropó-logo as impressões que lhe ocorrem a respeito do caráter ritua-lístico que permanece como invólucro na sociedade moderna. Assim como nas sociedades tribais, o homem (dito) moderno venda-se com máscaras para ritualizar sua própria existência.

E o eu lírico (talvez Carlito-em-si, nessa mescla entre real e literário que mantém avivada em seus versos de circunstân-cia) contempla, primeiramente, a máscara katchina guardada em altar de vidro e acrílico. Ainda sacralizada, apresentam--na inalcançável ao homem-espectador – frágil participante da condição humana que não tem direito de alcançar os mais altos lugares dos deuses. Foi tirada, é claro, de seu contexto natural no Novo México, no qual era utilizada como representação dos espíritos tribais da religião Hopi, personificações de quaisquer elementos do mundo natural ou do cosmos. Advindos de um próprio Panthéon, as máscaras representavam entidades e, com grande reverência, dançarinos as utilizavam ritualisticamente para invocá-los.

Enquanto isso, em um depósito de lixo, no mesmo bairro ou do outro lado do continente, alguns meninos brincam com a máscara contra gases da Primeira Guerra. No entanto, sem ter nenhum conhecimento, da mesma forma como os rituais Hopi, em seu divertimento (quase coreografado) invocam através da máscara os deuses da guerra – ou o Passado de guerra. Ou ain-da o reinventam: através da apropriação da máscara, a contem-plação das imagens presentes torna-se menos inanimada e as memórias passam a ser invocadas, como se tivessem existido eternamente, mesmo que criadas momentaneamente ali, na-quele estranho e desconstruído altar, ao redor do qual dançam-

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-brincam. As máscaras guardam em si os rituais dos quais fize-ram parte. As máscaras falam em seu silêncio sepulcral quando postas em movimento. As máscaras, quando vestidas, não es-tão mortas: elas despertam do sono profundo à espera de seus rituais.

Assim Carlito Azevedo abre seu poema: conferindo a tais obras em alguma medida artísticas a potência de ritualizar-se e guardar o tempo passado em seus entalhes. É no movimento que se recriam e deixam de ser apenas uma forma de esconde-rijo: se não no corpo de quem as usa, no balançar da engenhoca mecânica que as movimenta. Como se andasse alguns passos para frente, eis que o poeta deixa de contemplar a cultura Hopi e depara-se com a máscara articulada Haida. É no movimento, novamente, que o torcer-se da realidade da existência humana gera o mostrar-se dos espíritos. O ritual é o encontro entre tem-pos: o tempo presente que tenta anular-se e o tempo eterno do Panthéon, vindo do passado e imutavelmente reiterado no agora e no depois: um Tempo aquém dos tempos – que não passa e não traz passagem para quem nele permanece.

E o encontro de temporalidades, que as máscaras são ca-pazes de promover, novamente se mostra representado nos ver-sos do poema, quando à engenhoca mecânica é pareada a más-cara de ferro da monja inexorável de Lezama. Então, longe dos corredores do museu, novamente nesse movimento de gangor-ra entre o que de fato vê e o que seus olhos da memória lem-bram, o eu lírico cita com destreza o poeta cubano. Eis o entre-laçar anacrônico: entre os deuses ritualísticos e as personagens (tão metafísicas quanto as entidades religiosas) literárias. A “pe-tite Louise”, que percorre os versos todos da narrativa-poesia de Lezama, “Duas famílias”, expulsa de seu sombrio internato do Sacré-Coeur, vê sua mãe chorar as desgraças de sua vida dian-te dessa estranha imagem sacra. Nem todo sagrado é belo nos termos ocidentais contemporâneos de beleza, mas nem por isso deixa de ser invocável em uma dança tribal ou numa prece de-solada. A beleza da santidade não está necessariamente na har-

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monia dos traços ou na forma como seu rosto foi desenhado: muito pelo contrário, o belo sacro está exatamente em sua po-tência invocadora.

Assim como no primeiro par de versos, a máscara de ferro da monja é o esconderijo do passado inglorioso, que a mãe de-seja apagar, e a expressão do subterfúgio da crença. É o ritual que permanece tribal desde os tempos Haida: na articulação da máscara que esconde e mostra, que invoca e esquece. E a reli-giosidade, aqui exposta, é também elemento constituinte da poética de Lezama, que tentou com sua obra desvendar o mun-do metafísico – através de imagens. A máscara é uma imagem e, segundo suas próprias palavras, “a imagem é a realidade do mundo invisível”.

Levanta-se, de tal maneira, o questionamento: o que é o religioso senão o jogo entre enxergar o que não se vê e olhar so-mente o que é material? O metafísico, pela fé em qualquer más-cara que exista ou já tenha sido cultuada num tempo qualquer, se torna realidade. Impalpável, mas real – para quem o sente nas entranhas, como uma chama inexorável. O ritual não é, de ma-neira alguma, apenas externo: o movimentar-se, seja em dança ou em prece, é também uma forma de dar vida ao ínterim. A máscara mais uma vez colocada enquanto encontro: dessa vez, entre o externo material e o interno metafísico. A máscara traz para o lado do avesso os segredos de uma alma selada dentro de quem a usa.

Novamente o passo, a troca de objeto contemplado dentro do museu: o escudo pintado de Maprik. O poeta faz, então, a ci-são com a sequência até então apresentada de apenas máscaras: eis que surge o escudo no meio dos adornos. O que é, no entanto, esse elemento militar senão uma outra forma de esconder quem o possui? Assim como a máscara esconde para poder aproximar o guerreiro de seu adversário – novamente o jogo de idas e vin-das. No campo de batalha, chega mais perto do outro, sem ser atingido ou morto, quem tem o melhor escudo. No campo de ba-talha religioso cristão, citado pela monja de Lezama, esse escu-

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do é a Fé: o esconderijo seguro de quem procura a divindade. Ou seja, somente por meio do escudo da Fé é possível vencer o real e tanger o divino, pois é esse artefato que esconde o pecador e o reveste do vislumbre da glória do Deus – que também se escon-de para poder mostrar-se, já que o fazer-se presente seria capaz de aniquilar o mero mortal. Aliás, meros mortais recobertos do escudo divino se tornaram os santos das cruzadas: abraçados pela causa de Cristo, de corações e almas medievais guardados sob o metal pesado.

A escrita, pois, apresenta-se como tal artefato entre o poe-ta e a metafísica existencial de todas as coisas: apenas encober-to pela proteção do escudo poético que o escritor é capaz de che-gar mais perto desse mundo além-nosso, em que habitam em paz os Sentidos – ou talvez os mundos ou um qualquer não-mun-do em que habitem. Somente na proteção da malha de palavras, como uma liga metálica resistente, pode desaparecer e, ao mes-mo tempo, ser atingido pela flecha do metafísico sem ter o perto aberto em ferida.

Essa comparação se dá também no que diz respeito à natu-reza das crenças religiosas da tribo Maprik, que era animista: na poesia, também é conferida vida a imagens que permaneciam caladas no profundo sono da morte. Assim como a máscara re-presenta as histórias dos deuses que evoca, ou da mesma forma como a efígie representa o corpo completo do antepassado adu que já morreu, na tentativa de apagar da hipótese humana a pu-trefação do jazigo, o olhar para o entalhe em madeira faz dan-çar no altar da memória as lembranças. Assim, no movimento as máscaras retomam a vida e seu espaço diante dos olhos: ver a efígie é enxergar na metafísica desse espaço, que existe entre nossos olhos mentais e a realidade, as imagens de um tempo que já não é real, mas permanece vivo no Tempo – que não tem fim.

A materialidade textual do poema, portanto, é a máscara que Carlito Azevedo usa para falar sobre o mundo. Não somente ele, mas o Poeta esconde-se e mostra-se através de seus próprios versos: seu ritual de recriação dos tempos em que não viveu, dos

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deuses que não cultuou, mas ainda assim a História da qual se apropria como um deus, ditando os dias que viriam, vieram e vi-rão. O poeta é um guerreiro com seu escudo pintado de palavras sobrevivendo aos embates da realidade e à guerra contra a vida cada vez menos poética, menos metafísica, menos mascarada. A máscara (e o poema) contam de geração em geração as histó-rias das tribos – e mantêm vivo o passado. Do que vale, no entan-to, o nosso patrimônio cultural se não há mais experiência? Se os rituais que as máscaras representam se tornaram objeto de museu guardados atrás de vidro e acrílico intocáveis?

O tempo passado só pode se manter preso e repetido no Tempo, se no presente em que os homens são capazes de lem-brar-se e cultuar, optarmos por fechar a visão física e olhar a an-timaterialidade que os constitui. Só há memória se existe lem-brança. Só há memória no corpo, na fala, no ser animista de um sujeito que se propõe a ligar-se ao passado. É preciso da máscara

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para que exista História.E outro passo. Carlito vê o beijo entre o ancestral e o moder-no se dar no vislumbre dentro do foyer: Soupault e Breton vestem--se com as máscaras navajo. O surrealismo, que buscou exaltar o papel do inconsciente na criação artística – o qual vinha sendo assassinado pelo racionalismo, apropria-se da máscara tribal e chama para seus rituais novamente os espíritos da Arte. Os en-contros entre real e abstrato, fatual e inventado, desejo e von-tade surgem metaforizados novamente pelo papel animista da máscara: a vida que pode ser criada e dada para tudo e todos. A arte é outra máscara da humanidade, em que o ser se mistura ao sendo e olham para o Ser buscando sê-lo. É a potência em mudar a metafísica dos fatos, o passado dos entes e recriar o futuro que já existe no simulacro dos sonhos.

A arte abre um Hiato em seus rituais. A arte é a dança dos meninos no depósito de lixo: eis o elemento de guerra feito de bola, de peão ou de Wii. Eis a recriação da vida, a união das pon-tas desse caracol infinito que, no estranhamento ou no pitores-co, geram no humano o desejo de mostrar-se. Por trás da arte, escondido, existe um sujeito mostrando-se – e resistindo ao pas-sar desapercebido pela história.

Em “No museu”, Carlito Azevedo deixa um alerta ao leitor para que vista suas máscaras de Arte Moderna e sobreviva. E guerreie. E invoque os deuses de seu próprio Panthéon cultural para que a expressão artística não morra num mundo em que a experimentação se torna cada vez mais objeto de contemplação e apenas isso. Para que não passe desapercebido pela História maquiado de cientista, de objetivo, de racional. A razão, que traz o (dito) Progresso, tem assassinado a metafísica experiência da divindade: onde havia ritual, eis a máquina mecanizando o co-locar-parafuso-na-porca. Num mundo apoético, lógico e cientí-fico, só é possível transformar Guerra Mundial, o símbolo máxi-mo da disputa pelo poder, em paz quando uns meninos dançam com a máscara de gás, como se rissem da vida que passa areno-sa entre os vãos dos dedos. É no dançar das máscaras e no pedir

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das mães desiludidas às monjas inexoráveis que há a resistência contra o mundo sem metafísica. O ritual é a barricada, é a más-cara, é o escudo – de Fé.

“No museu” é um convite à vida vivida pelas máscaras da poesia. Pelos rituais poéticos. Pelos deuses da Arte – seja lá quem forem. Sejam quantos forem, mas que sejam. E através de sua existência requerida que possam trazer vida para um mun-do cada vez mais morto – e jogado em um depósito de lixo.

E agora o vazio. Eis o último passo de Carlito, do eu líri-co e do leitor dentro desse museu: diante do objeto invisível de Giacometti o passeio se encerra. As mãos figurando o toque no antimonumento desaparecido e irreal. Sumiu. Assim como a arte, o objeto invisível desapareceu com o tempo e com a força das mãos que, para protegê-lo, acabaram por reduzi-lo ao nada. É na ânsia de resguardar a Arte dos próprios artistas que a sub-vertem que se acaba por reduzi-la a um nada anti-artístico. Para onde irão as máscaras dos poetas? Sumirão. Ao final do passeio intangível pela incrível história da dialética artística humana, eis o hiato: o fim anunciado é trágico, pois é nulo.

No entanto, a Arte, em si mesma, é forte. Resiste. Ainda que no luto das mãos rígidas em forma de proteção – protegendo o nada existente – permanece, por trás de tudo isso, a virtuali-dade de um tempo que já foi prece, carne, calafrio. O passado é inapagável e a força com que se reinventa também o é. Há vida nas mãos do poeta, em sua caneta, em seu papel. Seja lá o que for escrever, mesmo que desacreditado, escreve para ritualizar a própria existência. Criar arte é um ritual ao qual a humanidade estará sempre vinculada, mesmo que na tentativa de romper as amarras que as unem. É através da arte que há a possibilidade de transcender o mero mundo material e tocar, enfim, os outros universos que permanecem em viva potência diante dos olhos – que por vezes se fecham ao imaterial, irreal, intangível.

A poesia é o animismo de que a vida precisa quando as pesadas fardas e as duras marcas de um mundo racional não aguentam mais explicá-lo. Diante da engenhoca mecânica, os

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espíritos haida ganham a força e a vida dos corpos que dançam continuamente. A poesia é a dança da linguagem, em que as le-tras brincam no papel de jogar para cima a máscara contra ga-ses da Guerra Mundial, ou pinta nos rostos surrealistas as más-caras navajo. A poesia é o antimonumento: revivida e morta a todo instante pelo olhar de um leitor desatento – ou atento por demais. E o convite é também para que o leitor, ainda que não escreva, seja capaz de viver sua existência metafisicamente: não buscar todas as explicações, deixar algo, ainda que seja angus-tiante perder o controle, nas mãos da monja de máscara de fer-ro. Ainda que não acredite no divino, deixar que uma parcela de tudo caminhe à força e ao destino de um qualquer sopro de casualidade. De encontro entre tempos no Tempo, no Ser. É a deixa para que o leitor encontre vertigem e gozo na viagem (não ao centro da Terra), mas ao cume do Paraíso. O Paraíso é onde habitam as memórias que as máscaras evocam. Onde dormem os deuses e acorda quem deveria ser esquecido, mas permanece na efígie das próprias palavras do Poeta.

“No museu” reabre, por fim, a garrafa de um elixir mito-lógico e dá ao leitor a chance de embriagar-se. E no ímpeto do corpo sem dono real, deixar-se participar do ritual animista de encontrar vida. Dar vida. Ter vida. E ser, por trás de tudo isso, prece, carne e calafrio: a tríade límpida e perfeita do reconheci-mento humano – o metafísico, o físico e o intrínseco.

AZEVEDO, Carlito. “No Museu”. In: Sob a noite física (1996), In: Sublunar, 2ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

GALBÁN, Eugenio. S. Lezama Lima. Madrid: Taurus, 1987.

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Aqui Copa Coca acolá fazendo propaganda do Tom Zé1 Patrícia Anette Schroeder Gonçalves

Imagine que, de repente, você se propôs a refletir sobre a obra de um artista vivo que, não satisfeito com essa afronta, mora (quase) na mesma cidade que você. Aqui e agora. Nada heroica-mente, como talvez possa parecer naquele famigerado tom de “nunca na história desse país”, você se lançou a essa lírica tare-fa e começou a estudar, timidamente, Tom Zé. Para essa frágil estreia, você escolheu estudar o primeiro disco do cancionista iraraense, Grande liquidação, de 1968, em contraste com a poe-sia Pau-Brasil de Oswald de Andrade. Afinal de contas, é mais fácil começar pelo decantado e pela comparação explícita – que é nossa capacidade cognitiva mais aguçada – e afinal de contas, existe já um lugar ao sol para aqueles que veem muita seme-lhança entre Tropicália e Modernismo.

Tomo então o ônus de advertir-lhe que poucos de nós, no domínio das Letras, podemos dizer: estudo alguém que expli-cou ao mundo o “metarrefrão microtonal e polissemiótico” do funk “Tô ficando atoladinha”; também poucos publicam tra-balhos sobre um cancionista que compôs um disco de nome Tribunal do Feicebuque; e é claro que não são muitos aqueles que pesquisam alguém que narrou recentemente uma propaganda da Coca-Cola sobre a Copa do Mundo no Brasil.

De repente, você não mais estuda Letras na Universidade. Imagine que, agora, seus amigos, seus vizinhos, seus familia-res lhe marcam no Facebook para lhe deixar por dentro da mais

1 Este artigo, escrito exclusivamente para a cisma é, no entanto, continuidade de uma pesquisa de Iniciação Científica orientada pelo Prof. Dr. Ivan Marques (USP), a quem agradeço pelas importantes contribuições (assim como agradeço ao CNPq, que financiou a pesquisa).

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nova entrevista do Tom Zé, da sua mais nova performance, do seu mais novo álbum, do mais novo artigo sobre ele, do mais novo disco do Caetano, do mais novo filme sobre a Tropicália, do mais novo filme sobre o Festival de 67, do mais novo livro de Roberto Schwarz sobre a Tropicália...

E suas referências passam a vir de sua rede de conhecidos por vezes descompromissados com a – tome fôlego – Academia. Muito embora você estude, por ora é claro, o mais velho dis-co deste mesmo Tom Zé e os mais velhos artigos deste mesmo Roberto Schwarz, você não vive – até onde eu sei – nesta velha década estudada de 1960, e todas essas informações chegam e chegarão sempre a cada minuto, para o bem e para o mal.

Pois não é que com a propaganda supracitada que seu “ob-jeto de estudo” realizou para a Coca-Cola em fevereiro de 2013, um movimento curioso aconteceu na sua timeline? Ninguém acreditava, ninguém acredita, Tom Zé está falando bem sobre a Copa do Mundo na propaganda da Coca-Cola! E nós, compro-missados e descompromissados com a Academia, só achamos que esse nível de (des)compromisso, pago e orientado, não ser-ve mais. Serve falar sem parar de Coca-Cola em letra de músi-ca na década de 1960, como fez Caetano e Tom Zé, serve usar a Coca e desperdiçar a Coca como fez Cildo Meireles na déca-da de 1970, mas não serve ganhar dinheiro com o refrigerante, com fala ampla e limpa, nada irônica, na conseguinte década de 2010. A Tropicália como Antiarte, esta somente, serve.

E a linha do tempo avança mais um pouco. Em junho de 2013, compromissados e descompromissados, saímos às ruas de nossas cidades brasileiras execrando, não nesta ordem nem em nenhuma, os altos preços do transporte “público”, a Rede Globo, a violência da Polícia Militar, o pastor homofóbico na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, a cor-rupção no país, e uma Copa do Mundo – sim, esta mesma de que falamos agora há pouco.

Curiosamente, não posso lhe dizer que vi a Coca-Cola como alvo destes protestos – indício de que, talvez, não vejamos

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nenhum mal na corporação instituída. Coca-Cola não é Clara Crocodilo. Curiosamente ainda, saímos às ruas por razões tão similares às que foram talvez silenciadas na década de 1960 – e até onde nós sabíamos e tínhamos dito, você não vivia no pas-sado. Será mesmo que você, que começa agora a estudar o Tom Zé, será mesmo que você não vive na década de 1960? Não é fá-cil distinguir os dois panos de fundo para você que não era nas-cido naquela época. Ainda assim, você se lembra: nos anos de 1960, a Tropicália não ganhava para desfilar a Coca-Cola.

Ganhava? Não ganhava. Você tenta se ater aos fatos histó-ricos, você tenta manter a unidade, a causalidade, a verossimi-lhança do tempo material que passa no país Brasil, mas não é fácil. (A Polícia Militar ainda existe.) Você consegue digitar al-gumas linhas informativas:

A concomitância dos elementos arcaicos e modernos como tema e o seu tratamento no plano formal na Tropicália são vinculados fre-quentemente, pelos estudiosos e pelos próprios tropicalistas, à an-tropofagia de Oswald de Andrade.

(Um presidente negro já foi eleito na nação dos Ku Klux Klan e na realidade que você vive, quase não há negros na universidade pública, quase não há negros nas novelas, quase não há negros nas livrarias; o que há nesses três cenários são “mulatos” ser-vindo a “mulatos” atrás de balcões: o resto são nuances destituí-das de importância.)

Pouco se escreveu, contudo, sobre a aproximação temática em questão na obra de Tom Zé. A motivação inicial dessa pesquisa foi, pois, a busca desses elementos nas letras do cancionista iraraense, partindo da comparação de fundo com os manifestos Antropófago e Pau-Brasil, bem como com dois livros de Oswald de Andrade, Pau-Brasil (1925) e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927), para analisar canções especialmente de seu pri-meiro disco, Grande liquidação (1968).

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(Darcy Ribeiro e tantos outros já vieram ao mundo, já viveram e já morreram e o massacre ideológico e físico aos nossos índios – uau, é mesmo, existem índios no Brasil! – permanece na velo-cidade da internet.)

A comparação entre Oswald de Andrade e Tom Zé encontra, de partida, um quase impedimento colocado pelo cancionista a res-peito da possível influência do poeta modernista em sua obra, mes-mo na fase de maior envolvimento com os tropicalistas declara-damente antropófagos. Tom Zé passa longe de mencionar Oswald em seu Tropicalista lenta luta (2003) e, em mais de uma entrevista atual, quando fala sobre o surgimento do movimento, não dá au-toridade a Oswald.

(Passamos por uma Ditadura Militar, exigimos as Diretas Já, fizemos um impeachment, e o Reitor da Universidade de São Paulo ainda é escolhido a dedo pelo Governador deste Estado. A Reitoria desta Universidade ainda conta com o braço armado da Polícia Militar. A Polícia Militar ainda existe.)

É curioso notar que, enquanto Tom Zé resiste à associação, Caetano Veloso declarou a Augusto de Campos: “O Tropicalismo é um neo--Antropofagismo” e destinou um capítulo inteiro de sua Verdade tropical (1997) para a antropofagia, assumindo a herança oswal-diana e explicando sempre que, contudo, não conhecia a obra de Oswald até assistir ao Rei da vela (1937) encenado pelo Teatro Oficina em 1967, uma semana depois de haver composto a canção “Tropicália”.

Você tenta se sentar à sua escrivaninha, deixar juízos de valor sobre o primeiro disco de Tom Zé, observar se há ou não rela-ções fundamentais com o modernista Oswald de Andrade; ten-ta não misturar as coisas, não misturar o Tom Zé de 1968 com o de 2013. Tenta entender a linha do tempo. Mas não há causali-dade nessa ordem dos fatos. Não há aparente separação entre o

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itálico da sua escrita e os parênteses da vida política. Tom Zé diz e repete com frequência que viveu, diferente-

mente de parte do mundo ocidental, uma infância sem conhe-cer Aristóteles, na Bahia moçárabe.2 Você se pergunta se não foi o mundo inteiro que, de repente, acordou sem Aristóteles, sem verossimilhança ao menos. Como num romance de José Saramago, todos começam a perder a organicidade da veros-similhança. José Saramago já morreu e a Polícia Militar ain-da existe no Brasil, no Estado de São Paulo, em São Paulo, na Cidade Universitária, na Avenida Luciano Gualberto, na Biblioteca Florestan Fernandes, onde escrevo essas linhas. Aqui e agora. Aqui e agora, como o Tom Zé. A crítica literária só pare-ce possível para você porque extremamente histórica, e a histó-ria, possível porque literária.

Eu não sei como você está se sentindo nessa sua nova emprei-tada com Tom Zé e Oswald de Andrade, porém, enquanto isso, posso lhe mostrar uma reflexão rápida.

A Tropicália como Antiarte, somente esta, serve.

Por isso, não é difícil a escolha entre os possíveis corpus de tra-balho: estudarei a propaganda do Tom Zé para a Coca-Cola ou o seu disco Tribunal do Feicibuque, uma autodefesa extremamen-te ácida após as críticas que muitos formularam contra ele de-vido à propaganda? Não dá para analisar o disco sem analisar a propaganda, e escolhendo pelo segundo, escolho pelo primeiro. Não há escolha mais dobrada, meta, mise en abîme, que a da crí-tica de arte.

Mas o mundo dos críticos das letras e das artes é caduco e procura balizas. Não satisfeitos em esgotarmos nossas visões

2 Tese amplamente abordada no CD Tropicália lixo lógico (2012).

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sobre as obras e seus artistas, perguntamos muitas vezes ao es-critor ou ao intelectual o que ele aconselha como leitura funda-mental ao crítico, ao que se dispõe a conhecer o Brasil, ao nas-cente poeta, às almas desesperadas por literatura... Aqueles que entrevistam querem ainda esgotar as visões daqueles que criam, sobre suas próprias criações e sobre as dos outros, como se não bastassem nossas produções incessantes sobre suas obras. O caso de Tom Zé é inverso: ele próprio esgota, por si só, as vozes dos outros sobre si. Perigosa tarefa, para a qual são necessários narcisismo e cinismo ao mesmo tempo.

O disco Tribunal do Feicibuque, disponibilizado para down-load gratuito no site oficial do cancionista, tem um contexto muito preciso: as críticas que recebeu por narrar o comercial da Coca-Cola com temática da Copa do Mundo no Brasil. Se, em uma primeira audição, está clara a ironia que paira e chove so-bre os críticos da citada propaganda, no documento anexo com a ficha técnica, espécie de encarte do disco que contém as letras e alguns textinhos que imitam linguagem de tribunal, leem-se informações muito menos irônicas e muito mais patéticas, no sentido grego da palavra: “[...] soube pelo depoimento de Tom Zé que este resolvera doar o cachê do referido anúncio da Coca-Cola à banda de música de Irará, para uso na Escola de Música que ela mantém”. Não importa quanto pathos Tom Zé colecio-nou com esta e outras declarações. O que me parece intrigante é como a propaganda citada passa a ser medíocre perto de um disco inteligentemente articulado a partir dela e para apagá-la.

Na primeira canção, homônima ao álbum, a abertura é o som padrão, copiado num ready made, que se ouve quando li-gamos um computador Windows. A menção corporativa terá seu eco no refrão: “Seu americanizado/ Quer bancar Carmen Miranda/ Rebentou o botão da calça/ Tio Sam baixou em Sampa”. Nas outras faixas, ouviremos da mesma forma o can-cionista ser citado na terceira pessoa, preferencialmente por al-guma voz do coro feminino ou de outros cantores colaborado-res, como Emicida. De qualquer forma, este efeito de terceira

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pessoa se dá porque o disco quer ser em alguma medida uma colagem de críticas que Tom Zé recebeu.

Os feicibuqueiros que desacreditaram da vinculação do Tom Zé com o anúncio, esquecendo-se das dificuldades de se produzir cultura no sistema capitalista, não são tão alfinetados quanto poderiam ser, mas convidados a repensar alguns concei-tos e, ao que me parece pela nomeação do álbum, a própria po-sição de onde falam, afinal escrevem de seus perfis no Facebook, empresa de faturamentos bilionários advindos de anunciantes. Em “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, um momento alto do CD, o pecado faz lembrar que é o artista – pagão? – e não o capita-lismo financeiro – imperialista – o centro dos expurgos dos até então fãs de Tom Zé. “Papa Francisco vem perdoar/ O tipo de pecado que acabaram de inventar/ O povo, querida, com pedras na mão/ Voltadas contra o imperialismo pagão”.

Não obstante, citar a Coca-Cola numa canção e fazer uma propaganda para o refrigerante são ações distantes, passíveis de valorações distintas de mentes minimamente destituídas de pós-modernidade, apesar de Tom Zé as colocar na mesma saco-la diversas vezes, em tom provocativo. Zomba da opinião públi-ca e faz menção à canção “Alegria, alegria” de Caetano Veloso, ainda em “Papa Francisco perdoa Tom Zé”: “Sou a garotinha ex-tropicalista/ Agora militando em um movimento/ Já não penso mais em casamento/ Mas se tomo Coca-Cola/ Acho que estou me vendendo”.

O saco de gato toma maiores amplitudes quando em “Zé a zero” chega a cantar: “aqui copa coca acolá/ fazendo propagan-da do Tom Zé”. É mesmo esse sentido que ele tenta arrematar, de alguma forma, já que o disco é mais relevante que o anúncio, enquanto performances. Em um, a mensagem é que o Brasil e a Copa são de todo mundo (“de todo mundo mesmo”, ele rei-tera na propaganda), em outro, a finalidade é lembrar, de uma forma bem-humorada, que “Meu coração fundamentalista/ Pede socorro aos intelectuais/ Pois a diferença entre esquerda e direita/ Já foi muito clara, hoje não é mais” (“Papa Francisco

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perdoa Tom Zé”).Está claro que o disco não se esquece da publicidade para

a Coca-Cola, porque é com ela que está dialogando sem parar. Entretanto, observemos enquanto é tempo que nada do que é dito para o anúncio do refrigerante é retomado no disco, discur-sivamente. O alvo das letras das canções é o jogo que se deu en-tre o público e o cancionista naquela situação, e nunca o discurso que Tom Zé narrou para seu anunciante, extremamente otimis-ta a respeito das condições brasileiras para a Copa do Mundo em 2014 – condições das quais duvidamos bastante, justamente, an-tes, durante e depois das manifestações de junho de 2013.

Este disco de 2013, pleno de ready mades, irônico e tematizante da sociedade de consumo, parece ecoar o Tom Zé de 1968, para você que tentava compará-lo a Oswald de Andrade no início des-te texto. Em “Parque industrial”, canção do disco Grande liqui-dação, ouvimos uns versos muito interessantes para pensarmos o disco de 2013: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pron-to e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ É somente requen-tar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil/ Porque é made, made, made, made in Brazil”. Contudo, no encarte de Grande liquidação, lemos um arremate nada ambíguo bastante significativo dos rumos que esse LP toma: “Entretanto, quando os sorrisos descuidam, os noticiários mostram muita miséria”.

Esse movimento de apresentação da perfeição propagan-dística modernizadora em contraste com a miséria arcaizante se vê em todo o primeiro disco de Tom Zé. Como a frase cita-da do encarte, o LP simula certa programação de televisão, que entremeia propaganda, cinema, atrizes, sorrisos, perfeição e ri-queza com noticiário, miséria, pobreza, malandragem, ilegali-dade e criminalidade.

Neste primeiro disco, verificam-se, então, dois grupos de imagens que dialogam intermitentemente: de um lado, o da

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normatividade, da beleza, da felicidade, do dinheiro e da propa-ganda, extremamente ligados ao caráter moderno e internacio-nal que o país assumia desde o governo de Juscelino Kubitschek, mas que se intensificava muito recentemente, após o Golpe Militar de 1964; e do outro, o do comportamento sem etiqueta, da pobreza e do universo lírico da paquera. A esfera arcaica é te-matizada, nesse disco, nos motivos de um mundo pobre e pro-saico, de valores mais antigos e orais que os da globalização, da industrialização e da tecnologia que vieram com o advento da televisão e do desenvolvimento econômico em geral.

Esse revezamento de imagens contrastantes parece dar ao disco um sentido pessimista quanto à interpretação do mundo em modernização. A ironia (não confundida com ambiguidade, note-se bem) presente do começo ao fim de Grande liquidação, não nos deixa sequer imaginar uma conotação positiva para o primeiro disco do cancionista.

Aqui, o dinheiro é o tópico mais recorrente e o alvo apa-rentemente mais criticado. Em “São, São Paulo”, figura-se uma cidade onde só se trabalha e não se perde tempo com veraneio, banho de mar ou entre os próprios habitantes, que “amando com todo ódio/ se odeiam com todo amor”. Aliás, a expressão cristalizada da relação entre esses dois polos temáticos mencio-nados aqui – o arcaico e o moderno – está em “São, São Paulo”, canção na qual as modernizações e as imposições de conduta são resumidas na palavra “defeito”; e apesar de tudo, não dei-xam de fazer do eu lírico um amante da cidade.

Os sujeitos de “Quero sambar meu bem”, “Profissão Ladrão” e “Camelô” se destacam, ademais, como contraponto à cartilha de comportamento que se expõe em várias canções do disco para a educação ou para a felicidade de vitrine – não por serem amotinados, mas por se ajustarem à realidade comporta-da de forma conflituosa ou ilegal. O primeiro quer sambar, não suportando mais a atividade profissional de “vender flores nem saudade perfumada”, mas ao se caracterizar, se coisifica (“meu sangue é de gasolina”/ “meu peito é de sal de fruta”); o segundo

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se confessa ladrão mas delata também os grandes esquemas fi-nanceiros e políticos; e o terceiro é um camelô pobre, que tem de fugir da polícia para ganhar dinheiro suficiente para alimentar--se. No mesmo sentido, em “Catecismo, creme dental e eu”, o eu lírico, “lançado no degredo”, parece não se adaptar ao cenário asséptico descrito (“um anjo do cinema já revelou que o futuro da família brasileira será um hálito puro”).

O disco de 1968 faz ver muitas injustiças sociais de for-ma cristalina. Apresenta muitas críticas que podem facilmente ser ligadas à poética dos Modernistas brasileiros, de Mário e de Oswald de Andrade, sobretudo em seus momentos menos am-bíguos de formação de uma identidade nacional. Canções como estas que citei podem facilmente ser aproximadas à poética Pau-Brasil de Oswald de Andrade: “Pobre Alimária”, por exem-plo, pode ser comparado a “Não buzine que eu estou paqueran-do” (sobretudo se lembrarmos a análise de Roberto Schwarz, de 1987, em “A carroça, o bonde e o poeta modernista”). Lembro o poema de Oswald:

O cavalo e a carroçaEstavam atravancados no trilhoE como o motorneiro se impacientassePorque levava os advogados para os escritóriosDesatravancaram o veículoE o animal disparouMas o lesto carroceiroTrepou na boleiaE castigou o fugitivo atreladoCom um grandioso chicote.

Ora, toda a performance de Tribunal do Feicibuque faz pensar muito nessa lógica do “Pobre Alimária” de que o último a apa-nhar não será o único e provavelmente baterá em alguém logo depois. No entanto, friso, esta mensagem só é capturada se analisarmos a cadeia inteira de acontecimentos que envolve a

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atualidade da propaganda da Coca-Cola veiculada na televisão como mercadoria, a reação dos fãs de Tom Zé e o produto au-diofônico analisado aqui. Em 1968, decididamente, a condição performática do disco de Tom Zé era quase nula, e é fácil visua-lizar a mensagem de cada canção em paridade com a relação do arcaico e do moderno que se vê em Pau-Brasil.

Já o disco de 2013 parece ter muito mais a ver com um Oswald de Andrade do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. O poema “Meus sete anos” será eficaz, como comparação:

Papai vinha de tardeDa faina de labutarEu esperava na calçadaPapai era gerenteDo Banco PopularEu aprendia com eleOs nomes dos negóciosJuros hipotecasPrazo amortizaçãoPapai era gerenteDo Banco PopularMas descontava chequesNo guichê do coração.

No disco de 2013 de Tom Zé, se escutarmos as canções indi-vidualmente, elas serão muito mais próximas ao Oswald de Andrade ambíguo de “Meus sete anos”, em que se lê uma apreensão infantil do mundo do capital financeiro, que traz esse universo por meio de um indivíduo por quem se tem simpatia – o pai. No poema de Oswald, não sabemos muito bem como o eu lí-rico julga todos esses “juros hipotecas/ prazo amortização”; te-mos uma vaga impressão de que o julga pejorativamente, devido à discreta adversativa de “mas descontava cheques”. O mesmo efeito fugidio há naquele Tribunal do Feicebuque: iludidos com a

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figura rodeada de pathos do cancionista, acusada e também de-fendida no Tribunal, não sabemos apreender o que aquele eu lí-rico realmente acha sobre a vindoura Copa do Mundo no Brasil, sobre a Coca-Cola ou sobre o que este produto representa histo-ricamente como figuração do liberalismo capitalista.

Daí talvez a importância, a despeito das insistências de Tom Zé, em se comparar sua obra e a Tropicália ao modernis-mo vanguardista do começo do século xx. Roberto Schwarz en-xerga a coexistência dos elementos modernos e primitivos de “Pobre Alimária”, poema já citado de Oswald de Andrade em Pau-Brasil, como destruidora “do antagonismo entre as maté-rias colonial e burguesa (atrasada)” e como uma “transposição [...] da distância entre as figuras locais e universais do progres-so” (“A carroça, o bonde e o poeta modernista”, p. 21). Em obras como estas analisadas, tropicalistas parecem realizar uma ope-ração bastante similar a esta descrita por Schwarz.

Cabe ainda notar as funções dos manifestos vanguardis-tas ao longo do tempo e pensar em que medida este disco de 2013 não representa um manifesto solitário: um disco que não é concebido para criar um público, para satisfazer a um públi-co preexistente ou nem mesmo para vender é um disco nascido para manifestar? Surpreendentemente, Tribunal do Feicibuque manifesta contra o seu próprio cancionista e contra os seus ou-vintes, operando odes aos produtos engarrafados e deixando in-tacta a ordem estabelecida que o mesmo Tom Zé questionara em 1968. Um manifesto bastante diverso daqueles publicados no século xx pelos modernistas no Brasil.

Analisar as obras de 2013 e de 1968 passa, então, por condi-cionamentos bastante diversos, até porque a materialização dessas obras se dá por caminhos distintos – a de 2013 sendo mui-to menos convencional, provocada por um fator específico da realidade e, para além disso, provocada pelos próprios consu-midores de Tom Zé que não gostam de ver sua imagem vincu-lada à do produto em questão. Por mais que tratem de assuntos bastante similares – o da propaganda sendo o mais forte –, os

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dois discos são extremamente diversos em suas resoluções. Se o de 1968 centra fogo na crítica ao mundo da propaganda, do cin-ema e da televisão, o de 2013 tem como alvo o próprio Tom Zé e seus ouvintes, deixando a propaganda protegida de indagações imediatas.

ANDR ADE, Oswald de. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 2006.

______ . O rei da vela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

______ . Pau-Brasil, Obras Completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, Secretaria do Estado da Cultura, 1990.

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas, 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1974.

SCHWARZ, Roberto. “A carroça, o bonde e o poeta modernista”. In: Que horas são?. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ZÉ, Tom. Grande liquidação. Rozemblit. 1968.

______ . Todos os olhos. Continental, 1973.

______ . Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2011.

______ . Tribunal do Feicibuque. 2013.

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Ana Luísa Gonçalves Rodrigues é aluna de Letras – Português e Linguística na USP.

Isabela Benassi é aluna de Letras clássicas na USP. Escreve algumas coisas, desenha outras e gosta muito de cachorros.

Isabela C. C. A. Mota é graduanda em Letras pela USP, estudou “A imagem da mulher indígena na literatura e na pintura do século xix” como tema de Iniciação Científica.

José Antônio de Oliveira Salomé é estudante de Letras – Português e Italiano na USP.

Marcos Vinícius Ferrari é estudante de Letras – Português e Russo na USP. Desenvolveu pesquisa de Iniciação Científica sobre a obra de João Cabral de Melo Neto, com financiamento do CNPq.

Matheus Guménin é estudante de Letras – Português e Alemão na USP. Venceu o III Prêmio Literário Canon de Poesia e publicou É (Scortecci, 2013).

Maurício Gomes é mestrando desde 2013 pela UFRGS na área de literatura comparada. Atualmente desenvolve

pesquisas sobre as obras de Graciliano Ramos e de Walter Benjamin.

Patrícia Anette Schroeder Gonçalves é aluna de de Letras – Português e Francês na USP. Foi editora e revisora no primeiro e quarto números da cisma.

Patrick Gert Bange é graduando de Letras – Português e Literaturas na UFRJ. Desenvolve projeto de pesquisa sobre Walter Benjamin, leitor de Marcel Proust, sob orientação da professora Flavia Trocoli.

Sofia Glória de A. Soares é estudante de Letras – Português e Literaturas na UFRJ. Desenvolve pesquisa de Iniciação Científica comparada sobre Virginia Woolf e Sophia de Mello Breyner Andresen, com orientação da professora Mônica Genelhu Fagundes.

Stefano Manzolli é graduando em Letras na UNICAMP. Atualmente, estuda na Sorbonne Nouvelle, em Paris.

Vitor Serrano nasceu em Setúbal (Portugal) no final dos anos 80, estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e vive e trabalha atualmente em Lisboa.

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colaboradores

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