Clínica e política

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DE SOUZA, Alice De Marchi Pereira. Clínica e Política: uma experiência limítrofe. Revista NAVCV Minas Gerais, n° 1. No prelo. Clínica e Política: uma experiência limítrofe Alice De Marchi Pereira de Souza 1 Resumo: Este artigo foi elaborado a partir da palestra “Clínica e Política no atendimento a vítimas de violência”, proferida na Capacitação Interna dos Núcleos de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Minas Gerais - NAVCV´s MG no dia quatro de maio de 2012. Problematizamos alguns atravessamentos no acompanhamento de pessoas atingidas por violência que tendem a se naturalizar, principalmente no que tange aos processos de individualização e de exercício de poder. Apresentamos algumas experimentações de práticas possíveis sempre locais, provisórias, contingenciais , entendendo clínica como indissociada de política. Propomos a tomada de caminhos de coletivização, balizados por uma escolha ético-política mais libertária inclusive para o entendimento dos direitos humanos. Palavras-chave: clínica; política; direitos humanos; coletivização. Entre conceito e prática Ao escrever sobre o imbricamento de clínica e política no acompanhamento de casos de violência, as palavras têm de fazer sentido. É dizer, como já disseram Michel Foucault e Gilles Deleuze (1979) na conversa-texto “Os Intelectuais e o Poder”: faz-se necessário que a teoria e os conceitos sirvam, que sejam ferramentas de modo a funcionar ou colocar para funcionar as nossas práticas cotidianas. É essa a aposta deste artigo, escrito a partir da fala “Clínica e Política no atendimento a vítimas de violência”, apresentada na Capacitação Interna dos Núcleos de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Minas Gerais (NAVCV´s) em maio de 2012. A possibilidade dos conceitos aqui apresentados operarem a realidade está também apoiada numa experiência minha de trabalho em uma política voltada para pessoas atingidas por violência o Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio de Janeiro (CEAV/RJ). Ali, atuei de 1 Psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense; doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; foi coordenadora do Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio de Janeiro; atualmente é colaboradora do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.

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DE SOUZA, Alice De Marchi Pereira. Clínica e Política: uma experiência limítrofe. Revista NAVCV Minas Gerais, n°

1. No prelo.

Clínica e Política: uma experiência limítrofe

Alice De Marchi Pereira de Souza1

Resumo: Este artigo foi elaborado a partir da palestra “Clínica e Política no atendimento a vítimas

de violência”, proferida na Capacitação Interna dos Núcleos de Atendimento às Vítimas de Crimes

Violentos de Minas Gerais - NAVCV´s MG – no dia quatro de maio de 2012. Problematizamos

alguns atravessamentos no acompanhamento de pessoas atingidas por violência que tendem a se

naturalizar, principalmente no que tange aos processos de individualização e de exercício de

poder. Apresentamos algumas experimentações de práticas possíveis – sempre locais, provisórias,

contingenciais –, entendendo clínica como indissociada de política. Propomos a tomada de

caminhos de coletivização, balizados por uma escolha ético-política mais libertária inclusive para

o entendimento dos direitos humanos.

Palavras-chave: clínica; política; direitos humanos; coletivização.

Entre conceito e prática

Ao escrever sobre o imbricamento de clínica e política no acompanhamento de casos de

violência, as palavras têm de fazer sentido. É dizer, como já disseram Michel Foucault e Gilles

Deleuze (1979) na conversa-texto “Os Intelectuais e o Poder”: faz-se necessário que a teoria e os

conceitos sirvam, que sejam ferramentas de modo a funcionar – ou colocar para funcionar as

nossas práticas cotidianas. É essa a aposta deste artigo, escrito a partir da fala “Clínica e Política

no atendimento a vítimas de violência”, apresentada na Capacitação Interna dos Núcleos de

Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos de Minas Gerais (NAVCV´s) em maio de 2012.

A possibilidade dos conceitos aqui apresentados operarem a realidade está também apoiada

numa experiência minha de trabalho em uma política voltada para pessoas atingidas por violência

– o Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio de Janeiro (CEAV/RJ). Ali, atuei de

1 Psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense; doutoranda em Psicologia Social na

Universidade do Estado do Rio de Janeiro; foi coordenadora do Centro de Atendimento a Vítimas de Violência do Rio

de Janeiro; atualmente é colaboradora do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.

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2009 a 2011: primeiramente como psicóloga da equipe técnica e, em seguida, como coordenadora

do projeto. Este projeto foi gerido no referido estado pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos

de Petrópolis (CDDH de Petrópolis) de 2003 a 2011, em convênio direto com a Secretaria de

Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Em meados de 2011, esta secretaria

comunicou que não mais renovaria seus convênios nem abriria novos editais para execução dos

CEAV´s nas diferentes unidades federativas do país. Em dezembro de 2011, o CEAV/RJ foi

encerrado2.

Entre experiência e problematização

Dialoguemos – desta vez através de Heliana Conde Rodrigues (2005) – com o filósofo que

pouco gostava de se deixar rotular, o “careca”3 Michel Foucault. O que o pensador chama de

“experiências transformadoras” podem tomar dois lugares diferentes: ora podem ser constituintes

do processo de escrita – “escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa de

antes” (FOUCAULT, 2010, p.290) –; ora podem ser “ponto de partida para um trabalho teórico,

ético e político” – na medida em que referem-se a desassossegos e abalos sentidos no cotidiano e

aos quais não podemos escapar (RODRIGUES, 2005, p.21). Neste caso, a experiência nos força a

pensar, impulsionando à pesquisa e à escrita.

O que trago aqui diz desse segundo sentido de experiência transformadora: é a vivência no

CEAV/RJ que me deslocou, que me desacomodou, que se fez “problema”. Problema não no

sentido de uma dificuldade, mas no sentido de uma questão, de uma pergunta, de uma

problematização. E o que é problematizar senão pensar? Esta é uma perspectiva desnaturalizadora

do que é o pensamento: concordo com Deleuze (1987), que dirá que só pensamos se formos

forçados a tanto. O pensamento, compreendido desta forma, não é um ato voluntário que um

suposto sujeito psicológico coloca em prática deliberadamente – como postulou Descartes e tantos

outros o reafirmaram – , e sim uma força que o acomete de forma a desencadear um processo de

desestabilização, de interferência inevitavelmente problematizadora de uma organização... e

2 Tendo surgido no final dos anos 1990 e início dos 2000, estes centros de apoio e atendimento a vítimas de violência

adquiriram nomes e siglas diferentes dependendo do estado e da época em que foram executados: COAV, CEAV,

CRAVI, NAVCV, etc. Também varia quem o executa, podendo ser a sociedade civil organizada (na maioria das

vezes) e/ou administrações públicas (estaduais ou municipais). No caso do CEAV/RJ, o convênio sempre foi

diretamente com a SDH/PR. Desta forma, enquanto o CEAV/RJ foi encerrado, ainda existem programas deste tipo

nos diferentes estados do Brasil, desde que não em convênio direto com a SDH/PR. 3 Permitimo-nos pegar de empréstimo esse carinhoso apelido dado ao pensador por Heliana Conde, professora doutora

no Instituto de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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conseqüentemente criadora de algo novo. O pensamento, pois, passa a ser acontecimento: algo

pensa em mim. Veremos que essa disposição ao mundo, essa abertura ao encontro e à

transformação de si muito tem a ver com o que chamamos de uma clínica política.

Analisemos, então, a experiência no CEAV e o que ela nos fez pensar.

Comecemos pelo próprio nome do projeto. Sempre incomodou a equipe o termo “vítima”.

Porque, por mais que o seja tecnicamente importante para o Direito, no sentido de marcar a

posição de quem sofreu a violência no processo judicial – e isso de fato importa muito,

principalmente nos casos em que a violência foi perpetrada por agentes do Estado – ele carrega

consigo uma concepção de sujeito fechado em si. Uma noção de indivíduo intimizado, frágil,

vulnerável (aliás, também incomoda a expressão “vulnerabilidade social” e seus decorrentes...), de

certa forma até passivo. Muitos ex-presos políticos e torturados recusam essa nomenclatura e

preferem ser chamados de sobreviventes, recusando essa expressão que despotencializa, que

diminui (COIMBRA, 2007) – e que ao mesmo tempo é um tanto perigosa, pois por vezes a

vitimização pode ser experimentada como lugar de poder, justificando as mais terríveis e

ressentidas práticas, bem como pedidos por mais punição, mais cadeia, mais repressão.

Vale um parênteses aqui: é preciso muito cuidado ao falarmos de “impunidade” e dizer que

a violência no Brasil se perpetua “por causa” dela. Hoje, o país tem cerca de 500 mil pessoas

presas; é a quarta maior população carcerária do mundo – só perdendo para Rússia, China e

Estados Unidos (KAWAGUTI, 2012)4. Entre 1995 e 2011, a taxa de encarceramento brasileira

quase triplicou (ANTUNES, 2012), ultrapassando vertiginosamente o crescimento da população

em geral, o que significaria uma população inteira atrás das grades dentro de algumas poucas

décadas, caso a equação continue assim. Ou seja: punição temos de sobra.

Fica claro, desta forma, como é também fazendo o uso da referida figura da vítima que se

criam e reiteram mais e mais práticas de restrição de liberdade – que, como sabemos, atingem

prioritariamente quem é pobre, negro e morador de favelas e periferias. Ao invés de repetir

desenfreadamente que precisamos punir mais, talvez devêssemos, isso sim, questionar uma certa

seletividade do sistema judiciário, que tende sempre a poupar agentes do Estado quando estes são

os agressores. Quanto à discussão da função da prisão na sociedade, que não é nosso foco aqui,

deixemo-la em suspenso.

4 A informação foi levantada pela organização não-governamental Centro Internacional para Estudos Prisionais

(ICPS, na sigla em inglês). Os Estados Unidos têm uma população carcerária de 2,2 milhões, a China de 1,6 milhão e

a Rússia de 740 mil pessoas.

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Voltando ao contexto do CEAV/RJ, fomos percebendo que certos tipos de práticas eram

demandadas e esperadas. Tanto na concepção de projeto quanto no que os usuários expressavam e

no que uma experiência atual de “política pública” nos coloca como dado, instituído, óbvio.

Essas práticas são perpassadas por algumas constantes, tais como:

Colher denúncias;

Atender e acompanhar casos individualmente;

Identificar quais benefícios aos quais aqueles usuários têm direito;

Encaminhar para serviços da rede estatal, tais como políticas de assistência e da saúde;

encaminhar para psicoterapia (quase sempre individual) os usuários que pedem ou

sinalizam de alguma forma uma demanda por escuta e tratamento psicológico;

Em outros ambientes e ocasiões, realizar atividades de formação e educação em Direitos

Humanos.

Perpassando tais tarefas, estão muito bem definidas as tarefas que cada “especialista” da

equipe deve desempenhar: do advogado espera-se que colha a denúncia e instaure inquérito ou

processo e acompanhá-lo; o assistente social está incumbido de identificar os benefícios a que se

tem direito e articular vaga em escolas, informações na previdência social, entre outros; supõe-se

que ao psicólogo caiba ouvir o usuário da política e encaminhá-lo para uma psicoterapia. Isso diz

respeito à multidisciplinaridade ou à interdisciplinaridade: os especialismos estão muito bem

colocados, cada qual com a sua área, sem possibilidade de um fazer interferência na intervenção

do outro. Nesta lógica de divisão do trabalho – bastante capitalística, diga-se de passagem... – há

uma notável separação entre as disciplinas.

Percebamos que intrínsecos a essas práticas também estão outros aspectos: a tutela sobre o

outro, já que o usuário chega para ser atendido, para que o outro lhe diga o que deve fazer. O

atendimento, a assistência e o assistencialismo também estão transversalizados nestas mesmas

práticas. Isto é, uma noção de cuidado de outrem, na qual o cuidador está de um lado e o indivíduo

cuidado está do outro: separação entre os peritos e as vítimas, os que sabem e os sabidos.

Não à toa estamos acostumados a esses processos de individualização. Historicamente

aprendemos, no percurso do pensamento ocidental, a naturalizar as construções de um sujeito

fechado em si, ahistórico, psicologizado, indivisível, identitário. Podemos apontar para sinais do

surgimento disso em tempos longínquos, de Platão e sua Alegoria da caverna, passando por

Descartes e, mais tarde, por Kant (MACIEL, 1999). Mas é o Iluminismo (fim do século XVIII e

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início do XIX) talvez a grande época na qual essa construção de modo-de-ser indivíduo se

consolida. É o período histórico em que o Homem é estabelecido como centro do universo e no

qual também emergem as separações entre público X privado, sujeito X realidade, interno X

externo. Também despontam as cidades e com elas o esquadrinhamento do espaço urbano, bem

como o ordenamento dos territórios e das populações. É preciso bem governar para manter uma

nação produtiva, inserida no modelo de produção e de economia da ordem mundial: ao Estado,

que já vinha se instituindo desde o século XVI, interessa agora a arte de governar – ou a

governamentalidade (FOUCAULT, 1979).

As ciências humanas nascem neste momento, não por mera coincidência. É abandonada a

forma de governar absolutista e cruamente arbitrária: o Estado passa a se sofisticar cada vez mais,

de forma que o exercício do poder não está mais localizado nele (Estado), e sim pulverizado em

diferentes práticas que convergem para essa lógica de controle, de disciplina, de docilização de

corpos, de direção de cura e eliminação de desvios (IDEM, 1995).

Portanto, em nosso presente impõe-se a questão: que ética, ou que clínica é essa que

estamos reproduzindo quando acatamos a “missão” de resolver problemas, dar respostas, curar,

apaziguar, acalmar (quem nunca ouviu que alguém precisa de um psicólogo porque está muito

“agitado”...) e dar encaminhamento aos casos de violência? Que escuta é essa que fazemos em

ONGs, em equipamentos de saúde, em consultórios, em tribunais àquilo que nos chega de forma

individualizada, familiarista, como um problema a ser resolvido? O quanto estamos trabalhando

no sentido do aperfeiçoamento do funcionamento da engrenagem de exercício de poder?

É preciso estranhar esses automatismos. É preciso colocar as demandas que recebemos em

análise. É preciso fazer parada para análise. Para tanto, é preciso se colocar a si próprio em análise

e se fazer as perguntas: o que temos feito de nós mesmos? É preciso fazer a análise de nossas

implicações, o que significa nos perguntarmos: que efeitos nossas práticas estão produzindo no

mundo5? O quanto estamos percebendo o conflito, a desordem, o caos das populações com as

quais lidamos como forma mesmo de não se assujeitar a valores, pilares, marcas que não lhes

favorecem? Que mundos e existências nossa clínica tem engendrado ou contribuído para

engendrar?

5 Para obter uma explanação mais profunda sobre o conceito de “análise de implicações”, sugiro conferir Coimbra e

Nascimento, 2008.

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Entre clínica e política

A respeito a palavra “clínica”, Eduardo Passos e Regina Benevides (2001) nos dirão que há

dois caminhos possíveis de serem tomados quanto à sua etimologia. Um deles, o mais conhecido,

é o do termo grego klinikos, que significa inclinar-se sobre o leito do paciente. Já o outro, menos

popular, é o do termo da filosofia de epicurista clinamen. Este designa o desvio que faz com que

os átomos, ao caírem no vazio devido a seu peso e velocidade, se choquem, acoplando-se na

composição das coisas. Aí reside a potência de geração de mundo. É muito mais na afirmação

desse desvio do que no debruçar-se sobre o paciente, portanto, que a clínica se faz. Já se percebe

que estamos tratando aqui de outro modo de entender a subjetividade: como um movimento

aberto, totalmente conectado ao mundo, imanente a ele, produtor e produzido pela realidade.

A partir disso, como assegurar espaços políticos de acolhimento, cuidado,

acompanhamento e criação de estratégias de enfrentamento à violência? De que formas colocar

para funcionar essa clínica que é mais marcada pelo clinamen?

Ora, esses processos dizem de uma mudança de postura ético-política. No CEAV/RJ,

começamos a nos fazer indagações que foram abrindo espaço para o engendramento de outras

práticas que descrevo a seguir. É importante pontuar que essas não são técnicas replicáveis,

modelos ideais. São apenas experimentações datadas, contingenciais e locais. Logo veremos como

essas questões e as criações se conectam umas nas outras, como num efeito dominó:

Quem sabe, ao invés de exclusivamente colher denúncias, não precisamos fabricar mais

espaços para acolher histórias?

Durar nessas histórias, durar mais num certo “não saber o que fazer”, mesmo que a

urgência de alguns casos casos nos exija respostas imediatas. Priorizar o que é urgente e imediato

em relação a o que pode – e às vezes precisa – ser vivenciado como problema. Lembro-me de uma

mulher que nos procurou porque estava em crise na relação, na iminência de se separar, e queria

ser orientada sobre seus direitos6. Havia ali questões práticas, mas também de ordem da

impossibilidade de “solucionar”. Não podemos cair no discurso da incompetência, tão tipicamente

concernente a nossa ordem econômica pautada pela necessidade de produtividade e eficiência

máximas (COIMBRA e NASCIMENTO, 2004). Há certas coisas que não se sabe fazer – e que

6 Cabe informar que O CEAV/RJ, uma vez que era um projeto dentro do CDDH de Petrópolis, atendia, em

revezamento com equipes de outros projetos, o público em geral que procurava a instituição como referência em

Direitos Humanos. Assim, acolhíamos pelo menos inicialmente quem fosse que procurasse atendimento, mesmo que

desviassem do “público alvo” focado pelo projeto.

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bom! Apenas ao falar, ao durar um pouco no problema, ficou claro que aquela questão precisava

ainda ser habitada por aquela mulher; o casal precisava experimentar esse impasse e suportá-lo

antes que ele pudesse se transformar em outra coisa. Acolher a sua história, desta forma, foi

fundamental.

Quem sabe, ao invés atender e acompanhar casos individualmente e de exclusivamente

identificar quais benefícios aos quais aqueles usuários têm direito, tomar caminhos de

coletivização?.

Isso pode significar várias coisas: atender em duplas, deixando que os saberes se misturem,

abdicando de nossos lugares seguros de especialistas. Dar visibilidade, tornar de domínio público

os casos que podem ser publicizados (após análise cuidadosa dos aspectos de risco), como

estratégia mesmo de encaminhamento e proteção, afirmando que aquela problemática não é de

ordem íntima, individual, mas que diz de uma produção social da violência e da importância

política do compartilhamento daquela experiência. Abdicar dos nossos lugares de especialistas não

só entre a equipe, mas também em relação a quem nos procura: no momento de pensar os

encaminhamentos para os casos, criar, junto com os usuários, as melhores estratégias de

enfrentamento à violência. Às vezes pode ser pela intimidação do lugar de saber-poder que

ocupamos o motivo pelo qual o usuário não conta de certas condições e certas redes que tem sobre

as quais não sabíamos. Acreditar mais nessa capacidade da pessoa atingida por violência de pensar

junto as formas de se proteger, recusando nossa tendência à tutela.

Isso também é cuidado, é potencialização do sujeito. É, mais ainda, possibilitar e incentivar

a invenção e a consolidação de um cuidado de si. Isso não significa, de modo algum, deixar o

outro isolado e sozinho, mas sim dar as condições para que se componha junto uma rede de

cuidado. Devemos também estranhar as grandes noções de “família”, “criança”, “sexualidade”

que estamos acostumados a tomar como verdades absolutas e modelos a serem seguidos. É em

nome dessas verdades inabaláveis que categorizamos de antemão como boas ou ruins certas

formas de crescer, de educar, de brincar, de ser criança, de se relacionar em família ou casal.

Entender isso tudo como processos dos quais fazem parte vários atores é em si muito mais

rigoroso e cuidadoso para com os movimentos que acompanhamos.

Nesse sentido, é importante conhecer a realidade de quem nos procura, fazendo também

um deslocamento de ir à favela ou aos bairros e sentir os cheiros, ouvir os barulhos que lá se

sentem e se compartilham.

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Ao invés de encaminhar para serviços da rede estatal, tais como políticas de assistência e

da saúde e encaminhar quase que automaticamente para psicoterapia individual, prestar

atenção a quem estamos encaminhando, fazer um encaminhamento cuidadoso.

Isto é, se perguntar se aquela terapia será para apaziguar as forças revoltosas de uma mãe

que perdeu o filho executado por um policial (o que apenas contribuiria para o melhor

funcionamento da engrenagem existente), ou se vai ser realizada uma escuta que tome essa força

indignada como algo necessário e saudável, matéria potente para um processo clínico clinamen. A

pacificação – ou opacificação – de vidas retira das mesmas um brilho vital que reside na criação

de mundos. Nesta proposta, é preciso buscar um trabalho que não tenha pretensões ortopédicas de

ajustar comportamentos e minimizar intensidades, e seja, isso sim, aposta em outros arranjos

existenciais de menos sofrimento, de criações de si e de mundos possíveis.

Essa também é uma questão colocada para nós que fazemos clínica: apostar na capacidade

de sonhar, criar outras vias de efetuação, fortalecer nossas utopias ativas. Apostar aí nos grupos:

não só em técnicas grupais, mas em movimentos sociais, eventos, coletivos que já existam ou,

ainda, criar essas situações de encontro, de compartilhamento, nas quais desestabilizações e

deslocamentos são provocados e outras posições são tomadas: de vítima a guerreiro, de humilhado

a corajoso por ter feito uma denúncia, de mãe sozinha a parceira, amiga. Isso, é claro, se o usuário

assim quiser e embarcar nesse movimento.

E, por fim, ao invés de realizar atividades de formação e educação em Direitos Humanos,

em outros ambientes e ocasiões, quem sabe colocar em análise as demandas ali mesmo,

informar e discutir a respeito, por exemplo, de nosso modelo de segurança pública no

momento mesmo do atendimento?

Assim, a formação deixa de ser a passagem de um conteúdo de um suposto professor a

alunos e não precisa ser apenas através de cursos que, quando chegam à comunidade, tendem a se

esvaziar, mobilizar pouca gente e não fazer sentido para todo mundo. A oficina de construção

polifônica do que são, afinal, direitos humanos, passa a se dar na conexão e organicidade mesmo

dos problemas que se apresentam e das formas de enfrentá-los.

Entre direitos humanos e singularidade

Estamos aqui apontando o olhar para o campo de forças que produz a violência. Afirmando

clínica e política como uma experiência limítrofe porque habita os vários limites de que falamos

Page 9: Clínica e política

até aqui: entre os domínios de saberes, entre o individual e o coletivo, entre o psicológico e o

social. Uma experiência que não mais se refere a objetos, pessoas ou respostas a serem dadas, e

sim a movimentos a serem acompanhados, processos inacabados, trajetórias de vida – e por isso a

prudência, a delicadeza e o rigor (um rigor que, já vimos, nada tem a ver com a rigidez!).

Experiência arriscada, porém necessária, se o que queremos é inventar práticas de cuidado como

resistência.

Para tanto, é necessário adotar outra concepção de direitos humanos. A Declaração

Universal de Direitos Humanos é burguesa, baseada em princípios da Revolução Francesa. É

preciso entendê-los como ética que transversaliza as nossas práticas, e não apenas como direitos,

marcos legais a serem aplicados ou assegurados (COIMBRA et al., 2008).

É preciso saber que essa ética não se traduz em uma, mas em muitas práticas possíveis.

Que ela não se limita ao CEAV, ao NAVCV e nem mesmo aos psicólogos. Que ela diz de uma

forma de ver o mundo de estar nele, de afirmar mais vida, de criação de mundos outros e não de

“outros mundos”. Para isso, precisamos poder nos sentir parte desse processo, e não tão

preocupados em acertarmos invariavelmente:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos

desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar os

acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-

tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É ao nível de cada tentativa que

se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle

(DELEUZE, 2006, p.218).

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