Cismas e Heresias

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A teologia do Arianismo Paulo Avelino [email protected] http://br.oocities.com/melquita A controvérsia começou a respeito da interpretação do livro dos Provérbios, capítulo 8, versículos 22 a 31. Constam nesse trecho: O Senhor criou-me como primícia de sua ação, antes de suas obras mais remotas... Nasci quando não existiam os mananciais, quando não havia fontes de abundantes águas... Ele ainda não fizera a terra e os campos, nem os primeiros torrões do orbe. Quando colocava os céus, ali estava eu... ...eu estava ao seu lado como mestre-de-obras... entusiasmando-me pelos filhos dos homens. O bispo Alexandre convocou Ario e outros sacerdotes para explicarem sua opinião sobre um trecho da escritura que era provavelmente esse, segundo fontes da época. A idéia base do arianismo era que Deus é “um e único”, monós, que significa só, único, isolado, privado de. Daí monarcos, que reina sozinho, soberano, que originou em português a palavra monarca. “Sem começo e completamente um”, diziam os arianos. Deus é uma Monás, a unidade. Que se tornou Díade com a geração do filho, e uma Tríade com a produção do Espírito. Logo, a Trindade não é eterna. No começo Deus estava só. Por volta do ano 320 Ario escreveu ao Patriarca Alexandre: “Nossa fé de nossos antepassados, e que também aprendemos de vós, abençoado Papa, é esta: Nós reconhecemos um Deus, o único não-gerado, o único eterno, o único sem

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A teologia do Arianismo

Paulo Avelino

[email protected]

http://br.oocities.com/melquita

A controvérsia começou a respeito da interpretação do livro dos Provérbios, capítulo 8, versículos 22 a 31.  Constam nesse trecho: O Senhor criou-me como primícia de sua ação, antes de suas obras mais remotas... Nasci quando não existiam os mananciais, quando não havia fontes de abundantes águas... Ele ainda não fizera a terra e os campos, nem os primeiros torrões do orbe. Quando colocava os céus, ali estava eu... ...eu estava ao seu lado como mestre-de-obras... entusiasmando-me pelos filhos dos homens. O bispo Alexandre convocou Ario e outros sacerdotes para explicarem sua opinião sobre um trecho da escritura que era provavelmente esse, segundo fontes da época.

A idéia base do arianismo era que Deus é “um e único”, monós, que significa só, único, isolado, privado de. Daí monarcos, que reina sozinho, soberano, que originou em português a palavra monarca. “Sem começo e completamente um”, diziam os arianos. Deus é uma Monás, a unidade. Que se tornou Díade com a geração do filho, e uma Tríade com a produção do Espírito. Logo, a Trindade não é eterna. No começo Deus estava só. Por volta do ano 320 Ario escreveu ao Patriarca Alexandre:  “Nossa fé de nossos antepassados, e que também aprendemos de vós, abençoado Papa, é esta: Nós reconhecemos um Deus, o único não-gerado, o único eterno, o único sem começo, o único verdadeiro, o único que tem imortalidade, o único sábio, o único bom, o único soberano; Juiz, Governador e Providência de tudo, inalterável e imutável, inalterável e imutável, justo e bom, Deus da Lei e dos Profetas e do Novo Testamento; que gerou um Filho Unigênito antes de todos os tempos, pelo qual Ele fez tanto as épocas como o universo.”  (O Patriarca de Alexandria era chamado Papa. Ainda hoje o é na Igreja Copta Ortodoxa).

E somente Deus tem essência divina, ou seja, só Deus é Deus. Essência em grego é ousía, uma palavra que se tornaria crucial na história do cristianismo. Deus não podia ser composto, divisível ou mutável. Acreditar que ele gerara um Filho com essência divina era dizer o contrário, o que seria inaceitável. A essência de Deus transcendia tanto as coisas mutáveis do mundo que não podia haver um ponto de contato direto entre Deus e as criaturas, pois as criaturas eram tão frágeis que não suportariam ter um contato direto com a mão do Criador.

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Ou seja, Deus nem sempre fora Deus-Pai. Ou por outra, o Filho teve um começo. “Havia um então em que ele não existia”, diziam os arianos, evitando dizer “havia um tempo em que ele não existia”, pois o Filho fora criado antes de todos os tempos. (Mais tarde essa distinção foi atacada pelos seus oponentes como mero sofisma). Mas embora não Criador mas criatura, o Filho, ou Verbo, ou Logos, era diferente das outras criaturas. Ele fora o único criado a partir do nada, e portanto era o Unigênito. Todas as outras criaturas tinham sido criadas por Deus através do Filho. Ele era o Mediador, necessário pelas razões já ditas. (Os oponentes diziam que esse raciocínio requereria uma cadeia infinita de mediadores, cada um amaciando o choque da criação para o outro.)

Uma tradição judaica e gnóstica mas que influenciara alguns teólogos cristãos não-gnósticos dava aos anjos um papel de intermediários na criação entre Deus e o homem. Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e segundo nossa semelhança (Gênesis, 1, 26) era a passagem bíblica que a embasava. Mais tarde Agostinho viu nesse plural um sinal da Trindade. Para outros Deus naquele momento falava com anjos. O papel mediador dos anjos podia ser facilmente ampliado para incluir o Filho, como seu principal. Assim o arianismo pode ser visto como uma última reação de velhas traduções judaicas e do apocalipticismo cristão primitivo contra uma idéia de Jesus Cristo calcada na filosofia grega, que afinal venceu e é a que professamos hoje.

Em termos de soteriologia: O Filho é mutável e portanto não tem a mesma essência de Deus, que é imutável. O Filho é bom não porque seja Deus, mas porque decide ser bom e permanecer assim por sua própria vontade. Por seu cuidado e auto-disciplina, seu progresso moral,  ele triunfou sobre sua natureza mutável e se tornou Filho de Deus. Tornou-se o pioneiro da salvação, possibilitando a todos os que o seguirem a se salvarem também. 

Em termos de liturgia: apesar de tudo os arianos adoravam Cristo e oravam para ele. Também batizavam em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.  Alguns usavam essa forma modificada do Glória: “Glória ao Pai pelo Filho no Espírito Santo.” Sua prática do batismo foi muito atacada. São Gregório de Nazianzo diria que se alguém adorava uma criatura ou era batizado em nome de uma criatura, isso não traria a divinização prometida no batismo. Outros como Atanásio, Marcelo de Ancira e depois Boécio criticavam o arianismo como politeísta. Pois se eles adoravam como divino alguém que se recusavam a chamar divino isso levaria a uma pluralidade de seres divinos.

Eram essas as idéias que Ario colocou em canção, em versos ritmados, fáceis de decorar. No seu principal poema havia versos como “Entenda que a mônada era, mas a Díade não era, antes de vir a existir/.../Então era a Tríade, mas não em glórias iguais. Não se entremisturam suas substâncias/”. 

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O Cisma DonatistaNo começo do século IV o norte da África era rico. Hoje se encontram no meio do deserto ruínas maravilhosas. Quando as ruínas eram cidades havia campos de trigo em volta. O Saara era bem menor. Nessa região aconteceu uma divisão, o primeiro de uma série de conflitos entre os cristãos que duraram séculos e ocasionaram a consolidação de algumas das bases da nova religião.

 A última grande perseguição aos cristãos aconteceu sob o Imperador Diocleciano. Como é natural alguns  dos perseguidos se comportaram bravamente, outros se acovardaram. Isso gerou mágoas que estão na raiz do cisma.

  A perseguição já havia então amenizado quando morreu Mensúrio, bispo de Cartago, no ano 311 d.C. A diocese de Cartago era a segunda em grau e rendas entre todas as sedes episcopais do Ocidente, atrás apenas de Roma. Seu bispo era o primaz do norte da África.

 O povo de Cartago em assembléia escolheu um prelado por nome Ceciliano para seu bispo. Porém um grupo de sacerdotes da cidade não aceitou a decisão. Ceciliano tinha inimigos poderosos, como uma mulher chamada Lucila, muito rica, com quem Ceciliano tinha uma velha rusga por ela beijara relíquias de pessoas que não eram consideradas oficialmente mártires da Igreja pela hierarquia. Esse grupo dissidente se reuniu e acusou Ceciliano de ter entregue escritos sagrados aos pagãos durante a perseguição. Elegeram um parente de Lucila, Majorino, como bispo de Cartago. A divisão se espalhou e logo no norte da África muitas dioceses

 Quando Constantino derrotou Maxêncio em 28 de outubro de 312 e se tornou senhora da África, encontrou-a toda dividida. Muitas dioceses tinham dois bispos, cada um fiel a um dos dois grupos. Um grupo de bispos convidou Ceciliano para impor-lhe as mãos, com a intenção de não só impor-lhe as mãos mas quebrar seu pescoço. Ceciliano não aceitou o convite. (A imposição de mãos é a forma tradicional de sagração de um noivo bispo, usada até hoje).

 A igreja da África estava por demais dividida para emitir um veredito imparcial. Assim os julgamentos aconteceram fora de lá, em Roma, em Arles, e mais três outros tribunais, todos dando ganho de causa ao grupo de Ceciliano, que foi considerado o verdadeiro grupo católico. O Imperador Constantino exilou os líderes donatistas e ordenou que as igrejas por eles ocupadas fossem entregues ao outro grupo.

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 Mas o cisma continuava, resistindo aos concílios de Arles e Roma, e ao poder civil. Em parte a continuidade refletia o carisma de uma nova liderança, Donato de Casae Nigrae, chamado O Grande, que sucedera Majorino quando este faleceu. Seus escritos foram perdidos. Mas parece que sua eloqüência e força de vontade empolgavam as pessoas e impediam qualquer rendição. Até mesmo Santo Agostinho se enfureceu contra sua arrogância e a quase adoração que inspirava aos seus seguidores. Depois de sua morte as pessoas lhe pediam milagres.

 Ao ver que o tempo passava e sua política de apoio total a Ceciliano não trazia a paz ao seu Império, Constantino relaxou sua política em 321 e pediu tolerância ao partido de Ceciliano. Em certa cidade os donatistas ocuparam uma basílica. A solução do imperador foi construir outra.

 Os donatistas recusavam obediência aos outros, negando seus poderes espirituais. Excomungaram o resto da Humanidade. Declararam que a sucessão apostólica tinha sido quebrada e que todos os bispos da Europa e da Ásia eram cismáticos. A fé cristã estaria agora apenas neles mesmos.

 Quando convertiam alguém, os donatistas o rebatizavam, pois não viam validade no batismo dos outros. Até bispos, mulheres e crianças deviam fazer uma penitência pública antes de serem aceitos. Se alguém da outra facção entrasse em uma de suas igrejas eles o expulsavam e lavavam com sal o chão onde pisara. Ao se apossarem de uma igreja lavavam o chão, raspavam as paredes, queimavam o altar (geralmente de madeira), fundiam o metal dos objetos sagrados e jogavam as hóstias para os cachorros.

 O ponto máximo do radicalismo foi o surgimento dos Agonistas, ou Circunceliões, bandos de briguentos que circulavam sem rumo pelo norte da África fazendo violências contra os não-donatistas. O primeiro nome é o que eles davam a si mesmos (de Agon = luta), e o segundo era o que os seus inimigos lhe conferiram (de “circum cellas euntes”, por que sempre estavam em torno dos camponeses). Não tinham ocupação. Atacavam gritando Deo Laudes! (louvai ao Senhor). Como Cristo disse a Pedro para manter a espada na bainha, eles não usavam espadas. Preferiam porretes. Davam porretadas na vítima sem matá-la e a deixavam lá. Se morresse depois presumivelmente consideravam que não era mais com eles. Jogavam suco de limão e vinagre nos olhos dos padres. Protegiam os que tinham dívidas. Gostavam de atacar nas estradas. Quando encontravam uma carruagem punham os escravos dentro da carruagem e obrigavam os senhores a puxá-la.

 Os circunceliões freqüentemente buscavam a morte. O suicídio contava como martírio. Um circuncelião que anunciava que queria ser mártir era bem tratado pelos outros, que davam a ele muita comida, como acontece com os animais que vão para o sacrifício. Seu meio preferido era se jogar de precipícios. Era

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um método particularmente popular entre as mulheres. Também se jogavam na água para se afogar, e no fogo. Outras maneiras eram provocar juízes e induzi-los a condená-los à morte, e comparecer a cerimônias pagãs para serem martirizados. Presumivelmente quando tudo isso falhava pagavam um homem para matá-los. Ou capturavam alguém numa estrada e ofereciam a ele a alternativa de matá-los ou morrer.

 Essa história é relatada em duas fontes, inclusive Santo Agostinho, por isso deve ser real. Um rapaz foi capturado por um grupo de gordos circunceliões. Já explicamos a razão de sua gordura. Eles lhe deram uma espada, com uma alternativa: ou os matava, ou eles o matariam. O rapaz respondeu que temia que, quando tivesse matado alguns deles, os outros mudassem de idéia e quisessem vingar seus companheiros mortos. Exigiu que eles se amarrassem para que isso não acontecesse. Eles se amarraram. O rapaz com suas mãos deu-lhes umas pancadas de castigo, foi embora e não matou ninguém.

 Previsivelmente os próprios bispos donatistas passaram a temer os circunceliões e chamaram a repressão, que foi terrível. Durante anos eles foram venerados como mártires. Que, creio, é o que queriam.

Os donatistas chegaram a ter quatrocentos bispos e superioridade numérica em algumas regiões da África. Foram enfraquecidos por divisões internas. A seita dos Rogacianos afirmava que quando Cristo voltasse à terra só encontraria sua verdadeira religião em algumas vilas sem nome da Mauritânia Cesaréia. Só terminou com a virtual extinção do cristianismo naquele região com a invasão sarracena.

Pouco depois começou um conflito muito mais importante, a heresia ariana, nos patriarcados do hoje chamado Oriente Médio. Houve contato entre os dois grupos dissidentes mas os Donatistas não aderiram ao arianismo. Considerando-se o trabalho que cada um desses grupos deu isoladamente, pode-se especular que no que poderia ter acontecido se tivessem juntado suas forças.

 Teologicamente o cisma donatista levantou a questão de se um sacramento, no caso o batismo, depende do valor de quem o ministra. Pois os donatistas negavam a validade do batismo dado pelos outros, pois seriam indignos. O catolicismo a partir daí adotou a posição de que o sacramento independe do valor individual de quem o ministra.

 

Para falarmos da Igreja maronita precisamos falar da heresia monotelista, que segundo algumas fontes estaria na origem dessa igreja. Advertimos que esta primeira parte deste artigo é baseada no célebre historiador inglês

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Edward Gibbon, que não é exatamente simpático ao catolicismo. Mas sua erudição e honestidade intelectual fazem dele um guia importante sobre aquela época.

A Igreja Maronita ocupa uma posição peculiar no espectro das igrejas católicas orientais, pois é a única que não tem uma contraparte acatólica. Por exemplo, a Igreja Católica Greco-Melquita tem seu contraparte no Patriarcado ortodoxo de Antioquia. Existem a Igreja Ucraniana Católica e Igreja Ortodoxa Ucraniana; a Igreja Caldeana Católica a Igreja Assiríaca do Oriente (nestoriana). Mas não existe uma Igreja Maronita ortodoxa. Esta singularidade pode ser explicada por sua história.

No princípio houve violentas controvérsias no campo do cristianismo. Essas controvérsias deram origem a várias igrejas católicas orientais, além de igrejas acatólicas. Já vimos a controvérsia do nestorianismo (ver na história da Igreja Caldeana Católica ) e a do monofisismo (ver em Igreja Siríaca Católica ).

A heresia monotelista nasceu de uma tentativa de conciliar a ortodoxia (= catolicismo) com a heresia monofisita. Estes últimos afirmavam que Cristo só tinha uma pessoa, a divina. A ortodoxia diz que tem duas, a divina e a humana. No ano 629, o Imperador Bizantino Heráclio, voltando de uma guerra contra os persas, perguntou a seus monges se Cristo tinha uma ou duas vontades. Esses disseram que tinha uma só. O Imperador ficou satisfeito, pois tinha esperança de que os monofisitas do Egito (coptas) e da Síria (jacobitas) se reconciliassem com a ortodoxia por esta linha conciliatória.

Observemos que essas heresias tinham um forte componente político. Os egípcios e sírios eram um tanto inconformados com o domínio de do Imperador da distante Constantinopla. Um acordo teológico poderia facilitar um acordo político entre o Imperador e essas regiões.

O partido ortodoxo reagiu com a doutrina de que cada parte de Cristo, a humana e a divina, tinha uma energia própria e distinta. Mas essa diferença não era mais visível quando se dizia que o querer divino e humano de Jesus eram o mesmo. O Clero grego aderiu á doutrina da vontade única e se

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declararam monotelistas, que quer dizer única vontade. Mas, já sabedores das terríveis conseqüências das lutas quanto a discussões anteriores, aconselharam um prudente silêncio quanto ao assunto, que foi garantido com a Ecthesis (exposição) de Heráclio e o Modelo de seu neto Constans. Este último, de 648, proibiu qualquer discussão em torno do assunto, pois a controvérsia estava se tornando violenta. Os Patriarcas de Roma, Constantinopla, Alexandria e Antioquia subscreveram os editos imperiais. Mas os monges de Jerusalém deram o alarme, afirmando que aquela doutrina era herética.

O Papa, que era e é também o patriarca de Roma, Honório, obedeceu aos comandos do Imperador e foi fortemente censurado por seus sucessores. Seus sucessores assinaram a sentença de excomunhão dos monotelistas sobre a tumba de São Pedro com tinta misturada com vinho sacramental, o sangue de Cristo. O papa Martinho e seu sínodo de Latrão anatematizaram o silêncio dos gregos. Este sínodo foi composto de 150 bispos da Itália, que condenaram a ecthesis e o Modelo; seus autores - os dois imperadores - e seus aderentes foram considerados semelhantes aos vinte e um maiores hereges, apóstatas da igreja e órgãos do demônio.

A reação do criticado (Imperador) foi violenta. O papa Martinho foi exilado numa ilha, morrendo em sofrimento. Arrancaram a língua e amoputaram a mão direita do Abade Máximo, amigo do Papa.

Depois, em 680, foi convocado o Terceiro Concílio de Constantinopla, em que um monge monotelista propôs um teste radical: ele ressuscitaria um homem morto, para provar sua doutrina. Os prelados assistiram á demonstração e o monge falhou em meio a apupos e gritos contrários. O Concílio estabeleceu que há duas vontades em Cristo, a humana e a divina, com a humanas subordinada à divina. E condenou o monotelismo.

No entanto, anos depois, quando momentaneamente um Imperador monotelista assumiu o poder, o monumento comemorativo ao concílio foi mutilado e seus papéis originais jogados ao fogo. Mas pouco depois um novo Imperador chegou ao poder e a fé ortodoxa foi reimplantada com firmeza. E aos poucos a doutrina monotelista foi deixando de apaixonar as multidões no Império Bizantino, superada agora por outra discussão, a heresia iconoclasta.

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O nome maronita passou de um eremita para um monastério, e de um monastério para uma igreja. São Maron era um eremita do século V na Síria. Suas relíquias foram disputadas após sua morte, e seiscentos de seus discípulos monges uniram suas celas fundando um monastério. A doutrina monotelista teria sido criada por esses monges em suas meditações e pesquisas. O Imperador Heráclio teria pego a doutrina dessa fonte, e ele presenteou com importantes domínios um monastério maronita. O zelo dos maronitas pode ser medido pelas palavras do seu patriarca Macário, de Antioquia, que dizia que preferia ser cortado pedaço por pedaço que admitir que Cristo tinha duas vontades. Perseguidos pelo Imperador, alguns se converteram à fé ortodoxa. Mas outros resistiram. São João Maron, o mais letrado e popular dos monges maronitas (não confundir com São Maron, o primeiro) assumiu o título de Patriarca de Antioquia, e seu sobrinho Abraão comandou a resistência. O Imperador com um exército de gregos invadiu a Síria espalhando o terror. O monastério de São Maron foi incendiado, e os principais chefes maronitas foram assassinados, e doze mil maronitas foram exilados para as fronteiras da Armênia e da Trácia. Eventualmente os resistentes se retiraram para um conjunto de montanhas peto do litoral, plasmando sem o saberem uma nova nação, o Líbano. No século XII, com as cruzadas, os maronitas abjuraram o monotelismo, reconciliando-se com Roma.

II

Quanto à história da Igreja em si, teve sua origem como já dissemos no monge São Maron, que faleceu entre 405 e 423, e viveu como asceta numa colina no norte da Síria. Essa colina passou a ter tantos eremitas que foi chamada jardim de ascetas. Em sua volta formou-se a comunidade Beit Maron (casa de Maron). Com sua morte foi construído um mosteiro no local. No entanto, como já vimos acima, se os monges não aceitavam o monofisismo, também não estavam acordes com a ortodoxia, ficando na linha independente, do monotelismo. Em 517 o mosteiro foi atacado pelos monofisitas, que massacraram 350 monges. Isso deu a eles uma grande autonomia. Com a invasão muçulmana o Patriarcado de Antioquia ficou vago. Em 744 o califa autorizou a eleição de um novo patriarca, Teófilo. Este com o exército do califa tentou submeter a Casa de Maron. Mas esses

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resistiram e elegeram um novo patriarca, São João Maron, do próprio mosteiro, dando origem à nova igreja. Daquela época data a migração para as montanhas do Líbano, que antes do ano 1000 já estava completa. Uma parte também migrou para Chipre. O mosteiro de São Maron foi destruído no século X pelos muçulmanos.

A partir de 1181 os maronitas passaram para a submissão total á Sé de São Pedro. Em 1215 o patriarca maronita participou do concílio Latrão IV, em Roma. Em 1440 os patriarcas passaram a morar no vale Kadisha, o vale Santo, região montanhosa de difícil aceso no norte do Líbano, com mosteiros e igrejas nos penhascos.

A aproximação com Roma causou a latinização do rito. Em 1580 o papa enviou padre jesuítas ao sínodo maronita apresentando os costumes latinos de liturgia, e a adaptação conduzida por alguns patriarcas foi tão forte que o próprio papa Paulo V pediu para restabelecer os antigos costumes da Igreja Maronita.

Os maronitas como todos os cristãos sob domínio muçulmano foram perseguidos e depois de 1860 foi permitido ao Líbano ter um governo semi-autônomo. A Igreja maronita passou a ter muita influência nesse novo estado e esteve á frente do seu processo de independência em 1943. Atualmente os jornais dizem que o patriarca maronita está em campanha para a retirada das forças da Síria que estão estacionadas no Líbano.

Hoje seu patriarca é Sua Beatitude Nasrallah Pedro Sfeir, eleito pelo sínodo da igreja em 1986 e criado cardeal pelo papa João Paulo II em 1994. É o terceiro patriarca maronita a ser também cardeal. Note-se que o Patriarca maronita, ao ser eleito, tem o direito de acrescentar o nome Pedro ao seu nome, em honra ao primeiro dos apóstolos.

Os maronitas declaram que sempre foram unos com a Igreja católica. Resta a questão delicada do monotelismo, professado por eles durante vários séculos. Este página dá duas opiniões obre o fato. A visão de Edward Gibbon foi exposta na primeira parte desse artigo. Já o pesquisador Roberto Khatlab afirma que a doutrina monotelista não era uma heresia, pois para os maronitas as duas pessoas de Cristo não podiam se manifestar senão pela

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harmonia de suas vontades respectivas, e havia apenas uma vontade a se manifestar, a do Pai. Ficam as duas versões para o leitor.

A grande migração de Libaneses espalhou a Igreja Maronita por todas as partes do mundo. No Brasil o Exarcado foi criado em 1962, tendo como primeiro bispo Dom Francis Zayek. Teve a honra de ser o primeiro bispo maronita fora do Oriente Médio. Em 1971 o Exarcado foi transformado em Eparquia (diocese). Sua sede é em São Paulo e o atual Bispo é Dom José Mahfouz, eleito em 1990. A Igreja Maronita no Brasil está presente em várias cidades e tem uma página em português na internet, colocada abaixo.

A Igreja Caldeana Católica

Pedra tumular cristã nestoriana em Frunze, Quirguistão, centro da Ásia (séculos VIII a XIII)

A consolidação da doutrina católica foi um processo lento, ocorrido durante séculos, em que não foram poucos os percalços. Praticamente desde o tempo de Cristo começaram os ensinamentos que desviavam da doutrina, ou seja, as heresias. Uma das heresias mais fortes dos primeiros tempos do Cristianismo foi oriunda dos ensinamentos do presbítero Ario, daí seu nome de Arianismo. Tal doutrina afirmava que Cristo era uma criatura perfeitíssima, a maior de todas as criaturas, mas não era Deus. O Arianismo foi condenado no Concílio de Nicéia no ano 325 mas permaneceu forte por muito tempo. Segundo o historiador Edward Gibbon, em certo momento ele chegou a ser a doutrina das multidões em Constantinopla, então capital do Império. Mas o arianismo foi teimosa e corajosamente combatido por um grupo no qual se destacou o Patriarca de Alexandria, Atanásio, que pelos seus esforços de defender a sã doutrina foi canonizado Santo Atanásio. E seus esforços foram recompensados, as conclusões do Concílio de Nicéia prevaleceram e o

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mistério da Incarnação foi afirmado, ou seja, Jesus era Deus, consubstancial ao Pai, como rezamos no nosso Credo.

Já que Cristo é Deus, foi se popularizando entre os fiéis chamar Maria de “Mãe de Deus”, em grego, Theotokos. Um problema surgiria a partir daí, quando um monge chamado Nestório, de Antioquia (atual Turquia) foi escolhido pelo Imperador para ser Patriarca de Constantinopla pela fama de sua eloqüência.

Esclarecemos que nos princípios da Igreja foram estabelecidos cinco patriarcados. Um patriarca é eleito por um sínodo, ou seja, uma reunião de bispos sob sua jurisdição. Jesus disse “Ide e pregai”, e os patriarcados se estabeleceram de acordo com tal ordem. Um no centro do mundo, Jerusalém, a cidade onde o Salvador morreu e ressuscitou. Ao norte, Constantinopla (hoje Istambul, Turquia); ao sul, Alexandria (Egito); ao ocidente, Roma; ao oriente, Antioquia. Cinco patriarcas com a seguinte ordem de precedência: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Com os sucessivos cismas que abalaram a Igreja os três últimos patriarcados hoje estão divididos entre vários patriarcas. Mas os dois primeiros têm sucessores reconhecidos: o Patriarca Ecumênico de Constantinopla Sua Santidade Bartolomeu I (Ortodoxo), e o Patriarca do Ocidente Sua Santidade o Papa João Paulo II. Entre a miríade de títulos que o Papa tem (Papa, Sucessor de Pedro, Bispo de Roma, Primaz da Itália, etc) se inclui o de Patriarca do Ocidente. Assim, os católicos latinos também têm um patriarca, apenas nos esquecemos disso pois ele é o mesmo Sumo Pontífice.

Nestório se tornou patriarca de Constantinopla e logo no começo mostrou-se rigoroso contra as heresias. Em poucos dias destruiu uma capela de arianos e logo depois ocupou igrejas de outros heréticos. No entanto a Nestório desagradava o título de “Mãe de Deus” dado a Maria, pois isso lembraria o panteão de deuses pagãos. E no final de 428 Nestório pronuncia o primeiro de uma série de sermões bombásticos contra o título Theotokos. Para ele, Maria seria Christotokos, Mãe de Jesus. E ele tinha um ponto, tal título de Maria não consta na Bíblia, em lugar algum! De maneira mais ampla Nestório afirmava que em Cristo havia as naturezas humana e divina agindo como uma, mas não se juntariam para compor um indivíduo. A natureza divina teria se manifestado em Cristo a partir do batismo por João Batista, quando o Espírito Santo desceu dos céus em forma de pomba. Assim Maria deu a luz ao Jesus homem, e não ao Jesus Deus.

Houve uma reação grande, em que fatores políticos importavam tanto quanto religiosos. E quem liderou a doutrina de que Maria é Mãe de Deus foi Cirilo, patriarca de Alexandria, que depois por seus esforços foi canonizado São Cirilo. E no concílio de Éfeso em 431 Nestório e sua doutrina foram condenados. Maria foi estabelecida pelo catolicismo como Mãe de Deus. O

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Imperador por edito de 435 ordenou que os escritos de Nestório fossem queimados e ele morreu exilado no deserto do Saara em condições miseráveis.

No entanto ele converteu multidões, principalmente no oriente cristão. Esses seus seguidores foram duramente perseguidos pelos Imperadores do Império Romano do Oriente (também conhecido como Império Bizantino). No ano 489 um grande grupo deles migrou para o vizinho Império persa, inimigo tradicional do Império Bizantino. Lá, apesar de perseguições periódicas puderam se desenvolver como Igreja independente de Constantinopla e de Roma, tendo como líder máximo o Patriarca de Seleucia-Ctesifon (atual Iraque).

A Igreja nestoriana não é oficialmente denominada assim nem seus adeptos gostam de chamá-la assim. Esse nome foi dado por seus oponentes monofisitas, que também formaram e formam um outro ramo do cristianismo. Eles se denominam “Igreja do Oriente”. Mas por comodidade continuaremos chamando-a assim.    

A Igreja nestoriana fez um grande esforço de pregação no Oriente, principalmente durante a Idade Média. Havia cristãos nestorianos na China, na Mongólia, na Pérsia e na Índia. Nesta última eles fundaram uma Igreja particularmente ativa, a Igreja Siro-Malabar, hoje quase toda Católica. Mas as perseguições de Tamerlão praticamente extinguiram essa Igreja florescente naquela parte do Mundo. Manteve-se apenas no seu local de origem, correspondente grosso modo ao atual Iraque e parte do Irã, e na Índia.

A história da Igreja Caldeana Católica começa quando das primeiras tentativas de reunificação dos cristãos nestorianos ao catolicismo. Houve tentativas na época dos Patriarcas Mar Sabrisho V (1226-1257) e Mar Uyah-allah III (1281-1371) mas com poucos resultados. Em 1445 o metropolita nestoriano da ilha de Chipre declarou-se separado da Igreja do Oriente e unido a Roma. O Papa Eugênio IV declarou que quem chamasse esses católicos vindos do nestorianismo de “nestorianos” seria excomungado – eles deveriam ser chamados de “caldeanos”. A União da igreja de Chipre não durou muito, mas ficou o nome.

No ano 1450 o Patriarca da Igreja nestoriana editou um regra que o cargo de Patriarca seria restrito aos membros de sua família (como eles são celibatários, geralmente o cargo passava de tio para sobrinho). Isso gerou insatisfações. Um século depois, em 1551, quando Mar Chimun VII foi entronizado sucedendo seu tio alguns bispos se revoltaram e elegeram um Monge, João Sulaka, como Patriarca dissidente. No ano seguinte ele partiu para Roma onde fez sua profissão de fé, e em 1553 o Papa Júlio III proclamou-o Patriarca da

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Igreja Caldeana, com o nome de Mar Chimun VIII. Surgia a Igreja Caldeana, em comunhão com Roma. João Sulaka foi martirizado em 1555 por um Emir muçulmano a pedido do Patriarca da outra linhagem.

Nos séculos seguintes houve uma confusão muito grande, com a linhagem de Patriarcas caldeanos se extinguindo e ressurgindo algumas vezes, com Patriarcas nestorianos se convertendo ao catolicismo e vice-versa. Em 1830 o Papa Pio VIII reconheceu o metropolita João Hormez como Patriarca da Babilônia para os Caldeus, com sede em Mossul, atual Iraque, restabelecendo-se então uma linhagem de Patriarcas caldeanos que permanece até nossos dias. Observamos que a outra linhagem de patriarcas, a da Igreja nestoriana, desde 1975 não é mais hereditária.

Hoje está havendo um movimento de reaproximação entre a Antiga Igreja Assiríaca do Oriente (nome oficial da igreja nestoriana) e o catolicismo, através da Igreja Caldeana Católica. No dia 11 de novembro de 1994 Sua Santidade o Papa João Paulo II e Sua Santidade o Catholicós-Patriarca da Igreja Assiríaca do Oriente Mar Denkha IV assinaram na Basílica de São Pedro em Roma uma declaração cristológica comum, estatuindo no que as duas igrejas concordam em termos teológicos, e estabelecendo uma comissão para conciliar as diferenças restantes.

Observamos que “catholicós” é um título que o Patriarca recebe nas igrejas da mesopotâmia, persa, armênia e georgiana (pronuncia-se “Cassolicós”).

E em 29 de novembro de 1996 os Patriarcas Mar Rafael I Bidawid (dos caldeus católicos) e Mar Denkha IV (dos nestorianos), junto com seus bispos, assinaram um Decreto Sinodal Conjunto para Promover a Unidade entre as duas igrejas.

Atualização

O Patriarca Rafael Bidawid morreu em julho de 2003, quando o Iraque passava por uma situação difícil pela invasão norte-americana. Um sínodo dos 23 bispos caldeus católicos se reuniu sob muitas privações e nenhum deles conseguiu os dois terços de votos necessários à eleição. O sínodo se encerrou em 2 de setembro, sem decisão.

Pelo Direito canônico o Papa teria o direito de eleger o próximo patriarca caso o sínodo não chegasse a uma decisão. Mas Sua Santidade preferiu convocar os bispos em novo sínodo dessa vez em Roma. O novo sínodo começou em 02/12/2003 e no dia seguinte elegeu o bispo Emmanuel-Karim Delly seu novo Patriarca. Era o antigo bispo auxiliar de Bagdá. Escolheu o nome de Karim III. No mesmo dia o eleito teve uma audiência privada com o Papa João Paulo II e foi entronizado. Depois seu nome foi revelado ao público.

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Os desafios políticos são grandes. Os caldeus católicos em outubro se juntaram com os assírios (nestorianos) e os siríaco-ortodoxos e formaram o grupo “caldeu-assírio”, que quer ser reconhecido na nova constituição iraquiana e quer a administração das regiões onde sua presença é maior.

ara falarmos da Igreja Siríaca Católica precisamos falar da grande controvérsia que deu origem a ela, a heresia monofisita. Advertimos que esta primeira parte deste artigo é baseada no célebre historiador inglês Edward Gibbon, que não é exatamente simpático ao catolicismo. Mas sua erudição e honestidade intelectual fazem dele um guia importante sobre aquela época.

No concílio de Éfeso em 431 D.C. foi condenado o nestorianismo, heresia que afirmava ter Cristo duas personalidades, a humana e a divina (ver a história daIgreja Caldeana Católica ). No entanto nessa mesma época estava se desenvolvendo o pensamento diametralmente oposto, de que Cristo teria uma só pessoa, a divina. Um dos campeões dessa doutrina era o monge Eutiques, um idoso e analfabeto arquimandrita (superior) de trezentos monges perto de Constantinopla. O patriarca de Constantinopla Flaviano convocou um sínodo de sua igreja, sínodo este que condenou Eutiques, afirmando que ele teria dito que Cristo não teria derivado seu corpo da substância da Virgem Maria.

Eutiques então apelou para um concílio geral, e nisso foi ajudado por um seu afilhado, que era o principal eunuco do palácio do Imperador, e pelo patriarca de Alexandria, Dioscorus. O Imperador Teodósio convocou então um concílio geral na cidade de Éfeso (o segundo naquela cidade). Tal reunião foi marcada pelo autoritarismo de Dioscorus. Este trouxe do Egito uma tropa de arqueiros e de monges implacáveis que cercaram a catedral onde estavam os participantes do concílio. O concílio condenou os que diziam ter Cristo duas naturezas (“que aqueles que dividem Cristo sejam divididos pela espada”). Eutiques foi absolvido sem hesitação, mas os bispos subordinados a Flaviano não queriam entregar seu patriarca à justiça de Dioscorus, e se agarraram aos joelhos deste enquanto este os encarava com ar feroz, e imploraram misericórdia. Este gritou que eles queriam fazer uma sedição e gritou pelos oficiais. A tal sinal uma turba de soldados e monges com paus, espadas e correntes invadiu a igreja, fazendo os bispos tremendo de medo se esconderem atrás do altar e dos bancos e assinarem um papel em branco em que depois foi escrita a condenação de Flaviano. Este foi entregue à turba, que o monge Barsumas, favorável a Dioscorus, incitava dizendo para vingar as feridas de Cristo. Dizem que o próprio Dioscorus chutou Flaviano. Este, ferido, fugiu mas morreu três dias depois. Foi vitória dos monofisitas.

A parte derrotada (= católica) no entanto apelou para o Papa Leão I. Convocou imediatamente um sínodo provincial que anulou o sínodo de Éfeso, considerando-o irregular. Mas tão importante quanto o apoio do Papa foi a

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morte do Imperador Teodósio quando seu cavalo tropeçou e ele foi sucedido por sua irmã Pulquéria, que dominava o marido e era favorável ao partido ortodoxo (= católico). Então Dioscorus caiu em desgraça e os exilados foram convocados. Foi convocado um novo concílio, para o qual os legados papais pediram a presença do Imperador. E os participantes foram levados para uma pequena localidade perto do mar, num morro, onde foi construída uma igreja para abrigar os seiscentos e trinta bispos. O lugar de honra ficou com os legados do Papa e do Imperador. Acusado formalmente, Dioscorus foi reduzido a criminoso. Novos patriarcas de Constantinopla e Alexandria foram eleitos. Dos dezessete bispos de Alexandria, monofisitas, quatro aderiram ao partido católico, e treze de joelhos imploraram a piedade do concílio, dizendo que seriam linchados quando voltassem a sua terra se renunciassem ao monofisismo. Houve pedidos de uma anistia geral mas foram rejeitados. Dioscorus foi condenado entre outros com base em acusações de orgulho, avareza, crueldade, e que gastava o dinheiro da igreja em dançarinas e que seu palácio e seu banho eram freqüentados por prostitutas, principalmente por Irene, um famosa mulher do prazer da cidade, que seria sua amante.

No entanto restavam os problemas doutrinários, e provavelmente a maioria dos bispos era a favor da doutrina monofisita. Por força dos legados papais, em uma votação eles votaram a favor das duas naturezas, em outra voltaram a uma natureza só, entre gritos de que as definições dos pais da igreja eram imutáveis. No entanto o Imperador estava inflexível, e os legados papais também, e uma comissão de dezoito bispos preparou novo decreto, em que Cristo tinha uma pessoa em duas naturezas, que foi aceito relutantemente pelos participantes. E este foi o concílio de Calcedônia.

Nos anos seguintes houve reações violentas. Jerusalém foi invadida, pilhada e queimada, com muitos mortos, por um exército de monges em favor de uma natureza só de Cristo. No Egito o novo patriarca de Alexandria, Protério, esteve em guerra contra seu próprio povo por cinco anos. Quando se soube que um monofisita importante tinha morrido o povo cercou a catedral três dias antes da Páscoa e o Patriarca foi assassinado no batistério, e seu corpo queimado e as cinzas espalhadas ao vento, sob o rumor de que esse assassinato tinha sido inspirado pela visão de um anjo. No seu lugar o povo colocou o monge Timóteo o Gato, monofisita.

Depois de trinta anos o imperador Zenão, para acabar com tantas lutas, propôs uma fórmula de conciliação, mas sem muito sucesso. A controvérsia ficou latente, e a qualquer oportunidade reacendia. Naquela mesma época acreditou-se que um anjo revelou aos homens o hino do Triságio (“Santo, Santo, Santo, é o senhor Deus do Universo”). Este seria o hino que seria cantado sempre, continuamente, em todos os tempos, pelos anjos e querubins diante do trono do Senhor. Acontece que logo logo foi adicionada a frase “que foi crucificado por nós!” e essa frase, que seria depois adotada universalmente, fora

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acrescentada por um bispo monofisita. E isso gerou conflitos terríveis. Na catedral dois coros rivais cantaram o Triságio, com e sem o acréscimo, um querendo forçar o outro a desistir. Quando seus pulmões não agüentavam mais eles partiram para as pauladas e pedradas. O Imperador Anastácio puniu os católicos, entrando em conflito com o patriarca, que os defendeu. E a multidão invadiu as ruas, aos gritos de “este é o dia do martírio!”. A multidão tomou o poder na cidade, as chaves da cidade e seus estandartes foram tomadas dos guardas. Nos dias seguintes a multidão pilhou e saqueou e incendiou as casas dos partidários do imperador, cantando hinos enquanto o faziam. A cabeça de um monge amigo do Imperador foi levada na ponta de uma lança. Estátuas do Imperador foram quebradas enquanto ele se refugiava num subúrbio. Depois de três dias o Imperador, sem seu diadema, humilhado, suplicou o perdão de seus súditos no circo. Diante dele os católicos em coro cantaram o seu Triságio, sem acréscimo. E dois ministros foram entregues aos leões.

No entanto a fé monofisita continuou em muitas pessoas. Por volta do ano 540 houve nova perseguição. O patriarca de Antioquia, o monofisita Severo foi destronado e perseguido e fugiu, e seu amigo Xenaias foi estrangulado, trezentos e cinqüenta monges foram massacrados, além de bispos destronados e presbíteros jogados na prisão, mesmo contando com a discreta ajuda de Teodora, a Imperatriz. E no meio dessa miséria surgiu a figura de Tiago (Jacob) al-Baradai, que nas masmorras de Constantinopla recebeu secretamente o título de Bispo de Edessa e Apóstolo do Oriente.  Libertado lançou-se a uma frenética atividade missionária, nas costas de rápidos camelos fornecidos por um simpatizante. Visitou vilas, conventos e cavernas onde os adeptos do monofisismo se escondiam, e teria ordenado oitenta mil bispos, padres e diáconos, que eram ensinados também a odiar o legislador romano. Por conta de seu esforço a igreja monofisita é também conhecida como Igreja Jacobita. Foi ele o organizador da Igreja Siríaca Ortodoxa, não em comunhão com Roma, que existe até hoje. Seus sucessores formam uma linhagem de patriarcas monofisitas de Antioquia. A segunda maior autoridade nessa igreja é o Mafrian (em siríaco: frutuoso, delegado universal), instituído em 630 e sediado em Mosul, no Iraque, na mesma cidade do catholicós nestoriano, inicialmente com jurisdição sobre os fiéis monofisitas no Império Sassânida.

Perseguidos por Constantinopla os monofisitas ou siríaco-ortodoxos acolheram os invasores muçulmanos, que tinham inicialmente uma tirania mais leve. Mas depois houve perseguições e conversões em massa ao islamismo. Sua Igreja existe até hoje. Logo abaixo mencionaremos seu Patriarca e sua Página no Brasil.

II

A Igreja Siríaca Católica começa com tentativas de reunificação dos jacobitas

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com o catolicismo que começaram depois das cruzadas. Em 1444 em Florença, houve a tão almejada reunificação ao catolicismo. Mas a invasão turca logo depois fez com que essa tentativa durasse pouco. Entre 1563 e 1571 houve uma ativa correspondência entre o patriarca e os Papas Pio IV e V, e em 1583 o papa enviou um legado à igreja jacobita. Em 1656 André Akhidjan foi consagrado pelo patriarca maronita e seis anos depois foi eleito Patriarca Siríaco de Antioquia, enviando a Roma sua profissão de fé. Seu sucessor Inácio Pedro Chaahbadine foi perseguido violentamente pelo Xeque de Istambul, preso, torturado e colocado em marchas forçadas, ao final das quais morreu como mártir da fé em 1702. Depois disso a Igreja Siríaca católica ficou sem Patriarca até 1782. Neste ano foi eleito um único patriarca para as duas comunidades, Denis Miguel Djarve. Foi confirmado por Roma no ano seguinte, mas apenas quatro bispos ficaram com ele. Os outros elegeram um patriarca siríaco-ortodoxo. Assim, desde aquela época há duas igrejas siríacas - a católica e a ortodoxa. Perseguido, o patriarca siríaco católico teve de fugir para o Líbano, onde até hoje no convento de Charfe se encontra o ícone milagroso de Nossa Senhora Libertadora que fugiu trazendo no peito.

Após passar períodos em Alepo-Síria e em Mardin – Turquia, e oprimida por perseguições, a sede patriarcal se transferiu definitivamente para Beirute no Líbano durante a Primeira Guerra Mundial.

Em 1935 o Patriarca Inácio Gabriel Tappouni foi elevado a cardeal pelo papa Pio XI, tornando-se o primeiro cardeal desta Igreja. Faleceu em 1968.

  

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Da esquerda para a direita: Monsenhor Luiz Awad (pároco siríaco católico no Brasil), Patriarca Dom Moussa Dauod e Monsenhor Antonio

Chahda, da Venezuela

Em outubro de 1998 foi eleito o novo Patriarca Inácio Moussa Dauod. Mas no final do ano seguinte ele foi nomeado pelo Papa para o cargo de Prefeito da Sagrada Congregação para as Igrejas Orientais. No consistório de fevereiro de  2001 foi elevado a Cardeal, mantendo no entanto o título particular de Patriarca. Devido a seu novo cargo renunciou à liderança da Igreja., Foi eleito portanto a 16 de fevereiro de 2001 o seu sucessor, Patriarca Inácio Pedro VIII.

Note-se que os Patriarcas de Antioquia dos Siríacos Católicos escolhem todos o nome de Inácio. É uma  homenagem tradicional a seu antecessor Santo Inácio da Antioquia. Tal tradição existe desde 1444, quando foi eleito o primeiro Patriarca a fazer essa homenagem, ainda quando a igreja siríaca era una e não em comunhão com o catolicismo.

O patriarca Inácio Moussa Daoud visitou o Brasil no início do ano 2000, sendo recebido pelo prefeito de Belo Horizonte e pelo governador de Minas Gerais. A Igreja Siríaca Católica está presente no Brasil na Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, em Belo Horizonte, e também no Mato Grosso do Sul. Durante sua visita o patriarca consagrou Monsenhor ao Padre Luiz Awad, o único sacerdote católico siríaco no Brasil. Note-se que esta Paróquia também atende os fiéis católicos melquitas daquela cidade (ver endereço ).

A Igreja Siríaca Ortodoxa continua a existir, e seu Patriarca Siríaco Ortodoxo de Antioquia e de todo o Oriente é Inácio Zakka I, com sua sede em Damasco, na Síria. Os siríacos ortodoxos (não em comunhão com o catolicismo) também estão presentes no Brasil e têm uma página em português (  http://www.sirianort-santamaria.org.br  ).