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A velhice mundo afora : Dinamarca por Marta Pessoa junho de 2016

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A velhice mundo afora : Dinamarca

por Marta Pessoa

junho de 2016

Este é o relato de uma aventura pessoal, muito particular. Não tem a mínima pretensão de fundamentar teorias ou levantar pontos controversos, sobre o país ou sobre a velhice. Resume uma visão bem pessoal de uma brasileira sessentona, de classe média, de origem nordestina, vivendo nos últimos 27 anos fora de lá e mais da metade deles no Rio de Janeiro. É apenas o olhar de uma pessoa entrando na velhice querendo desenhar cenários e entender as opções. Aprender sobre o envelhecer pode ser uma tarefa árida e cheia de desesperança. Procurar seus pares pode ser uma forma de nos fazer acreditar que ela é apenas uma etapa a mais da vida, sem a constante lembrança de que é a última, e cultivando uma visão de que ela oferece os mesmos riscos, tristezas, desafios e alegrias, que todas as outras fases que a vida nos proporciona. Perdi a oportunidade de adolescer e de entrar na vida adulta tendo mais consciência de mim mesma, do mundo à minha volta e dos meus contemporâneos. Agora não quero repetir este improviso com a velhice, quero aprendê-la para vivê-la de uma forma mais inteligente e menos impregnada das verdades que sempre ouvi sobre a dureza de ser velho. A leitura pode trazer algumas novidades e muitos assuntos para incontáveis conversas entre aqueles que chamo de PIS – os pré-idosos, idosos ou simpatizantes - , uma minoria que só tende a crescer.

A - Como o tema do envelhecimento me fisgou

Depois da experiência pessoal de cuidar, por mais de 20 anos, de familiares que entraram na velhice em meio ao meu completo desconhecimento sobre o assunto e consequente despreparo para apoiá-los, entender a velhice deixou de ser uma opção e passou a ser uma premência. No exercício desta atividade, a convivência diária com toda sorte de situações do cotidiano de um idoso de quem cuidamos e a quem nos dedicamos por afeto ou obrigação, passa a ser uma oportunidade de reflexão sobre o complexo tema do envelhecimento. Pensamos nas nossas dificuldades no plano individual e, inevitavelmente, começa a nascer uma solidariedade com o coletivo. Começamos a nos perguntar o que vai ser da próxima de geração de idosos e seus familiares, com tantas demandas e carências, e passamos a nos sentir responsáveis por buscar soluções para um dos mais instigantes problemas sociais do nosso tempo.

Ser responsável por um idoso nos dá a dimensão real da finitude da nossa autonomia e da necessidade de nos prepararmos para quando chegar a nossa vez. Passamos a nos sentir visionários, buscando resolver problemas que sabemos ser de uma magnitude fora do nosso alcance. E passamos a sentir a obrigação de atuar como empreendedores sociais, ainda que sem competência ou condições. Há muito por fazer e precisando ser feito de maneiras novas e desconhecidas.

Passei a pensar na velhice dos meus como uma causa de interesse público ( que delírio...) e passei a me sentir responsável por, de alguma maneira, ajudar a sociedade a se preparar para envelhecer sem a conotação de destino trágico.

Como se não bastasse toda a complexidade da empreitada, os meus idosos, completamente dependentes, moravam a dois mil quilômetros de distância de mim. Precisei montar uma verdadeira organização para dar conta das tarefas desde as mais simples como abastecer a casa de comida, comprar roupas, remédios; passando pelas menos complicadas como reformas na casa, consertos ou compra de eletrodomésticos,

pagamentos dos compromissos; até as mais delicadas como contratação de empregados e cuidadores, acompanhamento das consultas médicas, muitas conversas telefônicas para minimizar a solidão deles, várias tentativas de manter alguma espécie de vida social para eles; e por aí vai. Uma lista considerável de coisas que já seriam por si só complicadas se feitas presencialmente, imagine-se a distância. Sem querer fui me tornando uma especialista em gestão de uma organização bem peculiar: a que dá suporte ao cotidiano dos idosos. Eram tantas as novidades neste mundo do cuidado que, às vezes, achava que estava entrando numa nova modalidade de negócios, o do asilo virtual. Passei a ter duas casas, uma com filhos e suas múltiplas necessidades e outra, que parecia estar em outro planeta, com tipos de problemas completamente novos e com todo o jeito de insolúveis. Os primeiros anos foram de completa solidão numa tarefa onde poucos da minha idade - quarentona espremida entre filhas adolescentes, saúde comprometida e vida profissional conturbada - já estavam envolvidos no tema e podiam trocar alguma vivência comigo. Não havia como conversar, compartilhar dúvidas, dividir esforços e ideias. Parecia que somente eu tinha este tipo de problema para resolver. Não havia livros, programas de televisão, sites, associações, nada que me suprisse de conselhos e orientações. Ou será que o peso da nova tarefa era tal que não me deixava ver o que havia em volta? Desconfio que não, que não havia mesmo uma maneira simples de buscar e encontrar apoio. Só nestes recentes últimos anos, a velhice entrou na pauta dos meios de comunicação. Antes disto, achar a turma que estava imersa no mundo do cuidado com o idoso era bem difícil. Reunir estas informações era tão trabalhoso que o autodidatismo pareceu ser a única saída para mim.Fui, aos poucos, desenvolvendo métodos e soluções caseiras para realizar este cuidado a distância. Aprendi a montar uma rede de apoio e a me valer da tecnologia para monitorar o dia a dia dos meus idosos. Sem a internet, teria sido inviável a administração remota de uma casa onde viviam pessoas sem autonomia para cuidar de si mesmas. Errei muito mas também realizei muita coisa interessante e aprendi aos montes. No ano que passou (2015), achei que seria bom poder falar sobre a velhice que eu conheço para uma plateia mais ampla e divulgar a experiência que adquiri. Reuni amigas e fizemos um blog, o Mundo Prateado (mundoprateado.com), cujo nome homenageia as pessoas de cabelos grisalhos, aparentes ou disfarçados, que estão nesta nova fase da vida. Lá conversamos sobre a velhice desde um ponto de vista realista, sem romantismo mas com uma atitude positiva. Lá defendemos que a velhice pertence a todos nós, aos velhos e a seus filhos ou amigos. Lá pensamos a rede que deve apoiar a velhice, pensamos na vida dos velhos e em quem se interessa por querer ajudar a construir um mundo digno para os prateados. Lá experimentamos fazer coisas que auxiliem esta rede de cuidados.

Envelhecer é viver e sendo assim, demanda força, energia e inteligência. Sendo velhos ou cuidando deles é essencial falar sobre o tema e procurar nossos pares. Conversando seremos capazes de enfrentar a velhice dos nossos, ou a nossa própria, mais preparados e apoiados.

Na busca deste entendimento, sempre pairava no ar a dúvida de como será envelhecer, daqui a alguns anos, com o mundo tão mudado. As famílias já tem, em sua maioria,

novas configurações com pais separados, em novos casamentos ou não, e com filhos e enteados morando longe. Há os que optaram por não ter filhos e os que construíram famílias que expressam novas visões de vida. O mundo mudou e com ele o conceito de família, a instituição a quem sempre coube a maior parte da responsabilidade por cuidar dos seus idosos. Fica cada vez menos viável, para muitos, estar perto de filhos ou amigos que deem uma ajuda quando começar a ficar difícil se desincumbir das tarefas do dia a dia. A quem vamos poder recorrer quando precisarmos de cuidados intensivos ou não, provisórios ou permanentes?

Esta pergunta que, sem floreios, se resume a “como será a vida na velhice, daqui a alguns anos?” passou a dominar minha curiosidade e a perseguir respostas. Além das respostas, também queria saber das soluções para uma velhice bem cuidada. O tipo de cuidado que proporcionei aos meus idosos não será viável para mim ou para a grande maioria dos brasileiros. Cuidado intensivo, 24 horas por dia, durante o tempo de vida que pode nos restar quando não formos mais autônomos e, sim, completamente dependentes, é uma alternativa para poucos. Faltarão às famílias tempo e dinheiro.

Com uma visão otimista de que temos a nosso alcance tecnologia, inovação social e capacidade de mobilização, comecei a busca por este desenho de velhice com futuro.

B- O que seria uma velhice com futuro?

Não é preciso dizer que não há definição completa e consensual do que seria uma boa velhice. O contexto social e cultural influenciam no que seriam as aspirações pessoais para considerar de boa qualidade a própria vida, nesta fase. No plano do coletivo, parece ser uma boa estratégia considerar a abordagem preconizada pela Organização Mundial de Saúde: a do envelhecimento ativo. Esta abordagem inspira políticas públicas que deveriam promover condições para otimizar as oportunidades de autonomia e acesso a recursos que permitam aos indivíduos viver sua velhice com dignidade e contando com o respeito da sociedade. Num breve resumo da publicação do ILC Brasil ( http://ilcbrazil.org/wp-content/uploads/2016/02/Envelhecimento-Ativo-Um-Marco-Pol%C3%ADtico-ILC-Brasil_web.pdf ) sobre o tema, focamos nos pilares que sustentam esta idéia:

a- Saúde b- Aprendizagem ao longo da vidac- Participaçãod- Segurança e proteção

Envelhecer ativamente passa por se preparar para viver podendo cuidar da saúde, manter a capacidade de aprender como forma de inserção social pela atividade intelectual, seguir participando da vida em sociedade e ter a segurança e proteção contra o abandono, a violência e a pobreza usurpadora da dignidade. Explorar o mais possível as oportunidades para assegurar aos idosos as condições para uma vida com significado e não uma vida onde predomine a sensação de perda, de fim, de inutilidade.

No entanto, olhando a realidade à nossa volta, vemos que há vários tipos de velhice e há vários modos de envelhecer. E, ao se ir entrando e saindo da vida adulta, é bom ter

consciência disto para se ter a alternativa de escolher. Pode-se ser velho vivendo a vida de várias formas mas uma vida digna na velhice pede preparação, exige começar a garantir algumas condições. A boa velhice começa na juventude, onde se aprende a identificar maneiras de construir os requisitos para envelhecer ativamente. A velhice pega a quase todos nós de surpresa. Sendo considerada pela maioria das culturas uma fase da vida em declínio, uma espécie de antessala da morte, a reação predominante é não querer pensar sobre ela e, consequentemente, não se preparar para sua chegada. É comum ver nas pessoas a ideia de que a velhice é uma tragédia que se abate sobre os outros, nunca sobre nós. Velhos são sempre os outros amigos, os parentes, os passantes. É uma situação em que se encontram os outros, nunca nós mesmo, e se passamos a ignorá-la quem sabe ela deixa de existir. Pensando assim e nunca querendo saber sobre ela, só o acaso vai poder nos proporcionar uma velhice digna. Melhor encará-la e conhecê-la para desmistificar e poder planejar uma velhice ativa.

Pensando sobre todos estes aspectos que envolvem o envelhecer, um deles, entre tantos outros, me mobilizou quase que inteiramente. Conversando com idosos jovens, ou pré-idosos como costumo chamar os que estão entre 50 e 70 anos (como é bom não ser cientista e poder inventar categorias), percebi que muitos passam a pensar nesta fase da vida quando começam a surgir limitações físicas e mentais, quando a vista e memória já não as mesmas, quando as noitadas já cobram um preço alto de pagar e o vigor já anda meio em falta. Antevendo esta fase, as perguntas mais frequentes que se colocam são:

“Poderei continuar a viver na minha casa, como sempre vivi até agora?” “Como fazer para não ir viver na casa de familiares?” “Como prolongar o máximo possível a ida para uma instituição de longa

permanência para idosos, eufemismo que não melhora muito nossa ideia sobre os asilos?”

“Que tipo de ajuda poderei ter para garantir os cuidados de que necessitarei?” “Serei capaz de lidar com as dificuldades que, possivelmente, enfrentarei?”

Continuar a viver no seu lugar ( aging in place )parece ser um dos grandes desejos das pessoas que sentem a velhice avançando. Continuar a viver em suas próprias casas, com qualidade de vida, sem pôr em risco sua segurança e sem preocupar seus familiares e amigos, é uma modalidade ainda pouco conhecida pelos brasileiros de hoje mas que vem ganhando espaço e mudando nossa cultura. Morar sozinho não é mais sinônimo de solidão ou de abandono. Os novos idosos querem habitar um lugar seguro, sem precisar deixar suas casas para trás. No Brasil, o número de idosos que moram sozinhos cresce cada vez mais. Em São Paulo, um terço das residências com apenas um morador são de pessoas com mais de 65 anos. O resto do mundo já se adiantou. Nos Estados Unidos, 28% deles vivem só. Em Manhattan, são 50%. Em Estocolmo, na Suécia, 60%. Esta é uma tendência crescente em todo o mundo. Morar sozinho passou a ser uma possibilidade que cada vez mais se concretiza.

Para a maioria dos idosos, a resposta a estas perguntas passa por precisar adotar um novo estilo de vida, por ter que implementar reformas na sua habitação, por precisar contratar alguns serviços e, possivelmente, por se familiarizar com o uso de novos equipamentos e tecnologias que os apoiem nesta fase de crescentes limitações funcionais.

Diante do rápido envelhecimento populacional, apontando para um cenário onde, nos próximos 50 anos, cerca de um terço da população brasileira terá mais de 60 anos, a sociedade atual precisa se preparar para prover soluções que viabilizem esta alternativa de modalidade de vida para os idosos que optarem por ela. Não apenas para atender a estes legítimos anseios mas, principalmente, para se preparar para o provável déficit na oferta de vagas em instituições de longa permanência e na rara e cara mão-de-obra de cuidadores. Será preciso encontrar maneiras de prolongar a autonomia dos idosos numa sociedade onde esta faixa da população cresce a taxas nunca antes registradas e o custo social e financeiro do cuidado com ela atinge níveis preocupantes. Serão necessárias políticas públicas bem desenhadas e viáveis.

Faz parte desta preparação entender como gostariam de viver os idosos que não desejam morar em outras casas que não as suas, bem como conhecer as iniciativas em curso para apoiá-los, e aos seus familiares, neste movimento de postergar o máximo possível o período de vida autônoma de uma pessoa, no lugar em que escolheu viver.

Envelhecer na sua casa pode trazer amplos benefícios emocionais e entender porque os idosos querem isto e de que maneira querem é essencial para o desenho de qualquer solução. A sociedade se beneficiará ao ter seus idosos com a qualidade de vida que sonham. É fundamental começar a entender como vivem as pessoas que preferem esta alternativa, quais as vantagens e desvantagens deste modo de vida e a aprender através de benchmarking com países onde o envelhecimento populacional aconteceu mais cedo. É imprescindível avaliar o papel da tecnologia como aliada e verificar seu valor na escalabilidade das soluções, tornando-as acessíveis a todas as camadas da sociedade.

A observação, o registro e a análise de experiências em outros países para cotejar com o momento brasileiro pode ser uma contribuição valiosa para fazer face aos desafios e poder aproveitar as oportunidades decorrentes deste fenômeno do envelhecimento populacional. Cabe investigar como vivem atualmente os idosos que optaram por esta modalidade, que tipo de assistência necessitam em termos de serviços e produtos e com qual grau de sucesso é possível atender a esta expectativa.

Aí comecei a querer entender como vivem os idosos em outros lugares. Saber como são atendidas suas demandas. Identificar os tipos de serviços e produtos que ajudam um idoso a viver, com qualidade, em sua casa, mesmo com as limitações físicas e mentais impostas pelo avançar da idade. Entender de quais formas as redes de governo ( redes de ensino, pesquisa ou administração) podem servir de base para a oferta de serviços de monitoramento e atenção ao idoso.

E, principalmente, dado minha formação na área de tecnologia, entender o papel dela no alcance deste objetivo.

Comecei a por em prática a ideia de visitar outras cidades, em outros países. A escolha das cidades seguiu critérios visando explorar estilos de vida em países bem diversos em termos de cultura, condição econômica e familiaridade com o fenômeno do envelhecimento populacional.

A primeira escolha recaiu sobre a Dinamarca. Este país me impressionava por causa do seu título de país mais feliz do mundo, atribuído pela Sustainable Development

Solutions Network. A SDSN escolheu critérios de avaliação que tinham a ver com estabilidade econômica, confiança no governo, baixa possibilidade de corrupção, segurança, mobilidade, PIB por pessoa e o surpreendente “poder contar com alguém ou alguma instituição, em tempos difíceis”. Segundo estes critérios foi feita a tentativa de tangibilizar a felicidade. E a Dinamarca ganhou, em 2015, este troféu de país mais feliz do mundo. Será que envelhecer num país feliz é garantia de uma velhice também feliz?

Depois partiria para Irlanda, por causa da revolução tecnológica que modificou sua economia e lá, certamente, este avanço tecnológico terá influenciado no modo de vida dos idosos.

Em seguida, para os Estados Unidos e sua Flórida, considerada a meca dos aposentados e a maior concentração de idosos do território americano.

Para o sul de Portugal, destino dos ingleses (o Brexit pode mudar esta escolha) e outros europeus ricos, para entender o que buscam os que não tem problemas financeiros.

Para o México, país com cultura de relações familiares muito similares à brasileira, para ver se basta estar cercado da família e ser cuidado por ela, para se ter uma velhice feliz, ativa ou não.

Para o Canadá, famoso pela qualidade de sua assistência social, para ver se é mito ou realidade para os velhos de lá.

E, também, para o Japão, conhecido por sua cultura milenar e fortes laços familiares, e que surpreendeu o mundo com a notícia de que alguns de seus idosos passaram a cometer o pequeno delito de roubar sanduíches para poder ir para a cadeia por 2 anos e lá ter algum amparo e proteção, já não mais garantidos no âmbito familiar.

Enfim, seria bom saber da realidade em outros lugares, ver se a velhice ativa é possível. Saber um pouco mais sobre se os velhos se sentem felizes ou não, sobre o quanto incomoda a solidão, sobre a experiência de viver num mundo com tantas mudanças que às vezes nos faz sentir ultrapassados quando não nos víamos assim há poucos meses atrás, sobre a globalização que cria os empregos que levam as pessoas queridas para bem longe de nós, sobre a insegurança quanto ao futuro das nossas aposentadorias, sobre a hostilidade das cidades e sobre a indiferença das pessoas. Observar modos de vida de idosos e me perguntar sobre tantas coisas deste novo Mundo Prateado, na esperança de encontrar soluções. Convencida de que garantir ao idoso uma vida apoiada nos pilares do envelhecimento ativo é um objetivo a ser perseguido constantemente pela sociedade, parti para esta aventura que comecei querendo ser uma pesquisa mas aos poucos fui me rendendo ao improviso e acabou por se transformar apenas numa viagem vista pelo ângulo da velhice.

Aqui vai um relato do que vi nesta primeira viagem. A Dinamarca além de ganhador do curioso troféu de felicidade, subjetivíssimo conceito a meu ver, se firmou também como meu primeiro destino por ser, no imaginário brasileiro, um lugar diferente, quase inacessível e, no meu próprio, como um desfio de um povo de uma aterradora e propalada frieza a ser derretida para se descobrir o modo de vida dos sues velhos. Não

estudei nem li muito sobre o país, antes de partir para lá, para que as peculiaridades nórdicas não me desanimassem. A ignorância às vezes nos reserva boas surpresas, foi este o caso. Lá foi possível ver uma velhice com futuro.

C – Decifrando a Dinamarca, em menos de 1 mês.

Uma vez decidida a aventura desta viagem-pesquisa e definido que a Dinamarca seria o destino inicial, o acaso me levou a Hørsholm, uma cidade com cerca de 25 mil habitantes, 25km ao norte do centro de Copenhague e perto da costa do Øresund, o estreito que separa o país da Suécia. Depois de décadas vivendo em cidades brasileiras com população superior a milhões, Hørsholm foi uma caixa de surpresas e uma oportunidade de entender como se desenvolve a vida numa pequena cidade. Foi um acaso feliz. Ter ficado em Copenhague, como pensado no início, teria me privado da visão que só pude ter a partir do contraste com Hørsholm. Copenhague não é a Dinamarca de verdade, assim como o Rio não é todo o Brasil. O contraste permitiu ver o que uma horda de turistas podia ter escondido.

Os primeiros dias por lá foram de muita observação e surpresas. Chegando no meio da primavera, minha atenção era atraída pela natureza esbanjando cores nas árvores e luzes no céu durante dias com pouquíssimas horas do escuro da noite. A infraestrutura urbana com acessos bem cuidados para pedestres e ciclistas era digna de nota, sonho de consumo dos que transitam nas caóticas ruas das grandes cidades brasileiras ou nas despreparadas pequenas e médias cidades país afora. O silêncio das ruas de poucos carros e a ausência de buzinas e sirenes funcionava como um poderoso anti-ansiolítico. A segunda coisa mais surpreendente era a segurança. A clássica pergunta feita por turistas sobre onde não se deve ir e quais horas são perigosas para se caminhar sozinho parecia não ser entendida pelos locais. A resposta era uma cara de “Como assim?!!!” que me fazia sentir um pouco envergonhada de levantar a suspeita de que o país deles pode oferece perigo além do aceitável para quem o visita. Poder andar em ruas desertas depois das 10 horas da noite sem precisar ganhar um torcicolo de tanto olhar para trás, deixar de lado o tique da permanente fiscalização da bolsa pendurada no ombro, ter permissão de usar o celular para consultar aplicativos e falar quando quiser, é uma sensação que nos marca profundamente. Várias vezes ao dia nos lembramos de como é bom viver num lugar seguro e o desejo de que deveria ser assim, por aqui também, fica reverberando em nossas cabeças dias após nosso regresso à casa.

E, por fim, a mais surpreendente das surpresas: a facilidade de comunicação com as pessoas nas ruas, lojas, supermercados, praças, restaurantes. Surpreendente poder se dirigir elas e não receber de volta um olhar de censura à invasão de privacidade ou um semblante imediatamente armado, tentando descobrir se o desconhecido oferece algum perigo. Eu me senti no Nordeste das décadas de 70, 80 onde conversar com turistas ou mesmo pessoas a que não conhecíamos fazia parte do conjunto de boas maneiras que consolidaram nossa cultura de hospitalidade. Uma breve lembrança de tempos quando a insegurança não fazia parte da equação.

Algumas imagens de Hørsholm, com suas ruas calmas, laguinhos, museus e idosos. Muitos idosos.

Estas primeiras impressões me levaram a conversar mais com as pessoas para formar meu juízo pessoal sobre o povo e seu país. E, sem a pretensão de produzir análise embasada em qualquer conhecimento formal em economia, política, etc., comecei a registrar o que achei interessante. Vou elencá-los, sem ordem, da forma como as impressões foram surgindo, ou tenham sido anotadas nas conversas, com o aviso de que não pretendo generalizar ( sim, sei de gente que foi lá e detestou tudo, e tem estatísticas horrorosas sobre taxa de suicídio, depressão, etc.). Talvez eu tenha visto só um pequeno recorte da sociedade mas foi o que vi. E serve como inspiração para sonhar um mundo melhor.

Os dinamarqueses parecem acreditar que a felicidade é um processo. E, como tal, tem a ver com praticar e melhorar o desempenho. É uma espécie de treinamento mental e físico a ser dominado através de competências adquiridas, tendo os valores morais como balizamento. A felicidade é um

processo subconsciente na Dinamarca, entranhado em toda área da sua cultura.

A felicidade pode ser alcançada, na maior parte do tempo, porque as expectativas são realistas. Tendo metas simples de alcançar, as pessoas podem relaxar e sentir-se livres da obrigação de ter muito sucesso material ou profissional. E, surpreendentemente, ainda conseguem achar prazerosas as atividades que por aqui já foram para o lixo do esquecimento. Eu me surpreendia vendo os piqueniques movidos a pão preto, pepinos, bananas com cara de travosas, grupos pequenos e papos com decibéis controlados. Conheço pouca gente aqui, no Brasil, que ia achar isto divertido. Sacar alguma felicidade daí, nem pensar. Não caí na armadilha de achar que podem ser felizes porque não tem expectativas, fugi sempre do estereótipo da frieza nórdica que tanto gostamos de comparar com o nosso calor latino. Há expectativas, elas apenas são definidas dentro de outros critérios e é socialmente aceito querer uma vida simples, dinheiro que baste e tempo que sobre para as coisas, bobas ou não, que lhes dão prazer.

Foi uma boa surpresa de conhecer os curiosos conceitos de Hygge e Jante’s Law cultivados por eles.

Hygge é uma coisa dinamarquesa que não se pode explicar apenas com um sinônimo. É um estado de espírito advindo de uma sensação de estar aconchegado em sua casa, cercado da família e amigos, preparando comida boa, lendo um bom livro, tomando um bom vinho ou chá. Ter a sensação gostosa de que estas coisas simples são as mais valiosas da vida. Todos com quem conversei falaram do hygge como um patrimônio imaterial dinamarquês. Faz sentido.

Jante’s law ( lei de Jante ) é um padrão de comportamento adotado pelos escandinavos que desestimula valorizar ou ostentar realizações pessoais e põe ênfase no esforço coletivo. Foi concebido pelo escritor Aksel Sandemose e é descrito através de dez regras que, basicamente, postulam que não se deve acreditar que se é melhor, mais inteligente, mais importante, mais sabido do que os outros; nem se pode achar que se é tão importante a ponto de todos os demais estarem sempre se importando ou se comparando conosco; e se deve acreditar que uma pessoa não é tão especial quanto pensa que é. Isto posto e introjetado, pode-se entender melhor um país onde a uniformidade é um valor e pode ser uma explicação, parcial, do porquê as políticas ditas sociais-democratas são mais facilmente aceitas na Escandinávia. Qualquer demonstração de autoadmiração e reconhecimento, brandida para os demais como um troféu, pode ser vista como arrogância e a sociedade tende a rejeitar pessoas que se sentem especiais e merecedoras do melhor, em detrimento de um padrão social médio tido como justo por todos para a coletividade. Um jeito de pensar bem diferente do que prevalece entre nós que perseguimos o sucesso, somos incentivados a nos sobressair, aparecer, ganhar e usas medalhas. Criamos nossos filhos chamando-os de príncipe ou princesa, diariamente os lembramos de como são lindos, simpáticos e inteligentes e como são alvos do amor mais especial do mundo: o nosso. Eles são especiais e merecedores de sucesso, a vida lhes será leve por isto e nunca deverão aceitar menos do que lhes é devido. Estamos na direção oposta dos que educam seus filhos lá no mundo nórdico. Os mais estudiosos do comportamento humano poderão elencar os prejuízos desta “lei”. Como observadora despreparada, pensei que para nós pobres mortais desprovidos de excedente de talentos e graça é reconfortante viver numa sociedade onde ser comum é aceito, onde a obrigação de se sobressair não deve existir. Eu me senti descansada, aliviada e em paz.

Eles não definem critérios de satisfação profissionais mesclados com

altíssimo retorno financeiro. Também não parecem pensar que o trabalho vai preencher carências emocionais. Conseguem um equilíbrio perfeito entre o trabalho e a vida pessoal. Eles tem uma palavra que define a atitude do dinamarquês com o trabalho: arbejdglæde. Arbejde=trabalho. Glæde=alegria. Palavra que só existe nas línguas nórdicas e que parece explicar tudo. Permanecer no trabalho depois da hora definida para ir embora é tido como um indício de ineficiência ou, pior, de ser relapso com sua família. O tempo destinado ao trabalho não pode roubar horas do tempo destinado à vida pessoal. Esta é a hora em que celetistas brasileiros moradores de nossas grandes cidades pensam em sair quebrando seus escritórios e queimando móveis nas ruas em protesto às horas gastas em reuniões infindáveis, com retrabalho em consequência de projetos mal concebidos e contra o absurdo das leis trabalhistas que nos regem. Ah, uma curiosidade linguística. O japonês também tem sua palavra para definir a atitude com relação ao trabalho: karoshi, que significa “morrer por excesso de trabalho”. Se é isto mesmo, não sei, mas assim me contou um dinamarquês que me disse ter trocado 4 mil coroas ( mais ou menos 2 mil reais) do seu salário por mais horas livres para poder pescar e aprender a desenvolver serious games (jogos projetados para uso em planejamento, engenharia, políticas, educação, cuidado com a saúde, etc. ). Nesta hora os baianos dizem: “Grande novidade. Sempre quisemos fazer isto e sempre nos acusaram de preguiçosos. Mas dinamarquês fazendo significa saber valorar o que realmente importa”.

Os dinamarqueses acreditam que ser dono de muita coisa gera mais trabalho do que satisfação. Carro grande: mais impostos; casa grande demais: mais

tempo limpando e mais dinheiro gasto para manter. As casas que visitei passavam a sensação de terem sido montadas com parcimônia, nada devia faltar ou sobrar.

As mulheres parecem encarar a beleza de forma saudável, com plena consciência de que uma coisa é a vida real, com sua iluminação imperfeita e outra coisa os holofotes, maquiadores, cabeleireiros, marqueteiros e photoshop que produzem as angelinasjolies, jenniferlawrences, beyonces e divas similares. Dá um certo conforto conviver com mulheres que não sensualizam 24 horas por dia. E, ao final, são bonitas, na hora e medida certa. Aliás, são muito, muito bonitas. É permitido ter rugas, celulite, cabelo original. Parece não fazer parte dos planos de muitas comprometer tempo e salário com cosméticos e cirurgias rejuvenescedoras. Quanto tempo mais elas resistirão à promessa da beleza absoluta e da juventude eterna, não arrisco prever.

As casas não reservam muitos metros quadrados para armazenamento de roupas, sapatos, bolsas, utensílios de cozinha de uso mais ou menos eventual. Se soubessem o quanto minha vida de classe média acumula de bugigangas, estava garantido causar espanto nas donas dos armários compactos que conheci por lá. Mas lembro de ter vivido um tempo, na minha infância nordestina, onde a abundância de coisas não era bem-vista. Dispensado o comentário de que “abundância e nordestina” não cabem numa mesma frase.

As casas são organizadas, limpas e minimalistas. E ninguém acusa de ninguém de ser careta, ou ter transtorno obsessivo-compulsivo, por prezar este tipo de estilo de vida. Cuidar da casa um pouco todo dia, fazer sua própria comida, usar com cuidado seus pertences é tão natural para o dinamarquês quanto escovar os dentes diariamente.

Acreditam que se cercar de tudo que apure seu senso estético, como boa música, livros, pintura, vai contribuir para aumentar sua a sensação de bem estar. Todos querem ter em sua casa uma peça ou réplica de um designer nacional.

A conta bancária não precisa ter a mesma montanha de dinheiro da do Warren Buffet, nem mesmo a de um político brasileiro. A grande maioria não almeja iates, carrões, casas hollywoodianas.

O sucesso não precisa ser de conhecimento mundial. É incontestável o apreço deles pelas liberdades individuais: legalização do

casamento gay e mudança de gênero, são temas aceitos sem maiores traumas sociais. Você pode escolher não ter filhos e não ser considerado como fora dos padrões de conformidade social. E, no entanto, eles gostam de adotar uma espécie de conformidade em outras áreas da vida. Gostam de se sentir uniformes, tendem a usar os mesmos modelos de roupas, cortes de cabelos. E de se sentir de acordo com sua faixa etária. Não lembro da cena corriqueira, aqui no Rio, de se estar numa fila atrás de uma jovem de 18 anos que se vira para nos surpreender com seu rosto “preenchido” desde que fez 50 anos de idade, há 10 atrás.

Diferenças sociais não são levadas a sério. Adoram frequentar clubes e pertencer a associações. É comum que professores, marceneiros, contadores, caixas de supermercado e executivos dividam uma quadra de tênis, jogando juntos. A educação dada a todos não cria um abismo cultural que impossibilite conversas ou convivência social por falta de informações ou boas maneiras.

Hierarquia não tem importância. “Somos iguais” é um sentimento predominante. Ninguém chama ninguém de senhor ou doutor.

A confiança é o valor basilar da sociedade. Eles confiam não só na família e amigos mas também nos estranhos na rua. Esta foi minha primeira surpresa. E isto parece fazer uma diferença enorme em suas vidas e níveis de felicidade. Eu também me senti feliz lá, sendo confiada. A sensação de ser considerada sincera e honesta, até prova em contrário, nos relacionamentos superficiais com lojas, repartições públicas, etc. há tempos se desgastou nas nossas experiências cotidianas, aqui no Brasil. Lá, as pesquisas indicam que 70% acham que se pode confiar em todos. E só 30% aconselham a atentar para os estranhos, antes de desconfiar deles. É comum ver pais dentro dos restaurantes e os carrinhos com seus bebês parados do lado de fora com

todos confiantes de que não há risco de serem vítimas de alguma maldade. As casas de praia costumam ficar destrancadas. Eles confiam nas pessoas, no governo e no sistema. Têm orçamento minúsculo para defesa nacional pois acham que por causa das boas relações diplomáticas não serão atacados, não vislumbram possibilidade de guerra. A vida pode ser muito fácil quando há confiança.

Penso que a consolidação desta confiança tem muito a ver com o fato de que não anseiam se destacar por excesso de riqueza, com a satisfação com tudo o que o sistema de bem-estar social lhes assegura, com a certeza de que o sistema vai dar conta das necessidades básicas do seu povo.

Ao mesmo tempo, não acham que se deve depender só do governo. Eles querem ser conhecidos como uma sociedade tolerante, igualitária, solidária e feliz segundo padrões e valores. Os asilos e centros de convivência para idosos que visitei contam com o trabalho voluntário dos seus usuários. Muitas melhorias são feitas com dinheiro extra provido pela comunidade que não rejeita a ideia de contribuir mesmo tendo passado uma vida inteira de pagamentos de altos impostos. Sim, eles pagam mais impostos do que nós. E, sim, recebem de volta cada centavo pago via serviços de qualidade, conforme o acordado lá atrás.

Foi o primeiro país a abolir a escravidão ( tirando do placar os egípcios, romanos e gregos, com suas idas e vindas neste tema), em 1792. Têm igual apreço pela igualdade de gênero: as mulheres participam da vida parlamentar desde 1918. Forte indicador de um conceito de felicidade não centrado apenas no indivíduo e uma certeza de que o bem-estar de todos impacta positivamente na felicidade de cada um.

Achei bastante equilibrada a relação dos dinamarqueses com seus animais domésticos. Li que sua origem viking, de bárbaros, os impedem de humanizar os bichos. E a tradição de séculos como uma sociedade de agricultores os fazem pensar em bichos como bichos. Segundo nossa concepção do lado de cá do hemisfério eles tem muito a evoluir e muito mercado a explorar. Deve haver, mas não lembro de ter visto nenhuma pet shop, em Hørsholm.

O governo cobra altos impostos e em troca devolve grátis, sem cobrança adicional, educação (incluindo ensino superior), saúde, subsídio para quem tem filhos, seguro-desemprego (involuntário ou voluntário) de 80% do valor dos seus salários por 2 anos e pensão para aposentados. Homens e mulheres podem se aposentar aos 65 anos. Até 2022 a idade mínima sobe para 67 anos e de 2030 em diante, aumentará um ano a cada 5, dependendo do aumento da expectativa de vida no país. Justos mas realistas, fazem as contas e sabem que direitos se garantem com uma base financeira. Tudo isto vale para os imigrantes, também. Não pude deixar de me confessar pasma. Os cidadãos pagam seus impostos compreendendo ser necessário para a coletividade e se sentem tranquilos de que os mesmos serão bem utilizados. Há, para uma brasileira como eu, um incompreensível sentimento de confiança no governo.

Educação é um direito e um dever para o dinamarquês. Ninguém deve ser deixado sem ela e ninguém pode decidir não querê-la. Antes dos jovens entrarem na universidade - para aqueles que o desejam fazer, nem todos querem -, são incentivados a viajar pelo mundo, conhecer outras culturas, entender outros problemas de outros povos com o objetivo de ganhar maturidade antes de escolher a carreira universitária que querem seguir.

A saúde pública não tem maiores sofisticações mas realiza um grande esforço na educação da população para a prevenção. As pessoas visitam pouco os médicos e se consideram atendidas nas suas necessidades de assistência.

E eu que pensava que dieta mediterrânea era o único sinônimo possível para alimentação saudável. A mania por orgânicos beira a obsessão.

Transporte público: bom, pontual, farto e caro. Muito caro. Consumo: muita coisa que dá vontade de comprar. Uma forte tendência para

o consumo consciente. Movimentos incentivando não se comprar o que não se for usar. E muito adotado o hábito de se comprar em lojas de segunda mão.

O custo de vida lá é caro. Para quem ganha em real e também para quem ganha em coroa dinamarquesa.

Eu me deliciei com a descoberta de tudo o que há por trás da Lego, a maior empresa produtora de brinquedos majoritariamente convencionais, não eletrônicos, mundialmente conhecida, atualmente avaliada em mais de 14 bilhões de dólares e com a espetacular estatística de vender um brinquedo a cada segundo, para quase todos os países do mundo. A surpresa de saber que foi criada, em 1930, por um marceneiro dinamarquês, numa cidadezinha encravada em Jutland, uma região que considerei uma espécie de sertão dinamarquês. E a constatação de que os valores da empresa se misturam com os da sociedade. Algum outro país poderia ter criado este jogo que continua tendo apelo depois de 86 anos de vida? O Lego é ele mesmo um ancião e pode nos ensinar muitas coisas. Em tempo, Lego vem de “leg godt” que significa “jogar bem”.

Os melhores amigos do homem são a bicicleta e o andador – rollator, como o chamam. Mal aprendem a andar e já ganham uma bicicleta, sem rodinhas de apoio e sem pedais, para acompanhar, como puderem, os maiores em seus passeios. A família cresce, a bicicleta também, ganhando uma espécie de reboque onde vão os bebês. E elas seguem, como uma extensão do corpo, até idade avançada. Só largam a bicicleta para trocá-la pelo rollator que fazem o papel da imprescindível bicicleta, levando-os para todo lado, ajudando a carregar as compras e a manter a mobilidade de sempre. Resolvem, como muita sabedoria, a questão da locomoção.

Não vivi a experiência do inverno. Eu estava sempre perguntando às pessoas como é viver nesta estação, quase me sentindo como um personagem de Games of Thrones, apavorada com a iminência da neve e do frio que impossibilitarão a vida, quanto mais viver se sentindo feliz. Ouvia sempre a resposta de que era uma estação muito bonita. E eu preocupada se seria impossível sair de casa para ir ao supermercado, sempre ouvia que as calçadas eram limpas diariamente e era suficiente um bom sapato e casaco para ir às ruas sem medo de sofrer hipotermia. Todas as vezes em que levantei a hipótese de as ruas não serem limpas tive de volta a recorrente expressão do “ como assim?!!! “. Eles não sabem o que é não poder contar com a certeza da coleta de lixo.

Nós que vivemos num país onde a religião tem um lugar especial na vida das pessoas não podemos deixar de refletir sobre a relação simples que o dinamarquês tem com a fé. São, na maioria, protestantes luteranos e costumam ir às igrejas em 4 ocasiões especiais: batismo, primeira comunhão ( ou equivalente), casamento e funeral. Não propalam a fé nem a falta dela. A religião não parece movimentar a economia nem abrir espaços políticos. Uma coisa que me chamou muita atenção foi a naturalidade com que vi as pessoas usarem os gramados do cemitério de Kopenhagen ( Assistens Kirkegård ) para lazer: piqueniques, sentar e ficar lendo, papos em grupos de amigos. Um uso impensável para nós brasileiros.

É claro que nem tudo são flores. Há espinhos mas não me deixei ir em busca deles. Resolvi não entrar nesta seara mesmo porque desconfio que os que me espetam por aqui são em maior quantidade e mais pontudos do que os de lá. É claro, também, que falamos de um país com menos de 6 milhões de habitantes mas isto não deve ser argumento para se desqualificar a bela nação que construíram. Há vários exemplos de países deste porte cujos governantes não arriscariam perguntar aos habitantes que nota dariam a seu governo. A Dinamarca me deu mostras de que viver lá pode não ser passaporte para felicidade mas, com certeza, para uma vida tranquila num ambiente social propício ao bem-estar. Não me parece pouca coisa. E acho que se vivesse lá também teria a percepção de estar num país onde as bases para ser feliz estão feitas.

D – A velhice na Dinamarca Saí do Brasil, em pleno mês de maio, cheia de curiosidade. Como deve ser envelhecer num país onde seu povo se percebe e se declara feliz? Os velhos também se sentem felizes por lá? Aqui, felicidade e alegria não parecem ser consideradas atributos da velhice. Vivemos aqui uma época em que a maioria acha que envelhecer nos rouba beleza, vigor físico, dinheiro. Aqui a velhice é uma ameaça à felicidade. A felicidade dinamarquesa também é extensiva aos velhos? Como será isto por lá? Eu vou conseguir entrar um pouco na vida deles e poder tirar minhas próprias conclusões? E a vontade maior era que com esta abordagem fosse possível entender como se vive a velhice por lá e ver se, de alguma forma, podemos aproveitar, por aqui, algumas das ideias de lá.

Fui lá tentar intuir, a partir de conversas com um pequeno grupo de idosos aos quais tive acesso das formas mais inusitadas, seja por conversas com desconhecidos em trens e ônibus, restaurantes, parques; seja por visitas a parentes de amigos que lá moravam e me abriram as portas das casas de seus familiares. A compreensão também foi montada através de visitas a instituições de longa permanência para idosos, o equivalente aos nossos ditos asilos, os plejehjem (pronuncia-se “plaiême”); a centros de atividades similares aos nossos centro-dia, os aktivitetscenteret; a instituições de pesquisa e a um laboratório de teste de produtos destinados ao bem-estar de idosos e cuidadores.

Colhi uma perspectiva bem particular. Esta visita ao país feliz não pretende ser uma pesquisa como desejei de início mas pode dar uma visão de esperança e um olhar distinto do que temos aqui, no Brasil. Gostei do que vi e fantasio que talvez seja possível criar condições parecidas, se não para minha geração, a dos nascidos entre 1946 e 1964, os ditos baby boomers, mas pelo menos para os que nos sucederão.

Saí daqui com metas modestíssimas de visitar instituições com quem mantive contato prévio estando ainda aqui. Meu plano era que a partir destas visitas iniciais fosse possível obter outros contatos para conversar com meia dúzia de pessoas que, com sorte, me abririam suas reservadas portas. Nunca pude prever o quanto seria fácil conversar com os dinamarqueses, nunca me passou pela cabeça que pudessem ser tão abertos a contatos. Chegando lá, um primeiro papo casual num restaurante, com um

casal ( ele com 65, ela com 73) me deu segurança para começar a puxar conversa com quem minha intuição me levasse a pensar que seria um entrevistado interessado em me contar sobre o estilo de vida dos “prateados” de lá. Sempre iniciava a abordagem me apresentando como uma professora aposentada brasileira que se interessava sobre o tema “tecnologia e envelhecimento” e estava iniciando uma sequencia de visitas a países para aprender como se envelhecia noutros lugares que não o Brasil. E sempre recebia de volta interesse em continuar o papo. Ouvi, da maioria, um pedido para não dar publicidade às fotos. As autorizações que recebi para usar as fotos vieram das mulheres com mais de 80 anos. As horas de conversa foram, realmente, deliciosas, as muitas respostas interessantes me fizeram ter uma boa ideia de como viviam os idosos no entorno de Copenhague. E entender a importância de se ter uma velhice ativa. O que nos isolará não será a velhice mas as consequências de uma velhice mal planejada, sem saúde, sem autonomia, sem dinheiro suficiente para garantir lazer e as necessidades básicas.

Estas pessoas com quem tive oportunidade de conversar, em suas casas, nos trajetos de trem ou ônibus, nos bares, parques, museus, supermercados, lojas, etc., tiravam minhas dúvidas sobre suas rotinas, seus amigos, suas atividades, tipo de lazer, trato com a saúde, aposentadoria, situação financeira, preocupação quanto ao futuro, sua satisfação quanto à saúde, vida amorosa, e seu país. Cheguei lá sem ainda saber como ia abordar. As pessoas eram escolhidas, obviamente, por serem idosas. Conversei também com pessoas abaixo dos 50 mas com estas muito mais sobre suas visões sobre a Dinamarca do que sobre a velhice.

Minha opinião sobre a vida dos idosos de lá é de que o país se organizou de uma forma tal que a transição da vida adulta para velhice, para a vida depois da aposentadoria, é feita de maneira tranquila e segura. O dinamarquês, sendo um povo afeito ao planejamento, já se dá conta da velhice décadas antes dela acontecer. Sem querer passar a impressão de que acho sem graça sua atitude de ter um plano de voo para vida, ou que reputo como uma espécie de previsibilidade sem imaginação mais ou menos comum a maioria deles o fato de terem um roteiro para suas vidas, fica a impressão de que não faz parte do que eles querem o sonho de ter uma vida com muita adrenalina e fortes emoções. A vida seguirá em capítulos planejados, com padrões pré-definidos e se desenrolando num ambiente de segurança social e econômica que vai lhes dar: escola, saúde, trabalho, família e, por fim, a hora da aposentadoria que possibilitará a merecida etapa de uma velhice digna.

Resumo aqui, as principais perguntas e as respostas ouvidas nestas conversas e visitas. As respostas eram, impressionantemente parecidas, fato explicado por eu ter uma amostra com entrevistados de um mesmo extrato social: mesmo bairro, de uma mesma cidade. As mulheres foram maioria nesta amostra, numa indicação de que lá, como aqui, “elas” ficam mais espevitadas do que “eles” com a chegada dos tempos prateados, batem mais pernas por aí, aproveitam para tirar o atraso e por a vida em dia.

a- Qual sua idade? Estado civil? Quantos filhos?

A idade variou entre 65 e 93.A maioria de viúvas. Apenas uma solteira.A maioria com filhos, entre 2 e 3 filhos. Apenas um casal e uma solteira, não tinham ou tiveram filhos.

b- Quando se aposentou? Foi muito difícil tomar esta decisão? Houve algum receio de que parar de trabalhar fora de casa poderia significar envelhecer mais rapidamente?

Todos se aposentaram ao atingir a idade mínima, 65 anos. Apenas uma pessoa relatou que procurou um trabalho de consultoria mas encerrou a atividade aos 70 anos. Uma senhora de 75 anos, trabalha há 3 anos, num emprego parcial de 9 horas semanais como caixa de supermercado, além de ter outra atividade voluntária. Todos acham que parar de ter um emprego formal não acelera o envelhecimento já que as pessoas passam a se dedicar mais a cuidar da saúde e podem fazer trabalho voluntário.

c- Há muito receio de que a pensão não seja suficiente?

Não. A maioria diz que “não se fica rico com a pensão mas ela basta para se manter o padrão de vida anterior.

d- Como é a rotina?

O dia começa com algum tipo de atividade física, banho, café da manhã, tarefas domésticas, preparo do almoço, ida ao supermercado a cada dois dias, almoço, descanso, ida ao Centro de Atividade próximo de casa. Muitos frequentam aulas de dança ou de idioma. Todos relatam a importância de sair de casa, com frequência, ainda que na época do inverno.

e- Como cuida da saúde?

Poucos remédios, poucas visitas médicas. Todos relataram a média de uma ida anual ao médico. Não é comum fazer exames radiológicos ou outros considerados sofisticados. Ninguém relatou a prática de auto medicação, nem o hábito de complementação com fitoterápicos ou suplementos vitamínicos. Acreditam que uma boa alimentação supre a necessidade do organismo.Fazem exercícios desde sempre. Andam de bicicleta e depois a substituem pelo rollator, um andador com rodas e cestinha similar à das bicicletas. Defendem que tem que se locomover, nem que seja levando o dobro do tempo que se levava em tempos de pernas boas.

f- Como é a vida amorosa?

Namorar muitas querem mas há menos homens que mulheres. Viver na mesma casa, ninguém acha boa ideia. A maioria não tem namorado. Mas vão à cata, em aulas de dança e passeios.

g- O que fazem como lazer?Todos tem um hobby. Todos frequentam cinemas, museus e clubes. É comum frequentarem associações ( jardinagem, culinária, etc. ). Gostam de cantar e

alguns fazem aula de dança. Ninguém relatou não considerar sua vida sem lazer, nesta fase.

h- Sentem preocupação quanto ao futuro?

Resposta quase que unânime: “Não, isto estragaria a vida”. O único temor é o da perda da saúde.

i- O que planejam fazer se a pensão não cobrir mais as despesas?

Todos os entrevistados confiam que os impostos pagos na juventude garantirão a pensão adequada para a velhice. Todos confiam que o governo cuidará da garantia dos seus direitos.

j- Ficaria contente em morar com os filhos? E com outro amigo?

Morar com os filhos não passa pela cabeça de ninguém. Todos planejam viver em suas casas enquanto forem autônomos física e mentalmente. Não sendo assim, a opção é ir para um plejehjem (asilo). Os filhos estarão na fase de cuidar de suas crianças e assim é como deve ser. Sem drama ou sentimento de abandono. Viver com outro amigo também não é uma opção vista com entusiasmo.

k- Faz algum tipo de trabalho voluntário?

A grande maioria. Ou nos centros que frequentam ou em atividades promovidas pela comunidade.

l- Algum trabalho remunerado?Alguns trabalham, com remuneração, entre 6 e 9 horas semanais. Mas os com idade superior a 80 anos acha que está na hora de aposentar para valer.

m- O que acontece quando não puder mais tomar conta de si mesmo?

O estado decide a hora que se vai pro plejhehem. Compreensivelmente, não gostam muito de desenvolver o tema.

n- Que acha da ideia de ir morar num asilo?

Isto só acontecerá se ficar em situação de dependência completa. Ida para o asilo não parece tragédia, é natural e é assim que tem que ser. O momento de sair de uma casa maior para um apartamento pequeno também não é tragédia, está previsto desde sempre, significa mais comodidade numa fase em que já não se tem tanta energia física sobrando. É um povo que aceita bem a realidade, as condições dadas pelo momento.

o- O que mais o chateia na velhice? A perda da beleza? A diminuição do padrão financeiro? A diminuição da função social? A precarização da saúde?

A precarização da saúde foi unanimidade.

p- A solidão incomoda?

É, os amigos vão morrendo mas não é preciso ficar muito só, pode-se sempre ir a um centro de atividades e lá construir novos laços de amizade. É preciso ter convívio social, não necessariamente com amigos do peito mas com quem se possa ter uma conversa, sobre os fatos da atualidade, literatura, música, etc.

q- O que acha da possibilidade de estender seu tempo de permanência em sua casa tendo a ajuda da tecnologia?

Todos acham que se a tecnologia simplificar a vida, pode ser muito bom. Mas a maioria não consegue dizer que tipo de equipamento gostaria de ter para auxiliá-lo. Não sabiam dizer, espontaneamente, que tipo tecnologia seria interessante. Quando instados a opinar sobre a possibilidade de poder se comunicar com amigos e parentes pela tela da televisão, podendo vê-los em tamanho grande, sempre respondiam com entusiasmo que isto seria muito bom, desde que fosse possível fazê-lo usando apenas o controle da tv.

r- Gostaria de ser monitorado via câmeras por seus filhos, para se sentir mais cuidado?

“Como assim?!!!!”. Isto seria uma invasão e um fardo para os filhos que já tem muitos afazeres, eles estão na época de cuidar dos filhos e se preparar para o futuro, não de ficar vigiando seus pais, numa ocupação desnecessária.

s- Gostaria de ser avisado pelas dispensers pills ( caixinhas de guardar remédios) da hora de tomar seus remédios?

Outra unanimidade. Muito bom não esquecer de tomar um remédio.

t- Gostaria de ter um equipamento que os ajudasse a secar as costas, por exemplo, a calcar as meias?

Seria bom mas a maioria não confia que seja fácil que um equipamento faça isto.

u- Gostaria de poder fazer compras dos mantimentos pela internet e recebê-las em casa?

Só quando for impossível andar e sair de casa. Mas a entrega em domicílio não é hábito local.

v- Gostam de aprender novas coisas? Fazer algum curso?

Todos aprendem alguma coisa, fazem cursos rápidos de alguma coisa, melhoram os conhecimentos para desenvolver seu hobby, jardinagem por exemplo.

w- Usam a internet? Tablets? Smartphones?

Minha expectativa, por ser da área de tecnologia e ancorada na certeza do quanto ela é indispensável nos dias de hoje, era a de que lá as pessoas pudessem me fazer relatos de grande afinidade com esta expectativa para o “aging in place”. Tive que lidar com a frustração de ver um papel quase inexistente para ela nas casas que visitei e nas respostas que obtive. Sempre que expressava minha surpresa por tão baixo interesse pela ajuda que a tecnologia poderia fornecer, tinha de volta a comum expressão de “como assim? Ou a de “isto vai fazer tanta diferença mesmo?”. É um povo que foi criado para a autonomia. Enquanto pode se mexer e enquanto a cabeça funciona, gosta de dar conta das tarefas que a vida requer. Admirável. A tecnologia só vai ter realmente valor para os asilos, onde vivem as pessoas que precisam ser ajudadas nas tarefas rotineiras.

x- Você concorda com este resultado de que a Dinamarca é o país mais feliz do mundo?

A maioria acha que o resultado desta pesquisa reflete mesmo o fato de que os dinamarqueses estão felizes com as condições de vida oferecidas por seu país. Apenas uma pessoa respondeu que se esta era a minha impressão, talvez eu estivesse conversando com as pessoas erradas. Mas ao ser perguntada sobre sua impressão, ela admitiu que não gostaria de estar vivendo a velhice num lugar que não oferecesse o nível de proteção social existente na Dinamarca.

y- Entre 0 e 10, que nota você daria a sua própria felicidade?

A maioria deu nota entre 8 e 9, alegando que se não fosse pela saúde, por mais que se cuide dela nunca é como na juventude, a nota seria maior.

Um pouco sobre os Centros de Atividade (Aktivitscenteret )

Estes centros, mantidos em conjunto pelos governos locais e pela população, através de atividades de captação de recursos e trabalho voluntário, são um espaço da maior importância para garantia de que os idosos possam se manter ativos. Lá eles tem aulas, oficinas de cerâmica, marcenaria, pintura, tecelagem, bijuterias. Jogam cartas e sinuca, cantam em corais, tocam instrumentos, fazem festas, mantém brechós, são voluntários em tarefas na rotina dos centros e participam de grupos que contribuem para causas sociais em outros países. Têm refeições a preços módicos, cabeleireiros, espaço para pilates, podólogos. Lá, uns cultivam uma espécie de vigilância sobre os demais, dando a falta dos que deixam de aparecer nos centros. E, mesmo com o proverbial respeito dinamarquês à privacidade, isto pode significar, em alguns casos, ser lembrado em momentos cruciais da vida. Dentre os que visitei, dois me chamaram atenção: o Selmersbro e o Sophielund.

O primeiro, além de todas as atividades frequentes nesses espaços, oferece um serviço de aconselhamento para seus frequentadores, apoiando-os, por exemplo, nas decisões de venda das suas casas e compras de apartamentos menores, nas escolhas sobre onde

aplicar melhor suas economias, etc. Localizado às margens de um dos lagos de Hørsholm, com invejáveis instalações físicas, é frequentado por mais de 700 idosos e gerido por uma equipe de três pessoas permanentes e grupos de voluntários. A “gerente” do Centro aparece, em uma das fotos abaixo, apoiada num rollator que a leva e traz para o trabalho diário.

O centro Sophielund oferece o mesmo leque de atividades do Selmersbo, e também com instalações de ótima qualidade e localização excelente. Os frequentadores com limitações físicas contam com um ônibus (the red bus) para buscá-los em casa e levá-los até o Centro.

Um pouco sobre os Plejehjem, instituições similares às nossas ILPI ( instituições de longa permanência para idosos)

Sophielund também tem uma instituição de longa permanência para as pessoas já sem condições de viverem sozinhas, em suas casas. São um conjunto de unidades residenciais com sala, quarto, banheiro, jardinzinho, decoradas de modo personalizado, como a casa da Inge que foi para lá acompanhando o marido, Niels, que ficou com sequelas de um acidente vascular cerebral, e seguiu vivendo lá depois da morte do marido porque apesar de não se enquadrar no perfil dos que já precisam ir para um plejehjem já estava lá há mais de 8 anos e sua presença era benéfica para ela e para os que lá viviam. Os que estão em estágio avançado de algum tipo de demência senil, tem assistência integral. Os que têm algum tipo de limitação podem viver com assistência parcial, em suas casas.

As instalações são confortáveis, limpas e todos tem um padrão de assistência compatível com suas necessidades. Sophielund é o tipo de lugar que se visita e não se sai com o coração apertado. É uma instituição onde se pode viver estes dias da velhice de uma forma digna, com a certeza de que as pessoas envolvidas na entrega dos serviços requeridos são responsáveis e empáticas.

Saí de lá certa de que temos aqui, no Brasil, que buscar soluções semelhantes para o contingente de idosos que certamente precisarão viver longe de seus filhos e precisando de uma estrutura como esta. Não há luxo, há apenas a decisão de se seguir com um padrão de vida que as pessoas usufruíam antes de irem para lá. A escolha de uma infraestrutura confortável como compensação pela delicadeza do estado de saúde e do natural afastamento de seus familiares.

Para alguém criado, segundo os valores nordestinos de décadas atrás de um familiar idoso deve viver com sua família até o fim, este lugar é objeto de muita reflexão. A maneira lógica e racional como os filhos encaram a situação de um progenitor, distanciado do mundo em razão de avançado estado de demência, não teve como não me chocar um pouco. Alguns deles, diante do fato de que não são mais reconhecidos, simplesmente deixam de visitar seus velhos. Um traço cultural que causa estranhamento. Mas, em nenhum momento me ficou dúvida, se chegar o dia em que precise de atenção e cuidados, estando em situação similar, tudo o que espero é que haja, onde eu viva, um lugar como este para ir viver.

Um pouco sobre o Living Lab Strandvejen (http://livinglabstrandvejen.kk.dk/)

Este é um laboratório muito especial. Mantido pela municipalidade de Copenhagen, tem o objetivo de testar equipamentos e produtos a serem usados por idosos ou pelos empregados, em suas casas ou nos plejehjem. São itens que facilitarão não apenas a vida do idoso mas também a dos empregados, uma preocupação muito pertinente dado que a mão de obra nesta área é escassa e precisa ser o máximo possível cercada de possibilidades que facilitem seu trabalho. Os dinamarqueses não costumam chamar de cuidador às pessoas contratadas para prestar os serviços necessários aos idosos com algum tipo de limitação, eles parecem recusar o termo que pode soar como um eufemismo que mascara a dificuldade da tarefa.

Para reproduzir mais fielmente as condições de vida de um idoso foi construído um apartamento modelo onde são tratados todos os aspectos da sua rotina e pensadas suas necessidades para uma vida com qualidade. Há a reprodução de um apartamento com um quarto, cozinha, sala, banheiro, com área média de 70 metros quadrados, com o mobiliário e utensílios necessários.

O laboratório se insere dentro do programa de saúde pública e qualidade de vida do idoso e tem como missão avaliar a adequação dos produtos já disponíveis no mercado ou em fase de teste. Os produtos são comprados dos fabricantes para garantir a isenção da avaliação. Foi desenvolvida uma metodologia que integra os empregados que cuidam de idosos, idosos usuários, empresas e a equipe do LLS para uma abordagem completa dos produtos, levando em consideração sua funcionalidade, custo, utilidade, facilidade de uso, valor que agrega ao objetivo de melhoria da qualidade de vida do idoso bem como a dos empregados.

O objetivo de facilitar a tarefa do empregado é um aspecto digno de nota. Reflete uma visão de política pública que o considera ator dos mais importantes para alcance do objetivo. Envolver o idoso na avaliação, além de garantir o sucesso do produto, traz uma abordagem nova de considerar o idoso parte do processo e não apenas um usuário incapaz de expressar sua demanda. É frequente observarmos que muita coisa que é produzida para o público idoso pula a etapa de conhecer bem o cliente e sua demanda, há uma tendência a se considerar um idoso incapaz e uma tentação de se definir por ele sua demanda. Aqui eles presam a contribuição do profissional de designer que estuda a experiência do usuário. O LLS faz um trabalho admirável e vale a pena visitar seu site onde se pode ver os produtos em teste: camas, tecidos especiais para cobertas, cadeiras, privadas, mobiliário de cozinha que permita o trabalho com conforto, sentado ou em pé, sensores de movimento, itens para estímulo à memória e várias outras coisas que podem facilitar a vida do idoso e do empregado encarregado do apoio às tarefas diárias.

Qualquer falta de semelhança entre a Dinamarca e o Brasil não é mera coincidência. Pode haver muitas explicações e entender como se dá este processo por lá é um passo inicial para se refletir sobre o que queremos que exista aqui para a população idosa de amanhã. Na vida dos idosos, por lá, predomina independência, autonomia, planos e sonhos. Mantém o foco no momento presente, sem se preocupar com o andar da vida para não estragá-la. Têm a certeza inabalável de que quando não puderem mais viver por si próprios a sociedade está preparada para acolhê-los. Na juventude, cuidaram da saúde e planejaram uma base material adequada. Andam por aí de bicicleta, e ruas e calçadas projetadas para todas as idades, saem delas e entram em trens, ônibus e metrôs que cumprem o horário e tem itinerário compreensível. Vão a museus, cinemas, teatros, aulas e clubes. Não precisam pagar planos de saúde de valores extorsivos, visitam médicos poucas vezes ao ano, tomam poucos remédios e prezam uma alimentação saudável. Reclamam, às vezes, de solidão mas não culpam suas famílias. São comunicativos e simpáticos. Envelhecer num país onde todos são educados para ter o dever de casa pronto quando a velhice chegar é uma dádiva. Infelizmente, muito do contexto social que lá existe não pode ser replicado por aqui, dado que foi pensado, concebido e implantado ao longo da formação da identidade do país, não foi feito do dia para a noite. Um país que tem consciência de que seu povo tem diretos e deveres diversos para as distintas faixas etárias da população, pode ser mesmo um bom lugar para envelhecer.

E - O Brasil para os velhos

Envelhecer é uma coisa nova, no Brasil. E não é fácil, para muitos. A expectativa de vida por aqui, nos idos de 1960, era de 48 anos. Nesta época, a chance do brasileiro morrer antes de envelhecer era altíssima e os idosos eram exceção. O Brasil era um país de jovens, o país do futuro. Em 1980, a expectativa de vida subiu para 62,5 anos e, a partir de então, começou a ser gestada uma população idosa, considerando-se a marca de 60 anos como o divisor entre a juventude e a velhice.

Em 2010, o censo do IBGE já indicou 73,7 anos como sendo a expectativa de vida e agora se diz que este valor aumenta em 4 meses, a cada ano. Sendo assim, é muito provável que, em 2020, a expectativa de vida esteja no patamar de 80 anos e já seja possível contabilizar cerca de 30 milhões de pessoas com mais de 60 anos, numa população total prevista para 212 milhões. Além de viver mais, os brasileiros estão tendo menos filhos. O número de filhos médios por mulher diminuiu de 6,3 descendentes para 1,9 no período entre 1960 e 2010. O reflexo dessa tendência é um envelhecimento da população.

Muita estatística para dizer que marchamos a passos céleres para uma situação em que um percentual expressivo da população brasileira será de idosos, num país que sabe pouco sobre o envelhecer e suas demandas. A parcela da população entre 18 e 60 anos terá, certamente, entre seus familiares e amigos alguém requerendo os cuidados típicos da condição de idade avançada.

Uma característica demográfica que apresenta desafios completamente novos. Acrescido a isto há o fato de termos envelhecido antes de ter solidez econômica. A velhice custa mais caro do que a juventude.

No contexto individual, só começamos realmente a pensar no tema da velhice quando ela nos chega através de nossos pais, cobrando uma reflexão sobre todas as mudanças que ela passa a impor. Em algum momento, nos damos conta de algo mudou e que a vida está diferente para eles e para nós. A partir daí, parece que para onde olhamos vemos idosos. E aí, o tipo de perguntas que passam a frequentar nossas preocupações são: eles moram sozinhos? como resolvem a parte prática de suas vidas? cuidam de si mesmos? dão trabalho a seus filhos? Ato contínuo, somos vítimas do efeito espelho: somos os próximos a envelhecer. Vamos tendo consciência de como sabemos pouco sobre a velhice e de como estamos despreparados para enfrentá-la nos outros e, também, quando chegar a nossa vez.

No contexto coletivo, o fato é que população idosa cresce e vai demandar providências que talvez ainda não tenham sido desenhadas pelo poder público, significando que a sociedade, em geral, e as famílias, em particular, terão papel importante na geração de abordagens para este novo cenário. São poucas as políticas públicas efetivas para se garantir a qualidade de vida das pessoas a partir de 60 anos de idade, hoje e no futuro próximo.

Vivemos num país que assimilou o culto à juventude. Só interessa o que a ela está associado e a ela se atribui a chave para uma vida exitosa e feliz. Não há lugar para a velhice e sua falta de glamour. No entanto, a velhice agora passa a ser nossa realidade demográfica e quanto mais a negarmos mais pesada ela será.

Enquanto os países da Europa e dos EUA já vem se defrontando com esta situação há muito mais tempo e se preparando para atender às condições necessárias, aqui mal começamos a nos debruçar sobre a questão.Esta é uma situação inteiramente nova para um país que sempre foi jovem.

É hora de compartilhar conhecimento e aprender com a experiência de quem já se ocupa de cuidar ou apoiar idosos, sejam seus progenitores ou amigos.

Entender a velhice e suas demandas faz parte da preparação necessária para se construir uma sociedade apta a proporcionar condições de vida dignas para o idoso, fazendo o dever de casa para quando chegar a nossa vez.Há questões fundamentais para se refletir:

Como conseguir um interesse coletivo mais amplo por pensar e trazer soluções para o tema do envelhecimento, no Brasil dos dias de hoje?

Como formar lideranças para as transformações e realizadores das mudanças necessárias?

Como criar políticas públicas garantidoras das condições para um envelhecimento ativo?

Como educar as pessoas para cada um fazer a sua parte, tendo um estilo de vida saudável com vistas a não sobrecarregar as futuras gerações?

São muitas perguntas por responder e é preciso buscar as soluções. Conhecer a velhice mundo afora é uma forma de começar.

AgradecimentosA Nenem, que me proporcionou a oportunidade de conhecer a velhice antes de envelhecer. A Maristela Velloso, pela paciência de me ouvir ainda sendo jovem e por me acompanhar na aventura de sonhar uma velhice melhor.A Ina Wolcker, que me encorajou a dar ares de pesquisa a esta viagem que acabou se tornando apenas um jeito de observar a velhice mundo afora.A Alexandre, Bruna e Priscila que ficam na torcida para que eu entre feliz neste mundo prateado.