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    Curso Online de Filosofia

    Olavo de Carvalho

    Aula 5020 de maro de 2010

    Boa tarde a todos, sejam bem-vindos. Estou gravando isso antecipadamente porque sbado

    estarei viajando, no poderei dar aula, ento deixarei esta gravao pronta.

    Hoje dia de Saint Patrick e, por isso mesmo, estou uniformizado com camisa verde e bonirlands para homenagear a comunidade irlandesa, que to simptica e to importante aquina histria dos Estados Unidos. Feita esta homenagem, voltamos ao normal e vamosprosseguir a aula.

    Esta aula ser dada para se esclarecer dois pontos: primeiro, sugerida por uma pergunta de umaluno, to interessante que merece virar tema de uma aula inteira; e, segundo, passando j para

    a etapa seguinte na ordem dos estudos lgicos, o primeiro tema o da simples apreenso, logoem seguida vem o tema do juzo. E, de algum modo, a pergunta do aluno faz uma ponte entreuma coisa e outra, ento vamos aproveit-la. Ele pergunta:

    Aluno: A percepo adicional que uma cincia nos possa dar, no poderia contradizer a percepoinicial que requerer a percepo adicional? Por exemplo, numa determinada poca, sabemos que se

    havia percebido que o cadver (carne morta) era inerte do ponto de vista de transmisso de doena aos

    vivos. Mas com a percepo adicional pela cincia, de que existem os microorganismos, aquela percepo

    inicial da inocuidade do cadver, foi certamente revogada. Ento, se estou raciocinando corretamente,

    qual percepo tem hierarquicamente prioridade ou superioridade, a adicional ou a principal?

    Olavo: Muito bem. Voc no pode esquecer que tudo aquilo que eu expliquei da simplesapreenso refere-se simples apreenso da natureza de um objeto. E a apreenso da natureza como se respondesse implicitamente a pergunta o que . Voc percebe que isto um gato,isto uma rvore, isto um jacar, este o Olavo de Carvalho e assim por diante. Aqui, vocj est falando da percepo de um estado determinado; cadver no o nome de umasubstncia, no existe uma substncia chamada cadver. Cadver um estado pelo qual umente passa ele estava vivo, passa da condio de vivo para o de morto ; so dois estadosde um mesmo ser. Se aqui tem um jacar vivo e o jacar morto, este o mesmo que o vivo,apenas tomado em outro estado. A simples apreenso sempre lhe d uma informaoconfivel, mas no se pode dizer o mesmo da percepo de estados, qualidades e acidentes.

    [verso provisria]Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.

    O texto desta transcrio no foi revisto ou corrigido pelo autor.Por favor no cite nem divulgue este material.

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    Isso uma coisa que se abre para uma multiplicidade confusa, e justamente a que entra anecessidade do exame racional da percepo.

    O que acontece hoje, j de uma tradio de alguns sculos, colocar em dvida a percepooriginria, a percepo de substncia, e at questionar tal noo este o ponto. RenDescartes, Galileu e outros, inauguram o tipo de enfoque no qual s interessa a observao doscaracteres matematizveis; ora, estes caracteres jamais nos daro uma substncia esta no matematizvel; um gato no mais gato ou menos gato, um jacar idem. A simples apreensolhe d uma informao de ordem unitria absoluta: isto um jacar, isto um gato, isto umamesa e assim por diante. com base nisso que todo processo cognitivo vai se desenrolar. Asimples apreenso no questionvel, tudo se questiona a partir dela, visando s vezescomplementar a mera percepo de substncia com a percepo de estados, processos,qualidade, transformaes, de diferenas quantitativas etc. Quer dizer, a simples apreenso no

    lhe d tudo, isto seria absolutamente impossvel. Se voc pudesse perceber tudo por simplesapreenso voc seria Deus, pelo conhecimento instantneo de todas as coisas istoabsolutamente no possvel. Ns temos o conhecimento instantneo da identidade dassubstncias, e mesmo quando voc pode errar, voc no erra na percepo; se for analis-la, apercepo est corretssima. As concluses que voc tira depois que podem confundir tudo.

    Eu quis mostrar, na aula anterior, a riqueza e a complexidade deste fenmeno que se chamasimples apreenso (e que cham-lo de simples fica at irnico). O entendimento disso absolutamente indispensvel, sobretudo depois da fenomenologia de Husserl. Todafenomenologia consiste numa descrio do contedo da percepo, no do ato da percepo,

    porque isso seria j uma fenomenologia da prpria percepo, e no de um ente. Voc podefazer um estudo fenomenolgico de qualquer coisa. Por exemplo, Ortega Garcia fez umestudo fenomenolgico da moldura de um quadro. Voc pode fazer de qualquer coisa: de umgato, de uma formiga e, tambm, pode fazer um estudo fenomenolgico dos seus prpriosprocessos cognitivos. Mas esta descrio nada acrescenta percepo originria; ela apenas mediante a uma toro verbal absoluta, quase miraculosa consegue transformar emsentenas (em proposies) aquilo que est embutido na prpria percepo. No umraciocnio que se faz, no uma anlise, no uma discusso nem argumentao, no est setentando provar nada; est se tentando, apenas, pegar o contedo da percepo tal como ela se

    apresentou (tal como ela aconteceu), e do objeto, tal como ele se apresentou e por onde ele seapresentou, e verbalizar isso. O trabalho extremamente difcil, mas a escola fenomenolgicaaperfeioou isto a um ponto absolutamente admirvel. Pouco importa que alguma dasconcluses filosficas do prprio Husserl, Heidegger ou Merleau-Ponty estejam erradas isso no me interessa. Interessa que a tcnica da fenomenologia uma grande conquistahumana, porque ela o permite se bem compreendida e bem empregada sair de um tecidode discusses meramente verbais e voltar, como dizia Husserl, s coisas mesmas. Quer dizer,estamos falando de coisas e no de ideias, de doutrinas ou de hipteses.

    Todo este trabalho da fenomenologia feito em cima daquilo que os antigos chamavam

    simples apreenso. Antigamente, a simples apreenso servia s para dar o nome da coisa e,em cima, voc raciocinava a respeito dela. Agora no, em vez de pegar o nome e sairraciocinando a partir da verbalizao inicial do termo (da palavra, do nome da coisa), voc vai

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    voltar ao objeto da simples apreenso, descrev-lo e ver toda a riqueza de elementos que estdado na prpria percepo originria. Depois disso, ns no podemos chamar a simplesapreenso de simples apreenso; ela simples porque instantnea, mas ela contm todos oselementos pelos quais um objeto se revela a voc como aquilo que ele realmente todos oselementos que fazem com que voc perceba um gato como um gato. Parece uma coisa simplesde fazer, e de fato simples; mas muito difcil de verbalizar.

    Durante milnios, todo processo verbal da filosofia acompanhava sempre o raciocnio ouseja, a formao do juzo e do raciocnio e, portanto, aquilo se construa em cima dasimples apreenso. A proposta da fenomenologia retornar simples apreenso e tentarextrair todo suco que ela possa dar, antes de fazer qualquer raciocnio em cima. Como sedissesse: a descrio fenomenolgica, se no pr-racional pr-raciocnio; no podemosdizer que ela racional nem irracional, estas categorias no se aplicam.

    O que ns apreendemos na simples apreenso a natureza do objeto, e no seu estado, emuito menos as suas propriedades, seus acidentes etc. No caso, se voc diz que o cadvertransmite ou no transmite doenas aos vivos, est se referindo a duas aes que o cadver faz,portanto, h determinadas propriedades que ele tem e age sobre outros. Isto no pode fazerparte da sua essncia ou natureza, porque para voc raciocinar ou investigar se um cadver fazisso ou aquilo, voc [0:10] primeiro precisa saber o que um cadver, e saber o que umcadver no conhecer uma substncia, mas o estado em que est uma determinadasubstncia. Ento, qual o ponto aqui? O ponto que voc tomou uma percepo de estadocomo se fosse uma percepo de substncia. justamente o tipo de erro no qual voc passa

    por cima do objeto, fala de outra coisa e no percebe que est falando de outra coisa. tal erroque a fenomenologia visa a corrigir e, por isto mesmo, ns daremos bastante ateno a estenegcio fenomenolgico daqui a pouco.

    Aluno: Mas os estados, assim como as outras categorias, fazendo parte do crculo de latncia, no

    podem tambm ser objetos de simples apreenso?

    Olavo: Enquanto elemento do crculo de latncia eles so percebidos, mas o crculo de latncia s um crculo de possibilidades. Por exemplo, qualquer animal vivo pode estar morto daqui a

    pouco; isso faz parte do crculo de latncia, mas no da natureza dele estar morto no fazparte da natureza. E quando voc apreende a natureza do ente, voc no vai confundi-la comseu estado. Por exemplo, o gato est deitado ou de p; claro que voc o percebe ou deitadoou de p ou correndo. Mas, a simples apreenso no descreve estado, apenas d um nome doente, da natureza dele, se um gato. Para saber que o gato est deitado ou de p, voc precisasaber que um gato. Do mesmo modo, para saber que um determinado corpo humano estvivo ou morto, voc tem de saber que um corpo humano. claro que os estado tambm tma sua natureza e tambm podem ser definidos, mas eles no podem ser objetos de simplesapreenso pelo simples fato de que a percepo de estado pressupe a percepo da natureza.Aquilo que acontece, acontece a algum ou a algum objeto ou a algum ente. Mais ainda, ns

    dizemos que a percepo de naturezas a simples apreenso neste sentido instantnea;esta percepo de estado no , ela tem de se prolongar no tempo. Ento, todos ns sabemos

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    que o estado de morto geralmente se prolonga indefinidamente, j o estado de estar deitado,dormindo, no se prolonga.

    Ento, suponha j uma observao contnua. Essa observao s vale se voc tiver primeiro apercepo da natureza do ente. Agora, o que aconteceu na transio da Idade Mdia para aCincia Moderna? A noo de substncia foi abandonada e sobram s os estados, tais comoobservados cientificamente e matematizados. Voc sabe tudo o que acontece, apenas no sabepara quem acontece. Essa foi a grande objeo de Leibniz a todo este negcio racionalistamoderno.Todos os caracteres mensurveis e matematizveis de um ser no bastam para dizero que ele ; voc precisa ter de apreender primeiro a forma substancial do ente, tal como ela seapresenta, e ento saber que tais ou quais estados aconteceram a determinado ente. Apercepo de substncia no por si matematizvel, mas ela a pr-condio sem a qual vocno pode matematizar nada voc estar matematizando o nada. Pegue um gato e veja um

    nmero infinito de observaes matematizveis que voc pode fazer sobre ele: por exemplo, aqumica da sua respirao (transformao dos gases que entram e saem), a fisiologia dele, aanatomia, a cintica e assim por diante; isso no termina. Todas as Cincias podem observar ogato de algum modo, at a economia (o preo do gato no mercado ou quanto ele come).Tudo isso mensurvel e cientfico, mas somando tudo voc no saber o que um gato. Apartir das medies, para identificar um gato voc precisaria ter outras tantas medies feitassobre outras espcies, por exemplo o cachorro: voc pega aquela imensa massa de informaese diz com todos os testes que ns fizemos aqui, parece que isso no um cachorro. Ogrande problema com as cincias modernas que para elas no existe substncia; por qu?Porque no h um meio matematizvel de se apreender a noo de substncia. E, no entanto, a

    noo de substncia est pressuposta em tudo que os cientistas dizem a respeito de qualquercoisa. Porm, como ela no pode ser legitimada pela prpria cincia que est falando, o sujeitose apia na noo de substncia, mas a esconde, faz de conta que no sabe o que substncia.

    Aluno: Mas os estados podem ser agentes de aes (...)?

    Olavo: Estados no so agentes, quem agente o sujeito.

    Aluno: (...)Ento como a Cincia mede aes?

    Olavo: No, ela mede transformaes. Ela no pode sequer dizer que so aes, porque aessubentendem um agente e um agente , necessariamente, uma forma substancial.

    Quer dizer que a descrio total que as Cincias do do mundo, das duas uma: ou ela seassenta na noo de substncia ou ela uma fantasmagoria. Lembrem-se do texto do JeanDoujat, que diz que a maior parte dos cientistas so filosoficamente realistas, ou seja, elesacreditam na existncia do mundo exterior objetivo, onde existem coisas e, portanto,substncias; logo, formas substanciais. Eles acreditam, mas estas noes todas no fazem parteda sua Cincia. So noes filosficas que eles subscrevem na prtica, mas no na teoria. Isso

    faz com que a Cincia vire um jogo de esconde-esconde. Eles sabem que esto falando desubstncias. Por exemplo, se o sujeito um qumico, ele est falando de substncia alm desubstncia no sentido qumico, elas so substncias no sentido filosfico, so coisas que

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    existem. Ele sabe que est falando de coisas que existem, mas a prpria noo de existncia no uma noo quimicamente expressvel. As noes de existncia, de relao e de propriedadeno so quimicamente expressveis; tudo isso so conceitos filosficos que esto na base detodas as cincias. a velha proposta do Leibniz, que a fenomenologia no sculo XX veioconfirmar integralmente, em que temos de trazer de volta as formas substanciais.

    O que voc apreende de um ser a sua forma substancial, quer dizer, aquilo que faz ele ser oque . Mas tambm s isso que voc apreende na simples apreenso. Voc no pode dizerque percebe um estado por simples apreenso, porque a percepo de estado pressupe umasequncia de observaes. Por exemplo, o gato pode parecer que est dormindo, mas ele estacordado; voc no pode distinguir isso sem um exame mais meticuloso. Um cachorro svezes est dormindo, mas se voc o chama e ele vem na mesma hora porque no estavadormindo, estava cochilando; cochilar uma coisa, dormir outra. J est na Bblia Deus no

    dorme nem cochila. A observao de estado e transformao pressupe uma sequncia deatos cognitivos, no como a simples apreenso que de fato instantnea que a simplesidentificao de qual a forma substancial que est na sua frente; e sem esta identificao osestados no fazem o menor sentido.

    Aqui ns temos uma mesa, que est parada num lugar; eu olhei um gato, ele tambm estparado, ou est dormindo. Logo, eu concluo que a mesa est dormindo tambm. Isso seriauma analogia de proporo falsa. Compreendem? Mas quando eu olho, o gato o gato, e amesa mesa, eu no me confundo quanto a isso. Mas quanto aos estados eu posso meconfundir indefinidamente; e a voc faz uma observao sistemtica. Agora, no existe tcnica

    de observao sistemtica melhor que as cincias desenvolveram para cada um dos seus camposrespectivos, sendo que o nico problema que elas fazem observaes sistemticas mas nosabem do que a observao, qual o objeto da observao. A no se trata de uma percepoprincipal talvez at possamos usar estes termos do Oscar Aguiar, uma percepoprincipal, percepo adicional. As percepes adicionais podem acrescentar estados,qualidades, processos, aes, paixes (que so aes sofridas) etc, mas no podem modificar asubstncia inicial. No existe [0:20] nenhum meio de se perceber uma substncia por umasequncia de atos cognitivos, no possvel. A percepo da substncia imediata ou ento elano acontece. Milhes de observaes detalhadas no diro para voc o que uma coisa

    saber em que estado ela est, o que ela est fazendo, o que est acontecendo, como aquilosucede etc. Mas tudo isso se baseia na possibilidade que ns temos da simples apreenso. Asimples apreenso mgica, porque ela une indissoluvelmente o singular e o universal; oumelhor, a pessoa percebe um ente sob a categoria universal a qual ele pertence.

    Aluno: A simples apreenso, ento, ela no admite mais e menos, melhor e pior? No existe...?

    Olavo: Existe perceber ou no perceber. Se voc no percebeu... Se, por exemplo, vocpercebeu um estado sem perceber qual a coisa voc no pegou a forma substancial, voc sabeque tem apenas uma aparncia. Um estado sem uma entidade substancial que o suporta (...).

    Por que se chama substancial? Sub-estarsignifica aquilo que est embaixo, aquilo que sustenta.Ento, os estados e qualidades tm uma substncia na qual eles se sustentam, quer dizer,aquilo que sucede, sucede algum, aquilo que feito feito por algum ou por algo. No tem

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    nenhum jeito de se perceber a substncia aos poucos (ou voc a percebe ou no percebe). Podeser uma substncia desconhecida, um ente desconhecido. No instante que voc diz que ele um ente desconhecido, voc o est classificando no pelos seus caracteres, mas peloconhecimento que tem dele.

    Quando o pessoal fala em UFO/OVNI (objeto voador no identificado), o que quer dizer?Eles no apreenderam a substncia, no sabem o que aquilo. Ento o classificam no pela suasubstncia, mas por uma qualidade externa, ou seja, pelo conhecimento que eles tm dele.Neste caso, no se tem a definio, tem-se um ndice localizador apenas; isto significa dizerque eles no esto compreendendo nada do que est acontecendo. Veja at que ponto nsdependemos da simples apreenso. Por exemplo, quantas observaes j foram feitas sobreUFOs? A Biblioteca Ufolgica universal uma coisa monstruosa; so milhes de livros, derelatos, de observaes, e de tudo isso, eles esto falando do qu? No se sabe. Eles esto

    percebendo apenas estados, aes, processos, mas no sabem qual a substncia; a mesmacoisa que dizer no sei nada. No entanto, pode-se criar uma cincia inteira cujo objeto desconhecido. Acontece que a modernidade apostou na hiptese de vir a conhecer a realidadedas coisas atravs da abordagem cientfica experimental matemtica o que absolutamenteimpossvel porque, ou este aparato cognitivo da cincia se baseia na noo da substncia, ouento ele no est falando de nada; tudo vira UFO, at um gato. Entende a que ponto isso grave e ao mesmo tempo cmico? Eles podem, ao mesmo tempo, ter mentalidade cientficabem formada, muito complexa e sofisticada, mas que, realmente, a rigor, no sabem do queesto falando. Esto descrevendo aparncias fenomnicas, que so estados sucedidos a ndicesdesconhecidos.

    Se isso foi compreendido, ento podemos passar noo seguinte: a noo de juzo. O juzo uma afirmao interior, uma sentena interior (que acontece no verbum mentis),acompanhado de afirmao ou negao quer dizer aquilo que voc interiormente acredita.O juzo se expressa verbalmente numa proposio, sentena ou afirmao. Existe, porm, umadiferena entre o juzo e proposio: o juzo pode ser sem palavras (por isso que diz ser apenaso verbum mentis); uma coisa na qual se acredita. Por exemplo, o gato est dormindo;interiormente, voc afirma que ele est dormindo, voc acredita nisso sem precisar usarpalavras. Logo, o juzo s com o juzo (ou o julgamento) s acontece dentro da conscincia

    humana, um ato imanente da conscincia. Quandoeuestou interiormente fazendo um juzo,no est acontecendo nada na sua cabea nem na cabea do outro. J a proposio umafrmula verbal, a expresso verbal do juzo.

    Um juzo, evidentemente, pode ser verdadeiro ou falso. Mas e uma proposio, uma sentena,pode? Veja, se eu sei uma determinada coisa eu sei que estou dando esta aula para vocsaqui agora, sei que estou fazendo est gravao isto um juzo. Se eu a transformo numaproposio, a proposio para mim nada acrescenta, ela s verbaliza algo que eu j sei. Ento averdade dela no est nela mesma, est no juzo anterior que a fundamentou, e do qual elanasce. Se eu expresso essa proposio para uma outra pessoa, ela verdadeira ou falsa?

    Depende de como a pessoa entenda a minha proposio. Ou seja, a pessoa ter de, por sua vez,transformar a proposio (que uma mera estrutura verbal) num juzo e, interiormente,concordar ou discordar. Acontece que eu formei o meu juzo a partir de algo que eu acredito

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    ter percebido ou de algo que eu pensei. E o ouvinte? O ouvinte no tem esta sequncia, eletem a sequncia inversa: ele tem uma proposio (uma estimulao sonora), que ele vai ter detransformar em experincia imaginria e criar um juzo interior. Neste processo ele pode errare parar longe do meu juzo originrio isso acontece com uma frequncia extraordinria.Tanto que, do que os filsofos escrevem, eu acredito que pelo menos cinquenta por cento correo destes processos (algum disse uma coisa que outrem entendeu de outra maneira).Ento, o primeiro sujeito teve uma percepo autntica, real; transformou numa proposio;pode ter feito isso com mais ou menos habilidade. E o sujeito que o ouviu (que no teve aexperincia originria) tem de criar uma experincia imaginria anloga, parecida com a doprimeiro, para ento dizer sim ou no. Isso bastante complicado. Se eu vejo que o sujeitoentendeu a minha proposio diferentemente, ou seja, se da mesma proposio ele construiuoutro juzo diferente do meu, eu tento corrigi-lo; como eu fao isso? Criando proposies arespeito da proposio; crio o juzo a respeito da proposio, tomo a minha prpria oposio

    como objeto, penso nela, e digo no foi isto que eu quis dizer. Ento, primeiro fao umaproposio sobre elefantes e voc no entende; depois eu fao uma proposio sobre umnegcio muito mais etreo que uma proposio e espero que voc entenda. Ou seja, como eus posso esclarecer o sentido de uma proposio, eu no posso forar o sujeito a ter o mesmojuzo que eu tive (e nem a minha percepo); eu s posso cercar as possibilidades de erro, porassim dizer negativamente, atravs de proposies corretivas que ele tambm pode noentender exatamente no mesmo sentido.

    A concluso disso muito simples: no existem proposies verdadeiras; no existemsentenas verdadeiras. Algum pergunta sobre a Bblia; nenhuma proposio que est escrita

    na Bblia verdadeira, porque depende como voc a entende. Por exemplo, est escrito noprincpio, Deus criou o cu e a terra; e voc entende que no princpio muito antigamente,e entende que Deus criou o cu e a terra pegando uma matria qualquer, modelando comterra... Voc j entendeu tudo errado [0:30] e isso absolutamente falso. O que Moiss escreveuno Pentateuco reflete o juzo que ele teve e que lhe foi inspirado por Deus. Mas no quer dizerque voc vai entender como Moiss entendeu. Ento voc no pode dizer que a proposiono princpio, Deus criou o cu e a terra verdadeira em si. O que verdadeira o juzo queDeus inspirou a Moiss e que ele exteriorizou com estas palavras.

    Se no existem proposies verdadeiras, s h juzos verdadeiros ou falsos, a proposiotambm no pode ser falsa; no existem proposies verdadeiras nem falsas, h apenas juzosverdadeiros e juzos falsos. Onde acontece o juzo? No interior da conscincia humana. Cadaum tem de fazer por si. Isso quer dizer que no existem elementos exteriores nos quaispossamos nos apoiar totalmente em matria de verdade ou falsidade. Por isso que SantoAgostinho dizia que no interior do homem habita a verdade. O juzo s existe para aconscincia concreta, individual, real, agente, do indivduo que est pensando no assunto sali que aparece a verdade. No estou me referindo agora verdade das prprias coisas, estoufalando da verdade no enquanto manifestao do ser, mas enquanto conhecimento. Ento, sevoc escrever livros e livros para registrar a verdade isso no garante que ela sobreviver,

    porque as pessoas podem entender aquilo tudo ao contrrio, e s vezes basta um pequeno erropara desmantelar um conjunto inteiro.

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    No se pode tocar, ver, medir a conscincia humana e, no entanto, s ali que existe a verdade(repito: no me refiro verdade das coisas, mas do conhecimento). As bibliotecas inteiras,todos os registros: nada disso tem verdade, tudo isso so apenas sementes de juzosverdadeiros que ns obteremos lendo aquelas coisas. Posso dizer que a obra inteira deAristteles diz a verdade? No; a verdade est nos juzos que Aristteles transps na formadaquelas sentenas. Se eu entender aquilo no sentido que Aristteles quis dizer, e tivercoincidido de ele ter percebido realmente a verdade, a ento estamos na verdade, porque pormeios imaginrios eu refiz o mesmo juzo que ele fez (no achar a mesma proposio).

    Algum pode argumentar que isso s acontece porque a linguagem imperfeita, ambgua, eque se houvesse uma linguagem sem ambiguidades isso no aconteceria. Mas o que umalinguagem sem ambiguidades? uma linguagem onde o termo ou o sinal ou signo contmtudo o que voc precisa para entend-lo, no h referncia a um elemento externo ao smbolo;

    porque se houver referncia ao elemento externo ento no basta ter o signo, preciso ter ou aexperincia ou a representao mental ou a imagem da coisa. No momento em que voc temalguma representao mental, alguma referncia a algo que exterior prpria proposio,entra a no a ambiguidade da linguagem, mas a ambiguidade das coisas. Isso no umalimitao da linguagem, isso a contingncia da prpria realidade das coisas. As coisas podemrevelar para voc instantaneamente a sua natureza, a sua forma substancial; porm, ela pra a.A forma substancial vem com crculo de latncia, mas dentre os inmeros elementos quecompe este crculo, qual ir aparecer na realidade no instante seguinte? Voc no sabe. obelo exemplo do cachorro deitado; o que ele vai fazer? Ele vai latir, morder-me, correr atrs demim ou no vai fazer nada? Portanto, uma linguagem sem ambiguidades s possvel no nvel

    da linguagem totalmente e exclusivamente formal, sem significados externos. Se voc disserpropor colocar alguns significados externos ento aqui eu defino cada termo, e cada umsignificar apenas o que est definido isso quer dizer que um sinal vai significar outrossinais, sem referncia realidade. Mesmo que tivesse tudo definido, s isto no basta. Quandovoc l as definies elas vo se reportar a elementos do mundo extralingsticos ou vo estarfechadas dentro do mundo intralingstico? Se esto fechadas dentro do mundointralingstico, ento elas no significam nada fora das palavras que as designam; estariamainda assim dentro de uma linguagem totalmente formal. Por exemplo, a proposio do tipose A = B, e B = C, ento A = C, no h ambiguidade alguma e, neste caso, a proposio

    coincide integralmente com o juzo. Mas o que eu disse ao dizer isso? Eu no disse nada. Euapenas expressei uma relao lgica possvel entre elementos desconhecidos e inteiramentevazios (semanticamente vazios) a linguagem sem semntica. Se voc fizer uma linguagemsem semntica (que apenas um cdigo formal), a no haver ambiguidade, nem salto entre ojuzo e a proposio. Portanto, no h possibilidade de algum no entender. a mesma coisaque dizer: se voc no disse nada, no h possibilidade algum no entender. E o conjunto deuma linguagem formal no diz nada, expressa somente relaes lgicas possveis no reais,no atuais, no captveis por experincia. Este o mundo da lgica formal, o mundo dasrelaes lgicas entre elementos que nada significam e nada dizem a respeito da experinciareal.

    Fora disso, entra naturalmente a ambiguidade da linguagem que reflete a ambiguidade dascoisas e das percepes as ambiguidades, mistrios, sutilezas do prprio mundo real. Isso

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    quer dizer que uma linguagem repleta de ambiguidades, mas que expresse a experincia real, muito mais eficaz em matria de conhecimento do que uma linguagem perfeita do ponto devista formal mas que nada diga. Isto tambm significa que a lgica nada ensina; ela s ilustra acorreo formal, os enlaces formais, entre proposies que no dizem nada. Assim, no apenasvoc pode expor em linguagem formalmente perfeita erros monumentais que no coincidemcom a realidade, mas tambm significa o contrrio: que percepes profundamente verdadeiraspodem ser expressas numa linguagem logicamente falha.

    O ser humano fica angustiado com isso por saber que nada garante para ele a sua posse daverdade. A verdade s existe na conscincia humana que a intelige, no momento em que aintelige. No adianta fixar aquilo numa frmula verbal perfeita, porque no instante seguintevoc mesmo lendo aquilo pode pensar outra coisa. Ento, s no momento em que o juzoreflete a percepo real de alguma coisa, e voc expressa para si mesmo, que se tem a

    verdade. To logo voc disse aquilo, voc transformou em proposio, entra o risco. Esterisco, todos vocs esto assumindo aqui esto assistindo o curso e fazendo o esforo parasintonizar a sua experincia imaginria s minhas experincias interiores que estou expressandopara vocs. Qual a garantia que vocs tm que vo acertar? Nenhuma. E que eu tenho?Nenhuma tambm. E, no entanto, parece que a maior parte dos alunos entende o que estoudizendo nas aulas; por qu? Porque querem entender; porque a [0:40] conscincia est voltadapara a busca da verdade. este desejo da verdade e este ato da conscincia que intelige, e quefaz o juzo interior verdadeiro, o nosso nico ponto de contato com a verdade. natural queesta situao seja mesmo insegura; porque eu estou aqui, mas o que me impede de comear apensar besteira agora mesmo? O que me impede de enganar a mim mesmo? Nada impede;

    somente a minha vontade. Ao raciocinarem, por exemplo, sobre a famosa questo do livrearbtrio e determinismo, pensem um pouco nisso. Se voc estivesse pr-determinado, vocestaria pr-determinado ou para a verdade ou para o erro ou para uma mistura de ambos. Sevoc est pr-determinado para mentira, voc no vai sair dela, da mesma forma para verdade;e se est para a mistura dessas duas, voc nunca vai saber qual uma ou outra.

    O fato de o ser humano querer a verdade, mesmo sobre uma coisa bem modesta, simples ehumilde, prova a sua liberdade. A capacidade que o ser humano tem de perceber e conhecer averdade funo do exerccio da sua liberdade e responsabilidade pessoal. No h nenhuma

    garantia. natural que o sujeito que est nesta situao sinta-se num mato sem cachorro;porque neste instante em que ele tem a total autoridade, o total poder de perceber a verdadeou neg-la, e nada lhe garante, somente o seu amor verdade lhe garante, ele pode ficar commedo e querer uma garantia externa. Os procedimentos usados tradicionalmente(historicamente) para criar, seno esta garantia, ao menos um simulacro dela, so basicamentedois:

    (1) Os dogmas religiosos: as pessoas se apegam, pegam a Bblia e dizem isto aqui a palavrade Deus, portanto a verdade. No, depende de como voc entende a coisa. Dizer, porexemplo, que Jesus filho de Deus Pai; se voc entender no sentido de filho carnal, j no

    entendeu nada. Vai dizer que isso uma verdade? Tem muito mulumano que l a Bbliaassim e, portanto, diz que mentira. A leitura deles vai parar anos-luz longe do sentidooriginrio o texto, porm, o mesmo. Nem a Bblia lhe garante; voc est livre para fazer

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    com ela o que quiser, entender as coisas mais absurdas. S este fio tnue do amor verdade,do desejo de conhec-la, que permite que voc continue na verdade. Nada mais lhe garante; odogma no lhe garante, o Esprito Santo tambm no lhe garante. Voc pode rejeitar ainspirao do Esprito Santo, pode at blasfemar contra o Ele. Deus lhe garante? No, no. Eleo ps aqui para voc fazer a escolha. A responsabilidade cognitiva a responsabilidade maisalta que o ser humano tem, e no existe nenhuma defesa externa; mas existem simulacros e oprimeiro deles ento o dogma religioso a proclamao de verdades uniformes que devemvaler para todos. O Credo da Igreja catlica, por exemplo, comea com a palavra Creio; maso que crer? Como isso? Crer significa aceitar aquilo somente naquele momento? Voc podeaceitar aquilo como hiptese. Se voc crer agora e deixa de crer daqui a cinco minutos, em quesentido voc est falando a palavra creio? A primeira palavra do Credo catlico expressa asua responsabilidade. Voc ter de crer vezes infinitas. Vai ter de ler aquilo, pensar, e ver queest certo: neste instante voc cr.

    O juzo uma afirmao interior acompanhada de um sentimento de afirmao ou denegao. O sentimento basta? No, porque ele pode ser momentneo; s vezes voc aceita ojuzo apenas por hiptese. Neste caso significa que voc no est crendo realmente, ento no um juzo ainda. Tem o juzo e tem o juzo contrrio. Se voc tem dois juzos contraditriosvoc no tem nenhum juzo, tem uma dvida apenas. O mero sentimento interior da provaoainda no constitui o juzo. O juzo se transforma num verdadeiro juzo quando voc assume osentimento de aprovao com plena responsabilidade a crena integral; Eu sei que isso verdade e se eu esquecer disso depois, o errado sou eu e, no, a verdade. Quando chega nesteponto que se tem um juzo, este pode ser transformado em proposio e ser objeto de

    discusso, de prova ou de refutao. Os produtos toscos, anteriores a este, no podem; ashesitaes da alma no podem. Nem mesmo o sentimento de aprovao constitui o juzo.Ento, o juzo no sentido lgico no sequer definvel sem o apelo aos elementospsicolgicos, interiores, os elementos reais interiores sentimento, vontade, liberdade etc. Asdefinies que os manuais lgicos do de juzo, so somente definies formais, no estodizendo o que um juzo realmente.

    O primeiro simulacro de garantia contra as incertezas da liberdade interior humana so osdogmas religiosos. So Paulo apstolo disse que voc tem de acreditar no esprito que vivifica,

    e no na letra que mata. Mas se eu for livraria eles s me vendem a letra; digo me d Bbliaa. Quanto custa o exemplar da palavra de Deus? 2 reais, 10 reais? Comprei a letra, meu filho.Eu posso repetir aquela letra, gritar, mas isso no garante que eu estou na verdade. Isso querdizer que perante Bblia estou num mato sem cachorro, porque eu estou em julgamentoperptuo. A cada momento eu tenho de descobrir a verdade espiritual que est naquela letra, eisto d muito trabalho. O que as pessoas fazem? Elas se apegam letra e acreditam que averdade est dita ali, e ficam brandindo isto a palavra de Deus; todo pastor protestante fazisso. Mas eu lhe digo que a Bblia no a palavra de Deus, a letra da palavra de Deus; e aletra no a palavra de Deus, a palavra de Deus o esprito. Ele mesmo disse, ele me deu umadica de como que eu tenho de entender isso a.

    (2) O segundo refgio da mente desesperada a lgica e a cincia, a formalizao perfeita.No comeo do sculo XX, dois idiotas (Ludwig Wittgenstein e Bertrand Russell) acreditaram

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    que era possvel criar uma linguagem lgica absolutamente perfeita, que seria obrigatria dafilosofia. A coisa fracassou redondamente, claro, porque quanto mais perfeita a linguagemvai se tornando do ponto de vista formal, mais contedo ela vai perdendo. No d para fazeruma linguagem perfeita e falar sobre o nada! Embora o projeto tenha fracassado, eu acho quea ideia est no fundo da cabea de muita gente, sobretudo o pessoal que fala em nome dascincias. A cincia tal como ensinada hoje pretende ensinar a verdade que valha por simesma, que se impe obrigatoriamente a todos [0:50], independentemente da conscinciaindividual. O ideal das cincias, tal como se praticam hoje em geral no digo todas, mas amaioria das pessoas faz isso produzir verdades to claras e auto-probantes que ningumprecisa pens-las para que elas sejam verdade, elas no precisam ser conhecidas porque valemindependente do ser humano o que uma coisa absolutamente utpica, impossvel, que seconseguisse transformaria um ser humano em um ET, quer dizer um processo deestupidificao.

    Eu vou ler um textinho no qual eu resumi isso. A aula de hoje ser um pouco mais curta, pois gravada, e no poderei responder as perguntas, que ficaro para a prxima (enquanto vocstiverem ouvindo isso eu estarei viajando para o Estado do Alabama; depois conto o que fiz l;se no fizer nada de imoral eu conto, seno no conto).

    O comeo aqui introduz outros problemas, que voltarei neles mais tarde. Estamos aquiseguindo a ordem de exposio dos manuais de lgica, apenas estamos preenchendo comoutro contedo. Eu expliquei o que a simples apreenso e o que o juzo. S que, ao invsde dar apenas a definio tcnica, manipulada, para voc sair falando coisas que na verdade no

    sabe o que , eu estou tentando investigar o que so mesmo o que ela representa do pontode vista da cognio humana real, efetiva, e no apenas um esqueminha formal hipottico.

    Se, como acredito ter demonstrado em O problema da verdade e a verdade do problema(que uma apostila que est no site), se existe verdade na percepo, e no s no pensamentoou na fala, resta o fato indiscutvel de que a verdade da percepo individual e subjetiva. Paradar-lhe liquidez no mercado das ideias preciso transmut-la em conceitos, juzos eproposies. Saltemos sobre as dificuldades inerentes a estas transmutaes e vamos direto aoponto. Supondo-se que voc tenha percebido um fato corretamente, e conseguido transform-lo com xito em uma proposio clara, sem ambiguidades; ser a proposio verdadeira por

    isso? Sim, para voc. (Ou seja, voc percebeu a verdade e a expressou numa proposio quepara voc significa aquele mesmo juzo, o qual por sua vez, significa a mesma percepo, amesma experincia). To logo expressa em palavras, a verdade ter de ser refeita na conscinciado ouvinte ou leitor mediante a revivescncia imaginaria daquilo que para voc foi percepodireta. A possibilidade de erro nesse processo to vasta, que boa parte daquilo que se escreveem filosofia consiste em tentativa de corrigi-los. Aquilo que voc produziu como expresso

    verbal de uma percepo torna-se na mente do destinatrio construo de imagens medianteum plano verbal determinado.

    S a verdade compartilhada, intersubjetiva, pode integrar-se num ambiente cultural e tornar-se

    objeto de discusso e prova. na passagem do subjetivo ao intersubjetivo que surgem asmaiores dificuldades, no s prticas como tericas. Aristteles ensinava que a verdade existe nojuzo, mas juzo significa a sentena pensada, subjetiva, acompanhada do respectivo sentimento

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    de concordncia ou discordncia. O ouvinte da proposio pode interpretar diferentemente doemissor e, acreditando concordar com ele, acaba concordando, de fato, com o algo que ele nodisse. Se o emissor tentar, ento, explicar meticulosamente o que quis dizer, cada frase que eleusar para isso ter de ser interpretada por sua vez, sujeitando-se, portanto, aos mesmos riscos da

    proposio inicial (com o agravante, alis, de que a proposio inicial dissesse respeito a algumacoisa, e agora est falando a respeito de estados interiores evanescentes).

    A concluso a que isso nos leva obvia: a verdade est no juzo, no na proposio em si. Noexistem proposies verdadeiras ou falsas; a verdade e a falsidade s aparecem quando umaconscincia real, agente, transmuta a percepo em juzo e a personaliza mediante seusentimento de concordncia ou discordncia. Mais ainda, nem esse sentimento basta, se momentneo e no instante seguinte a conscincia vacilante j troca o sim por no e o no porsim. O juzo s se perfaz quando afirmado no interior da alma, com firmeza resoluta queexclui taxativamente seu contrrio, at mesmo como mera possibilidade. S a temos diante de

    ns aquele produto final, que ento pode ser discutido, provado ou impugnado, pela lgica oupela experincia.

    O juzo , portanto, um ato de responsabilidade pessoal e s existe no momento em que seperfaz responsavelmente na conscincia. Mas, diro, isso s assim por culpa das ambiguidadesda linguagem; se todos atribussem significados uniformes a mesmas proposies, no haveriahiato entre proposio e juzo; ento, poderamos tranquilamente falar em proposies

    verdadeiras e proposies falsas (...)

    Na lgica moderna se faz algo chamado tbua de proposies verdadeiras e proposiesfalsas. Mas nenhuma das proposies verdadeira ou falsa, ela apenas tomadahipoteticamente como tal para fins da estrutura do raciocnio. Adestre-se nesta arte que voc setornar incapaz de distinguir verdade efetiva e verdade hipottica. Aceitar hipoteticamenteuma proposio no constitui um juzo, porque falta o elemento da concordncia real. Ora, emque sentido uma concordncia hipottica expressa uma verdade, se a prpria concordncia estdizendo que fingida ou hipottica? Quando voc se habitua com essa coisa, comea a chamarde verdade e falsidade apenas uma caracterstica lgica de um jogo formal de proposies, eento voc perde completamente a noo de verdade. Mas quem se viciou nisso foi vocmesmo, foi porque quis, porque acreditou no manual de lgica. No de se espantar que,entrando por este caminho, logo voc termine formulando um milho de lgicas paradoxais

    possveis, porque uma simples arte de combinatria formal que no tem limites. Voc podeinventar quantas regras quiser, s que isto no tem nada a ver com experincia ouconhecimento da verdade. Mas voc se habitua usar a palavra verdadeno sentido da aceitaohipottica de um juzo que pode nem sequer ter contedo. Isso uma pratica necessria aoaprendizado da filosofia? No, essa prtica deve ser evitada. Se um dia voc quiser entregar-sea isso no, agora vou precisar sentar aqui e estudar o negcio de lgica matemtica deixe pra depois que voc tiver uma firme formao filosfica. Mas se a sua formao comeapor isso voc est lascado.

    (...) ento, poderamos tranquilamente falar em proposies verdadeiras e proposies falsas.

    Isso verdade, mas a completa eliminao das ambiguidades s possvel numa linguagempuramente formal, onde cada termo s remete a si mesmo e a nenhum objeto de percepo. Ou

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    seja, numa linguagem que seja a priori indiferente atividade das conscincias reais envolvidasno processo.

    Se voc comea com essa formao, termina desconstrucionista; porque voc se habitua a

    raciocinar numa linguagem onde cada signo s significa ele mesmo, sem ligao com o objetoda experincia. Da a pouco voc acaba achando que todo mundo fala assim, quando o nicoidiota que fala assim voc mesmo.

    A proposio se A=B e B=C, ento A=C deste gnero. Ela pode ser dita verdadeira emsi, precisamente porque no significa nada alm de uma relao lgica virtual entre termos

    vazios de significado. A lgica formal s lida com este tipo de proposies e chamada deformal precisamente por isso. Tal razo pela qual a lgica formal nada tem a ver com a

    verdade, mas somente com a correo formal do raciocnio. O que implica que no somenteconcluses falsas possam se obter de raciocnios perfeitos, mas que verdades essenciais podem

    vir expostas em formas logicamente incorretas. [1:00] Podem, tambm, existir verdadesinexpressas, captadas ao nvel da mera percepo, sem proposio e nem mesmo juzo.

    Espero que isso tenha ficado claro.

    Aluno: Uma das maiores discusses aqui na filosofia americana sobre se a referncia das palavras

    numa proposio uma referncia s coisas externas ou aos resultados internos de quem emite a

    proposio(...)

    Olavo: Ela uma referncia s coisas atravs dos estados internos. Isso no uma discussolegtima. Isso a mesma coisa que perguntar se um gato uma estrutura antomo-fisiolgicacoberta de pelos ou se um plo encobrindo uma estrutura antomo-fisiolgica de gato amesma pergunta. Na verdade, ele tem de ser as duas coisas ao mesmo tempo. Voc no podefazer uma referncia direta s coisas, a no ser das percepes que teve delas. Mas se areferncia somente sua percepo, ento voc trocou de objeto. A intencionalidade agora jno se dirige ao objeto, mas ao prprio ato de percepo. No mesma coisa, por exemplo, euanalisar um gato e analisar a minha percepo de gato. Agora, quando o sujeito faz estaconfuso, ele pode achar que existe a uma oposio ou um problema a ser resolvido, mas noh problema nenhum o nico problema a burrice dele. Por que as pessoas levantam essas

    questes idiotas? Porque foram treinadas com a lgica moderna desde o incio. Esta serve paramontar computador, no serve para a filosofia.

    Aluno: (...) Mas, ento, tendo as palavras referncia a coisas, isto no significa que de alguma forma o

    juzo (a ligao entre sujeito-predicado) tem algo de verdadeiro ou falso em si, pela prpria referncia

    que as palavras tm na proposio?

    Olavo: Claro que existe algo de verdadeiro quanto ao prprio juzo. necessrio que o juzoseja um juzo. Ento existe uma verdade do juzo, claro. J a proposio tambm tem de seruma proposio, porque uma proposio vazia (como essa do A=B e B=C, logo A=C) no

    uma proposio de maneira alguma, apenas uma matriz lgica de proposies possveis.Proposies possveis so aquelas que, justamente, no foram propostas; podem vir a ser, masno foram. Ento claro que existe a verdade da coisa, a verdade da percepo, a verdade do

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    juzo e a verdade da proposio enquanto proposio (ela tem de ser uma proposio de fato eela tem de significar aquilo que ela significa); ou seja, a verdade da proposio est no seujuzo correspondente, e no nela mesma. E a verdade do juzo est na sua referncia ao objeto mesmo que este objeto seja o prprio juzo.

    Aluno: A pergunta sobre a prova da existncia de Deus por Santo Anselmo. Dada a explicao que

    voc deu, a mesma coisa vale para esta prova, quer dizer, como proposio verdadeira ou falsa?

    Olavo: Sem dvida. A prova de Deus por Santo Anselmo: Deus um ser perfeito; se Ele fosseafetado pela deficincia que se chama inexistncia, Ele no seria perfeito. Ento a Suaexistncia absolutamente necessria. Kant objeta, dizendo que a voc est se referindosomente ao conceito de Deus; um raciocnio feito a partir do conceito de Deus como enteperfeito e, portanto, ainda que seu raciocnio esteja logicamente correto, voc no provou

    nada. Mas eu mesmo j expliquei que proposies que surgem diretamente de um ato intuitivono podem ser hipotticas (no so proposies auto-evidentes hipotticas). Se voc faz umaproposio auto-evidente de maneira hipottica, voc a transformou numa outra proposio.Por exemplo, a proposio eu estou aqui agora; eu posso pensar isso apenas como hiptese,mas ela j no ser a mesma proposio. No primeiro caso, refiro-me a uma percepointuitiva de que eu estou aqui agora, e no outro caso, estou tratando apenas a proposiocomo uma hiptese de que eu pensasse isso; ento, no a mesma proposio. E o que Kantfaz com Santo Anselmo no discutir a proposio do Santo; ele a transforma em umaproposio hipottica e passa a discuti-la a partir da. um erro absolutamente elementar.

    J que no temos mais perguntas, vamos parar por aqui porque agora temos de sair para jantare comemorar o dia de Saint Patrick. Muito obrigado a todos e at semana que vem. [1:06:12]

    [fim da aula]

    Transcrio: Silvia OrsiniReviso: Mariana Belmonte