CLARA DE ASSIS UM HINO DE LOUVOR - franciscanos.org.br · como Ministro e servo de todos, desejo...

64
CLARA DE ASSIS UM HINO DE LOUVOR Carta do Ministro geral Frei Giacomo Bini, ofm Roma 2002

Transcript of CLARA DE ASSIS UM HINO DE LOUVOR - franciscanos.org.br · como Ministro e servo de todos, desejo...

CLARA DE ASSISUM HINO DE LOUVOR

Carta do Ministro geralFrei Giacomo Bini, ofm

Roma 2002

Grafica: JA per Ufficio Comunicazioni OFM - RomaImpaginazione: JA/GPO

Indice

Introdução ............................................................5I. A missão comum de nossas Fraternidades .......9

Viver e testemunhar o Evangelho ......................11A caminho da Cruz ............................................13Para a reflexão ..................................................18

II. Reciprocidade e complementaridade ............19Complementaridade teocêntrica .......................21Complementaridade construída sobre a Palavra de Deus ....................................24Para a reflexão ..................................................26

III. Hospedes e peregrinos .................................27«Somente na morte se conhecem as pessoas» ...................................29A beleza de uma vocação ..................................32Para a reflexão ..................................................36

IV. «Siga o conselho do Ministro geral» ..................37Autonomia e relacionamentos na vida de um mosteiro .....................................39A formação ........................................................43Para a reflexão ..................................................46

V. Os desafios .....................................................47A formação do coração e a criatividade ............49Uma espiritualidade bíblica,litúrgica e carismática .......................................51O sentido de pertença .......................................53Formação para o relacionamento ......................54Para a reflexão ..................................................56

Conclusão ...........................................................57Siglas e abbreviações ..........................................61Indice ..................................................................63 63

Vós, Senhor, sejaisbendito, pois me criastesVós, Senhor, sejaisbendito, pois me criastes

Siglas e abbreviações

Escritos de São Francisco2CtFi Carta a todos os fiéis (2ª redação)Adm Admoestações de São FranciscoFVCl Forma de vida (a Santa Clara)COrd Carta a toda a OrdemRegB Regra buladaRegNB Regra não buladaRegOFS Regra da Ordem Franciscana SecularSaudVM Saudação à VirgemTest Testamento de São Francisco

Escritos de Santa Clara2CtIn Segunda carta a Inês de Praga3CtIn Terceira carta a Inês de Praga4CtIn Quarta carta a Inês de PragaBenCl Bênção de Santa ClaraRegCl Regra de Santa ClaraTestCl Testamento de Santa Clara

Fontes biográficas e outros documentos1Cel Vida primeira, Tomás de Celano2Cel Vida segunda, Tomás de CelanoBulC Bula de canonização de Santa ClaraFior Fioretti de São FranciscoLegM Legenda maior, São BoaventuraLegPer Legenda peruginaLegCl Legenda de Santa ClaraProcC Processo de canonização de ClaraScom Sacrum Commercium 61

me verão» (Mt 28,10). Ide! Vamos com coragem esem medo: o Senhor nos espera. Dizei com decisão:«Vi o Senhor!» (Jo 20,18), mostrai-o a nós com vossavida apaixonada pelo Senhor, testemunhai-o a nóscom vosso “exagero evangélico” enraizado naconfiança nele, com a superabundância de vida queexplode de vossa kénosis, do vosso silêncio que mudae “perfuma” todo o mundo: «E a casa ficou todaperfumada» (Jo 12,3). Nossa vida hoje necessitareencontrar a audácia o “exagero”, a gratuidade quenasce da alegria por haver encontrado o “tesouro”que subverte positivamente as perspectivas de nossaexistência; temos necessidade da “esperança que nãoengana» (Rm 5,5).

O Privilegium paupertatis que Clara tanto defen-deu é a alegria de seguir e partilhar a vida de Jesus, agarantia de fidelidade ao nosso carisma; recordai-nosque um irmão ou uma irmã que não são pobres elivres evangelicamente serão condenados a ser esté-reis e tristes (cf. Mc 10,22), apesar da grandiosidadedas obras e da riqueza das tradições.

«Por isso, dobro os joelhos diante do Pai de nossoSenhor Jesus Cristo para que, pela intercessão dosméritos de sua Mãe, a gloriosa Virgem Santa Maria,de nosso bem-aventurado pai Francisco e de todos ossantos, o próprio Senhor, que deu o bom começo, dêo crescimento e também a perseverança até o fim.Amém!» (TestCl 77-78).

O Senhor esteja sempre convosco,e Ele faça que vós estejais sempre com Ele.

Roma, 11 de agosto de 2002Festa de Santa Clara

Frei Giacomo Bini, ofmVosso irmão e Ministro

60

Introdução

Em nome do Senhor!A vós, Irmãs pobres de Santa Clara,

a vós todas Contemplativas que vos inspiraisna espiritualidade franciscano-clariana,

a todos os Irmãos e Irmãsque amam Clara e Francisco,

como Ministro e servo de todos, desejo«paz do céu e sincera caridade no Senhor» (2CtFi, 1)

«Desde que, por inspiração divina, vos fizestesfilhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celes-te, e desposastes o Espírito Santo, optando poruma vida de acordo com a perfeição do santoEvangelho, eu quero e prometo, por mim e pormeus frades, ter por vós o mesmo cuidado dili-gente e uma solicitude especial, como por eles»(RegCl 6,3-4; cf. FVCl).

5

Queridas Irmãs, como conclusão desta mensagemfraterna e cordial, em nome de todos os irmãos daprimeira Ordem e de toda a Família franciscana, dese-jo mais uma vez expressar um sincero reconhecimen-to por vossa presença ao nosso lado, como memória eestímulo para exprimir com sempre maior coerênciao que somos, o que prometemos, o que nos foi prome-tido e o que nos espera. Num mundo tão doente e,todavia, tão sedento de uma autêntica experiênciaespiritual, vós representais a “ponta de diamante” docarisma franciscano para as nossas gerações.

«Queremos ver Jesus», pediam alguns gregos aFelipe (Jo 12,21). Muitos homens e mulheres nosfazem hoje o mesmo pedido. Ajudai-nos, a exemplo deClara, a “espelhar”, a projetar para o mundo o quecontemplamos, a mostrar o ícone vivo construído emnosso interior pelas mãos de Deus e que se exprimenuma unidade harmoniosa vivida no quotidiano. «Aúnica coisa que podemos salvar nestes tempos … é umpequeno pedaço de Ti em nós mesmos, meu Deus. Etalvez também possamos contribuir para desenterrar-te dos corações devastados e abrir-te o caminho» (EttyHillesum). Sim, é muito importante salvar e libertar aimagem de Deus presente em nós, para poder oferecê-la aos outros, liberta de nós mesmos, de um euegocêntrico e invasor que se perde em mil preocupa-ções afanosas, esquecendo Sua presença. Devemos“proteger Deus de nós mesmos” num mundo tão divi-dido, fragmentado e perdido, que necessita do teste-munho oferecido por nossas relações fraternas como“teofania”, manifestação amorosa da presença deDeus; é preciso anunciar novamente com força a todosque ainda é possível querer-nos bem e reencontrarnossa unidade em Cristo morto e ressuscitado.

Fazendo eco às palavras do Ressuscitado às mulhe-res, espontaneamente gostaria de repetir-vos: «Ide,anunciai a meus irmãos que se dirijam à Galiléia e lá 59

Em consonância e obediência a estas palavras,como irmão vosso, ouso dirigir-me a todas vós, queconstituís uma realidade preciosa entre aqueles quevivem a herança espiritual de Francisco e Clara. Emnome também dos Irmãos e das Irmãs que se inspi-ram em seu projeto evangélico, gostaria primeira-mente de expressar uma profunda gratidão pelariqueza carismática espiritual que representais emnossa Família. Obrigado por vossa profunda comu-nhão no Espirito que nos sustenta em nossas viagensapostólicas pelas estradas do mundo; por vosso silen-cioso papel de “sentinelas da manhã” que, na obscu-ridade dos acontecimentos humanos, vigiam e pers-crutam os sinais de vida que já desabrocham sobre aterra. Vós nos ajudais a interpretar e a alegrar-nos pornossa vocação comum. No início de seu Testamento,Clara prorrompe neste agradecimento: «Entre outrosbenefícios que temos recebido e ainda recebemosdiariamente da generosidade do Pai de toda miseri-córdia e pelos quais mais temos de agradecer aoglorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que,quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida»(TestCl 2-3). Portanto, juntos devemos conhecersempre melhor nossa vocação, amá-la e responder-lhe com fidelidade e generosidade.

No próximo ano, celebraremos o 750º aniversáriode morte de nossa mãe e irmã Clara: é uma ocasiãopropícia, uma graça particular que deveria fazer-nosrecuperar o amor “esponsal” que animou toda a suavida. Enquanto vos escrevo, penso e medito exata-mente aqueles gestos e palavras, tão densos de signi-ficado, que caracterizaram seus últimos dias, antes deseu êxodo final. O pobre e tosco leito de São Damiãotornou-se lugar de relacionamento e de encontrosrepletos de profunda humanidade e espiritualidade.

Também uma carta pode tornar-se lugar de comu-nhão, de diálogo fraterno, para descobrir aquele 7

«algo novo a respeito do Senhor» que Clara pedia aJunípero e que nossos tempos e nossas geraçõesainda esperam de nós com urgência.

Nas visitas aos Irmãos, feitas em diversas partes domundo, sempre tive a graça de encontrar-vos, ouvir-vos, dialogar e rezar convosco. Sensibilizou-me aprofunda amizade que vos une a nós e a toda a Famí-lia franciscana; como também a ardente sede de Deusque anima vossas comunidades e que gostaríeis departilhar conosco. E quanto todos nós, irmãos e irmãsitinerantes pelo mundo, teríamos a aprender de vossaexperiência mística tão radical e tão absoluta quesomente quem foi vencido pelo Amor podecompreender ou intuir.

Frei Reinaldo, Frei Leão, Frei Ângelo, Frei Junípe-ro estavam lá, próximos a Clara nos últimos dias desua vida para, em profunda comunhão, ouvir, parti-lhar e reavivar a apaixonada busca de Deus. Este étambém o desejo desta carta: continuar no tempo aamizade que, desde então, sustenta os Frades meno-res e as Irmãs pobres na peregrinação terrena.

Estas reflexões são dirigidas diretamente às IrmãsClarissas por ocasião do 750º aniversário da morte deSanta Clara: todos os textos referem-se a ela; todavia,querem ser também uma mensagem fraterna endere-çada a todas as Irmãs contemplativas franciscanasespalhadas pelo mundo inteiro. Ao escrever, penseitambém nelas; as sugestões e os convites, talvez,possam ser úteis também a elas.

Por fim, espero que estas linhas sejam lidas pelosirmãos e pelas irmãs de toda a Família franciscana,pois a complementaridade e a reciprocidade sãocompromissos comuns a todos nós.

8

Conclusão

«E o nosso bem-aventurado pai Francisco nãoprofetizou isso só a nosso respeito, mastambém sobre as outras que haveriam de virpara a santa vocação a que Deus noschamou» (TestCl 17).

57

Para a reflexão

1. Só uma fé “inteligente”, a fides quaerens intel-lectum, iluminada, pode dar um fundamentoadequado à opção de viver segundo o Evange-lho. Que esforço fazemos e que meios utiliza-mos para aprofundar nossa fé? Somos capazesde utilizar da melhor forma os dons e os caris-mas de cada uma, e, neste caso, também suapreparação intelectual, para o bem de toda aFraternidade?

2. «A lectio divina faz tirar do texto bíblico a pala-vra viva que interpela, orienta e plasma a exis-tência» (João Paulo II, NMI 39). Como nosdeixamos “plasmar pela Liturgia das Horas,pelas celebrações litúrgicas, pela leitura oranteda Palavra de Deus?

3. Quanto “investimos” para estimular umaformação bíblica, litúrgica e carismática, queenvolva a vida na sua integralidade?

4. Que espaço damos à formação humana, à valo-rização de nossa afetividade na vida quotidianaem Fraternidade?

A missão comumde nossas Fraternidades

Todo o relacionamento pessoal com oSenhor, todos os carismas religiosos englo-bam dois elementos inseparáveis entre si,vocação e missão: «segui-me» e «ide», teste-munhai entre os povos o que vistes. OSenhor nos chama para fazer-nos seusdiscípulos e testemunhas no mundo inteiro.Assim, inserimo-nos na história comomemória viva do Evangelho de Jesus Cris-to, sempre prontos a inventar as formasmais apropriadas de testemunhar e anun-ciar o Reino de Deus já presente em nossomeio. Como irmãs e irmãos de Clara e Fran-cisco, temos uma mensagem bem definidaa anunciar, ainda que com modalidadesdiferentes; nossas Regras indicam clara-mente os elementos fundamentais quecaracterizam esta caminhada.

9

I

relacionamento fraterno e para o relacionamentocom Deus. Não existem atenuantes: nem a idade,nem o caráter, nem as tradições podem dispensardesse compromisso.

55

necessidade de trabalharmos juntos, convertermo-nos juntos, caminharmos juntos: não nos tornamossantos cada um por si; seremos santos se nos ajudar-mos todos juntos.

Formação para o relacionamento

«Amem sempre as suas almas e as de todas assuas irmãs, e sejam sempre solícitas na observân-cia do que prometeram a Deus (BenCl 14-15).

Hoje, ao falar de formação, é necessário pôr emparticular evidência a capacidade de a pessoa serelacionar: relacionar-se consigo mesma, com aprópria história, com a própria afetividade, com aspróprias derrotas, com os próprios dons que devemser restituídos ao Senhor. Este é o fundamento dasrelações com os outros e com Deus. Sobretudo nossadimensão afetiva deve ser acolhida sem complexos;somente assim é possível chegar a uma serenidadefundamental e gerar uma incrível riqueza de vidaque estimula o desenvolvimento harmonioso deuma personalidade. Por vezes vestimos o hábito reli-gioso e pensamos que o resto virá por si. Quantosdramas se lêem em alguns rostos escondidos sob umvéu! Dramas não resolvidos, que se tornam infinitasocasiões de tensão, a ponto de destruir a paz de umacasa por meses e anos. Ao contrário, que “paraíso” aatmosfera de uma Fraternidade onde se aprendeu aconhecer-se, a dialogar consigo mesmo, com Deus,com os outros. «Nisto conhecerão todos que soismeus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo13,35).

Temos esta responsabilidade como cristãos ecomo consagrados; devemos, pois, investir todos osnossos talentos para fomentar uma formação para o

54 Viver e testemunhar o Evangelho

«Vejo que são a humildade, a força da fé e osbraços da pobreza que a levaram a abraçar otesouro incomparável escondido no campo domundo e dos corações humanos, com o qual secompra aquele por quem tudo foi feito do nada.Eu a considero, num bom uso das palavras doApóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculodos membros vacilantes de seu corpo inefável»(3CtIn 7-8).

A regra de vida comum a toda a Família francisca-na consiste em «viver o santo Evangelho de nossoSenhor Jesus Cristo» (cf. RegB 1,1; RegCl 1,2; RegOFS4), desejando acima de tudo «ter o espírito do Senhore seu santo modo de operar» (RegB 10,8; RegCl 10,9),tendo como prioridade absoluta a oração e a contem-plação (cf. RegB 5,2; RegCl 7,2). Também o percurso éúnico e bem definido: a humildade e a pobreza doSenhor nosso Jesus Cristo e de sua Mãe pobrezinha.Clara diz explicitamente: «O Filho de Deus fez-senosso caminho» (TestCl 5). A existência pobre deJesus de Nazaré, de Belém ao Calvário, como epifaniade Deus, tornou-se uma experiência espiritual totali-zante e revolucionária na vida de Francisco e Clara:esta paixão configura-os totalmente a Cristo e nãoaceitarão comentários acomodatícios ou reduções atéos últimos anos de sua vida. A quem lhe propõeoutros modos de servir o Senhor, outras Regras jáexperimentadas e melhor organizadas, Franciscoresponde: «O Senhor me disse que queria fazer demim um novo louco no mundo, e não quer conduzir-nos por outro caminho senão por esta sabedoria»(LegPer 114). E ao Papa, que queria aliviar sua pobre-za, Clara, indo muito além do voto, responde: «Paisanto, por preço algum quero ser dispensada deseguir Cristo para sempre» (LegCl 14). 11

Esta é, pois, nossa vocação, nossa «ciência», nossadiaconia: tornar-nos sempre mais ouvintes e fiéisrealizadores da Palavra evangélica, contemplando eseguindo Jesus pobre até o fim. Desta identidadeclara e concreta originam-se as diferentes e comple-mentares formas de evangelização, as diversasmissões franciscano-clarianas na Igreja de Deus emvista de seu Reino.

Os “Frades menores” espalham-se pelo mundo, quese torna seu «claustro» (cf. SCom 63), o lugar das rela-ções fraternas e contemplativas (cf. RegNB 16). «Poispara isto Ele [o Senhor] vos mandou pelo mundouniverso, para dardes testemunho de sua voz, porvossas palavras e vossas obras, e fazerdes saber a todosque ninguém é todo-poderoso senão Ele (COrd 9).

As “Irmãs pobres”, a partir do «claustro» de suainterioridade, seguindo o exemplo de Maria, (cf.3CtIn 19) tornam-se acolhimento, morada e ícone doDeus de amor; e este testemunho se “reflete” e seprojeta no mundo inteiro. A clausura se abre aouniverso e se torna lugar e espaço de relacionamento,como o estreito espaço do jardim de São Damião setransformou para Francisco, padecente e quase cego,em visão e canto de toda a criação. Não vamos para aclausura para refugiar-nos ou para fugir das dificul-dades do mundo, mas sobretudo para viver o acolhi-mento, para participar mais profundamente da vidados homens nas suas aspirações mais secretas edesconhecidas, para esforçar-nos por construir umahistória humana segundo o projeto de Deus que só ossantos e os profetas sabem intuir.

Tomando uma dimensão universal, a clausura deClara é vivida e transformada por uma dinâmica espi-ritual que não tem limites. Antes da doença, é forte-mente tentada a partir até para Marrocos, onde osprimeiros Frades haviam confessado sua fé com o

12 conseguimos adaptar ou criar novas formas deoração, para fazer que se tornem «exemplo e espelho»(TestCl 19), evangelização e missão em nossoambiente?

O sentido de pertença

«Rogo-vos, senhoras minhas, e vos aconselho aviver sempre nessa santíssima vida e pobreza.Guardai-vos muito para que, de maneira algu-ma, vos afasteis dela pelo ensinamento de quemquer que seja» (RegCl 6,8-9).

A quem pertencemos? Talvez a resposta (decora-da) poderia ser fácil. Mas perguntemo-nos novamen-te: para onde convergem nossos desejos, nossas preo-cupações, o que nos provoca sofrimento, em queinvestimos concretamente energias e tempo? Nesteponto, a resposta é um pouco mais difícil! Penso quemuitas vezes não conseguimos concentrar-nos noessencial e nos perdemos no que é secundário, quepode ser a conservação de certas estruturas, a sobre-vivência do mosteiro, a procura de vocações, a preçode fazê-las vir (improvisadas) de outros continentes,o “ciúme” territorial.

A quem pertencemos? Ao Espírito de Deus, quenos “inventa” cada dia com a nossa colaboração, ou aalgum outro? «Em cada etapa da vida, o Senhor nospede uma nova resposta» (Paulo VI). E nesta dinâmi-ca de fazer espaço a Deus em nós, devemos dar prio-ridade ao Evangelho, ao carisma franciscano-claria-no, à Família franciscana, mais do que ao mosteiro.Nossa missão tem horizontes amplos! Não é umsonho, mas a verdadeira dimensão de nossa vocação,que exige kénosis e contínua conversão. Exatamentenestes espaços de vida percebe-se mais claramente a 53

do com a Palavra de Deus não pode deixar de trans-formar certas “práticas de piedade” que vêm de sécu-los passados e estão ainda presentes em alguns(raros) mosteiros. Uma liturgia viva, bem preparadae participada não é contra o espírito da clausura;antes, deveria “formar” também o sacerdote cele-brante, como pude experimentar em alguns mostei-ros. Talvez nos tenhamos limitado a “sábias” confe-rências sobre a Bíblia ou sobre a Liturgia, pensando,assim, ter obedecido à Igreja. Mas uma verdade quenão aquece o coração e não muda a vida não é verda-deiro conhecimento, não é verdadeira formação.

Depois, não devemos esquecer que toda a liturgia,como a própria palavra diz, é um serviço a todo opovo de Deus; por isso, é necessário refletir sobre aacolhida litúrgica aos fiéis leigos que desejam unir-seà oração de nossas comunidades. Todos os mosteirosde Clarissas do mundo recebem pedidos de oração,que lhes são dirigidos por homens e mulheres deperto e de longe; talvez, a partir dos que estão próxi-mos à Família franciscana, seja sobretudo necessárioajudar os fiéis leigos a sentir mais profundamente aoração litúrgica das comunidades de Clarissas e deFrades como uma realidade que lhes diz respeito enão é estranha à sua vocação.

Este desafio, esta transformação na qual muitosmosteiros já estão empenhados será a verdadeirarevolução copernicana que garantirá à contemplaçãosua frutuosa identidade. «Nossas comunidadesdevem tornar-se autênticas escolas de oração» (JoãoPaulo II, Novo Millennio Ineunte 33).

Freqüentemente damos a impressão de considerarnossa vocação um dado adquirido uma vez por todas,esquecendo que o carisma não é somente uma heran-ça recebida, mas é sobretudo uma responsabilidadede busca diante de Deus e do nosso mundo. Como

52 “martírio” (cf. ProcC 6,6); nos últimos 30 anos, atra-vés do “martírio” de sua enfermidade, viverá umaincrível multiplicidade de relações de amizade: rece-be visitas do Papa, de Cardeais, de Frades, de pessoashumildes e de pessoas importantes... É o fogo doamor que arde em seu “claustro” e que inflama todoo tipo de relacionamento (cf. Fior 15), muito mais doque qualquer limitação imposta pela clausura. Claraé uma verdadeira “mística”: arde numa paixão únicaque a configura a Cristo. Tudo o mais torna-se “relati-vo” e convergente para este “centro”.

Quanto desperdício de energias e de “boa vonta-de” se nota em alguns mosteiros, quando nem todasas forças são dirigidas para a busca da unidade, parao Essencial. O “gênio feminino” resplende na suariqueza exatamente quando intui o essencial e conse-gue dar o justo valor ao secundário.

A caminho da Cruz

«Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; sechorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrercom ele na cruz da tribulação vai ter com elemansão celeste nos esplendores dos santos»(2CtIn 21).

«Quando eu for levantado da terra, atrairei todosa mim» (Jo 12,32): do alto da cruz, Jesus tornou-seoferta de salvação para todos os homens. SeguindoFrancisco em suas andanças missionárias, chegamosàs chagas do Alverne; seguindo Clara na sua clausu-ra, chegamos ao leito do sofrimento, da enfermidade,que inicia no tempo das chagas do Poverello e seprolonga por quase metade de sua vida. Constatamosmais uma vez uma surpreendente complementarida-de de carisma: duas estradas igualmente “missioná- 13

rias”, a da itinerância e a da clausura, que conduzemà idêntica meta, a da cruz. O amante quer ficar pertodo Amado, não só no caminho da pobreza, mastambém no do sofrimento (cf. 2CtIn 19), paracompletar na própria carne o que falta aos sofrimen-tos de Cristo (cf. Cl 1,24). Não basta ouvir e servir, épreciso também partilhar o destino de Jesus e tomarsua cruz (cf. Lc 9,23-24).

A lógica evangélica da não-eficiência, da não-espe-tacularidade, dos resultados não-vistosos é sempreperturbadora: assim foi para os discípulos de Jesus eserá para todos os fiéis, neste peregrinar terreno. O“mundo” não pode aceitar esta lógica: nosso mundofundamenta-se exatamente sobre a eficiência que, apartir desta base, cria uma série de “psicoses” doresultado, do “fazer”, da aparência, do garantir parasi o presente e o futuro, do sucesso em todos os níveis:trabalho, afetos, negócios, fama... Infelizmente, estaspsicoses não nos são estranhas: conta quem é capazde produzir mais. Enquanto o “milagre” de Clara eFrancisco, fiéis ao Evangelho, é o de um grande aban-dono naquele que continua a nutrir uma incrívelconfiança a nosso respeito. Eles responderam deforma apaixonada à paixão que Deus tem pelohomem; viveram com audácia o desafio da pobrezaabsoluta, que conduz necessariamente à cruz, àimpotência, como caminho de vida.

Todas as atividades missionárias estarão, pois,sujeitas à lógica da semente que deve morrer parafrutificar.

A eficácia “missionária” de Francisco atinge ocume na última etapa de sua vida, a da assemelhaçãoa Cristo no Alverne: depõe sua experiência espiritualno seio da Igreja, ao lado da cruz, restitui esta aven-tura evangélica ao Pai e a oferece como um “dom”missionário a muitos irmãos e irmãs que o teriam

14 da volta para nós mesmos, inclinada a administrarexclusivamente o que sempre se fez, por medo deperder o talento recebido: contentamo-nos em escon-dê-lo e conservá-lo (Mt 25,18). A resistência àsmudanças pode significar resistência à conversão, adeixar-se guiar pelo Espírito para caminhos inéditos,que descobriremos enquanto andamos (cf. Hb 11,8).Tudo isso nos força a rever nossa vida diária, nossoestilo de vida, nossos esquemas e, até, nosso horário,que, embora demasiadamente fragmentário, podedificultar uma dimensão contemplativa que necessitade espaços mais longos de diálogo pessoal e de silên-cio com o Senhor, para melhor valorizar a oraçãocomunitária. A preparação séria e criativa de espaçoslitúrgicos, comunitários e recreativos fomenta umaformação permanente para o relacionamento comDeus e com os outros. Sobretudo a autenticidade dosgestos, de uma palavra, harmoniosamente amadure-cidos no silêncio e no tempo necessário, ajuda a cons-truir uma personalidade verdadeira, livre, serena eacolhedora. Essa criatividade espiritual poderá conti-nuar também quando o corpo estiver fraco ou doen-te: o exemplo de Clara, também neste ponto, devenos ensinar a manter-nos vivos no amor e a jamaisnos resignarmos, a não refugiar-nos no hábito que,inevitavelmente, adormece e paralisa qualquer espí-rito de iniciativa.

Uma espiritualidade bíblica,litúrgica e carismática

Creio que não seja necessário alongar-nos sobre osmuitos documentos da Igreja e da Ordem que – hámais de 40 anos – falam da importância de uma sóli-da formação bíblica e litúrgica, sobretudo para aspessoas consagradas e, de modo particular, para ascontemplativas. Mas que eco tiveram na VIDA denossas comunidades? Um relacionamento prolonga- 51

fundamentados, mas incapazes de abrir-nos à novi-dade de Deus.

A maior tentação de quem procura a Deus ésempre a de fechá-lo na própria expectativa; enquan-to Deus quer superar nossas expectativas, alargar oshorizontes de nossa existência. Deus nos surpreendeporque confia em nós e nos pede sempre nova dispo-nibilidade. Nós somos levados a voltar para o que“sempre se fez”; o Espírito, porém, impele-nos ainventar o que “devemos fazer hoje”, nas novas situa-ções que a existência nos propõe. A resistência àconversão nasce principalmente do desejo de conser-var a tradição em si mesma, de um equilíbrio nivela-do por baixo, que, com freqüência, expressa apegoaos próprios esquemas e rejeição à renovação, maisque apreço pelo que temos recebido. A fidelidadeevangélica é sempre fonte de audácia e criatividade,uma criatividade que não significa rejeição ao passa-do ou à riqueza recebida dos nossos santos; não signi-fica desestruturar completamente nossa existência: éimpossível viver sem estruturas e sem inserir-se numahistória. Criatividade significa pôr «vinho novo emodres novos» (Mc 2,22), adaptar as estruturas à vidanova que se manifesta em nós dia após dia, torná-lasmais expressivas e cônsonas com os sinais do tempoem que vivemos. É uma missão confiada a cada gera-ção, a cada época, para tornar viva e vivificante amensagem evangélica. Hoje vivemos numa culturaque estimula uma identidade centrada sobre o conhe-cimento intelectual ou sobre expressões psicológicase emotivas, mais que sobre a formação do coração,que a Bíblia define como o centro da vida do homemnovo, «o centro de integração, de abertura e de supe-ração de todo o ser humano». O coração endurecido– em grego “sklerokardia” – é semelhante à esclerosedas capacidades e possibilidades de amar, de abrir-seà confiança em Deus; a novidade do Espírito, porém,surpreende-nos e impede qualquer forma de obstina-

50 seguido ao longo dos séculos, fascinados por seuexemplo. É uma liberdade reencontrada exatamenteno tempo da “grande prova”, quando já não sabe oque fazer: então decide restituir a Deus o projetoevangélico elaborado durante toda a vida e que agoradescobre não ser seu; restituir os Frades que não sãoseus, sua vida que não é sua...

O que dizer de Clara, dos anos de sua enfermida-de, “inúteis” segundo uma mentalidade do resultado,mas muito ricos e significativos diante de Deus! Preci-samente quando Francisco, muito rapidamente, veioa faltar aos Frades e às Irmãs, a presença de Clara emboa saúde, com todas as suas energias, em nossomodo de ver teria podido “fazer muito” para a Famí-lia franciscana das origens; teria podido fundarmuitos outros Mosteiros, animar muitas outrasIrmãs... No entanto, o Senhor “fez muito” através desua pobreza, de sua enfermidade, de sua inatividade!Naqueles primeiríssimos anos da vida da Ordem, irãooutras Irmãs, mandadas por ela e por Francisco.

Mas quanto nos é difícil assimilar estes valores,quando, ao nosso redor, o “mundo” fala outra lingua-gem e nos estimula a aceitar suas seduções. Bemsabemos que nossa eficácia está ligada à fecundidadedivina; que nossos serviços, estruturas, atividadesapostólicas devem estar em função de nosso sermemória viva do Evangelho de Jesus. Este é o primei-ro serviço que devemos prestar à Igreja e ao mundo,antes mesmo de qualquer outra atividade: é a quali-dade de nossa vida que dá significado à quantidadede nossos esforços, que devem relacionar-se a estadimensão existencial na qual todos nos percebemos“missionários, enviados”, quer permaneçamos nummosteiro, quer percorramos as estradas do mundo;quer rezemos, quer preguemos; quer tenhamossaúde, quer estejamos doentes. Conservarei sempreem meu coração muitos rostos radiantes de Irmãs 15

jovens e idosas encontradas em diversas visitas, quedeixam transparecer, como palavra viva, o absolutode Deus que as habita; de Irmãs enfermas que, puri-ficadas pelo sofrimento como Clara, ícones vivos,semelhantes ao Crucifixo de São Damião, exprimemuma humanidade sofredora, mas já transfigurada egloriosa: tornaram-se espera vibrante do Esposo quevem, enquanto seu corpo, puro invólucro transparen-te, deixa entrever a presença libertadora de Deus.Que missão extraordinária é esta!

Recordo o exemplo de uma clarissa do século XV,Catarina de Bolonha. No fim da vida, sofrendo muito,numa visão recebeu a ordem de pôr-se a tocar umaviola. Catarina não tocava desde que, adolescente,havia deixado a corte de Bolonha para entrar nomosteiro; mas diante da ordem divina pediu que lhetrouxessem uma viola e compôs ela mesma umpequeno hino, com um texto tirado do profeta Isaías:“Gloria eius in te videbitur”. Assim, mostrava àsIrmãs que a glória do Onipotente se manifestatambém na fraqueza de uma mulher sofredora. Aindahoje conservada no mosteiro Corpus Domini de Bolo-nha, a viola nos recorda que a vida de cada um denós, em sua fraqueza, pode tornar-se um instrumen-to para cantar a grandeza de Deus.

Queridas Irmãs, quem sabe ainda podeis ajudar-nos a reencontrar o sentido profundo de nossa missão,o valor “relativo” de todas as nossas atividades, saben-do que uma pessoa pode realizar-se somente se desco-brir sua verdadeira face, “espelhando-se” em Jesus deNazaré, no seu Evangelho, na contemplação comoprioridade. Na busca de nossa identidade, comfreqüência somos mais propensos a olhar para opassado – e corremos o risco de fechar-nos sempremais – do que para o futuro, para o qual somos proje-tados. O afã de sobreviver pode destruir a esperança,a criatividade e a abertura ao Espírito do Senhor.

16 Esta positiva projeção de Francisco em relação aofuturo das Damianitas, estimula também a nós a alar-gar o olhar para além dos horizontes do presente afim de perscrutar possibilidades evangélicas aindanão expressas e construir dinamicamente umadimensão contemplativa autêntica sempre maisprofunda e evangelizadora para o amanhã. É umaexigência fortemente percebida por nosso mundo,orientado para uma cultura da exterioridade e daaparência, como conseqüência da globalização. Aspessoas contemplativas podem oferecer a alternativade uma cultura da interioridade e da experiênciaespiritual profunda de uma solidão habitada, que nãoé isolamento. Sabemos bem que uma dimensãocontemplativa autêntica, enraizada no relacionamen-to trinitário, tem uma evidente função crítica diantede uma pseudo-religiosidade, que se assemelha maisa um consumismo religioso, a um cristianismo do“faça o que quiser”, do que a uma verdadeira buscade Deus. O homem moderno descobre-se sempremais “religioso” e sempre menos crente!

Falando de desafios, das tarefas sérias ou urgentesdiante das quais nos coloca o Espírito, a lista é semprerelativa e, sobretudo, subjetiva. Já nos referimos atemas de vital importância, como a Palavra de Deus,a formação, o exercício evangélico da autoridade.Agora, nesta última parte, desejo destacar três aspec-tos, que considero desafios fundamentais e que, decerta forma, resumem tudo.

A formação do coraçãoe a criatividade

O Cristo ressuscitado repreende a «dureza decoração» dos discípulos (cf. Mc 16,14; Lc 24,25), istoé, uma atitude de voltar-se para si mesmos, prisio-neiros dos próprios esquemas, que julgamos bem 49

A própria velhice nem sempre é só um limite, poisé também testemunho de síntese espiritual e relacio-nal, harmonia dos valores serenamente vividos.Também esta etapa da vida deve ser evangelizada eacompanhada, para que se torne manifestação deDeus, como qualquer pobreza.

O fechamento de um mosteiro acolhido na sereni-dade (não somos eternos!): também ele é testemu-nho de uma fé madura e de uma esperança viva.

17

Para a reflexão

1. Que valores ou aspirações evangélicas funda-mentais estão na base de nossa unidade inte-rior e das opções da Fraternidade? Estamosdispostos a comprometer-nos verdadeiramen-te? Para mudar o quê? Como? Com quem?

2. Existe a consciência de que a primeira terra deanúncio evangélico sois vós mesmas, chamadasa testemunhar uma à outra a Boa Nova naconcretude dos gestos diários?

3. A fecundidade divina de nossa existência brilhatambém na impotência humana, como a velhi-ce e a enfermidade, que nos tornam o sinalmais transparente da esperança que nos habita.Como nos preparamos para esta etapa “missio-nária” tão importante e decisiva?

4. Irmãs, no silêncio contemplativo, vós soisconosco uma Fraternidade-em-missão. Soisanúncio de uma Palavra viva em cada época devossa vida, na paixão pelo Evangelho que vosconfigura a Cristo. Como podemos traduzir eanunciar concretamente esta experiência juntocom toda a Família franciscana?

18

Os desafios

«Subindo ao muro da igreja, [Francisco]disse em voz alta e em francês para unspobres que moravam ali perto: “Venham meajudar na obra do mosteiro de São Damião,porque nele ainda haverão de morar umassenhoras, cuja vida famosa e santo compor-tamento vão glorificar nosso Pai celestial emtoda a sua santa Igreja”» (TestCl 12-14).

47

V

Para a reflexão

1. Que valores ou aspirações evangélicas funda-mentais estão na base de nossa unidade inte-rior e das opções da Fraternidade? Estamosdispostos a comprometer-nos verdadeiramen-te? Para mudar o quê? Como? Com quem?

2. Existe a consciência de que a primeira terra deanúncio evangélico sois vós mesmas, chamadasa testemunhar uma à outra a Boa Nova naconcretude dos gestos diários?

3. A fecundidade divina de nossa existência brilhatambém na impotência humana, como a velhi-ce e a enfermidade, que nos tornam o sinalmais transparente da esperança que nos habita.Como nos preparamos para esta etapa “missio-nária” tão importante e decisiva?

4. Irmãs, no silêncio contemplativo, vós soisconosco uma Fraternidade-em-missão. Soisanúncio de uma Palavra viva em cada época devossa vida, na paixão pelo Evangelho que vosconfigura a Cristo. Como podemos traduzir eanunciar concretamente esta experiência juntocom toda a Família franciscana?

18

Os desafios

«Subindo ao muro da igreja, [Francisco]disse em voz alta e em francês para unspobres que moravam ali perto: “Venham meajudar na obra do mosteiro de São Damião,porque nele ainda haverão de morar umassenhoras, cuja vida famosa e santo compor-tamento vão glorificar nosso Pai celestial emtoda a sua santa Igreja”» (TestCl 12-14).

47

V

cia dos Frades, é urgente definir melhor este relacio-namento tão importante, desejado por Clara e Fran-cisco, para garantir e aprofundar nossa identidadefranciscano-clariana. Somos chamados a viver nossa“unicidade” dentro de um relacionamento sincero, nareciprocidade e complementaridade em vista doReino.

Para a reflexão

1. “Somos uma Fraternidade contemplativa comuma missão particular num mundo em mudan-ça”. Como viver uma criativa fidelidade aonosso carisma de Ordens complementares?

2. Garantir a autenticidade de nossa espiritualida-de franciscano-clariana é fruto de um compro-misso seriamente assumido na confiança recí-proca por irmãos e irmãs. Como concretizá-lono país ou na região em que vivemos? Comopodemos obedecer hoje ao pedido do Crucifixode São Damião: “Vai e reconstrói a minhacasa”?

3. Como ajudar os mosteiros em dificuldades e osdemasiadamente “auto-suficientes” a colocar-se mais na escuta do Espírito, verdadeiroformador, e dos sinais dos tempos?

4. Para ser autêntica, uma formação deverámudar nosso estilo de vida, enraizando-se nabusca teórica e prática da face de Deus. O quefizemos nos últimos anos e que plano de forma-ção temos para o futuro? Para que nos forma-mos?

46

Reciprocidadee complementaridade

«Mas quando o Senhor agiu mais de perto ejá parecia às portas, quis ser assistida porsacerdotes e frades espirituais, para recita-rem a paixão do Senhor e suas santas pala-vras. Aparecendo com eles Frei Junípero,egrégio menestrel do Senhor, que costumavasoltar ditos ardentes de Deus, cheia de reno-vada alegria, ela perguntou se tinha algonovo sobre o Senhor. Ele abriu a boca, deixousair centelhas ardentes da fornalha do fervo-roso coração, e a virgem de Deus ficou muitoconsolada com suas parábolas» (LegCl 45).

19

II

então esquecemos de perguntar-nos periodicamentese nossas estruturas estimulam a contemplação:afinal, algumas estruturas podem ser mantidas comoestão, mas outras devem ser transformadas com regu-laridade, enquanto outras ainda devem ser criadaspara responder com autenticidade à nossa vocação. Atensão entre estruturas e valores acompanhar-nos-áaté o túmulo, mas devemos saber administrá-la eorientá-la com sabedoria e paciência. Quem não vê,por exemplo, a necessidade de formar-se continua-mente para um exercício fraterno da autoridade? «Aestrutura da segunda Ordem, como a da primeira,não é piramidal e não recria o grupo beneditinoreunido em torno do abade ou da abadessa como aum alter Christus, mas é evangélica. A atenção detodas – abadessa e irmãs – converge para o Evange-lho e a ele obedecem».

Creio que todos podemos subscrever esta reflexãode uma clarissa; mas, como se vive, em muitosmosteiros, o exercício da autoridade? Que atenção édada à formação para a responsabilidade por partedas abadessas? Uma verdadeira caminhada formativatorna-se impossível sem um verdadeiro diálogofraterno dentro dos mosteiros, entre os mosteiros enas Federações. Ao contrário, não são raros os casosde mosteiros que pensam não ter necessidade daajuda dos outros.

Neste campo, a colaboração entre nossas duasOrdens depende das diversas áreas geográficas: hámuita, muitíssima diversidade! Praticamente tudo édeixado à boa vontade e ao espírito empreendedor –mais ou menos cauteloso – das abadessas, dos Minis-tros provinciais, das Presidentes das Federações,mesmo que nas Constituições não faltem algumaschamadas e recomendações gerais, convidando àcolaboração. Sem prejudicar a autonomia de cadamosteiro, e evitando também o perigo da dependên- 45

É preciso formar para uma radical expropriação.Segundo Clara e Francisco, observar o santo Evange-lho significa viver «em obediência, sem nada depróprio e em castidade» (RegB 1,1; RegCl 1,2). Éimportante notar que não se usa o termo “pobreza”,mas a expressão “sine proprio”. Não se trata somentede ter um relacionamento equilibrado com as coisas,mas estamos diante de uma atitude que deve carac-terizar em profundidade a identidade das Irmãspobres e dos Frades menores: viver “sine proprio”significa renunciar a atribuir direitos às pessoas, aoscargos que nos são confiados, ao próprio Deus e à suaPalavra. Tudo recebemos de Deus e tudo somoschamados a restituir, se não quisermos nos tornar“ladrões” dos bens que o Senhor gratuitamente distri-buiu. Esta atitude de expropriação radical, de convic-to e sem arrependimento dom de si, exige uma cons-tante conversão e deve ser quotidianamente renova-da, a partir da contemplação extasiada daquilo queDeus mesmo fez por nós: «Vede, irmãos, que humil-dade a de Deus! ...nada de vós retenhais para vósmesmos!» (COrd 28-29; cf. 4CtIn 15.19-23). É ogrande esforço da formação! E não é um caminhosem obstáculos: o mais grave perigo é o da auto-sufi-ciência, a segurança de estar na estrada certa, o medode confrontar-se com os outros, a preguiça da busca.Continua-se de acordo com alguns esquemas dadoscomo certos uma vez por todas, fiéis a certas estrutu-ras recebidas em herança e consideradas imutáveispelos séculos. São João da Cruz escreve: «Bem-vindassejam todas as mudanças, Senhor Deus, para que nosestabilizemos em Vós». Qualquer mudança podeaparecer como uma ameaça que gera medo, ou comoum êxodo, uma esperança para um futuro a ser cria-do com o Espírito. Com freqüência, temos medo deaventurar-nos por novos caminhos, sobretudo se exis-tiu alguma experiência fracassada, como se tambémestas experiências não pudessem tornar-se epifaniade Deus e constituir momentos de crescimento. Ou

44 Complementaridade teocêntrica

«Pois, quando o santo, logo depois de sua conver-são, sem ter ainda irmãos ou companheiros, esta-va construindo a igreja de São Damião, em quefoi visitado plenamente pela graça divina, e foiimpelido a abandonar totalmente o mundo,numa grande alegria e iluminação do EspíritoSanto, profetizou a nosso respeito aquilo que oSenhor veio a cumprir mais tarde» (TestCl 9-11).

Este é um quadro profundamente significativoque, exatamente no fim da vida de Clara, exprimemuito bem o laço espiritual que une na contemplaçãode Deus os irmãos menores e as “damas pobres”. Acaminhada evangélica de Francisco e Clara, suas duashistórias, são interdependentes. Se, por um lado,Clara se define a “plantinha” de Francisco, este,segundo a antiga tradição, nos momentos mais difí-ceis de sua vida, recorre a ela e se deixa guiar, confia-lhe dúvidas e preocupações, às vezes envia-lhe seusFrades (cf. ProcC 2,15). Francisco está na origem davocação de Clara e de suas Irmãs; Clara pede a assis-tência dos Frades, protestando até diante de GregórioIX, quando este quereria proibir a todos os Frades quese dirigissem aos mosteiros das Clarissas sem licençasua (Cf. LegCl 37).

Com satisfação, Clara nota que a contemplaçãodas Damas pobres é parte originária do carisma,quando Francisco «não tinha frades nem companhei-ros» (TestCl 9); e depois da morte de Francisco, osFrades descobrem em Clara a guarda do projeto evan-gélico originário, pois «um só e mesmo espírito tinhatirado deste mundo tanto os frades quanto aquelassenhoras» (2Cel 204). Francisco constitui o momentoinspiracional da comum vocação; Clara, na sua fide-lidade, garante a continuação do primitivo projeto de 21

vida de Francisco. Da clausura de São Damião, ela esuas Irmãs sustentam e animam os seguidores daforma de vida franciscana.

Nestes anos, a partir da renovação promovida peloConcílio Vaticano II, recuperamos muito da riquezadeste relacionamento, que penso ser indispensávelpara a nossa identidade carismática.

O ponto focal deste relacionamento são as “pala-vras santas” ou o “falar de Deus”, segundo a estupen-da expressão dos Fioretti (cf. Fior 15). Trata-se deuma comunicação “extática”, isto é, que nos leva parafora de nós mesmos, com o centro para o “alto”:daqui nasce a complementaridade e a reciprocidadeque dão plenitude humana e divina à nossa vocação.A experiência desta comunhão obriga-nos a ir alémde qualquer “compensação afetiva”: não nos aproxi-mamos por “estratégias pastoral-vocacionais ou pelanecessidade de “apoiar-nos uns às outras, de “sentir-nos bem” uns ao lado das outras. Aproximamo-nospara comunicar-nos «alguma coisa nova a respeito doSenhor», para acelerar o passo em direção a Ele. Éuma busca em comum, trêmula e sincera, daqueleque está na origem de nossa aventura. Nossas pala-vras, então, não serão apenas desejo de falarmos reci-procamente, mas sobretudo efusão de “centelhasardentes”, que brotam de um coração feito «fornalha»pelo amor de Deus. É Deus que fala em nós e atravésde nós para fazer de todos os nossos diálogos umateofania, uma manifestação sempre mais clara de suapresença e vontade.

O ideal é muito alto e sua conquista nem semprecerta! Na Regra, Francisco pôs seus Frades de sobrea-viso quanto a possíveis desvios que, talvez, já estives-sem se manifestando (cf. RegB 11,1-2). Talvez umainterpretação demasiadamente dura desta passagemtivesse provocado a reação de Clara em relação ao

22 A formação

[Clara] tinha cravado na Luz o dardo ardentíssi-mo do desejo interior e, transcendendo a esferadas realidades terrestres, abria mais amplamenteo seio de sua alma para as chuvas da graça»(LegCl 19).

A pessoa humana é um ser que traz em seu cora-ção um mistério muito maior que ela mesma: tudo seresume em perceber, em «cravar o dardo», comoClara, no mistério-dom para encontrar Aquele com oqual se pode viver em plenitude. O «cravar o dardo»na Luz que habita uma criatura finita se transformaprogressivamente num desejo de Deus e num esforçototal da pessoa para fazer-lhe espaço, para afastarqualquer empecilho à união, para viver diariamenteeste relacionamento em profundidade.

Trata-se de formar e formar-se na obediência aoEspírito. Segundo Francisco e Clara, [os frades e asirmãs] «devem desejar acima de tudo ter o espírito doSenhor e seu santo modo de operar» (RegB 10,9;RegCl 10,9). É o Espírito Santo que nos recorda aspalavras de Jesus e nos faz conhecer a paternidadeuniversal de Deus, que torna possível nosso vivercomo irmãos e irmãs. «O Espírito do Senhor, quehabita em seus fiéis» (Adm 1,13), nos ajuda a discer-nir dia após dia as exigências de nossa vocação e nosdá a coragem de viver numa obediência radical e recí-proca. Não se trata, pois, de educar para um obséquioformal em relação aos ministros ou às abadessas, masde submissão de todos ao Espírito, de uma atitudeprofunda de responsabilidade. Lidos à luz do Espírito,todas as relações humanas e todos os acontecimentosda vida tornam-se para nós uma ocasião de “obediên-cia”, de discernimento da vontade de Deus e deacolhida de seu plano para nós. 43

Num futuro próximo, ao menos em algumasnações, seremos obrigados até a uma reestruturaçãoe a uma diminuição dos mosteiros e também deoutras formas de presença franciscana e clariana.Portanto, nestes momentos particularmente difíceis,é indispensável a ajuda entre mosteiros e entre aprimeira e a segunda Ordem; uma fraternidade sere-namente vivida entre nós pode contribuir para supe-rar tensões destrutivas ou sentimentos de culpa injus-tificados por um fechamento visto como um fracasso.A Igreja nos encoraja e nos diz que «a verdadeiraderrota da vida consagrada não está no declínionumérico [também de mosteiros], mas no desfaleci-mento da adesão espiritual ao Senhor e à própriavocação e missão» (Vita consecrata, 63). Os trêscampos fundamentais para a avaliação da caminhadade fraternidade de um mosteiro são os seguintes: aadesão ao Senhor, a fidelidade à própria vocação e acoerência com a própria missão. Para isso somosainda pouco formados; também a experiência dasFederações está ainda no início. A sobrevivência atodo o custo, sem a seriedade de um discernimentovocacional, é uma traição à própria missão espiritual.São outros os critérios a seguir: cada mosteiro devepoder fomentar um crescimento vocacional sério, enem todos os mosteiros estão em condições de fazê-lo; antes, alguns não podem receber novas vocações.Outras vezes, quem tem vocações e meios econômi-cos, pensa num tipo de vida ainda mais independen-te, confunde a autonomia com a auto-suficiência,com a auto-administração e a autodecisão, sentindo-se quase justificado a desinteressar-se pela Federaçãoe a não cuidar da caminhada da Ordem. Estas atitu-des são claramente contra o espírito de fraternidadeque deveria ser o coração de nossa vocação.

42 Papa, pois ela queria salvar a complementaridade atodo o custo (cf. LegCl 37). Viver este tipo de relacio-namento é sempre um desafio, exige um equilíbrioseguro, uma sabedoria humana e espiritual, umaformação sólida de uma e de outra parte; mas nempor isso podemos renunciar a ela: é vontade evidentede Clara e Francisco.

Entre os testemunhos do processo de canonizaçãode Clara lemos que «tendo ficado doente de insânia,um certo frade da Ordem dos Frades Menores, que sechamava Frei Estêvão, São Francisco mandou-o aomosteiro de São Damião, para que Santa Clara fizes-se sobre ele o sinal da cruz. Quando o fez, o fradedormiu um pouco no lugar onde a santa madre costu-mava rezar; depois, quando acordou, comeu umpouco e foi embora curado» (ProcC 2, 15). É um fatonarrado também por outras fontes (cf. BulC 14; ProcC3, 12; LegCl 32) e revela que a colaboração entre osdois santos e entre as duas Ordens foi muito impor-tante: com confiança, Francisco envia a Clara osFrades com dificuldades especiais, pois talvez só elapodia curá-los; o próprio Francisco fizera a experiên-cia nos momentos difíceis de sua existência. Estaexigência espiritual “relativiza” todas as estruturasordinárias, como o sono reparador de Frei Estevão nooratório de Clara. Também nós, hoje, somos vítimasde tensões, do “stress” e da depressão que ameaçamnossa “saúde” espiritual. Talvez, uma das tarefas dasIrmãs de Santa Clara, hoje, poderia ser a de ajudar-nos a reencontrar a harmonia dos valores francisca-no-clarianos, a gratuidade e a beleza de nossa vida,sem pretensões de eficiência. É fácil sermos instru-mentalizados pelas necessidades imediatas e perder-mos a visão de conjunto, a capacidade de discerniraquilo que é urgente daquilo que é necessário; preo-cupamo-nos com os muitos projetos que programa-mos ou que nos são propostos pelo mundo consumis-ta em que vivemos e corremos o risco de esquecer o 23

Num futuro próximo, ao menos em algumasnações, seremos obrigados até a uma reestruturaçãoe a uma diminuição dos mosteiros e também deoutras formas de presença franciscana e clariana.Portanto, nestes momentos particularmente difíceis,é indispensável a ajuda entre mosteiros e entre aprimeira e a segunda Ordem; uma fraternidade sere-namente vivida entre nós pode contribuir para supe-rar tensões destrutivas ou sentimentos de culpa injus-tificados por um fechamento visto como um fracasso.A Igreja nos encoraja e nos diz que «a verdadeiraderrota da vida consagrada não está no declínionumérico [também de mosteiros], mas no desfaleci-mento da adesão espiritual ao Senhor e à própriavocação e missão» (Vita consecrata, 63). Os trêscampos fundamentais para a avaliação da caminhadade fraternidade de um mosteiro são os seguintes: aadesão ao Senhor, a fidelidade à própria vocação e acoerência com a própria missão. Para isso somosainda pouco formados; também a experiência dasFederações está ainda no início. A sobrevivência atodo o custo, sem a seriedade de um discernimentovocacional, é uma traição à própria missão espiritual.São outros os critérios a seguir: cada mosteiro devepoder fomentar um crescimento vocacional sério, enem todos os mosteiros estão em condições de fazê-lo; antes, alguns não podem receber novas vocações.Outras vezes, quem tem vocações e meios econômi-cos, pensa num tipo de vida ainda mais independen-te, confunde a autonomia com a auto-suficiência,com a auto-administração e a autodecisão, sentindo-se quase justificado a desinteressar-se pela Federaçãoe a não cuidar da caminhada da Ordem. Estas atitu-des são claramente contra o espírito de fraternidadeque deveria ser o coração de nossa vocação.

42 Papa, pois ela queria salvar a complementaridade atodo o custo (cf. LegCl 37). Viver este tipo de relacio-namento é sempre um desafio, exige um equilíbrioseguro, uma sabedoria humana e espiritual, umaformação sólida de uma e de outra parte; mas nempor isso podemos renunciar a ela: é vontade evidentede Clara e Francisco.

Entre os testemunhos do processo de canonizaçãode Clara lemos que «tendo ficado doente de insânia,um certo frade da Ordem dos Frades Menores, que sechamava Frei Estêvão, São Francisco mandou-o aomosteiro de São Damião, para que Santa Clara fizes-se sobre ele o sinal da cruz. Quando o fez, o fradedormiu um pouco no lugar onde a santa madre costu-mava rezar; depois, quando acordou, comeu umpouco e foi embora curado» (ProcC 2, 15). É um fatonarrado também por outras fontes (cf. BulC 14; ProcC3, 12; LegCl 32) e revela que a colaboração entre osdois santos e entre as duas Ordens foi muito impor-tante: com confiança, Francisco envia a Clara osFrades com dificuldades especiais, pois talvez só elapodia curá-los; o próprio Francisco fizera a experiên-cia nos momentos difíceis de sua existência. Estaexigência espiritual “relativiza” todas as estruturasordinárias, como o sono reparador de Frei Estevão nooratório de Clara. Também nós, hoje, somos vítimasde tensões, do “stress” e da depressão que ameaçamnossa “saúde” espiritual. Talvez, uma das tarefas dasIrmãs de Santa Clara, hoje, poderia ser a de ajudar-nos a reencontrar a harmonia dos valores francisca-no-clarianos, a gratuidade e a beleza de nossa vida,sem pretensões de eficiência. É fácil sermos instru-mentalizados pelas necessidades imediatas e perder-mos a visão de conjunto, a capacidade de discerniraquilo que é urgente daquilo que é necessário; preo-cupamo-nos com os muitos projetos que programa-mos ou que nos são propostos pelo mundo consumis-ta em que vivemos e corremos o risco de esquecer o 23

compromisso primário de ser “projeto de Deus”. Creioque seja urgente, hoje, renovar e continuar a colabo-ração entre Clara e Francisco para evitar qualquerforma de «insânia», de “esquizofrenia” que destrói aprópria vida consagrada.

Dou graças ao Senhor por todas as vezes que,exatamente ao lado de um mosteiro, desde fradejovem pude fazer a experiência da “cura”, recolocan-do em ordem harmoniosa os valores evangélicos deminha vocação e missão, graças à ajuda das IrmãsClarissas. Muitas vezes pedi hospitalidade em seusmosteiros para dar novo tom espiritual à minha vida.Obrigado a todas vós, Irmãs Clarissas, por esta função“terapêutica”, tão importante para a caminhada voca-cional de uma pessoa consagrada.

Complementaridade construídasobre a Palavra de Deus

«Por meio de devotos pregadores, [Clara] cuida-va de alimentar as filhas com a Palavra de Deuse não ficava com a parte pior» (LegCl 37).

Francisco jamais foi um «ouvinte surdo da Palavra»(2Cel 22); por sua vez, «Clara gostava muito de ouvira Palavra de Deus» (ProcC 10, 8), vive-a, “espelha-se”nela, deixa-se transformar por ela e a reflete sobre asIrmãs e sobre o mundo, consciente de que esta é amissão própria das Damas pobres (cf. TestCl 21).

Francisco e Clara são criadores de uma espirituali-dade construída a partir da escuta e da imediataobediência à Palavra. Desarmados, deixam-sesurpreender por esta Palavra; deixam-se “desestabili-zar” para iniciar caminhos sempre novos, sem saber,como Abraão, para onde levarão (cf. Hb 11,8).

24 risco às vezes é grave: ou os irmãos da primeiraOrdem perdem a dimensão contemplativa ou desapa-rece o carisma e a espiritualidade nas Irmãs enclau-suradas.

Nos últimos anos, fizemos uma boa caminhada,ainda que haja muita estrada a percorrer. Embora asIrmãs Clarissas não tenham laços jurídicos definidoscom a primeira Ordem, como acontece com outrasgrandes famílias espirituais (dominicanas, carmeli-tas, por exemplo), espiritual e carismaticamente,porém, vivemos a mesma aventura evangélica naminoridade e corremos grande risco se abandonar-mos a complementaridade profunda que nos unesem nada tirar da autonomia de cada mosteiro. Ajusta autonomia, porém, não pode ser entendidacomo pretensão de fazer uma caminhada “isolada”,totalmente independente e quase “auto-suficiente”.Nem basta a presença de um franciscano para oserviço pastoral-sacramental para que esteja garan-tida a espiritualidade franciscano-clariana. No fimde sua vida, Francisco promete ter «uma solicitudeespecial» (cf. RegCl 6,4; 2Cel 204) pelas IrmãsClarissas: é algo muito amplo. Clara, por sua vez,confirma: «Recomendo e confio minhas Irmãs,presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem-aven-turado pai Francisco e a toda a Ordem, para que nosajudem a crescer sempre mais no serviço de Deus e,principalmente, a observar melhor a santa pobreza»(TestCl 50-51). Pode também acontecer que ummosteiro se sinta “bem” porque se tornou ponto dereferência de algum movimento carismáticocontemporâneo e do qual, talvez, tenha recebidonovas vocações; isso pode fomentar um melhorclima interno do mosteiro, mas a identidade caris-mática pode correr o risco de “dissolver-se” ou de sersubstituída por outras espiritualidades que Francis-co e Clara não reconheceriam como próprias (cf.LegPer 114; 3CtIn 16). 41

estudos dos escritos clarianos e das fontes francisca-nas, que levaram a um conhecimento mais objetivoda figura de Clara e da espiritualidade das Damaspobres. Estamos iniciando, podemos crescer maiscom a contribuição e a ajuda recíproca, solicitando acontribuição das próprias Irmãs.

Hoje, já não nos aproximamos de Clara como seela fosse uma simples “cópia” de Francisco, mas comouma personalidade rica em si mesma, em constanterelacionamento com Francisco, na reciprocidade ecomplementaridade carismática. Francisco foi a pala-vra evangélica viva que a inspirou e acompanhoudurante toda a sua vida; mas Clara conserva suaoriginalidade, não é redutível a Francisco. Este rela-cionamento de “identificação-diferença” garante aidentidade inspiradora do carisma.

Segundo Clara, depois da Palavra de Deus, apalavra de Francisco e de quem lhe sucedeu nogoverno da Ordem deve ser anteposta a qualqueroutra. Sabemos com que força esta idéia é expres-sa na segunda carta a Inês de Praga e na Regra, esabemos a quem alude quando fala de «qualqueroutro»; sabemos também que Elias não era certa-mente a cópia de Francisco! No entanto, as duasOrdens não devem ser separadas, mesmo a custode uma “greve de fome” por parte das Damianitas(cf. LegCl 37).

As visitas que, nestes anos, tive a graça de fazer àsvárias Federações e o relacionamento mantido com osdiversos mosteiros em diferentes partes do mundoconfirmaram minha convicção de que existe um rela-cionamento muito forte entre as duas Ordens; umcomum e convicto sentido de pertença à mesmaFamília sustenta, com evidência, esta complementari-dade. Existe um grande desejo de crescermos juntosnesta recíproca ajuda. Onde faltar esta consciência, o

40 Deixam-se atrair (ad trahere), plasmar pela Palavrapara se conformarem a suas exigências, sem se deixardistrair (dis-trahere) por nada; finalmente tornam-seeles próprios palavra viva e profética para o mundoem que vivem.

Um dos sinais mais evidentes destes anos pós-conciliares é certamente a redescoberta da centrali-dade da Palavra de Deus para uma experiência espi-ritual que queira chamar-se de cristã. A Igreja exorta-nos continuamente a entrar nesta riqueza e nosconvida a formar-nos e a renovar-nos nesta fonte deágua viva. «O primado da santidade e da oração nãoé concebível senão a partir de uma renovada escutada Palavra de Deus» (João Paulo II, Novo MillennioIneunte, 39). Os fiéis leigos, sobretudo os movimentosjovens, as novas comunidades religiosas nascidas nosúltimos anos, puseram como estrutura básica de suavida espiritual a escuta e o confronto com a Palavrade Deus. Para nós deveria ser uma volta às nossasorigens: “nutrido” com esta Palavra, o coração tornar-se-ia uma «fornalha ardente» como o de Frei Junípe-ro, e nossas palavras readquiririam uma força “incen-diária”. A Palavra de Deus provoca sempre uma rees-truturação espiritual pessoal: obriga-nos a revernossos hábitos, nossos esquemas; cria uma dinâmicade busca e de adesão que muda nosso estilo de vidano Espírito, como aconteceu com Francisco e Clara.Talvez por isso, com freqüência, em nossos ambientesé possível notar uma certa resistência e, assim, conti-nuamos na rotina, sepultura de todo o entusiasmo.Tememos que Deus exija demais, tudo! Tememosperder certas estruturas “de segurança” tambémquando são empecilho à nossa caminhada contem-plativa. Amamos mais a conservação que a contem-plação! Continuamos a confiar nos meios mais tradi-cionais, mais imediatos, sem nos perguntarmos setais meios têm necessidade de um novo espírito. Esteé um campo em que a ajuda recíproca entre irmãos e 25

irmãs poderia devolver força e entusiasmo à nossavida e, sobretudo, reavivar o desejo de busca e deadesão ao Senhor, que só uma profunda espirituali-dade bíblica pode oferecer. Acolher, conceber, guar-dar, gerar a Palavra, a exemplo da Virgem Maria, sãoelementos indispensáveis para uma vida consagradavivida em profundidade e autenticidade.

Para a reflexão

1. Em 1991, preparando o oitavo centenário donascimento de Santa Clara (1993), dirigindo-seàs enclausuradas franciscanas, os Ministrosgerais escreviam: «Nenhuma tutela paternalistada parte dos frades, mas um serviço recíprocoem minoridade e verdadeira fraternidade queenriquece uns e outras... Por que não intensifi-car o relacionamento informativo e tambémformativo da parte das irmãs para os irmãos,como fazia o próprio Francisco desde o iníciode sua vocação evangélica?» (Clara de Assis,mulher nova, 51). Que caminho fizemos nestesúltimos anos?

2. É a Palavra, e particularmente o Evangelho, ocritério de discernimento e de resposta aosdesafios, às situações, às mudanças da vidacomunitária quotidiana?

3. Como conseguimos harmonizar a tensão valo-res-estruturas? E que meios usamos, pessoal-mente e em Fraternidade, para avaliar a cami-nhada?

26 Nesta parte de nossa reflexão, gostaria de medeter em alguns pontos que querem ser ocasião debusca e de diálogo no relacionamento entre as nossasduas Ordens e com a Família franciscana. Particular-mente, penso aprofundar dois temas: 1) a colabora-ção entre os diversos Mosteiros e a Federação; 2) aformação e o particular relacionamento desejado porClara e Francisco entre a primeira e a segundaOrdem. Trata-se de perspectivas que serão desenvol-vidas e retomadas segundo as orientações da Igreja eem continuação a objetivos já alcançados. Esperoque possa ser também o início de uma reflexão quepoderia abrir novas formas de colaboração para obem de todos. Conhecemos as iniciativas positiva-mente já iniciadas um pouco por toda a parte: porexemplo, os programas de formação para abadessas,formadoras, jovens professas; os noviciados comunsnas Federações. Tudo isso estimulou o crescimentovocacional nas dimensões humanas, cristãs e caris-máticas. É claro que tudo isso deve continuar. Semdúvida, poderemos acrescentar a formação dosFrades da primeira Ordem e, sobretudo, dos Assis-tentes das Federações, para aprofundar o conheci-mento da experiência espiritual de Clara e das Claris-sas. Neste campo não se fez muito; no entanto, éuma caminhada indispensável para poder dialogarcom as Irmãs contemplativas sem complexos desuperioridade ou inferioridade e assim evitar qual-quer expressão de paternalismo, em vista de um rela-cionamento e de uma complementaridade autentica-mente evangélicos.

Autonomia e relacionamentosna vida de um mosteiro

Num passado recente, sobretudo depois da cele-bração do centenário de nascimento de Santa Clara(1993), notamos um crescimento de especializados 39

Hospedes e peregrinos

O encontro de Deus com o homem emJesus de Nazaré aparece-nos como umêxodo: o Verbo deixa o seio do Pai para virao mundo; e, após sua morte e ressurreição,deixa o mundo para retornar ao Pai.

Somos testemunhas e protagonistasdesta peregrinação para a casa do Paiiniciada por Jesus; mediante o dom doEspírito, o Ressuscitado inseriu-nos nestadinâmica. Vivemos o desafio de sermos“peregrinos e forasteiros” exatamentequando, libertando-nos de toda a escravi-dão de apropriação, estamos prontos a resti-tuir tudo a Deus, não considerando a vidaum bem de consumo, mas um dom quedeve ser restituído: «Atribuamos ao SenhorDeus altíssimo todos os bens; reconheça-mos que todos os bens lhe pertencem;demos-lhe graças por tudo, pois d’Eleprocedem todos os bens» (RegNB 17,17).

Se não for radicalmente expropriada, apessoa consagrada perde a dimensão profé-tica que é o próprio coração da vida consa-grada. 27

III

«Siga o conselhodo Ministro geral»

«Não consinta em nada que queira afastá-ladesse propósito, que seja tropeço no caminho...para ir com mais segurança pelo caminho dosmandamentos do Senhor, siga o conselho denosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministrogeral. Prefira-o aos conselhos dos outros e tenha-o como o mais precioso dom» (2CtIn 14-16).

37

IV

Para a reflexão

1. O jovem rico do Evangelho «foi embora triste,porque possuía muitos bens» (Mt 19,22). Sabe-mos “degustar” a beleza da simplicidade fran-ciscano-clariana como fruto da purificação dosupérfluo?

2. E Deus estava «numa brisa suave e amena» (1Rs19,12). Como conseguimos guardar, viver,habitar o silêncio contemplativo? Na oração,como no relacionamento fraterno, sabemos“revestir” nossas palavras de calma profunda eserena, para que sejam vivas e vivificantes?

3. «Salve, ó palácio do Senhor!Salve, ó tabernáculo do Senhor!Salve, ó morada do Senhor!Salve, ó manto do Senhor!Salve, ó serva do Senhor!Salve, ó Mãe do Senhor» (SaudVM 4-5)Também nós somos «palácio, tabernáculo,morada, manto, servas, mães». Como vivemosesta realidade?Como conseguimos harmonizar as estruturasdiárias (horário, lugares, tempos...) e fazê-lasconvergir para a “paixão contemplativa” quenos habita?

4. O silêncio, externo e interno, guarda e estimulanossa vida interior. Como harmonizamos estesvalores com “o externo” (telefone, imprensa,internet, TV, locutório...)? Conseguimos usarestes instrumentos sem prejudicar nossacontemplação pessoal e comunitária?

36 «Somente na mortese conhecem as pessoas»(Eclo 11,28)

«A testemunha também disse que, estando apredita senhora e santa madre perto da morte,uma noite, antes do sábado, a bem-aventuradamadre começou a falar dizendo assim: “Vai segu-ra em paz, pois terás boa escolta; pois aquele quete criou, antes te santificou; e depois que te criou,colocou em ti o Espírito Santo e sempre te guar-dou como a mãe guarda o seu filhinho a quemama”. E acrescentou: “Vós, Senhor, sois bendito,pois me criastes”» (ProcC 3,20; cf. LegCl 46).

Partindo das palavras que Clara disse silenciosa-mente à sua alma, transmitidas pelas testemunhas deseu processo de canonização, torna-se possível reen-contrar a verdadeira personalidade de Clara, suaprofunda espiritualidade, quase uma síntese de suacaminhada espiritual. «Vai» sem medo, diz a simesma; vai como naquela noite em que forçaste aporta dos mortos da casa paterna; vai e não te preo-cupes com nada; se o Papa ainda não quis aprovar tuaRegra, vai com serenidade, não importa; vai com agrande liberdade que mantiveste com alegria e ener-gia no “Privilegium paupertatis”, na experiência deum abandono confiante no Senhor, que recompensasempre com o cêntuplo. Vai, «sem perder de vista oponto de partida... em rápida corrida, com passoligeiro e pé seguro, de modo que teus passos nemrecolham a poeira, confiante e alegre avança comcuidado pelo caminho da bem-aventurança... nãoconsintas em nada que queira afastar-te desse propó-sito» (2CtIn 11-14).

Das últimas palavras de Clara antes de sua morte,reemerge mais uma vez a característica trinitária de 29

sua espiritualidade: a boa escolta do Senhor Jesus,«nosso caminho»; o agradecimento Àquele que acriou e santificou; o Espírito que a guardou com omesmo cuidado de uma mãe. Além disso, este convi-te de pôr-se a caminho com rapidez é a traduçãoconcreta da opção de viver como «peregrinos e foras-teiros» neste mundo (cf. RegCl 8,2; RegB 6,2), queClara e Francisco fizeram desde as primeiras etapasde sua conversão. Sua vida sempre foi animada pelodesejo de recomeçar, sem medo e sem demora. Claradeve ter vivido – direta ou indiretamente – a cenaviolenta e simbólica de Francisco que, na praça deAssis, diante de seus concidadãos, do bispo e de suafamília, inicia nu sua caminhada de liberdade, entre-gando-se ao único Pai: «Foi deixado nu para seguir aspegadas de seu Senhor atado nu à cruz» (LegM 2,4).Como também, através dos Frades, Clara soube semdúvida do último desejo de Francisco, antes demorrer: ser colocado nu sobre a terra nua da Porciún-cula. Portanto, estamos diante de um “êxodo” simé-trico, convergente, destes dois santos que fazem desua vida uma “entrega” total a Deus, aquele Deus queveio ao seu encontro e que eles amaram sem reserva.A morte sempre causa medo e incute terror porquenos expropria totalmente de tudo e de todos; para osmísticos, porém, transforma-se na plenitude da grati-dão e da bem-aventurança: Clara e Francisco vivemesta experiência. Morre-se como se vive: toda a suavida é uma vida de “restituição” (cf. RegNB 17,17-18),de libertação progressiva, para que o diálogo com oAmado em nada seja impedido ou obscurecido poralguma forma de apropriação (cf. RegB 6,1-2; RegCl8,1-2), de volta sobre si mesmos. Todas as formas defechamento, de auto-suficiência impedem o relacio-namento e, portanto, a comunhão. É a vida místicaque justifica e orienta a vida ascética, com todas assuas prescrições. Os próprios votos, o silêncio damontanha como o da clausura, o trabalho apostólicoe o trabalho escondido e humilde da casa, tudo deve

30 vel. A santidade não consiste na quantidade de “boasações”, mas na qualidade do amor vivido quotidiana-mente. Mais do que um ato, a contemplação, a adora-ção é um modo de pôr-se diante de Deus na oraçãocomo na vida; é uma atitude global da vida quotidia-na, no seio da qual conseguimos perceber o primadode Deus. A beleza consiste exatamente em deixar-seolhar por Deus: «Deus, se tu me olhas, torno-me bela»(Gabriela Mistral, OFS).

A beleza de nossa vocação nasce desta harmonio-sa construção espiritual, na qual tudo encontra seulugar, porque tudo se refere e se liga à relação espon-sal com o Senhor: tempo, espaço, trabalho, repouso,silêncio, palavra... A contemplação é precisamente aharmonia que deve ser construída diariamente, emprimeiro lugar dentro de nós mesmos, onde nos espe-ra Aquele que nos habita. Santo Agostinho dizia:«Noli foras ire»: não vás para fora, encontras Deus natua interioridade. Podes sair para o outro, para omundo, somente com todo o teu ser, reconciliadocontigo mesmo e acompanhado por Deus. Então,nem as tensões, que jamais faltarão, entre o “dentro”e o “fora”, entre carisma e estruturas, entre alma ecorpo, entre clausura e mundo, entre vida pessoal evida de fraternidade, perturbarão a harmonia e aserenidade profunda, porque a contemplativa sempreencontrará o caminho que conduz ao Absoluto, cami-nho de paz e não de perturbação, ansiedade ou preo-cupações.

35

por uma Presença. Quão importante é valorizar oslugares numa vida claustral contemplativa! Nasimplicidade franciscana, que forma e ajuda o rela-cionamento, existe uma estupenda beleza; na ordem,na limpeza e na decoração dos ambientes de ummosteiro, existe uma harmonia “contemplativa”. Aomesmo tempo, quem vive a comunhão torna-se cria-tivo na preparação dos lugares e dos espaços para oencontro com o Amor e com os outros.

Igualmente importante torna-se a palavra. Parauma contemplativa, o próprio silêncio se torna palavraviva, que “informa” e transforma a dinâmica dos gestosquotidianos. Quando a palavra é concebida e modela-da no silêncio, plasma o coração e transforma a vida.

Assim, o tempo no qual moramos torna-se elemen-to indispensável para construirmos uma vida harmo-niosa: graças à encarnação, vivemos já no tempo deDeus, e escrevemos nossa pequena história nestetempo “habitado”; não podemos apropriar-nos dele,mas somente vivê-lo como uma graça, percebendo aliuma Presença e restituindo-o a Quem no-lo deu. Vivereste ritmo sereno de tempo significa viver na respira-ção profunda de Deus, sem pressa ou precipitação, semlamúrias ou fugas na ação, sem “consumi-lo” avida-mente ou deixar-se consumir, levar e “estressar” porele. Viver no tempo de Deus, percebendo sua epifaniaem cada pequeno acontecimento, em cada gesto quoti-diano, pode tornar-se um verdadeiro exercício decontemplação, uma autêntica proclamação de liberta-ção diante de um mundo vítima de uma visão egocên-trica do tempo, que induz o homem à angústia ou àfuga para o vazio. Uma contemplativa testemunha queo tempo não é dinheiro, mas relacionamento!

Quanta necessidade tem o homem de hoje dagraça e da beleza de viver no tempo de Deus. Não éuma utopia, um sonho: é uma possibilidade realizá-

34 convergir para a Palavra a ser assimilada, para aunião com Deus e a caridade fraterna.

O grave risco que sempre se corre é o de absoluti-zar aquilo que é somente relativo, aquilo que deveriaexistir somente em função do essencial: perde-se,então, a beleza e a harmonia de toda a construçãoespiritual. A atividade pastoral ou caritativa pelosirmãos não pode tornar-se o fim último de uma vidaconsagrada; o silêncio, a clausura, o trabalho escon-dido no mosteiro devem ser animados e transforma-dos por uma Presença, por um diálogo interior que éa razão de tudo. Também pode acontecer que o silên-cio exterior, a observância rígida da clausura, escon-dam somente um medo, tranqüilizem uma consciên-cia que desistiu de buscar, de desejar, de amar.

Quanta tristeza e sofrimento se sente ao encontrarcomunidades bloqueadas por uma rigidez puramentelegalista, que nada tem a ver com a radicalidadeevangélica, fonte de alegria, de fantasia e de audácia.Comunidades de Irmãs de olhar triste e rosto ente-diado e resignado, porque deixaram de sonhar, decrer naquilo que lhes foi prometido.

A experiência espiritual “libertadora” de Clara eFrancisco nos convida a criar espaços “pobres” desilêncio interior durante todo o dia para deixarmo-nos transformar por aquilo que contemplamos, paradeixarmos a Deus a possibilidade de re-criar-nos cadadia. Então a Eucaristia, a Liturgia das Horas, as diver-sas formas de oração já não são “obrigações”, masmomentos desejados de um encontro, de um relacio-namento de amor. Ou antes, nós mesmos nos torna-mos “eucaristia”, “liturgia” em todas as expressões denossa vida.

31

A beleza de uma vocação

«Vós, Senhor, sejais bendito, pois me criastes» (cf.ProcC 3,20).

O olhar de Deus sobre uma criatura que se deixaamar e responde com disponibilidade é sempre umevento maravilhoso. Este grito de louvor lançado porClara, no fim de seus dias, é a síntese de sua riquezaespiritual, de sua existência aceita em todos os seusaspectos positivos e negativos: restitui-a sem lamú-rias ao Senhor. Nisto, Francisco é diferente de Clara:diante de Deus, sente-se mais indigno de louvá-lo.Clara é mais espontânea: olhando toda a sua vida emperspectiva, imediatamente a vê como uma criaçãode Deus, como uma história sagrada, uma históriabonita, positiva. “A comunhão sempre produz bele-za”. Clara está plenamente reconciliada consigomesma, com seu passado, com seus limites, e oferecetudo ao Senhor com serenidade e liberdade. Tudo oque constituiu sua existência é fruto da ternura e doamor de Deus para com ela; e ela se fez “espelho”para refletir esta beleza divina sobre quem lhe está aolado; fez-se imagem para o mundo para que todospudessem contemplar o paciente cuidado de Deuspor suas criaturas. «Ame totalmente o que se entre-gou inteiro por seu amor» (3CtIn 15), escreve a Inês,repetindo a exortação de Francisco, extasiado e quaseincrédulo diante da humildade de Deus: «Portanto,nada de vós retenhais para vós mesmos, para quetotalmente vos receba quem totalmente se vos dá!»(COrd 29).

Toda a vida de Clara torna-se um hino de louvor ede ação de graças Àquele que a criou, guiou e prote-geu. “Espelhou-se” no Amado, viu-se transformadanaquele que contemplou e agora já saboreia o gostoda eternidade. Clara não sente necessidade de pedir

32 perdão ao irmão corpo, como Francisco: ela o uniuneste canto de louvor; também o corpo que sofreucom paciência os longos anos de enfermidade é obje-to de louvor, porque objeto de amor por parte do Pai:«Vós, Senhor, sejais bendito, pois me criastes».Também a rígida pobreza observada durante toda avida tem seu peso na construção desta beleza, porquecriou um espaço interior para poder hospedar oAmado.

Michelângelo definia a beleza como purificação dosupérfluo. A vida de Clara foi proclamação de beleza:sua caminhada foi de purificação, de “cinzelamento”para fazer emergir da forma mais límpida possível aimagem de Deus que cada um de nós traz em si.Quando, pouco a pouco, a experiência religiosa setorna experiência de um “encontro”, tudo se transfor-ma, tudo se torna sacramento da beleza, sinal einstrumento de um relacionamento que envolve almae corpo: «Exortada pelo bondoso Frei Reinaldo a serpaciente no longo martírio de todas essas doenças,respondeu com voz mais solta: “Irmão querido, desdeque conheci a graça de meu Senhor Jesus Cristo pormeio de seu servo Francisco, nunca mais pena algu-ma me foi molesta, nenhuma penitência foi pesada,doença alguma foi dura”» (LegCl 44). «O que meparecia amargo, para mim mudou-se em doçura daalma e do corpo» (Test 3). Já não há necessidade dedesprezar, mas só de valorizar e amar humildemente:«Odiar a si mesmo é mais fácil do que se pensa. Graçaé esquecer-se de si. Mas se em nós tiver morrido todoo orgulho, graça das graças seria amar humildemen-te a si mesmo, como qualquer membro sofredor docorpo de Cristo» (G. Bernanos).

O que podemos fazer para que nossa vida de hojese torne bela? Valorizar os espaços: os estreitos espa-ços da clausura podem tornar-se lugares de festa enão de penitência, se forem iluminados e aquecidos 33

A beleza de uma vocação

«Vós, Senhor, sejais bendito, pois me criastes» (cf.ProcC 3,20).

O olhar de Deus sobre uma criatura que se deixaamar e responde com disponibilidade é sempre umevento maravilhoso. Este grito de louvor lançado porClara, no fim de seus dias, é a síntese de sua riquezaespiritual, de sua existência aceita em todos os seusaspectos positivos e negativos: restitui-a sem lamú-rias ao Senhor. Nisto, Francisco é diferente de Clara:diante de Deus, sente-se mais indigno de louvá-lo.Clara é mais espontânea: olhando toda a sua vida emperspectiva, imediatamente a vê como uma criaçãode Deus, como uma história sagrada, uma históriabonita, positiva. “A comunhão sempre produz bele-za”. Clara está plenamente reconciliada consigomesma, com seu passado, com seus limites, e oferecetudo ao Senhor com serenidade e liberdade. Tudo oque constituiu sua existência é fruto da ternura e doamor de Deus para com ela; e ela se fez “espelho”para refletir esta beleza divina sobre quem lhe está aolado; fez-se imagem para o mundo para que todospudessem contemplar o paciente cuidado de Deuspor suas criaturas. «Ame totalmente o que se entre-gou inteiro por seu amor» (3CtIn 15), escreve a Inês,repetindo a exortação de Francisco, extasiado e quaseincrédulo diante da humildade de Deus: «Portanto,nada de vós retenhais para vós mesmos, para quetotalmente vos receba quem totalmente se vos dá!»(COrd 29).

Toda a vida de Clara torna-se um hino de louvor ede ação de graças Àquele que a criou, guiou e prote-geu. “Espelhou-se” no Amado, viu-se transformadanaquele que contemplou e agora já saboreia o gostoda eternidade. Clara não sente necessidade de pedir

32 perdão ao irmão corpo, como Francisco: ela o uniuneste canto de louvor; também o corpo que sofreucom paciência os longos anos de enfermidade é obje-to de louvor, porque objeto de amor por parte do Pai:«Vós, Senhor, sejais bendito, pois me criastes».Também a rígida pobreza observada durante toda avida tem seu peso na construção desta beleza, porquecriou um espaço interior para poder hospedar oAmado.

Michelângelo definia a beleza como purificação dosupérfluo. A vida de Clara foi proclamação de beleza:sua caminhada foi de purificação, de “cinzelamento”para fazer emergir da forma mais límpida possível aimagem de Deus que cada um de nós traz em si.Quando, pouco a pouco, a experiência religiosa setorna experiência de um “encontro”, tudo se transfor-ma, tudo se torna sacramento da beleza, sinal einstrumento de um relacionamento que envolve almae corpo: «Exortada pelo bondoso Frei Reinaldo a serpaciente no longo martírio de todas essas doenças,respondeu com voz mais solta: “Irmão querido, desdeque conheci a graça de meu Senhor Jesus Cristo pormeio de seu servo Francisco, nunca mais pena algu-ma me foi molesta, nenhuma penitência foi pesada,doença alguma foi dura”» (LegCl 44). «O que meparecia amargo, para mim mudou-se em doçura daalma e do corpo» (Test 3). Já não há necessidade dedesprezar, mas só de valorizar e amar humildemente:«Odiar a si mesmo é mais fácil do que se pensa. Graçaé esquecer-se de si. Mas se em nós tiver morrido todoo orgulho, graça das graças seria amar humildemen-te a si mesmo, como qualquer membro sofredor docorpo de Cristo» (G. Bernanos).

O que podemos fazer para que nossa vida de hojese torne bela? Valorizar os espaços: os estreitos espa-ços da clausura podem tornar-se lugares de festa enão de penitência, se forem iluminados e aquecidos 33

por uma Presença. Quão importante é valorizar oslugares numa vida claustral contemplativa! Nasimplicidade franciscana, que forma e ajuda o rela-cionamento, existe uma estupenda beleza; na ordem,na limpeza e na decoração dos ambientes de ummosteiro, existe uma harmonia “contemplativa”. Aomesmo tempo, quem vive a comunhão torna-se cria-tivo na preparação dos lugares e dos espaços para oencontro com o Amor e com os outros.

Igualmente importante torna-se a palavra. Parauma contemplativa, o próprio silêncio se torna palavraviva, que “informa” e transforma a dinâmica dos gestosquotidianos. Quando a palavra é concebida e modela-da no silêncio, plasma o coração e transforma a vida.

Assim, o tempo no qual moramos torna-se elemen-to indispensável para construirmos uma vida harmo-niosa: graças à encarnação, vivemos já no tempo deDeus, e escrevemos nossa pequena história nestetempo “habitado”; não podemos apropriar-nos dele,mas somente vivê-lo como uma graça, percebendo aliuma Presença e restituindo-o a Quem no-lo deu. Vivereste ritmo sereno de tempo significa viver na respira-ção profunda de Deus, sem pressa ou precipitação, semlamúrias ou fugas na ação, sem “consumi-lo” avida-mente ou deixar-se consumir, levar e “estressar” porele. Viver no tempo de Deus, percebendo sua epifaniaem cada pequeno acontecimento, em cada gesto quoti-diano, pode tornar-se um verdadeiro exercício decontemplação, uma autêntica proclamação de liberta-ção diante de um mundo vítima de uma visão egocên-trica do tempo, que induz o homem à angústia ou àfuga para o vazio. Uma contemplativa testemunha queo tempo não é dinheiro, mas relacionamento!

Quanta necessidade tem o homem de hoje dagraça e da beleza de viver no tempo de Deus. Não éuma utopia, um sonho: é uma possibilidade realizá-

34 convergir para a Palavra a ser assimilada, para aunião com Deus e a caridade fraterna.

O grave risco que sempre se corre é o de absoluti-zar aquilo que é somente relativo, aquilo que deveriaexistir somente em função do essencial: perde-se,então, a beleza e a harmonia de toda a construçãoespiritual. A atividade pastoral ou caritativa pelosirmãos não pode tornar-se o fim último de uma vidaconsagrada; o silêncio, a clausura, o trabalho escon-dido no mosteiro devem ser animados e transforma-dos por uma Presença, por um diálogo interior que éa razão de tudo. Também pode acontecer que o silên-cio exterior, a observância rígida da clausura, escon-dam somente um medo, tranqüilizem uma consciên-cia que desistiu de buscar, de desejar, de amar.

Quanta tristeza e sofrimento se sente ao encontrarcomunidades bloqueadas por uma rigidez puramentelegalista, que nada tem a ver com a radicalidadeevangélica, fonte de alegria, de fantasia e de audácia.Comunidades de Irmãs de olhar triste e rosto ente-diado e resignado, porque deixaram de sonhar, decrer naquilo que lhes foi prometido.

A experiência espiritual “libertadora” de Clara eFrancisco nos convida a criar espaços “pobres” desilêncio interior durante todo o dia para deixarmo-nos transformar por aquilo que contemplamos, paradeixarmos a Deus a possibilidade de re-criar-nos cadadia. Então a Eucaristia, a Liturgia das Horas, as diver-sas formas de oração já não são “obrigações”, masmomentos desejados de um encontro, de um relacio-namento de amor. Ou antes, nós mesmos nos torna-mos “eucaristia”, “liturgia” em todas as expressões denossa vida.

31

sua espiritualidade: a boa escolta do Senhor Jesus,«nosso caminho»; o agradecimento Àquele que acriou e santificou; o Espírito que a guardou com omesmo cuidado de uma mãe. Além disso, este convi-te de pôr-se a caminho com rapidez é a traduçãoconcreta da opção de viver como «peregrinos e foras-teiros» neste mundo (cf. RegCl 8,2; RegB 6,2), queClara e Francisco fizeram desde as primeiras etapasde sua conversão. Sua vida sempre foi animada pelodesejo de recomeçar, sem medo e sem demora. Claradeve ter vivido – direta ou indiretamente – a cenaviolenta e simbólica de Francisco que, na praça deAssis, diante de seus concidadãos, do bispo e de suafamília, inicia nu sua caminhada de liberdade, entre-gando-se ao único Pai: «Foi deixado nu para seguir aspegadas de seu Senhor atado nu à cruz» (LegM 2,4).Como também, através dos Frades, Clara soube semdúvida do último desejo de Francisco, antes demorrer: ser colocado nu sobre a terra nua da Porciún-cula. Portanto, estamos diante de um “êxodo” simé-trico, convergente, destes dois santos que fazem desua vida uma “entrega” total a Deus, aquele Deus queveio ao seu encontro e que eles amaram sem reserva.A morte sempre causa medo e incute terror porquenos expropria totalmente de tudo e de todos; para osmísticos, porém, transforma-se na plenitude da grati-dão e da bem-aventurança: Clara e Francisco vivemesta experiência. Morre-se como se vive: toda a suavida é uma vida de “restituição” (cf. RegNB 17,17-18),de libertação progressiva, para que o diálogo com oAmado em nada seja impedido ou obscurecido poralguma forma de apropriação (cf. RegB 6,1-2; RegCl8,1-2), de volta sobre si mesmos. Todas as formas defechamento, de auto-suficiência impedem o relacio-namento e, portanto, a comunhão. É a vida místicaque justifica e orienta a vida ascética, com todas assuas prescrições. Os próprios votos, o silêncio damontanha como o da clausura, o trabalho apostólicoe o trabalho escondido e humilde da casa, tudo deve

30 vel. A santidade não consiste na quantidade de “boasações”, mas na qualidade do amor vivido quotidiana-mente. Mais do que um ato, a contemplação, a adora-ção é um modo de pôr-se diante de Deus na oraçãocomo na vida; é uma atitude global da vida quotidia-na, no seio da qual conseguimos perceber o primadode Deus. A beleza consiste exatamente em deixar-seolhar por Deus: «Deus, se tu me olhas, torno-me bela»(Gabriela Mistral, OFS).

A beleza de nossa vocação nasce desta harmonio-sa construção espiritual, na qual tudo encontra seulugar, porque tudo se refere e se liga à relação espon-sal com o Senhor: tempo, espaço, trabalho, repouso,silêncio, palavra... A contemplação é precisamente aharmonia que deve ser construída diariamente, emprimeiro lugar dentro de nós mesmos, onde nos espe-ra Aquele que nos habita. Santo Agostinho dizia:«Noli foras ire»: não vás para fora, encontras Deus natua interioridade. Podes sair para o outro, para omundo, somente com todo o teu ser, reconciliadocontigo mesmo e acompanhado por Deus. Então,nem as tensões, que jamais faltarão, entre o “dentro”e o “fora”, entre carisma e estruturas, entre alma ecorpo, entre clausura e mundo, entre vida pessoal evida de fraternidade, perturbarão a harmonia e aserenidade profunda, porque a contemplativa sempreencontrará o caminho que conduz ao Absoluto, cami-nho de paz e não de perturbação, ansiedade ou preo-cupações.

35

Para a reflexão

1. O jovem rico do Evangelho «foi embora triste,porque possuía muitos bens» (Mt 19,22). Sabe-mos “degustar” a beleza da simplicidade fran-ciscano-clariana como fruto da purificação dosupérfluo?

2. E Deus estava «numa brisa suave e amena» (1Rs19,12). Como conseguimos guardar, viver,habitar o silêncio contemplativo? Na oração,como no relacionamento fraterno, sabemos“revestir” nossas palavras de calma profunda eserena, para que sejam vivas e vivificantes?

3. «Salve, ó palácio do Senhor!Salve, ó tabernáculo do Senhor!Salve, ó morada do Senhor!Salve, ó manto do Senhor!Salve, ó serva do Senhor!Salve, ó Mãe do Senhor» (SaudVM 4-5)Também nós somos «palácio, tabernáculo,morada, manto, servas, mães». Como vivemosesta realidade?Como conseguimos harmonizar as estruturasdiárias (horário, lugares, tempos...) e fazê-lasconvergir para a “paixão contemplativa” quenos habita?

4. O silêncio, externo e interno, guarda e estimulanossa vida interior. Como harmonizamos estesvalores com “o externo” (telefone, imprensa,internet, TV, locutório...)? Conseguimos usarestes instrumentos sem prejudicar nossacontemplação pessoal e comunitária?

36 «Somente na mortese conhecem as pessoas»(Eclo 11,28)

«A testemunha também disse que, estando apredita senhora e santa madre perto da morte,uma noite, antes do sábado, a bem-aventuradamadre começou a falar dizendo assim: “Vai segu-ra em paz, pois terás boa escolta; pois aquele quete criou, antes te santificou; e depois que te criou,colocou em ti o Espírito Santo e sempre te guar-dou como a mãe guarda o seu filhinho a quemama”. E acrescentou: “Vós, Senhor, sois bendito,pois me criastes”» (ProcC 3,20; cf. LegCl 46).

Partindo das palavras que Clara disse silenciosa-mente à sua alma, transmitidas pelas testemunhas deseu processo de canonização, torna-se possível reen-contrar a verdadeira personalidade de Clara, suaprofunda espiritualidade, quase uma síntese de suacaminhada espiritual. «Vai» sem medo, diz a simesma; vai como naquela noite em que forçaste aporta dos mortos da casa paterna; vai e não te preo-cupes com nada; se o Papa ainda não quis aprovar tuaRegra, vai com serenidade, não importa; vai com agrande liberdade que mantiveste com alegria e ener-gia no “Privilegium paupertatis”, na experiência deum abandono confiante no Senhor, que recompensasempre com o cêntuplo. Vai, «sem perder de vista oponto de partida... em rápida corrida, com passoligeiro e pé seguro, de modo que teus passos nemrecolham a poeira, confiante e alegre avança comcuidado pelo caminho da bem-aventurança... nãoconsintas em nada que queira afastar-te desse propó-sito» (2CtIn 11-14).

Das últimas palavras de Clara antes de sua morte,reemerge mais uma vez a característica trinitária de 29

«Siga o conselhodo Ministro geral»

«Não consinta em nada que queira afastá-ladesse propósito, que seja tropeço no caminho...para ir com mais segurança pelo caminho dosmandamentos do Senhor, siga o conselho denosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministrogeral. Prefira-o aos conselhos dos outros e tenha-o como o mais precioso dom» (2CtIn 14-16).

37

IV

Hospedes e peregrinos

O encontro de Deus com o homem emJesus de Nazaré aparece-nos como umêxodo: o Verbo deixa o seio do Pai para virao mundo; e, após sua morte e ressurreição,deixa o mundo para retornar ao Pai.

Somos testemunhas e protagonistasdesta peregrinação para a casa do Paiiniciada por Jesus; mediante o dom doEspírito, o Ressuscitado inseriu-nos nestadinâmica. Vivemos o desafio de sermos“peregrinos e forasteiros” exatamentequando, libertando-nos de toda a escravi-dão de apropriação, estamos prontos a resti-tuir tudo a Deus, não considerando a vidaum bem de consumo, mas um dom quedeve ser restituído: «Atribuamos ao SenhorDeus altíssimo todos os bens; reconheça-mos que todos os bens lhe pertencem;demos-lhe graças por tudo, pois d’Eleprocedem todos os bens» (RegNB 17,17).

Se não for radicalmente expropriada, apessoa consagrada perde a dimensão profé-tica que é o próprio coração da vida consa-grada. 27

III

irmãs poderia devolver força e entusiasmo à nossavida e, sobretudo, reavivar o desejo de busca e deadesão ao Senhor, que só uma profunda espirituali-dade bíblica pode oferecer. Acolher, conceber, guar-dar, gerar a Palavra, a exemplo da Virgem Maria, sãoelementos indispensáveis para uma vida consagradavivida em profundidade e autenticidade.

Para a reflexão

1. Em 1991, preparando o oitavo centenário donascimento de Santa Clara (1993), dirigindo-seàs enclausuradas franciscanas, os Ministrosgerais escreviam: «Nenhuma tutela paternalistada parte dos frades, mas um serviço recíprocoem minoridade e verdadeira fraternidade queenriquece uns e outras... Por que não intensifi-car o relacionamento informativo e tambémformativo da parte das irmãs para os irmãos,como fazia o próprio Francisco desde o iníciode sua vocação evangélica?» (Clara de Assis,mulher nova, 51). Que caminho fizemos nestesúltimos anos?

2. É a Palavra, e particularmente o Evangelho, ocritério de discernimento e de resposta aosdesafios, às situações, às mudanças da vidacomunitária quotidiana?

3. Como conseguimos harmonizar a tensão valo-res-estruturas? E que meios usamos, pessoal-mente e em Fraternidade, para avaliar a cami-nhada?

26 Nesta parte de nossa reflexão, gostaria de medeter em alguns pontos que querem ser ocasião debusca e de diálogo no relacionamento entre as nossasduas Ordens e com a Família franciscana. Particular-mente, penso aprofundar dois temas: 1) a colabora-ção entre os diversos Mosteiros e a Federação; 2) aformação e o particular relacionamento desejado porClara e Francisco entre a primeira e a segundaOrdem. Trata-se de perspectivas que serão desenvol-vidas e retomadas segundo as orientações da Igreja eem continuação a objetivos já alcançados. Esperoque possa ser também o início de uma reflexão quepoderia abrir novas formas de colaboração para obem de todos. Conhecemos as iniciativas positiva-mente já iniciadas um pouco por toda a parte: porexemplo, os programas de formação para abadessas,formadoras, jovens professas; os noviciados comunsnas Federações. Tudo isso estimulou o crescimentovocacional nas dimensões humanas, cristãs e caris-máticas. É claro que tudo isso deve continuar. Semdúvida, poderemos acrescentar a formação dosFrades da primeira Ordem e, sobretudo, dos Assis-tentes das Federações, para aprofundar o conheci-mento da experiência espiritual de Clara e das Claris-sas. Neste campo não se fez muito; no entanto, éuma caminhada indispensável para poder dialogarcom as Irmãs contemplativas sem complexos desuperioridade ou inferioridade e assim evitar qual-quer expressão de paternalismo, em vista de um rela-cionamento e de uma complementaridade autentica-mente evangélicos.

Autonomia e relacionamentosna vida de um mosteiro

Num passado recente, sobretudo depois da cele-bração do centenário de nascimento de Santa Clara(1993), notamos um crescimento de especializados 39

estudos dos escritos clarianos e das fontes francisca-nas, que levaram a um conhecimento mais objetivoda figura de Clara e da espiritualidade das Damaspobres. Estamos iniciando, podemos crescer maiscom a contribuição e a ajuda recíproca, solicitando acontribuição das próprias Irmãs.

Hoje, já não nos aproximamos de Clara como seela fosse uma simples “cópia” de Francisco, mas comouma personalidade rica em si mesma, em constanterelacionamento com Francisco, na reciprocidade ecomplementaridade carismática. Francisco foi a pala-vra evangélica viva que a inspirou e acompanhoudurante toda a sua vida; mas Clara conserva suaoriginalidade, não é redutível a Francisco. Este rela-cionamento de “identificação-diferença” garante aidentidade inspiradora do carisma.

Segundo Clara, depois da Palavra de Deus, apalavra de Francisco e de quem lhe sucedeu nogoverno da Ordem deve ser anteposta a qualqueroutra. Sabemos com que força esta idéia é expres-sa na segunda carta a Inês de Praga e na Regra, esabemos a quem alude quando fala de «qualqueroutro»; sabemos também que Elias não era certa-mente a cópia de Francisco! No entanto, as duasOrdens não devem ser separadas, mesmo a custode uma “greve de fome” por parte das Damianitas(cf. LegCl 37).

As visitas que, nestes anos, tive a graça de fazer àsvárias Federações e o relacionamento mantido com osdiversos mosteiros em diferentes partes do mundoconfirmaram minha convicção de que existe um rela-cionamento muito forte entre as duas Ordens; umcomum e convicto sentido de pertença à mesmaFamília sustenta, com evidência, esta complementari-dade. Existe um grande desejo de crescermos juntosnesta recíproca ajuda. Onde faltar esta consciência, o

40 Deixam-se atrair (ad trahere), plasmar pela Palavrapara se conformarem a suas exigências, sem se deixardistrair (dis-trahere) por nada; finalmente tornam-seeles próprios palavra viva e profética para o mundoem que vivem.

Um dos sinais mais evidentes destes anos pós-conciliares é certamente a redescoberta da centrali-dade da Palavra de Deus para uma experiência espi-ritual que queira chamar-se de cristã. A Igreja exorta-nos continuamente a entrar nesta riqueza e nosconvida a formar-nos e a renovar-nos nesta fonte deágua viva. «O primado da santidade e da oração nãoé concebível senão a partir de uma renovada escutada Palavra de Deus» (João Paulo II, Novo MillennioIneunte, 39). Os fiéis leigos, sobretudo os movimentosjovens, as novas comunidades religiosas nascidas nosúltimos anos, puseram como estrutura básica de suavida espiritual a escuta e o confronto com a Palavrade Deus. Para nós deveria ser uma volta às nossasorigens: “nutrido” com esta Palavra, o coração tornar-se-ia uma «fornalha ardente» como o de Frei Junípe-ro, e nossas palavras readquiririam uma força “incen-diária”. A Palavra de Deus provoca sempre uma rees-truturação espiritual pessoal: obriga-nos a revernossos hábitos, nossos esquemas; cria uma dinâmicade busca e de adesão que muda nosso estilo de vidano Espírito, como aconteceu com Francisco e Clara.Talvez por isso, com freqüência, em nossos ambientesé possível notar uma certa resistência e, assim, conti-nuamos na rotina, sepultura de todo o entusiasmo.Tememos que Deus exija demais, tudo! Tememosperder certas estruturas “de segurança” tambémquando são empecilho à nossa caminhada contem-plativa. Amamos mais a conservação que a contem-plação! Continuamos a confiar nos meios mais tradi-cionais, mais imediatos, sem nos perguntarmos setais meios têm necessidade de um novo espírito. Esteé um campo em que a ajuda recíproca entre irmãos e 25

compromisso primário de ser “projeto de Deus”. Creioque seja urgente, hoje, renovar e continuar a colabo-ração entre Clara e Francisco para evitar qualquerforma de «insânia», de “esquizofrenia” que destrói aprópria vida consagrada.

Dou graças ao Senhor por todas as vezes que,exatamente ao lado de um mosteiro, desde fradejovem pude fazer a experiência da “cura”, recolocan-do em ordem harmoniosa os valores evangélicos deminha vocação e missão, graças à ajuda das IrmãsClarissas. Muitas vezes pedi hospitalidade em seusmosteiros para dar novo tom espiritual à minha vida.Obrigado a todas vós, Irmãs Clarissas, por esta função“terapêutica”, tão importante para a caminhada voca-cional de uma pessoa consagrada.

Complementaridade construídasobre a Palavra de Deus

«Por meio de devotos pregadores, [Clara] cuida-va de alimentar as filhas com a Palavra de Deuse não ficava com a parte pior» (LegCl 37).

Francisco jamais foi um «ouvinte surdo da Palavra»(2Cel 22); por sua vez, «Clara gostava muito de ouvira Palavra de Deus» (ProcC 10, 8), vive-a, “espelha-se”nela, deixa-se transformar por ela e a reflete sobre asIrmãs e sobre o mundo, consciente de que esta é amissão própria das Damas pobres (cf. TestCl 21).

Francisco e Clara são criadores de uma espirituali-dade construída a partir da escuta e da imediataobediência à Palavra. Desarmados, deixam-sesurpreender por esta Palavra; deixam-se “desestabili-zar” para iniciar caminhos sempre novos, sem saber,como Abraão, para onde levarão (cf. Hb 11,8).

24 risco às vezes é grave: ou os irmãos da primeiraOrdem perdem a dimensão contemplativa ou desapa-rece o carisma e a espiritualidade nas Irmãs enclau-suradas.

Nos últimos anos, fizemos uma boa caminhada,ainda que haja muita estrada a percorrer. Embora asIrmãs Clarissas não tenham laços jurídicos definidoscom a primeira Ordem, como acontece com outrasgrandes famílias espirituais (dominicanas, carmeli-tas, por exemplo), espiritual e carismaticamente,porém, vivemos a mesma aventura evangélica naminoridade e corremos grande risco se abandonar-mos a complementaridade profunda que nos unesem nada tirar da autonomia de cada mosteiro. Ajusta autonomia, porém, não pode ser entendidacomo pretensão de fazer uma caminhada “isolada”,totalmente independente e quase “auto-suficiente”.Nem basta a presença de um franciscano para oserviço pastoral-sacramental para que esteja garan-tida a espiritualidade franciscano-clariana. No fimde sua vida, Francisco promete ter «uma solicitudeespecial» (cf. RegCl 6,4; 2Cel 204) pelas IrmãsClarissas: é algo muito amplo. Clara, por sua vez,confirma: «Recomendo e confio minhas Irmãs,presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem-aven-turado pai Francisco e a toda a Ordem, para que nosajudem a crescer sempre mais no serviço de Deus e,principalmente, a observar melhor a santa pobreza»(TestCl 50-51). Pode também acontecer que ummosteiro se sinta “bem” porque se tornou ponto dereferência de algum movimento carismáticocontemporâneo e do qual, talvez, tenha recebidonovas vocações; isso pode fomentar um melhorclima interno do mosteiro, mas a identidade caris-mática pode correr o risco de “dissolver-se” ou de sersubstituída por outras espiritualidades que Francis-co e Clara não reconheceriam como próprias (cf.LegPer 114; 3CtIn 16). 41

Num futuro próximo, ao menos em algumasnações, seremos obrigados até a uma reestruturaçãoe a uma diminuição dos mosteiros e também deoutras formas de presença franciscana e clariana.Portanto, nestes momentos particularmente difíceis,é indispensável a ajuda entre mosteiros e entre aprimeira e a segunda Ordem; uma fraternidade sere-namente vivida entre nós pode contribuir para supe-rar tensões destrutivas ou sentimentos de culpa injus-tificados por um fechamento visto como um fracasso.A Igreja nos encoraja e nos diz que «a verdadeiraderrota da vida consagrada não está no declínionumérico [também de mosteiros], mas no desfaleci-mento da adesão espiritual ao Senhor e à própriavocação e missão» (Vita consecrata, 63). Os trêscampos fundamentais para a avaliação da caminhadade fraternidade de um mosteiro são os seguintes: aadesão ao Senhor, a fidelidade à própria vocação e acoerência com a própria missão. Para isso somosainda pouco formados; também a experiência dasFederações está ainda no início. A sobrevivência atodo o custo, sem a seriedade de um discernimentovocacional, é uma traição à própria missão espiritual.São outros os critérios a seguir: cada mosteiro devepoder fomentar um crescimento vocacional sério, enem todos os mosteiros estão em condições de fazê-lo; antes, alguns não podem receber novas vocações.Outras vezes, quem tem vocações e meios econômi-cos, pensa num tipo de vida ainda mais independen-te, confunde a autonomia com a auto-suficiência,com a auto-administração e a autodecisão, sentindo-se quase justificado a desinteressar-se pela Federaçãoe a não cuidar da caminhada da Ordem. Estas atitu-des são claramente contra o espírito de fraternidadeque deveria ser o coração de nossa vocação.

42 Papa, pois ela queria salvar a complementaridade atodo o custo (cf. LegCl 37). Viver este tipo de relacio-namento é sempre um desafio, exige um equilíbrioseguro, uma sabedoria humana e espiritual, umaformação sólida de uma e de outra parte; mas nempor isso podemos renunciar a ela: é vontade evidentede Clara e Francisco.

Entre os testemunhos do processo de canonizaçãode Clara lemos que «tendo ficado doente de insânia,um certo frade da Ordem dos Frades Menores, que sechamava Frei Estêvão, São Francisco mandou-o aomosteiro de São Damião, para que Santa Clara fizes-se sobre ele o sinal da cruz. Quando o fez, o fradedormiu um pouco no lugar onde a santa madre costu-mava rezar; depois, quando acordou, comeu umpouco e foi embora curado» (ProcC 2, 15). É um fatonarrado também por outras fontes (cf. BulC 14; ProcC3, 12; LegCl 32) e revela que a colaboração entre osdois santos e entre as duas Ordens foi muito impor-tante: com confiança, Francisco envia a Clara osFrades com dificuldades especiais, pois talvez só elapodia curá-los; o próprio Francisco fizera a experiên-cia nos momentos difíceis de sua existência. Estaexigência espiritual “relativiza” todas as estruturasordinárias, como o sono reparador de Frei Estevão nooratório de Clara. Também nós, hoje, somos vítimasde tensões, do “stress” e da depressão que ameaçamnossa “saúde” espiritual. Talvez, uma das tarefas dasIrmãs de Santa Clara, hoje, poderia ser a de ajudar-nos a reencontrar a harmonia dos valores francisca-no-clarianos, a gratuidade e a beleza de nossa vida,sem pretensões de eficiência. É fácil sermos instru-mentalizados pelas necessidades imediatas e perder-mos a visão de conjunto, a capacidade de discerniraquilo que é urgente daquilo que é necessário; preo-cupamo-nos com os muitos projetos que programa-mos ou que nos são propostos pelo mundo consumis-ta em que vivemos e corremos o risco de esquecer o 23

vida de Francisco. Da clausura de São Damião, ela esuas Irmãs sustentam e animam os seguidores daforma de vida franciscana.

Nestes anos, a partir da renovação promovida peloConcílio Vaticano II, recuperamos muito da riquezadeste relacionamento, que penso ser indispensávelpara a nossa identidade carismática.

O ponto focal deste relacionamento são as “pala-vras santas” ou o “falar de Deus”, segundo a estupen-da expressão dos Fioretti (cf. Fior 15). Trata-se deuma comunicação “extática”, isto é, que nos leva parafora de nós mesmos, com o centro para o “alto”:daqui nasce a complementaridade e a reciprocidadeque dão plenitude humana e divina à nossa vocação.A experiência desta comunhão obriga-nos a ir alémde qualquer “compensação afetiva”: não nos aproxi-mamos por “estratégias pastoral-vocacionais ou pelanecessidade de “apoiar-nos uns às outras, de “sentir-nos bem” uns ao lado das outras. Aproximamo-nospara comunicar-nos «alguma coisa nova a respeito doSenhor», para acelerar o passo em direção a Ele. Éuma busca em comum, trêmula e sincera, daqueleque está na origem de nossa aventura. Nossas pala-vras, então, não serão apenas desejo de falarmos reci-procamente, mas sobretudo efusão de “centelhasardentes”, que brotam de um coração feito «fornalha»pelo amor de Deus. É Deus que fala em nós e atravésde nós para fazer de todos os nossos diálogos umateofania, uma manifestação sempre mais clara de suapresença e vontade.

O ideal é muito alto e sua conquista nem semprecerta! Na Regra, Francisco pôs seus Frades de sobrea-viso quanto a possíveis desvios que, talvez, já estives-sem se manifestando (cf. RegB 11,1-2). Talvez umainterpretação demasiadamente dura desta passagemtivesse provocado a reação de Clara em relação ao

22 A formação

[Clara] tinha cravado na Luz o dardo ardentíssi-mo do desejo interior e, transcendendo a esferadas realidades terrestres, abria mais amplamenteo seio de sua alma para as chuvas da graça»(LegCl 19).

A pessoa humana é um ser que traz em seu cora-ção um mistério muito maior que ela mesma: tudo seresume em perceber, em «cravar o dardo», comoClara, no mistério-dom para encontrar Aquele com oqual se pode viver em plenitude. O «cravar o dardo»na Luz que habita uma criatura finita se transformaprogressivamente num desejo de Deus e num esforçototal da pessoa para fazer-lhe espaço, para afastarqualquer empecilho à união, para viver diariamenteeste relacionamento em profundidade.

Trata-se de formar e formar-se na obediência aoEspírito. Segundo Francisco e Clara, [os frades e asirmãs] «devem desejar acima de tudo ter o espírito doSenhor e seu santo modo de operar» (RegB 10,9;RegCl 10,9). É o Espírito Santo que nos recorda aspalavras de Jesus e nos faz conhecer a paternidadeuniversal de Deus, que torna possível nosso vivercomo irmãos e irmãs. «O Espírito do Senhor, quehabita em seus fiéis» (Adm 1,13), nos ajuda a discer-nir dia após dia as exigências de nossa vocação e nosdá a coragem de viver numa obediência radical e recí-proca. Não se trata, pois, de educar para um obséquioformal em relação aos ministros ou às abadessas, masde submissão de todos ao Espírito, de uma atitudeprofunda de responsabilidade. Lidos à luz do Espírito,todas as relações humanas e todos os acontecimentosda vida tornam-se para nós uma ocasião de “obediên-cia”, de discernimento da vontade de Deus e deacolhida de seu plano para nós. 43

É preciso formar para uma radical expropriação.Segundo Clara e Francisco, observar o santo Evange-lho significa viver «em obediência, sem nada depróprio e em castidade» (RegB 1,1; RegCl 1,2). Éimportante notar que não se usa o termo “pobreza”,mas a expressão “sine proprio”. Não se trata somentede ter um relacionamento equilibrado com as coisas,mas estamos diante de uma atitude que deve carac-terizar em profundidade a identidade das Irmãspobres e dos Frades menores: viver “sine proprio”significa renunciar a atribuir direitos às pessoas, aoscargos que nos são confiados, ao próprio Deus e à suaPalavra. Tudo recebemos de Deus e tudo somoschamados a restituir, se não quisermos nos tornar“ladrões” dos bens que o Senhor gratuitamente distri-buiu. Esta atitude de expropriação radical, de convic-to e sem arrependimento dom de si, exige uma cons-tante conversão e deve ser quotidianamente renova-da, a partir da contemplação extasiada daquilo queDeus mesmo fez por nós: «Vede, irmãos, que humil-dade a de Deus! ...nada de vós retenhais para vósmesmos!» (COrd 28-29; cf. 4CtIn 15.19-23). É ogrande esforço da formação! E não é um caminhosem obstáculos: o mais grave perigo é o da auto-sufi-ciência, a segurança de estar na estrada certa, o medode confrontar-se com os outros, a preguiça da busca.Continua-se de acordo com alguns esquemas dadoscomo certos uma vez por todas, fiéis a certas estrutu-ras recebidas em herança e consideradas imutáveispelos séculos. São João da Cruz escreve: «Bem-vindassejam todas as mudanças, Senhor Deus, para que nosestabilizemos em Vós». Qualquer mudança podeaparecer como uma ameaça que gera medo, ou comoum êxodo, uma esperança para um futuro a ser cria-do com o Espírito. Com freqüência, temos medo deaventurar-nos por novos caminhos, sobretudo se exis-tiu alguma experiência fracassada, como se tambémestas experiências não pudessem tornar-se epifaniade Deus e constituir momentos de crescimento. Ou

44 Complementaridade teocêntrica

«Pois, quando o santo, logo depois de sua conver-são, sem ter ainda irmãos ou companheiros, esta-va construindo a igreja de São Damião, em quefoi visitado plenamente pela graça divina, e foiimpelido a abandonar totalmente o mundo,numa grande alegria e iluminação do EspíritoSanto, profetizou a nosso respeito aquilo que oSenhor veio a cumprir mais tarde» (TestCl 9-11).

Este é um quadro profundamente significativoque, exatamente no fim da vida de Clara, exprimemuito bem o laço espiritual que une na contemplaçãode Deus os irmãos menores e as “damas pobres”. Acaminhada evangélica de Francisco e Clara, suas duashistórias, são interdependentes. Se, por um lado,Clara se define a “plantinha” de Francisco, este,segundo a antiga tradição, nos momentos mais difí-ceis de sua vida, recorre a ela e se deixa guiar, confia-lhe dúvidas e preocupações, às vezes envia-lhe seusFrades (cf. ProcC 2,15). Francisco está na origem davocação de Clara e de suas Irmãs; Clara pede a assis-tência dos Frades, protestando até diante de GregórioIX, quando este quereria proibir a todos os Frades quese dirigissem aos mosteiros das Clarissas sem licençasua (Cf. LegCl 37).

Com satisfação, Clara nota que a contemplaçãodas Damas pobres é parte originária do carisma,quando Francisco «não tinha frades nem companhei-ros» (TestCl 9); e depois da morte de Francisco, osFrades descobrem em Clara a guarda do projeto evan-gélico originário, pois «um só e mesmo espírito tinhatirado deste mundo tanto os frades quanto aquelassenhoras» (2Cel 204). Francisco constitui o momentoinspiracional da comum vocação; Clara, na sua fide-lidade, garante a continuação do primitivo projeto de 21

então esquecemos de perguntar-nos periodicamentese nossas estruturas estimulam a contemplação:afinal, algumas estruturas podem ser mantidas comoestão, mas outras devem ser transformadas com regu-laridade, enquanto outras ainda devem ser criadaspara responder com autenticidade à nossa vocação. Atensão entre estruturas e valores acompanhar-nos-áaté o túmulo, mas devemos saber administrá-la eorientá-la com sabedoria e paciência. Quem não vê,por exemplo, a necessidade de formar-se continua-mente para um exercício fraterno da autoridade? «Aestrutura da segunda Ordem, como a da primeira,não é piramidal e não recria o grupo beneditinoreunido em torno do abade ou da abadessa como aum alter Christus, mas é evangélica. A atenção detodas – abadessa e irmãs – converge para o Evange-lho e a ele obedecem».

Creio que todos podemos subscrever esta reflexãode uma clarissa; mas, como se vive, em muitosmosteiros, o exercício da autoridade? Que atenção édada à formação para a responsabilidade por partedas abadessas? Uma verdadeira caminhada formativatorna-se impossível sem um verdadeiro diálogofraterno dentro dos mosteiros, entre os mosteiros enas Federações. Ao contrário, não são raros os casosde mosteiros que pensam não ter necessidade daajuda dos outros.

Neste campo, a colaboração entre nossas duasOrdens depende das diversas áreas geográficas: hámuita, muitíssima diversidade! Praticamente tudo édeixado à boa vontade e ao espírito empreendedor –mais ou menos cauteloso – das abadessas, dos Minis-tros provinciais, das Presidentes das Federações,mesmo que nas Constituições não faltem algumaschamadas e recomendações gerais, convidando àcolaboração. Sem prejudicar a autonomia de cadamosteiro, e evitando também o perigo da dependên- 45

cia dos Frades, é urgente definir melhor este relacio-namento tão importante, desejado por Clara e Fran-cisco, para garantir e aprofundar nossa identidadefranciscano-clariana. Somos chamados a viver nossa“unicidade” dentro de um relacionamento sincero, nareciprocidade e complementaridade em vista doReino.

Para a reflexão

1. “Somos uma Fraternidade contemplativa comuma missão particular num mundo em mudan-ça”. Como viver uma criativa fidelidade aonosso carisma de Ordens complementares?

2. Garantir a autenticidade de nossa espiritualida-de franciscano-clariana é fruto de um compro-misso seriamente assumido na confiança recí-proca por irmãos e irmãs. Como concretizá-lono país ou na região em que vivemos? Comopodemos obedecer hoje ao pedido do Crucifixode São Damião: “Vai e reconstrói a minhacasa”?

3. Como ajudar os mosteiros em dificuldades e osdemasiadamente “auto-suficientes” a colocar-se mais na escuta do Espírito, verdadeiroformador, e dos sinais dos tempos?

4. Para ser autêntica, uma formação deverámudar nosso estilo de vida, enraizando-se nabusca teórica e prática da face de Deus. O quefizemos nos últimos anos e que plano de forma-ção temos para o futuro? Para que nos forma-mos?

46

Reciprocidadee complementaridade

«Mas quando o Senhor agiu mais de perto ejá parecia às portas, quis ser assistida porsacerdotes e frades espirituais, para recita-rem a paixão do Senhor e suas santas pala-vras. Aparecendo com eles Frei Junípero,egrégio menestrel do Senhor, que costumavasoltar ditos ardentes de Deus, cheia de reno-vada alegria, ela perguntou se tinha algonovo sobre o Senhor. Ele abriu a boca, deixousair centelhas ardentes da fornalha do fervo-roso coração, e a virgem de Deus ficou muitoconsolada com suas parábolas» (LegCl 45).

19

II

Para a reflexão

1. Que valores ou aspirações evangélicas funda-mentais estão na base de nossa unidade inte-rior e das opções da Fraternidade? Estamosdispostos a comprometer-nos verdadeiramen-te? Para mudar o quê? Como? Com quem?

2. Existe a consciência de que a primeira terra deanúncio evangélico sois vós mesmas, chamadasa testemunhar uma à outra a Boa Nova naconcretude dos gestos diários?

3. A fecundidade divina de nossa existência brilhatambém na impotência humana, como a velhi-ce e a enfermidade, que nos tornam o sinalmais transparente da esperança que nos habita.Como nos preparamos para esta etapa “missio-nária” tão importante e decisiva?

4. Irmãs, no silêncio contemplativo, vós soisconosco uma Fraternidade-em-missão. Soisanúncio de uma Palavra viva em cada época devossa vida, na paixão pelo Evangelho que vosconfigura a Cristo. Como podemos traduzir eanunciar concretamente esta experiência juntocom toda a Família franciscana?

18

Os desafios

«Subindo ao muro da igreja, [Francisco]disse em voz alta e em francês para unspobres que moravam ali perto: “Venham meajudar na obra do mosteiro de São Damião,porque nele ainda haverão de morar umassenhoras, cuja vida famosa e santo compor-tamento vão glorificar nosso Pai celestial emtoda a sua santa Igreja”» (TestCl 12-14).

47

V

A própria velhice nem sempre é só um limite, poisé também testemunho de síntese espiritual e relacio-nal, harmonia dos valores serenamente vividos.Também esta etapa da vida deve ser evangelizada eacompanhada, para que se torne manifestação deDeus, como qualquer pobreza.

O fechamento de um mosteiro acolhido na sereni-dade (não somos eternos!): também ele é testemu-nho de uma fé madura e de uma esperança viva.

17

jovens e idosas encontradas em diversas visitas, quedeixam transparecer, como palavra viva, o absolutode Deus que as habita; de Irmãs enfermas que, puri-ficadas pelo sofrimento como Clara, ícones vivos,semelhantes ao Crucifixo de São Damião, exprimemuma humanidade sofredora, mas já transfigurada egloriosa: tornaram-se espera vibrante do Esposo quevem, enquanto seu corpo, puro invólucro transparen-te, deixa entrever a presença libertadora de Deus.Que missão extraordinária é esta!

Recordo o exemplo de uma clarissa do século XV,Catarina de Bolonha. No fim da vida, sofrendo muito,numa visão recebeu a ordem de pôr-se a tocar umaviola. Catarina não tocava desde que, adolescente,havia deixado a corte de Bolonha para entrar nomosteiro; mas diante da ordem divina pediu que lhetrouxessem uma viola e compôs ela mesma umpequeno hino, com um texto tirado do profeta Isaías:“Gloria eius in te videbitur”. Assim, mostrava àsIrmãs que a glória do Onipotente se manifestatambém na fraqueza de uma mulher sofredora. Aindahoje conservada no mosteiro Corpus Domini de Bolo-nha, a viola nos recorda que a vida de cada um denós, em sua fraqueza, pode tornar-se um instrumen-to para cantar a grandeza de Deus.

Queridas Irmãs, quem sabe ainda podeis ajudar-nos a reencontrar o sentido profundo de nossa missão,o valor “relativo” de todas as nossas atividades, saben-do que uma pessoa pode realizar-se somente se desco-brir sua verdadeira face, “espelhando-se” em Jesus deNazaré, no seu Evangelho, na contemplação comoprioridade. Na busca de nossa identidade, comfreqüência somos mais propensos a olhar para opassado – e corremos o risco de fechar-nos sempremais – do que para o futuro, para o qual somos proje-tados. O afã de sobreviver pode destruir a esperança,a criatividade e a abertura ao Espírito do Senhor.

16 Esta positiva projeção de Francisco em relação aofuturo das Damianitas, estimula também a nós a alar-gar o olhar para além dos horizontes do presente afim de perscrutar possibilidades evangélicas aindanão expressas e construir dinamicamente umadimensão contemplativa autêntica sempre maisprofunda e evangelizadora para o amanhã. É umaexigência fortemente percebida por nosso mundo,orientado para uma cultura da exterioridade e daaparência, como conseqüência da globalização. Aspessoas contemplativas podem oferecer a alternativade uma cultura da interioridade e da experiênciaespiritual profunda de uma solidão habitada, que nãoé isolamento. Sabemos bem que uma dimensãocontemplativa autêntica, enraizada no relacionamen-to trinitário, tem uma evidente função crítica diantede uma pseudo-religiosidade, que se assemelha maisa um consumismo religioso, a um cristianismo do“faça o que quiser”, do que a uma verdadeira buscade Deus. O homem moderno descobre-se sempremais “religioso” e sempre menos crente!

Falando de desafios, das tarefas sérias ou urgentesdiante das quais nos coloca o Espírito, a lista é semprerelativa e, sobretudo, subjetiva. Já nos referimos atemas de vital importância, como a Palavra de Deus,a formação, o exercício evangélico da autoridade.Agora, nesta última parte, desejo destacar três aspec-tos, que considero desafios fundamentais e que, decerta forma, resumem tudo.

A formação do coraçãoe a criatividade

O Cristo ressuscitado repreende a «dureza decoração» dos discípulos (cf. Mc 16,14; Lc 24,25), istoé, uma atitude de voltar-se para si mesmos, prisio-neiros dos próprios esquemas, que julgamos bem 49

fundamentados, mas incapazes de abrir-nos à novi-dade de Deus.

A maior tentação de quem procura a Deus ésempre a de fechá-lo na própria expectativa; enquan-to Deus quer superar nossas expectativas, alargar oshorizontes de nossa existência. Deus nos surpreendeporque confia em nós e nos pede sempre nova dispo-nibilidade. Nós somos levados a voltar para o que“sempre se fez”; o Espírito, porém, impele-nos ainventar o que “devemos fazer hoje”, nas novas situa-ções que a existência nos propõe. A resistência àconversão nasce principalmente do desejo de conser-var a tradição em si mesma, de um equilíbrio nivela-do por baixo, que, com freqüência, expressa apegoaos próprios esquemas e rejeição à renovação, maisque apreço pelo que temos recebido. A fidelidadeevangélica é sempre fonte de audácia e criatividade,uma criatividade que não significa rejeição ao passa-do ou à riqueza recebida dos nossos santos; não signi-fica desestruturar completamente nossa existência: éimpossível viver sem estruturas e sem inserir-se numahistória. Criatividade significa pôr «vinho novo emodres novos» (Mc 2,22), adaptar as estruturas à vidanova que se manifesta em nós dia após dia, torná-lasmais expressivas e cônsonas com os sinais do tempoem que vivemos. É uma missão confiada a cada gera-ção, a cada época, para tornar viva e vivificante amensagem evangélica. Hoje vivemos numa culturaque estimula uma identidade centrada sobre o conhe-cimento intelectual ou sobre expressões psicológicase emotivas, mais que sobre a formação do coração,que a Bíblia define como o centro da vida do homemnovo, «o centro de integração, de abertura e de supe-ração de todo o ser humano». O coração endurecido– em grego “sklerokardia” – é semelhante à esclerosedas capacidades e possibilidades de amar, de abrir-seà confiança em Deus; a novidade do Espírito, porém,surpreende-nos e impede qualquer forma de obstina-

50 seguido ao longo dos séculos, fascinados por seuexemplo. É uma liberdade reencontrada exatamenteno tempo da “grande prova”, quando já não sabe oque fazer: então decide restituir a Deus o projetoevangélico elaborado durante toda a vida e que agoradescobre não ser seu; restituir os Frades que não sãoseus, sua vida que não é sua...

O que dizer de Clara, dos anos de sua enfermida-de, “inúteis” segundo uma mentalidade do resultado,mas muito ricos e significativos diante de Deus! Preci-samente quando Francisco, muito rapidamente, veioa faltar aos Frades e às Irmãs, a presença de Clara emboa saúde, com todas as suas energias, em nossomodo de ver teria podido “fazer muito” para a Famí-lia franciscana das origens; teria podido fundarmuitos outros Mosteiros, animar muitas outrasIrmãs... No entanto, o Senhor “fez muito” através desua pobreza, de sua enfermidade, de sua inatividade!Naqueles primeiríssimos anos da vida da Ordem, irãooutras Irmãs, mandadas por ela e por Francisco.

Mas quanto nos é difícil assimilar estes valores,quando, ao nosso redor, o “mundo” fala outra lingua-gem e nos estimula a aceitar suas seduções. Bemsabemos que nossa eficácia está ligada à fecundidadedivina; que nossos serviços, estruturas, atividadesapostólicas devem estar em função de nosso sermemória viva do Evangelho de Jesus. Este é o primei-ro serviço que devemos prestar à Igreja e ao mundo,antes mesmo de qualquer outra atividade: é a quali-dade de nossa vida que dá significado à quantidadede nossos esforços, que devem relacionar-se a estadimensão existencial na qual todos nos percebemos“missionários, enviados”, quer permaneçamos nummosteiro, quer percorramos as estradas do mundo;quer rezemos, quer preguemos; quer tenhamossaúde, quer estejamos doentes. Conservarei sempreem meu coração muitos rostos radiantes de Irmãs 15

rias”, a da itinerância e a da clausura, que conduzemà idêntica meta, a da cruz. O amante quer ficar pertodo Amado, não só no caminho da pobreza, mastambém no do sofrimento (cf. 2CtIn 19), paracompletar na própria carne o que falta aos sofrimen-tos de Cristo (cf. Cl 1,24). Não basta ouvir e servir, épreciso também partilhar o destino de Jesus e tomarsua cruz (cf. Lc 9,23-24).

A lógica evangélica da não-eficiência, da não-espe-tacularidade, dos resultados não-vistosos é sempreperturbadora: assim foi para os discípulos de Jesus eserá para todos os fiéis, neste peregrinar terreno. O“mundo” não pode aceitar esta lógica: nosso mundofundamenta-se exatamente sobre a eficiência que, apartir desta base, cria uma série de “psicoses” doresultado, do “fazer”, da aparência, do garantir parasi o presente e o futuro, do sucesso em todos os níveis:trabalho, afetos, negócios, fama... Infelizmente, estaspsicoses não nos são estranhas: conta quem é capazde produzir mais. Enquanto o “milagre” de Clara eFrancisco, fiéis ao Evangelho, é o de um grande aban-dono naquele que continua a nutrir uma incrívelconfiança a nosso respeito. Eles responderam deforma apaixonada à paixão que Deus tem pelohomem; viveram com audácia o desafio da pobrezaabsoluta, que conduz necessariamente à cruz, àimpotência, como caminho de vida.

Todas as atividades missionárias estarão, pois,sujeitas à lógica da semente que deve morrer parafrutificar.

A eficácia “missionária” de Francisco atinge ocume na última etapa de sua vida, a da assemelhaçãoa Cristo no Alverne: depõe sua experiência espiritualno seio da Igreja, ao lado da cruz, restitui esta aven-tura evangélica ao Pai e a oferece como um “dom”missionário a muitos irmãos e irmãs que o teriam

14 da volta para nós mesmos, inclinada a administrarexclusivamente o que sempre se fez, por medo deperder o talento recebido: contentamo-nos em escon-dê-lo e conservá-lo (Mt 25,18). A resistência àsmudanças pode significar resistência à conversão, adeixar-se guiar pelo Espírito para caminhos inéditos,que descobriremos enquanto andamos (cf. Hb 11,8).Tudo isso nos força a rever nossa vida diária, nossoestilo de vida, nossos esquemas e, até, nosso horário,que, embora demasiadamente fragmentário, podedificultar uma dimensão contemplativa que necessitade espaços mais longos de diálogo pessoal e de silên-cio com o Senhor, para melhor valorizar a oraçãocomunitária. A preparação séria e criativa de espaçoslitúrgicos, comunitários e recreativos fomenta umaformação permanente para o relacionamento comDeus e com os outros. Sobretudo a autenticidade dosgestos, de uma palavra, harmoniosamente amadure-cidos no silêncio e no tempo necessário, ajuda a cons-truir uma personalidade verdadeira, livre, serena eacolhedora. Essa criatividade espiritual poderá conti-nuar também quando o corpo estiver fraco ou doen-te: o exemplo de Clara, também neste ponto, devenos ensinar a manter-nos vivos no amor e a jamaisnos resignarmos, a não refugiar-nos no hábito que,inevitavelmente, adormece e paralisa qualquer espí-rito de iniciativa.

Uma espiritualidade bíblica,litúrgica e carismática

Creio que não seja necessário alongar-nos sobre osmuitos documentos da Igreja e da Ordem que – hámais de 40 anos – falam da importância de uma sóli-da formação bíblica e litúrgica, sobretudo para aspessoas consagradas e, de modo particular, para ascontemplativas. Mas que eco tiveram na VIDA denossas comunidades? Um relacionamento prolonga- 51

do com a Palavra de Deus não pode deixar de trans-formar certas “práticas de piedade” que vêm de sécu-los passados e estão ainda presentes em alguns(raros) mosteiros. Uma liturgia viva, bem preparadae participada não é contra o espírito da clausura;antes, deveria “formar” também o sacerdote cele-brante, como pude experimentar em alguns mostei-ros. Talvez nos tenhamos limitado a “sábias” confe-rências sobre a Bíblia ou sobre a Liturgia, pensando,assim, ter obedecido à Igreja. Mas uma verdade quenão aquece o coração e não muda a vida não é verda-deiro conhecimento, não é verdadeira formação.

Depois, não devemos esquecer que toda a liturgia,como a própria palavra diz, é um serviço a todo opovo de Deus; por isso, é necessário refletir sobre aacolhida litúrgica aos fiéis leigos que desejam unir-seà oração de nossas comunidades. Todos os mosteirosde Clarissas do mundo recebem pedidos de oração,que lhes são dirigidos por homens e mulheres deperto e de longe; talvez, a partir dos que estão próxi-mos à Família franciscana, seja sobretudo necessárioajudar os fiéis leigos a sentir mais profundamente aoração litúrgica das comunidades de Clarissas e deFrades como uma realidade que lhes diz respeito enão é estranha à sua vocação.

Este desafio, esta transformação na qual muitosmosteiros já estão empenhados será a verdadeirarevolução copernicana que garantirá à contemplaçãosua frutuosa identidade. «Nossas comunidadesdevem tornar-se autênticas escolas de oração» (JoãoPaulo II, Novo Millennio Ineunte 33).

Freqüentemente damos a impressão de considerarnossa vocação um dado adquirido uma vez por todas,esquecendo que o carisma não é somente uma heran-ça recebida, mas é sobretudo uma responsabilidadede busca diante de Deus e do nosso mundo. Como

52 “martírio” (cf. ProcC 6,6); nos últimos 30 anos, atra-vés do “martírio” de sua enfermidade, viverá umaincrível multiplicidade de relações de amizade: rece-be visitas do Papa, de Cardeais, de Frades, de pessoashumildes e de pessoas importantes... É o fogo doamor que arde em seu “claustro” e que inflama todoo tipo de relacionamento (cf. Fior 15), muito mais doque qualquer limitação imposta pela clausura. Claraé uma verdadeira “mística”: arde numa paixão únicaque a configura a Cristo. Tudo o mais torna-se “relati-vo” e convergente para este “centro”.

Quanto desperdício de energias e de “boa vonta-de” se nota em alguns mosteiros, quando nem todasas forças são dirigidas para a busca da unidade, parao Essencial. O “gênio feminino” resplende na suariqueza exatamente quando intui o essencial e conse-gue dar o justo valor ao secundário.

A caminho da Cruz

«Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; sechorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrercom ele na cruz da tribulação vai ter com elemansão celeste nos esplendores dos santos»(2CtIn 21).

«Quando eu for levantado da terra, atrairei todosa mim» (Jo 12,32): do alto da cruz, Jesus tornou-seoferta de salvação para todos os homens. SeguindoFrancisco em suas andanças missionárias, chegamosàs chagas do Alverne; seguindo Clara na sua clausu-ra, chegamos ao leito do sofrimento, da enfermidade,que inicia no tempo das chagas do Poverello e seprolonga por quase metade de sua vida. Constatamosmais uma vez uma surpreendente complementarida-de de carisma: duas estradas igualmente “missioná- 13

Esta é, pois, nossa vocação, nossa «ciência», nossadiaconia: tornar-nos sempre mais ouvintes e fiéisrealizadores da Palavra evangélica, contemplando eseguindo Jesus pobre até o fim. Desta identidadeclara e concreta originam-se as diferentes e comple-mentares formas de evangelização, as diversasmissões franciscano-clarianas na Igreja de Deus emvista de seu Reino.

Os “Frades menores” espalham-se pelo mundo, quese torna seu «claustro» (cf. SCom 63), o lugar das rela-ções fraternas e contemplativas (cf. RegNB 16). «Poispara isto Ele [o Senhor] vos mandou pelo mundouniverso, para dardes testemunho de sua voz, porvossas palavras e vossas obras, e fazerdes saber a todosque ninguém é todo-poderoso senão Ele (COrd 9).

As “Irmãs pobres”, a partir do «claustro» de suainterioridade, seguindo o exemplo de Maria, (cf.3CtIn 19) tornam-se acolhimento, morada e ícone doDeus de amor; e este testemunho se “reflete” e seprojeta no mundo inteiro. A clausura se abre aouniverso e se torna lugar e espaço de relacionamento,como o estreito espaço do jardim de São Damião setransformou para Francisco, padecente e quase cego,em visão e canto de toda a criação. Não vamos para aclausura para refugiar-nos ou para fugir das dificul-dades do mundo, mas sobretudo para viver o acolhi-mento, para participar mais profundamente da vidados homens nas suas aspirações mais secretas edesconhecidas, para esforçar-nos por construir umahistória humana segundo o projeto de Deus que só ossantos e os profetas sabem intuir.

Tomando uma dimensão universal, a clausura deClara é vivida e transformada por uma dinâmica espi-ritual que não tem limites. Antes da doença, é forte-mente tentada a partir até para Marrocos, onde osprimeiros Frades haviam confessado sua fé com o

12 conseguimos adaptar ou criar novas formas deoração, para fazer que se tornem «exemplo e espelho»(TestCl 19), evangelização e missão em nossoambiente?

O sentido de pertença

«Rogo-vos, senhoras minhas, e vos aconselho aviver sempre nessa santíssima vida e pobreza.Guardai-vos muito para que, de maneira algu-ma, vos afasteis dela pelo ensinamento de quemquer que seja» (RegCl 6,8-9).

A quem pertencemos? Talvez a resposta (decora-da) poderia ser fácil. Mas perguntemo-nos novamen-te: para onde convergem nossos desejos, nossas preo-cupações, o que nos provoca sofrimento, em queinvestimos concretamente energias e tempo? Nesteponto, a resposta é um pouco mais difícil! Penso quemuitas vezes não conseguimos concentrar-nos noessencial e nos perdemos no que é secundário, quepode ser a conservação de certas estruturas, a sobre-vivência do mosteiro, a procura de vocações, a preçode fazê-las vir (improvisadas) de outros continentes,o “ciúme” territorial.

A quem pertencemos? Ao Espírito de Deus, quenos “inventa” cada dia com a nossa colaboração, ou aalgum outro? «Em cada etapa da vida, o Senhor nospede uma nova resposta» (Paulo VI). E nesta dinâmi-ca de fazer espaço a Deus em nós, devemos dar prio-ridade ao Evangelho, ao carisma franciscano-claria-no, à Família franciscana, mais do que ao mosteiro.Nossa missão tem horizontes amplos! Não é umsonho, mas a verdadeira dimensão de nossa vocação,que exige kénosis e contínua conversão. Exatamentenestes espaços de vida percebe-se mais claramente a 53

relacionamento fraterno e para o relacionamentocom Deus. Não existem atenuantes: nem a idade,nem o caráter, nem as tradições podem dispensardesse compromisso.

55

necessidade de trabalharmos juntos, convertermo-nos juntos, caminharmos juntos: não nos tornamossantos cada um por si; seremos santos se nos ajudar-mos todos juntos.

Formação para o relacionamento

«Amem sempre as suas almas e as de todas assuas irmãs, e sejam sempre solícitas na observân-cia do que prometeram a Deus (BenCl 14-15).

Hoje, ao falar de formação, é necessário pôr emparticular evidência a capacidade de a pessoa serelacionar: relacionar-se consigo mesma, com aprópria história, com a própria afetividade, com aspróprias derrotas, com os próprios dons que devemser restituídos ao Senhor. Este é o fundamento dasrelações com os outros e com Deus. Sobretudo nossadimensão afetiva deve ser acolhida sem complexos;somente assim é possível chegar a uma serenidadefundamental e gerar uma incrível riqueza de vidaque estimula o desenvolvimento harmonioso deuma personalidade. Por vezes vestimos o hábito reli-gioso e pensamos que o resto virá por si. Quantosdramas se lêem em alguns rostos escondidos sob umvéu! Dramas não resolvidos, que se tornam infinitasocasiões de tensão, a ponto de destruir a paz de umacasa por meses e anos. Ao contrário, que “paraíso” aatmosfera de uma Fraternidade onde se aprendeu aconhecer-se, a dialogar consigo mesmo, com Deus,com os outros. «Nisto conhecerão todos que soismeus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo13,35).

Temos esta responsabilidade como cristãos ecomo consagrados; devemos, pois, investir todos osnossos talentos para fomentar uma formação para o

54 Viver e testemunhar o Evangelho

«Vejo que são a humildade, a força da fé e osbraços da pobreza que a levaram a abraçar otesouro incomparável escondido no campo domundo e dos corações humanos, com o qual secompra aquele por quem tudo foi feito do nada.Eu a considero, num bom uso das palavras doApóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculodos membros vacilantes de seu corpo inefável»(3CtIn 7-8).

A regra de vida comum a toda a Família francisca-na consiste em «viver o santo Evangelho de nossoSenhor Jesus Cristo» (cf. RegB 1,1; RegCl 1,2; RegOFS4), desejando acima de tudo «ter o espírito do Senhore seu santo modo de operar» (RegB 10,8; RegCl 10,9),tendo como prioridade absoluta a oração e a contem-plação (cf. RegB 5,2; RegCl 7,2). Também o percurso éúnico e bem definido: a humildade e a pobreza doSenhor nosso Jesus Cristo e de sua Mãe pobrezinha.Clara diz explicitamente: «O Filho de Deus fez-senosso caminho» (TestCl 5). A existência pobre deJesus de Nazaré, de Belém ao Calvário, como epifaniade Deus, tornou-se uma experiência espiritual totali-zante e revolucionária na vida de Francisco e Clara:esta paixão configura-os totalmente a Cristo e nãoaceitarão comentários acomodatícios ou reduções atéos últimos anos de sua vida. A quem lhe propõeoutros modos de servir o Senhor, outras Regras jáexperimentadas e melhor organizadas, Franciscoresponde: «O Senhor me disse que queria fazer demim um novo louco no mundo, e não quer conduzir-nos por outro caminho senão por esta sabedoria»(LegPer 114). E ao Papa, que queria aliviar sua pobre-za, Clara, indo muito além do voto, responde: «Paisanto, por preço algum quero ser dispensada deseguir Cristo para sempre» (LegCl 14). 11

relacionamento fraterno e para o relacionamentocom Deus. Não existem atenuantes: nem a idade,nem o caráter, nem as tradições podem dispensardesse compromisso.

55

Para a reflexão

1. Só uma fé “inteligente”, a fides quaerens intel-lectum, iluminada, pode dar um fundamentoadequado à opção de viver segundo o Evange-lho. Que esforço fazemos e que meios utiliza-mos para aprofundar nossa fé? Somos capazesde utilizar da melhor forma os dons e os caris-mas de cada uma, e, neste caso, também suapreparação intelectual, para o bem de toda aFraternidade?

2. «A lectio divina faz tirar do texto bíblico a pala-vra viva que interpela, orienta e plasma a exis-tência» (João Paulo II, NMI 39). Como nosdeixamos “plasmar pela Liturgia das Horas,pelas celebrações litúrgicas, pela leitura oranteda Palavra de Deus?

3. Quanto “investimos” para estimular umaformação bíblica, litúrgica e carismática, queenvolva a vida na sua integralidade?

4. Que espaço damos à formação humana, à valo-rização de nossa afetividade na vida quotidianaem Fraternidade?

A missão comumde nossas Fraternidades

Todo o relacionamento pessoal com oSenhor, todos os carismas religiosos englo-bam dois elementos inseparáveis entre si,vocação e missão: «segui-me» e «ide», teste-munhai entre os povos o que vistes. OSenhor nos chama para fazer-nos seusdiscípulos e testemunhas no mundo inteiro.Assim, inserimo-nos na história comomemória viva do Evangelho de Jesus Cris-to, sempre prontos a inventar as formasmais apropriadas de testemunhar e anun-ciar o Reino de Deus já presente em nossomeio. Como irmãs e irmãos de Clara e Fran-cisco, temos uma mensagem bem definidaa anunciar, ainda que com modalidadesdiferentes; nossas Regras indicam clara-mente os elementos fundamentais quecaracterizam esta caminhada.

9

I

«algo novo a respeito do Senhor» que Clara pedia aJunípero e que nossos tempos e nossas geraçõesainda esperam de nós com urgência.

Nas visitas aos Irmãos, feitas em diversas partes domundo, sempre tive a graça de encontrar-vos, ouvir-vos, dialogar e rezar convosco. Sensibilizou-me aprofunda amizade que vos une a nós e a toda a Famí-lia franciscana; como também a ardente sede de Deusque anima vossas comunidades e que gostaríeis departilhar conosco. E quanto todos nós, irmãos e irmãsitinerantes pelo mundo, teríamos a aprender de vossaexperiência mística tão radical e tão absoluta quesomente quem foi vencido pelo Amor podecompreender ou intuir.

Frei Reinaldo, Frei Leão, Frei Ângelo, Frei Junípe-ro estavam lá, próximos a Clara nos últimos dias desua vida para, em profunda comunhão, ouvir, parti-lhar e reavivar a apaixonada busca de Deus. Este étambém o desejo desta carta: continuar no tempo aamizade que, desde então, sustenta os Frades meno-res e as Irmãs pobres na peregrinação terrena.

Estas reflexões são dirigidas diretamente às IrmãsClarissas por ocasião do 750º aniversário da morte deSanta Clara: todos os textos referem-se a ela; todavia,querem ser também uma mensagem fraterna endere-çada a todas as Irmãs contemplativas franciscanasespalhadas pelo mundo inteiro. Ao escrever, penseitambém nelas; as sugestões e os convites, talvez,possam ser úteis também a elas.

Por fim, espero que estas linhas sejam lidas pelosirmãos e pelas irmãs de toda a Família franciscana,pois a complementaridade e a reciprocidade sãocompromissos comuns a todos nós.

8

Conclusão

«E o nosso bem-aventurado pai Francisco nãoprofetizou isso só a nosso respeito, mastambém sobre as outras que haveriam de virpara a santa vocação a que Deus noschamou» (TestCl 17).

57

Em consonância e obediência a estas palavras,como irmão vosso, ouso dirigir-me a todas vós, queconstituís uma realidade preciosa entre aqueles quevivem a herança espiritual de Francisco e Clara. Emnome também dos Irmãos e das Irmãs que se inspi-ram em seu projeto evangélico, gostaria primeira-mente de expressar uma profunda gratidão pelariqueza carismática espiritual que representais emnossa Família. Obrigado por vossa profunda comu-nhão no Espirito que nos sustenta em nossas viagensapostólicas pelas estradas do mundo; por vosso silen-cioso papel de “sentinelas da manhã” que, na obscu-ridade dos acontecimentos humanos, vigiam e pers-crutam os sinais de vida que já desabrocham sobre aterra. Vós nos ajudais a interpretar e a alegrar-nos pornossa vocação comum. No início de seu Testamento,Clara prorrompe neste agradecimento: «Entre outrosbenefícios que temos recebido e ainda recebemosdiariamente da generosidade do Pai de toda miseri-córdia e pelos quais mais temos de agradecer aoglorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que,quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida»(TestCl 2-3). Portanto, juntos devemos conhecersempre melhor nossa vocação, amá-la e responder-lhe com fidelidade e generosidade.

No próximo ano, celebraremos o 750º aniversáriode morte de nossa mãe e irmã Clara: é uma ocasiãopropícia, uma graça particular que deveria fazer-nosrecuperar o amor “esponsal” que animou toda a suavida. Enquanto vos escrevo, penso e medito exata-mente aqueles gestos e palavras, tão densos de signi-ficado, que caracterizaram seus últimos dias, antes deseu êxodo final. O pobre e tosco leito de São Damiãotornou-se lugar de relacionamento e de encontrosrepletos de profunda humanidade e espiritualidade.

Também uma carta pode tornar-se lugar de comu-nhão, de diálogo fraterno, para descobrir aquele 7

Queridas Irmãs, como conclusão desta mensagemfraterna e cordial, em nome de todos os irmãos daprimeira Ordem e de toda a Família franciscana, dese-jo mais uma vez expressar um sincero reconhecimen-to por vossa presença ao nosso lado, como memória eestímulo para exprimir com sempre maior coerênciao que somos, o que prometemos, o que nos foi prome-tido e o que nos espera. Num mundo tão doente e,todavia, tão sedento de uma autêntica experiênciaespiritual, vós representais a “ponta de diamante” docarisma franciscano para as nossas gerações.

«Queremos ver Jesus», pediam alguns gregos aFelipe (Jo 12,21). Muitos homens e mulheres nosfazem hoje o mesmo pedido. Ajudai-nos, a exemplo deClara, a “espelhar”, a projetar para o mundo o quecontemplamos, a mostrar o ícone vivo construído emnosso interior pelas mãos de Deus e que se exprimenuma unidade harmoniosa vivida no quotidiano. «Aúnica coisa que podemos salvar nestes tempos … é umpequeno pedaço de Ti em nós mesmos, meu Deus. Etalvez também possamos contribuir para desenterrar-te dos corações devastados e abrir-te o caminho» (EttyHillesum). Sim, é muito importante salvar e libertar aimagem de Deus presente em nós, para poder oferecê-la aos outros, liberta de nós mesmos, de um euegocêntrico e invasor que se perde em mil preocupa-ções afanosas, esquecendo Sua presença. Devemos“proteger Deus de nós mesmos” num mundo tão divi-dido, fragmentado e perdido, que necessita do teste-munho oferecido por nossas relações fraternas como“teofania”, manifestação amorosa da presença deDeus; é preciso anunciar novamente com força a todosque ainda é possível querer-nos bem e reencontrarnossa unidade em Cristo morto e ressuscitado.

Fazendo eco às palavras do Ressuscitado às mulhe-res, espontaneamente gostaria de repetir-vos: «Ide,anunciai a meus irmãos que se dirijam à Galiléia e lá 59

Siglas e abbreviações

Escritos de São Francisco2CtFi Carta a todos os fiéis (2ª redação)Adm Admoestações de São FranciscoFVCl Forma de vida (a Santa Clara)COrd Carta a toda a OrdemRegB Regra buladaRegNB Regra não buladaRegOFS Regra da Ordem Franciscana SecularSaudVM Saudação à VirgemTest Testamento de São Francisco

Escritos de Santa Clara2CtIn Segunda carta a Inês de Praga3CtIn Terceira carta a Inês de Praga4CtIn Quarta carta a Inês de PragaBenCl Bênção de Santa ClaraRegCl Regra de Santa ClaraTestCl Testamento de Santa Clara

Fontes biográficas e outros documentos1Cel Vida primeira, Tomás de Celano2Cel Vida segunda, Tomás de CelanoBulC Bula de canonização de Santa ClaraFior Fioretti de São FranciscoLegM Legenda maior, São BoaventuraLegPer Legenda peruginaLegCl Legenda de Santa ClaraProcC Processo de canonização de ClaraScom Sacrum Commercium 61

me verão» (Mt 28,10). Ide! Vamos com coragem esem medo: o Senhor nos espera. Dizei com decisão:«Vi o Senhor!» (Jo 20,18), mostrai-o a nós com vossavida apaixonada pelo Senhor, testemunhai-o a nóscom vosso “exagero evangélico” enraizado naconfiança nele, com a superabundância de vida queexplode de vossa kénosis, do vosso silêncio que mudae “perfuma” todo o mundo: «E a casa ficou todaperfumada» (Jo 12,3). Nossa vida hoje necessitareencontrar a audácia o “exagero”, a gratuidade quenasce da alegria por haver encontrado o “tesouro”que subverte positivamente as perspectivas de nossaexistência; temos necessidade da “esperança que nãoengana» (Rm 5,5).

O Privilegium paupertatis que Clara tanto defen-deu é a alegria de seguir e partilhar a vida de Jesus, agarantia de fidelidade ao nosso carisma; recordai-nosque um irmão ou uma irmã que não são pobres elivres evangelicamente serão condenados a ser esté-reis e tristes (cf. Mc 10,22), apesar da grandiosidadedas obras e da riqueza das tradições.

«Por isso, dobro os joelhos diante do Pai de nossoSenhor Jesus Cristo para que, pela intercessão dosméritos de sua Mãe, a gloriosa Virgem Santa Maria,de nosso bem-aventurado pai Francisco e de todos ossantos, o próprio Senhor, que deu o bom começo, dêo crescimento e também a perseverança até o fim.Amém!» (TestCl 77-78).

O Senhor esteja sempre convosco,e Ele faça que vós estejais sempre com Ele.

Roma, 11 de agosto de 2002Festa de Santa Clara

Frei Giacomo Bini, ofmVosso irmão e Ministro

60

Introdução

Em nome do Senhor!A vós, Irmãs pobres de Santa Clara,

a vós todas Contemplativas que vos inspiraisna espiritualidade franciscano-clariana,

a todos os Irmãos e Irmãsque amam Clara e Francisco,

como Ministro e servo de todos, desejo«paz do céu e sincera caridade no Senhor» (2CtFi, 1)

«Desde que, por inspiração divina, vos fizestesfilhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celes-te, e desposastes o Espírito Santo, optando poruma vida de acordo com a perfeição do santoEvangelho, eu quero e prometo, por mim e pormeus frades, ter por vós o mesmo cuidado dili-gente e uma solicitude especial, como por eles»(RegCl 6,3-4; cf. FVCl).

5

Siglas e abbreviações

Escritos de São Francisco2CtFi Carta a todos os fiéis (2ª redação)Adm Admoestações de São FranciscoFVCl Forma de vida (a Santa Clara)COrd Carta a toda a OrdemRegB Regra buladaRegNB Regra não buladaRegOFS Regra da Ordem Franciscana SecularSaudVM Saudação à VirgemTest Testamento de São Francisco

Escritos de Santa Clara2CtIn Segunda carta a Inês de Praga3CtIn Terceira carta a Inês de Praga4CtIn Quarta carta a Inês de PragaBenCl Bênção de Santa ClaraRegCl Regra de Santa ClaraTestCl Testamento de Santa Clara

Fontes biográficas e outros documentos1Cel Vida primeira, Tomás de Celano2Cel Vida segunda, Tomás de CelanoBulC Bula de canonização de Santa ClaraFior Fioretti de São FranciscoLegM Legenda maior, São BoaventuraLegPer Legenda peruginaLegCl Legenda de Santa ClaraProcC Processo de canonização de ClaraScom Sacrum Commercium 61

Vós, Senhor, sejaisbendito, pois me criastesVós, Senhor, sejaisbendito, pois me criastes

Grafica: JA per Ufficio Comunicazioni OFM - RomaImpaginazione: JA/GPO

Indice

Introdução ............................................................5I. A missão comum de nossas Fraternidades .......9

Viver e testemunhar o Evangelho ......................11A caminho da Cruz ............................................13Para a reflexão ..................................................18

II. Reciprocidade e complementaridade ............19Complementaridade teocêntrica .......................21Complementaridade construída sobre a Palavra de Deus ....................................24Para a reflexão ..................................................26

III. Hospedes e peregrinos .................................27«Somente na morte se conhecem as pessoas» ...................................29A beleza de uma vocação ..................................32Para a reflexão ..................................................36

IV. «Siga o conselho do Ministro geral» ..................37Autonomia e relacionamentos na vida de um mosteiro .....................................39A formação ........................................................43Para a reflexão ..................................................46

V. Os desafios .....................................................47A formação do coração e a criatividade ............49Uma espiritualidade bíblica,litúrgica e carismática .......................................51O sentido de pertença .......................................53Formação para o relacionamento ......................54Para a reflexão ..................................................56

Conclusão ...........................................................57Siglas e abbreviações ..........................................61Indice ..................................................................63 63

CLARA DE ASSISUM HINO DE LOUVOR

Carta do Ministro geralFrei Giacomo Bini, ofm

Roma 2002