COF Resumos Aulas 6 a 10

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    Curso Online de Filosofia

    OLAVO DE CARVALHO

    Resumos de Aulas

    Vol. II

    Elaborado por Mrio Chainho

    ndice Pag.

    Aula 06 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin) 2

    Aula 07 16/05/2009 12

    Aula 08 23/05/2009 20Aula 09 06/06/2009 27

    Aula 10 13/06/2009 36

    Notas:1) Este material para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes

    devem sempre recorrer s gravaes e transcries das aulas, como fontes primrias,para limitar a propagao dos erros involuntrios aqui contidos e colmatar as lacunas.

    2) Os resumos foram escritos em portugus de Portugal.

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    Aula 06 02/05/2009 (Especial Eric Voegelin)

    Sinopse: Eric Vogelin procurou responder s questes fundamentais que selevantavam no seu tempo. Investigou a natureza dos movimentos de massas, o que olevou a iniciar linhas de estudo que no tinham paralelo. A sua metodologia recorriaapenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagem teortica, o que lhe

    permitia descobrir linhas de significado. Voegelin escreveu livros sobre a menteamericana, a ideia de raa, as religies polticas e um manual sobre a histria dasideias polticas que foi abandonado, aps a elaborao de 8 volumes, por ter

    percebido que no havia continuidade nas doutrinas. Iniciou, ento, a sua grandeobra, Order and History, uma histria sobre os modelos de ordem, que era o terrenocomum que ele tinha detectado nos seus anteriores trabalhos. Examinou primeiro ascivilizaes cosmolgicas do oriente, que identificavam a ordem social com a ordem

    csmica, e extraiam dessa ordem a sua representao existencial. A revelaohebraica vai consistir num primeiro salto no ser, que introduz uma dimenso histricae uma existncia face a Deus, que mediada pelo profeta, que comea por colocarordem na sua alma, de acordo com a ordem divina, e depois obedecido pelacomunidade, que assim atesta o seu maior ou menor grau de fidelidade recordaoda interveno divina. Um segundo salto no serocorreu com o nascimento da filosofiana Grcia, onde se vai tentar apreender algo da ordem divina, as leis no escritas, pormeios noticos. A revelao hebraica e a filosofia grega vo combinar-se nocristianismo mas j ao nvel do indivduo. O modelo de ordem da modernidade, paraVoegelin, caracterizado pela perda da existncia face a Deus e por um contedo

    efectivo dado pelas seitas gnsticas. Voegelin no conseguiu dispor os vrios modelosde ordem em sequncia, como imaginara, pois estes apareciam simultaneamente emvrios locais e at no mesmo local, e da ele vai afirmar que a ordem da Histria ahistria da ordem. Afasta-se assim definitivamente das concepes simplistas quemodulam a Histria como se fosse uma biografia humana e lhe determinam umsentido e um fim, como aconteceu com Compte e Marx. Nos movimentosrevolucionrios de massas vo confluir duas linhas, a gnstica e a messinica, queVoegelin chamava de apocalptica e no tinha no incio considerado. Os movimentosmessinicos surgem do escndalo face corrupo da Igreja, e da descrena da

    possibilidade da ordem poder ser restaurada. Estes movimentos vo manifestar-se na

    reforma protestante, onde iro aparecer alguns elementos caractersticos dasideologias de massas, nomeadamente em Calvino, que vai criar a militncia, apropaganda e a noo de Estado totalitrio, e com Thomas Cramer, um precursor deAntnio Gramsci, que criou a estratgia das mudanas graduais. Mais tarde estesmovimentos infundem-se de gnosticismo e ocultismo e vo aparecer com um carcterradicalmente anticristo. Saber como isso aconteceu no podia ter sido feito por EricVoegelin devido ao mtodo por ele usado, j que os acontecimentos deram-se no seiode sociedades secretas ou discretas. Esta uma primeira linha de investigao abertaque deve ser respondida. Outra linha de investigao prende-se como Islo e anecessidade de elaborar uma filosofia crist da Histria. Eric Voegelin no se

    debruou o suficiente sobre o Islo para perceber que se tratava de uma civilizaoeminentemente histrica, com uma filosofia da Histria pronta desde o incio, algo

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    que ainda falta ao cristianismo. Por ltimo, falta ainda desenvolver uma cincia, nonos moldes da cincia moderna, que possa estudar os milagres, pois estes so ainterveno de Deus na Histria e a fora de expanso do cristianismo.

    Primeiros trabalhos: metodologia e campo de estudosEric Voegelin teve o privilgio de frequentar a Universidade de Viena, nas dcadas de20 e 30 do sculo XX, quando esta instituio tinha intelectuais de alto gabarito, quelhe ajudaram a definir metodologias e o campo de estudo. Seguindo a boa tradiofilosfica, as suas reas de interesse intelectual visaram sempre responder aos maioresfenmenos sociais da sua poca, obrigando-o a iniciar linhas de estudo que no tinhamparalelo e a ter que interromper essas linhas para iniciar outras que lhe pudessem daruma maior proximidade verdade dos acontecimentos.

    Os primeiros trabalhos de Eric Voegelin procuraram definir o campo de estudos das

    cincias sociais e saber se a prpria sociedade existia ou se existiam apenas os seuselementos. Ele acabou por delimitar o campo da sociologia como aquele que estuda atenso entre o indivduo e a sociedade. Hans Kelsen e Othmar Span foram duasinfluncias contrastantes que marcaram a sua formao e o levaram directamente aestas investigaes. Hans Kelsen foi o criador da Teoria Pura do Direito, procurandoresponder a uma necessidade de delimitar o direito como cincia autnoma (pura). Eleacabou por definir o campo jurdico como contendo apenas a estrutura formal dalgica normativa, onde no entravam nem os valores nem as ideias polticas. JOthmar Span, na sociologia, fez um esforo de concepo de uma viso holstica dasociedade, onde a independncia das partes ficaria submetida ao todo. Aps o seu

    doutoramento, Eric Voegelin vai para os Estados Unidos, como bolseiro da fundaoRockefeller, estudar o caso concreto americano, de onde resulta o livro On the Form ofthe American Mind (segundo o ndice das The Collected Works of Eric Voegelin,publicao da University of Missouri Press, que ser aqui utilizado como refernciabibliogrfica). Ele vai supor que existe mesmo uma sociedade americana com umaunidade, no apenas o aglomerado de grupos e indivduos, sem que essa sociedadechegue a ser uma substncia no sentido aristotlico.

    Eric Voegelin comeou aqui a desenvolver uma metodologia de estudo que iria utilizarmuitas vezes. Por um lado, ele recorreu a uma medida simplificadora em relao ssuas fontes, recorrendo apenas a documentos auto-expressivos escritos em linguagemteortica, ou seja, no caso concreto da mentalidade americana Voegelin vai tentarapanhar a sua unidade a partir das interpretaes dos prprios agentes histricosenvolvidos, identificando uma unidade no dilogo e, assim, uma unidade namentalidade. A utilizao dos factos brutos tornaria o estudo de uma dimensoincomportvel, alm de no serem documentos auto-expressivos. As obras literriastambm no so utilizadas por carecerem de linguagem teortica. Eric Voegelin tersido inspirado nesta metodologia, presumivelmente, por Aristteles quando este dizque a dialctica nunca parte do exame dos factos em bruto mas do exame das opiniesdos sbios, ou seja, uma sntese de nvel superior elaborada a partir de snteses

    parciais. Esta metodologia teve tambm a influncia do historiador Eduard Meyer,com quem Voegelin teve contacto em Berlim. Eduard Meyer defendia que a

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    interpretao dos factos histricos tinha de partir da auto-interpretao feita pelosagentes, desde que elaborada em linguagem teortica. Este mtodo utilizado por EricVoegelin tem algumas limitaes, como veremos, mas permitiu identificar linhas designificadopelo constante retorno das mesmas questes ao longo dos sculos, podendomesmo falar-se de uma continuidade ao longo do processo mental.

    Outra parte do mtodo utilizado por Eric Voegelin, j dentro da anlise dosdocumentos, teve a influncia de Paul Friedlander, especialista em Plato, com quemele tinha mantido contacto em Viena. Friedlander queria tratar da histria das pessoasreais, que tinham elaborado as concepes filosficas, retirando da linguagemabstracta o fundo de experincia que as tinha desencadeado.

    Motivado pela situao vivida no incio da dcada de 30, Voegelin escreveu dois livrossobre a ideia de raa (Race and State eThe History of the Race Idea: From Ray toCarus). Com a sua metodologia, ele vai descobrir que a doutrina racista deriva dacultura iluminista e no podia ter sido constituda sem o conceito biolgico de raa.

    At ao sculo XVIII o conceito de raa era usado no sentido cultural e religioso. Adoutrina racista um longo processo de falsificaes que tem um propsito de auto-identificao ideolgico, e nada diz sobre a raa do outro grupo ou do nosso.

    A perseguio que Eric Voegelin sofreu pelos nazis devido aos seus livros sobre raalevou-o a se interessar ainda mais pelos fenmenos de massas e, em 1938, ano do seuexlio para os Estados Unidos, publicou o livro Political Religions (The CollectedWorks of Eric Voegelin, 5. volume, em conjunto com os livros The New Science ofPolitics eScience, Politics, and Gnosticism). Voegelin tinha vindo a se interessar porautores tomistas e neotomistas, como Hans Urs von Balthazar e Henri de Lubac, que o

    despertaram para as ligaes das ideologias de massas s heresias gnsticas. Henri deLubac mostra no livro O Drama do Humanismo Ateuque a figura de Cristo no erasimplesmente rejeitada por certas escolas de pensamento, o que levaria a uma rejeio,mas sim motivo de inveja, o que levaria a querer tomar o seu lugar. A ideia deVoegelin no livro Political Religions era mostrar que algumas ideologias polticaseram religies substitutivas. Sendo possvel fazer uma analogia, ele percebeu que issono era um princpio explicativo suficiente.

    Depois Voegelin foi contratado para fazer um manual com a histria das ideiaspolticas, em trs volumes. Mas j ia no oitavo volume quando percebeu que haviaalgo de errado. Uma histria deste gnero pressuponha uma continuidade das ideias

    polticas e das doutrinas, o que no se verificava. Ele percebeu que as prpriasdoutrinas tinham que ser encaradas como documentos auto-expressivos, mas isso iriaalterar tanto o projecto que ele simplesmente abandonou-o e comeou algo novo, a suaobra principal, Order and History.

    Civilizaes cosmolgicas e a representao

    Em Order and History, Voegelin vai elaborar uma histria dos modelos de ordem, quelhe pareceu ser o terreno comum que tinha aparecido nos seus anteriores trabalhos.Estes modelos de ordem foram identificados pelos prprios intervenientes no processohistrico e depois utilizados para estruturar a vida humana. As primeiras civilizaesabordadas foram as do oriente, China, ndia e Egipto, tendo Voegelin saltado por cima

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    das culturas tribais por estas no terem fornecido documentos auto-expressivos comoera requerido pelo mtodo por ele utilizado. Estas civilizaes orientais desenvolveramaquilo a que Voegelin chamava de sociedades cosmolgicas. Os tericos destascivilizaes no defendiam apenas uma aproximao do modelo da sociedade ordemcsmica, eram bem mais radicais e acreditavam que a sua sociedade j fazia partedessa ordem e era um elemento que servia para preserv-la. Rituais no cumpridospelo imperador da China poderiam causar no s desordem social mas cataclismosnaturais, acreditava-se. Isto introduziu uma viso unitria e fechada do mundo, quecondenava inexistncia quem no estivesse integrado na sociedade. A existncia deoutras ordens era motivo de crise. As outras ordens eram consideradas ilegtimas erepresentavam o caos.

    No livro The New Science of Politics (The Collected Works of Eric Voegelin, 5.volume) surge a ideia de que a ordem vigente representa o povo. No se trata de umarepresentao poltica mas existencial,

    em que a ordem fornece sociedade,

    retroactivamente, o critrio para distinguir o certo do errado, o verdadeiro do falso.Numa civilizao cosmolgica, onde a verdade como um todo a ordem social,indistinta da ordem csmica, nada fora dessa ordem pode ser considerado legtimo ouverdadeiro e a prpria existncia de outras ordens era um escndalo e uma ameaa.Esta tenso era eliminada quando os imprios, como nos casos do Egipto e de Roma,invadiam terrenos vizinhos e absorviam elementos dessas culturas, fazendo rearranjossimblicos entre as ordens parciais, o que permitia manter a ordem global.

    A revelao hebraica e a inaugurao da dimenso histrica na humanidade

    A revelao hebraica surge numa envolvente hostil dominada por grandes civilizaescsmicas que se viam a si mesmas como o centro do mundo, sendo tudo o resto umaperiferia anormal e provisria. Esta nova ordem constituiu-se pela abertura de algunsindivduos para uma ordem supra-csmica, transcendente. A sociedade j no eraordenada directamente mas atravs dos profetas, que construam primeiro a sua ordeminterna e se tornavam juzes e reordenadores da sociedade. Esta ordem divina erasuperior ordem csmica, mas no tinha a estabilidade desta e vivia em permanentecrise pois dependia da obedincia do profeta a Deus e de que a sociedade se deixasseguiar pelo profeta. A relao entre Deus e o profeta subtil. A revelao gradual epode ser incompreendida, e pode ainda existir infidelidade. A fidelidade do profeta

    revelao no uma mera compreenso mental, aquilo tem que se transformar numnovo modo de existncia e ele vai ter de incorporar essa ordem em si pois a revelao

    j no est mais presente, ao contrrio da ordem csmica, com uma presena sempreevidente no movimento dos astros e na sequncia das estaes. A nova ordem era maisexigente e subtil, aconteciam muitos percalos e episdios onde se evidenciava atentao de voltar ordem anterior, que sobrevivia sempre em resqucios.

    Sendo a revelao gradual e o processo de transmisso sociedade complexo,mediado pelo profeta, a nova ordem teve uma implementao gradual. Isto ainaugurao da dimenso histrica na humanidade, marcada pela incerteza, pela

    dependncia do elo frgil da fidelidade recordao da revelao e onde oesquecimento de Deus frequente, ao ponto de se tornar em tema recorrente na

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    literatura universal. A nova dimenso inaugurada, segundo Voegelin no xodo para oEgipto, a vida na incerteza histrica, onde no h um trmino pr-determinado eapenas umas promessas vagas de Deus a serem cumpridas em data incerta e por meiosimprevisveis.

    Um novo Salto no Ser com o nascimento da filosofia na Grcia

    Quase ao mesmo tempo que ocorria a revelao hebraica, na Grcia nascia a filosofia,constituindo um segundo salto para dentro do ser. Estes saltos so novas dimensespara a conscincia humana, onde antes apenas existiam vestgios. Os indivduos dascivilizaes cosmolgicas no chegavam ter conscincia da sua existncia histrica.Essa conscincia de uma existncia histrica apareceu em Israel, e implicava um deverem cumprir uma misso, sem garantias de isso ser possvel nem o conhecimento dosmeios a ser utilizados. Sendo a relao da f muito mais legtima e profunda que a

    confiana total na ordem cosmolgica fechada, no podemos dizer que anteriormentese vivia no erro total. As civilizaes cosmolgicas mais importantes duraram milniose no podiam ter se baseado num conhecimento totalmente errado para obter estalongevidade. S recentemente se tentou recuperar este conhecimento a partir dos seusprprios termos, com todas as dificuldades inerentes aos trabalhos pioneiros, emtrabalhos como Temple de lHommee Le Miracle Egipcian, de Schwaller de Lubicz eSerpent in the Sky, de John Anthony West. Nem todos os elementos da ordemcosmolgica foram eliminados, mantendo-se na prpria cultura crist na forma deocultismo e esoterismo. O que as novas ordens vieram acrescentar foi uma percepomais fina quando antes as coisas eram nebulosas e vistas de forma simblica.

    O salto no serocorrido no mundo helnico, apesar de ter se dado por meios diferentes,teve um teor idntico ao da revelao hebraica. A filosofia era tambm uma abertura ordem divina, da qual se tentava descobrir alguma coisa atravs da razo ou logos.Essa ordem evidenciava-se nas leis no escritas, que se encontravam para alm daordem social ou csmica. Um exemplo de uma lei no escrita, retirado da AntgonadeSfocles, que no decente recusar uma sepultura a um morto, o que se sobrepe aum costume social de repudiar uma pessoa quando ela ter lutou por uma naoestrangeira. Inicialmente a razono significava pensamento lgico, j que a prprialgica no havia sido criada. Para Eric Voegelin, a razo a simples tendncia dainteligncia humana ir em direco ao fundamento, que a ordem divina. A lgica

    limita-se a absorver e desenvolver princpios universais provindos da ordem divina,que no dependem do prprio cosmos, como o princpio de identidadeenunciado porAristteles. Quando os pr-socrticos tentaram descobrir o elemento fundamental danatureza, o que realmente procuravam era um factor transcendente estruturante de todoo cosmos. Era uma busca de uma intuio da ordem divina supra-csmica, mas aindaestavam presos linguagem csmica porque faziam as primeiras aproximaes a umanova dimenso. Tanto no desenvolvimento da filosofia como na construo da leihebraica h a necessidade de desenvolver meios expressivos adequados para acomunidade poder compreender e absorver a nova ordem.

    Ambos os saltos no sertm a sua substncia na ordem divina, mas diferem nos meios.A revelao hebraica de ordem neumtica, relativa ao esprito que inspira o profeta.

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    A filosofia grega de ordem notica, puramente cognitiva, mas os primeiros filsofosacabam por ter a estatura de profetas devido ao papel que desempenharam e prpriainspirao que acabou por ser tambm divina. Antes destes saltos no ser os homensno tinham conscincia, eram como bonecos nas mos de ventrloquos os deusescsmicos , como alude Julian Jaynes no livro A origem da conscincia na ruptura damente bicameral. A dimenso histrica uma dialctica entre ordem e desordem; ohomem est numa fronteira entre o finito e o infinito; a sua existncia a tenso dofinito em relao ao infinito, uma tenso que nunca se acalma ou pode ser satisfeita.No existe esta tenso na ordem cosmolgica, que esttica e fechada. Os elementosde desordem tinham que ser explicados como fazendo parte intrnseca da prpriaordem e por isso os deuses deles tambm eram meio demnios. A ideia de que acondio humana a existncia numa rede de tenses, a que Plato chamava metaxis, um dos patamares da filosofia, os quais constituem a sua histria como se degrausfossem que no podiam mais ser ignorados. O mecanicismo introduzido por Newton um retrocesso, que apareceu como a restaurao da ordem csmica, e s no sculo XXo elemento tensional voltou a ser reintroduzido com o indeterminismo e a mecnicaquntica. Comearam a proliferar os estudos sobre o caos, mas na verdade, nem caosnem ordem existem, apenas uma tenso entre ambos.

    Vo fundir-se no cristianismo os dois saltos no serocorridos no mundo hebraico e nomundo helnico, agora j ao nvel da dimenso da vida de cada indivduo. Cadaindivduo em particular, e no apenas a comunidade, vive na tenso histrica peranteDeus. Existe aqui um nvel cognitivo superior nesta descoberta de se ver a si mesmacomo uma civilizao histrica, quando as outras ainda permaneciam de algum modopresas s concepes cclicas anteriores. Para alm do cristianismo, apenas o

    islamismo tem tambm esta concepo histrica de si mesmo.

    O gnosticismo como modelo de ordem da modernidade

    Eric Voegelin questionou-se depois sobre o modelo de ordem da modernidade. Amodernidade caracteriza-se pela perda de uma existncia diante de Deus, mas o seucontedo efectivo, para Voegelin, tinha sido dado pelas seitas gnsticas. Ele achavaque o modelo de ordem fundado na revelao hebraica e na razo grega era demasiadoexigente e enervante, dependendo de uma contnua transmisso de gerao paragerao, por meios essencialmente discursivos e onde apenas alguns rituais poderiam

    dar alguma vivncia da recordao original. Basta um pequeno enfraquecimento nessatransmisso e as pessoas vo logo procurar modos de existncia anteriores que lhesdem maiores certezas e estabilidade. Mas isso impossvel porque nem ascivilizaes csmicas, nem o mundo greco-romano existem mais. O que subsistiudesse mundo antigo desaparecido so apenas resduos, que se misturaram comelementos novos e se combinaram em frmulas sadas da prpria Igreja, originandocomunidades herticas, onde a principal era a gnstica. O que h de comum na enormequantidade de teorias gnsticas a experincia do terror, do caos e da desordem. Estaexperincia no atenuada pela f, pois os gnsticos j no tm a recordao darevelao diante deles; perderam a f. A prpria noo do que a f mudou totalmente

    de sentido e passou a ser a crena numa doutrina. A doutrina apenas um elementodiscursivo que tenta explicar por meios racionais os acontecimentos relatados. A f

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    significava anteriormente a fidelidade recordao desses acontecimentos mas,originalmente, era a confiana numa presena, que podia ser a presena de Deusquando Moiss recebeu as tbuas da lei a Moiss, ou na divindade de Cristo realizandomilagres. Os milagres foram se repetindo ao longo da Histria e nem tudo dependeu darecordao dos eventos primordiais. Mas quando j no h presena divina nem a suarecordao, restava apenas a doutrina que, por ser um discurso, sujeita-se a umadialctica que faz aparecer a sua negao e d origem a uma discusso que se afastacada vez mais dos factos originrios, que eram os elementos realmente estruturantes daordem. O gnosticismo uma experincia do caos que tenta ser resolvida pelo domniointelectual completo da situao e da proclama uma ordem total, que apenashipottica e o indivduo acaba por ficar ainda mais desesperado. As variantes dognosticismo que apareceram traduzem este choque entre ordem hipottica e desordemreal. As variantes evasionistas querem apenas sair deste mundo e ir para um mundoespiritual onde vigora a ordem e a paz. Mas tambm surgiram variantes activistas queprojectam essa ordem ideal no futuro, e da surge o mpeto de criar um mundo melhor.

    A ordem da Histria a histria da ordem

    Eric Voegelin imaginou que podia dispor os modelos de ordem ao longo da Histriapara que a prpria sequncia fosse a ordem da Histria. Mas os vrios modelosocorriam em vrios lugares e por vezes no mesmo lugar simultaneamente, e da eleformulou a sua sentena final de que a ordem da Histria a histria da ordem. Nadamais existiria que uma sequncia de buscas de ordem. Afastou-se assimdefinitivamente das vises simplistas que tentam encontrar um fio condutor na

    Histria que permitiria conhecer o seu percurso pr-determinado, como no caso deCompte, que preconizava uma sequncia de trs ordens (mtica, metafsica e positiva),ou da sequncia inevitvel apontada por Marx (comunidade primitiva, feudalismo,capitalismo e socialismo). Estas filosofias da Histria so falsas na base porque tentamver desde fora a Histria como um objecto. Esta ordem que eles projectam na Histria apenas a ordem por eles concebida, que no passa de um novo captulo na histria daordem que no tem trmino pr-determinado nem sabemos onde vai dar.

    A Histria no pode ser vista como a vida de um indivduo, que tem uma duraoexpectvel. A Histria no tem um fim pr-determinado que possa ser conhecido porns. O impulso de querer conhecer o fim da Histria no se iniciou com o gnosticismo

    mas nas primeiras geraes de cristos que interpretaram mal o que S. Paulo quis dizerao afirmar que a vinda do Cristo era iminente. Isso era para ser interpretado em termosda histria individual de cada um, que iria ser confrontada com o Juzo Final aps amorte. Mas foi entendido como um desgnio colectivo e histrico e, mesmo tendo sidoreunido um conclio para explicar o assunto, permaneceu sempre a ambiguidade. Poroutro lado, os saltos no serocorridos na Grcia e em Israel transferiram a identificaoda sociedade, anteriormente com o cosmos, para a alma do profeta. Da foi um passopara ver a Histria como a vida de um ser humano, porque a comunidade seidentificava com o profeta. Santo Agostinho tentou colocar ordem nesta confuso aoafirmar que no existia uma Histria mas duas, a Histria terrestre e a Histria da

    salvao. A Histria terrestre no tinha um sentido definido muito menos um trminopr-estabelecido, ao contrrio da Histria da salvao que terminava com o Juzo

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    Final. A prpria Igreja tinha a sua Histria terrestre, catica, e a sua Histria espiritual,que s poderia realizar-se na eternidade, j fora da dimenso temporal. Apesar daexplicao de Agostinho, muitos continuaram a ver a Histria como a biografia de umindivduo.

    A formao dos movimentos de massas modernos

    Os movimentos de massas modernos tiveram origem em duas linhas, a gnstica e amessinica, a que Voegelin chamava de apocalptica. Os movimentos messinicos quese iniciaram no sculo XVI no tinham inspirao gnstica, no surgiram de umdesespero mas do escndalo face decadncia e corrupo da Igreja, sobretudoquando o papado de deslocou para Avignon. Os lderes messinicos deixaram deacreditar que fosse possvel restaurar a ordem a partir do interior da Igreja e decidiramfazer o trabalho no lugar do Cristo, como que forando a sua segunda vinda, impondoa ordem a ferro e fogo.

    Nas reformas protestantes surgiram alguns elementos das ideologias de massas. Omessianismo entrou sobretudo do final do luteranismo, na Sua, com as reformas deZunglio e Calvino e, na Inglaterra, com a reforma de Thomas Cramer. Calvino criou anoo de um estado totalitrio, que tudo controla na sociedade. Para ele no existiavida privada e tudo podia ser denunciado na vida pblica. Criou tambm a militncia,as manifestaes, a propaganda e tambm a noo de actividade poltica capaz deanimar um movimento para derrubar um poder e o substituir por outro. A reforma emInglaterra no prometia ser uma ruptura em relao substncia, mas uma disputa depoder, onde o rei Henrique VIII se declarou ser chefe da Igreja no seu territrio mas

    ainda permanecia catlico. As ideias mais radicais apareceram depois da sua morte,mas surgiram de forma gradual, primeiro com alteraes no ritual da missa. Estaestratgia das pequenas mudanas, que ao longo do tempo provocam grandesalteraes sem que as pessoas se apercebessem, mostra que Antnio Gramsci teve umpercursor em Thomas Cramer. Apenas quando restavam algumas comunidadesresistentes, a Reforma investiu sobre estas e matou mais de 40 mil pessoas, mais que oresultado de quatro sculos de Inquisio.

    No sculo XVIII as vrias reformas j haviam fracassado no objectivo de criar umaigreja melhor e a Igreja catlica no tinha conseguido restaurar a sua autoridade. Osmovimentos revolucionrios, de origem messinica, perderam a sua substncia crist e

    caram no patamar menos diferenciado e que estivesse ao alcance, que era ognosticismo (teoria do professor Olavo). Esta incorporao de ideias gnsticas nosmovimentos revolucionrios no podia ser explicada por Eric Voegelin porque adocumentao que ele exigia no existia devido natureza ocultados movimentos, e algo que ainda est por ser esclarecido. Inicialmente Voegelin s considerou relevanteo elemento gnstico, mas mais para o fim da vida perceberia que tambm existia oelemento messinico, mas no conseguiu esclarecer a relao. Voegelin deixou vriaslinhas abertas para a investigao, pois a sua vida intelectual um imenso programa deestudos para vrias geraes.

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    A continuao dos estudos de Eric Voegelin

    Das vrias linhas de investigao que Eric Voegelin deixou em aberto, a que temprimazia ser saber como foi que os movimentos messinicos absorveram ognosticismo e se tornaram anticristos. No sculo XVIII ocorreu uma infuso de

    gnosticismo e ocultismo nos movimentos messinicos e no sculo seguinte essesmovimentos j eram radicalmente anticristos. Para descobrir como isso ocorreu no possvel seguir o mtodo de Eric Voegelin porque no existem anlises tericas dosprprios agentes do processo. Pelo contrrio, eles no tinham qualquer interesse emexplicar as ocorrncias pois estas deram-se no seio de sociedades secretas ou discretas.Apenas se assiste ao resultado final mas no se sabe onde est o agente. Parainterpretar este tipo de situaes necessrio utilizar mtodos mais prximos dapsicopatologia do que da anlise histrica cultural ou ideolgica.

    Uma segunda questo por esclarecer prende-se com o Islo, que Eric Voegelin nochegou a tomar em conta como sendo tambm uma civilizao histrica com uma

    existncia diante de Deus. Para ele apenas a civilizao ocidental tinha atingido essepatamar de conscincia. Depois da descoberta da viso da eternidade, o mundocosmolgico passa a ser o inferno, onde o indivduo est merc dos demnios. Arealidade humana muito melhor expressa pela tenso entre Histria e Eternidade,onde a incerteza contrabalanada pela caridade e pela f, a fidelidade a umarecordao, que no d o plano dos acontecimentos mas indica o prximo passo aseguir. Mas o Islo veio trazer tambm uma existncia diante de Deus e eminentemente uma civilizao histrica, que engloba Jesus Cristo e as revelaesanteriores, culminando no Juzo Final. O ingresso do indivduo no Islo progressivo,h uma imitao da vida do profeta que recebeu a revelao ao longo de 28 anos. A

    islamizao da pessoa feita com o auxlio de duas narrativas, a do Coro e a da vidado profeta, que consta em 40 mil ahadith. Esta islamizao progressiva mas total doindivduo seria idntica ao que prev a histria do Islo, onde no culminar do JuzoFinal j no restariam processos de vida por islamizar. Ento, o Islo tem esteelemento totalitrio, de regulao completa da sociedade, caracterstico dascivilizaes cosmolgicas, com a diferena de o encarar como um processo dinmico.Eric Voegelin percebeu que a incapacidade da Igreja em formular uma filosofia daHistria levou a que os movimentos de massas tomassem a iniciativa e fossemincorporados na sociedade. Mas quando as ideologias de massas pareciam dominar omundo, o Islo apareceu na disputa, restando saber quem levar a melhor. Para o Islo,os movimentos de massas so um dos aspectos da decomposio do ocidente.Efectivamente, esses movimentos so apenas efectivos na destruio da civilizao eno tm qualquer fora organizativa, e quem pode aproveitar os destroos o Islo,que tem os meios para isso porque desenvolveu uma filosofia da Histria.

    Uma terceira lacuna nos estudos de Eric Voegelin a ausncia de Deus comopersonagem histrica. O seu mtodo apenas podia examinar as aberturas para Ele, masno ver Deus como agente. Para isso era necessrio ver no as aberturas do homempara Deus mas as intervenes directas de Deus na Histria atravs dos milagres. EricVoegelin trabalhou no cenrio das cincias fsicas e estas no podem estudar os

    milagres. A cincia moderna s lida com fenmenos recortados segundo uma hipteseprvia. Para resultar, s pode estudar os fenmenos que efectivamente so regidos pela

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    uniformidade posta como hiptese, o que implica que ela s possa estudar aspectoseno fenmenos concretos. Mas no fenmeno miraculoso confluem factoresheterogneos inseparveis. O milagre eminentemente concreto, no pode serenquadrado dentro de nenhuma das classificaes admitidas pela cincia.Inevitavelmente, o mtodo determina o alcance do que se pode estudar, algo queVoegelin criticava mas acabou por cair na mesma limitao. Ele no chegou a colocarem cima da mesa o problema da existncia objectiva de Deus, tambm por influnciade William James, quando este dizia que o sujeito e o objecto no existiamseparadamente e se auto-constituem e distinguem no prprio processo da relao.Ento considera-se que Deus apenas um objecto alcanado no salto no ser, pormeios neumticos ou noticos e apenas se ter em conta aquilo que os homensapreenderam sobre Deus. Voegelin definiu a quaternidade da ordem do real comoDeus, o homem, o mundo e a sociedade. O Mundo, a sociedade e o homem so, naperspectiva da revelao crist, apenas a criao, finitos e irrisrios face a Deus. Estaquaternidade s existe na escala da Histria humana, sendo um cenrio que exclui umamultido de fenmenos que ns sabemos ser reais, a comear pelos milagres. Voegelinchegou limitao natural do mtodo, mas quando percebeu isso estava velho demaispara continuar, mas no fez como Kant, que caiu na idolatria do mtodo e definia oobjecto de acordo com o mtodo.

    A expanso islmica no se baseia na interveno divina, como no cristianismo, masna aco poltica e social, usando os meios mais banais, frequentemente desonestos, ecom grande investimento de dinheiro, tudo baseado numa grande auto-conscinciacolectiva numa forma de existncia histrica diante de Deus. J a civilizao crist nopoder ignorar a aco divina ou ir cai na f metasttica, que uma expectativa, meio

    messinica, meio gnstica, de poder transformar totalmente a sociedade mediante umacto de f. Esta expectativa caracterstica das ideologias de massas e vai contra aestrutura da realidade, que pode apenas ser transfigurada por Deus e no pela f. Deuspode nos salvar mesmo se no tivermos f, como aconteceu com S. Paulo, mas umaheresia pensar que Deus pode agir em nosso lugar e no connosco.

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    Aula 07 16/05/2009

    Sinopse: O ser humano vive num sistema de virtualidades e estaria reduzido a umestado de quase inconscincia se a sua existncia estivesse limitada aos estmulossensoriais. A rede de virtualidades desenvolve-se atravs da linguagem, que permiteque coisas que no esto mais presentes se possam efectivar. Mas o crescimento dalinguagem pode no acompanhar o desenvolvimento do mundo virtual e a pessoa criauma auto-imagem muito simplista. O descompasso entre a linguagem e experinciadevia ser colmatado pela educao, que comearia por fornecer os meios deexpresso lingusticos. Nesse mbito iremos comear por imitar os grandes escritoresde lngua portuguesa para absorver os seus recursos lingusticos e aprender amodular o nosso tom expressivo. A passagem da literatura para a filosofia, entrandono reino da dialctica, faz-se atravs da retrica, que medeia toda a sociedade

    humana. Por isso a filosofia uma actividade para pessoas maduras, cidadoshabituados a fazer escolhas e com poder de persuaso baseado no conhecimentos dosvalores que suposto os outros possurem. S podemos conhecer o possvel atravs daimaginao. Uma forma de exercitar esta capacidade assistir a fico dramtica,que tomada como realidade fazendo a suspenso da descrena, ou pela ficosimblica, assistida como um sonho, onde histrias aparentemente impossveisexprimem possibilidades reais. Mas muita da fico moderna paralisa a imaginao,que usada apenas para colorir hipteses racionais realmente impossveis. Amodernidade faz um culto de um realismo imediato que separa a vocao dos deveres.Contudo, os ideais s podem ser realizados por quem cumpre as suas obrigaes e

    ame o seu trabalho. A filosofia uma tcnica e uma tradio, e ambas se desenvolvempor mtua realizao. A filosofia deve ser estudada por problemas e no incio existeuma tarefa bibliogrfica para apurar o status quaestionis. O milenarismo, apesar deter sido proibido por Cristo e desautorizado por Santo Agostinho, incorporou-se

    fortemente na mentalidade ocidental e deu a frmula da inverso do tempo presentenas ideologias de massas, por partir do erro de conceber a Histria como um objectoque pode ser visto desde de fora e anlogo histria de um indivduo.

    A vivncia num sistema de virtualidades

    O seminrio de filosofia uma comunidade dita virtual. Em geral, quando dizemosque algo virtual estamos a fazer um comentrio pejorativo. Virtual vem do latimvirtus, que significa potncia, ou seja, algo que no est efectivado. Mas um mundoconcebido apenas segundo o que est efectivamente presente ficaria drasticamentereduzido. Estaramos como um doente que saiu do coma, sem qualquer memria,apenas com os estmulos sensoriais fsicos, o que seria um estado de quaseinconscincia, abaixo da conscincia de um co ou um gato porque estes animais seorientam num mundo virtual, como uma certa recordao do passado e expectativa defuturo. A biografia ou a personalidade de uma pessoa, tomadas como um todo, apenasexistem virtualmente, no h nenhum lugar fsico onde residam. O reconhecimento

    que fazemos de algo efectiva-se na memria e no est presente fisicamente. O cdigopenal rege as relaes entre as pessoas, mas apenas um cenrio hipottico que no

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    est efectivado. Mas existe toda uma srie de regras de conduta que nem escritas estomas usamo-las para orientao, contamos com elas, criamos expectativas e fazemosavaliaes tendo-as por base.

    O ser humano vive, ento, num sistema de virtualidades e no num universo fsico,

    que apenas uma componente minoritria. A existncia humana, composta dealegrias, tristezas e expectativas no est presente fisicamente, virtual, e os indciosfsicos podem significar coisas distintas para diferentes pessoas. O que realmente nosorienta uma rede virtual de sinais do passado e expectativas do futuro e estas coisas,mais a nossa histria e a presso do meio, oprimem-nos muito mais que os obstculosfsicos. Por isso, uma viso do mundo centrada no mundo fsico falsa. O real umarede imensa de possibilidades anunciadas por sinais ou smbolos a que chamamos devirtual.

    A construo do mundo virtual e a imitao dos grandes escritoresO crescimento do ser humano caracteriza-se por uma passagem gradual do actual parao virtual. De incio o beb vive quase s em funo do que est manifesto, mas aospoucos comea a entrar no universo do possvel. A rede de virtualidades abre-seatravs da linguagem, que permite efectivar coisas que no esto mais presentes.Podemos assim contar a nossa histria pois fizemos uma conquista do passado e daprpria memria. Mas a linguagem pode no conseguir acompanhar o crescimento domundo virtual e o indivduo no conseguir raciocinar sobre a sua experincia porquelhe faltam os smbolos adequados. A educao deveria servir para corrigir estedescompasso entre linguagem e experincia, porque se ele no suprimido a pessoa

    vai banalizar-se e criar uma auto-imagem demasiado simplista e afastada da realidade.Mesmo a mente mais simplria enormemente complexa porque tem uma histria euma memria, e descrev-la um enorme desafio mesmo para grandes escritores.

    A educao devia comear por fornecer, em primeiro lugar, os meios de expresso,sobretudo os lingusticos. O importante saber usar a linguagem e no tom-la comoobjecto de estudo, porque assim estaremos logo a separ-la de ns. Iremos adquirir osinstrumentos expressivos tomando posse das obras literrias da mesma forma que ascrianas aprendem a falar, ou seja, pela imitao. Os escritores exprimiram algo quetinham em memria ou imaginaram, ou ento o que esto sentido. Os instrumentos queutilizaram tambm podem ser utilizados por ns para situaes anlogas. Fazendo estaapreenso, vamos comear a modelar o tom conforme as necessidades. Em termosprticos, devemos comear a imitao por um s escritor e ler o maior nmero deobras dele. Faremos uma imitao servil, no vamos querer obter logo originalidade,que uma conquista e no uma obrigao. Os males da imitao sero corrigidos pelaprpria imitao, j que ao ir mudando de autor vo comear a aparecer tantasinfluncias que j teremos uma linguagem prpria. Podemos comear por um autorcom uma tcnica simples, como Graciliano Ramos, mas h outros que utilizam todasas palavras da lngua, como Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. A ideia acumular recursos sem ganhar vcios. H vrias qualidades que podemos obter, como a

    sobriedade, mas algumas delas so incompatveis entre si e isso implica uma escolha.

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    Devemos ler os dirios de Herberto Sales onde ele foi apontando as coisas queaprendia sobre a arte de escrever.

    Uma lista de autores fundamentais, em lngua portuguesa, inclui, entre os poetasportugueses, Cames, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Mrio de S

    Carneiro. Na literatura histrica so imprescindveis Alexandre Herculano e OliveiraMartins. Na fico temos Ea de Queirs, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro,Ferreira de Castro, Verglio Ferreira e Lobo Antunes. Poetas brasileiros: GonalvesDias, Cruz de Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Jorge de Lima,Murilo Mendes e Bruno Tolentino. Fico brasileira: Machado de Assis, RobertoPompeia (livroAteneu), Jos Lins do Rego, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, JosGeraldo Vieira e Herberto Sales. Devemos procurar ler o mximo de cada um. LimaBarreto serve para entender o Brasil mas no para aprender a escrever. GuimaresRosa para esquecer, artificioso, bobo, apesar do talento, criou vcio de linguagem amuita gente.

    Devemos ainda ter conhecimentos de outras lnguas. O ingls fundamental porque osamericanos traduziram tudo. O francs, o espanhol e o italiano tambm nos ajudaro amelhorar o portugus numa segunda fase. O latim tem uma importncia prpria para afilosofia, e permite-nos tambm ler os discursos de Ccero, que so imperdveis.

    A transio da literatura para a filosofia

    A filosofia uma busca da verdade partindo da expresso e s depois passa reflexo.Vai utilizar todos os recursos expressivos da literatura e mais alguns que estadesconhece, e vai lev-los muito mais alm at os tornar quase numa cincia. No coincidncia que o primeiro filsofo, Scrates, apenas se expressasse oralmente e osegundo, Plato, fosse um poeta. At chegar perfeio cientfica de Aristteles foinecessrio um certo trajecto, que ser refeito aqui no curso. A literatura propriamentedita no procura explicar o que est exprimindo, o que tarefa da filosofia e dascincias teorticas. A passagem da literatura para a filosofia no directa e d-seatravs da retrica. Segundo a teoria dos quatro discursos, a expresso directa daexperincia dada pela potica, o primeiro andar, que conta aquilo que podia teracontecido. A potica uma contemplao das possibilidades de escolha, reais ouhipotticas, mas no h tomada de posio. Mas na vida necessrio fazer escolhas, epara isso temos de nos persuadir a ns mesmos e, muitas vezes, outros tambm. Aestamos no segundo andar, a retrica. A dialctica s possvel depois de feitas muitasescolhas e percebido as contradies entre elas, pois ela a confrontao ente osvrios discursos retricos.

    A sequncia dos quatro discursos segue o percurso natural da educao humana.Primeiro aprendemos a imaginar o mundo e conquistamos uma linguagem que possaexprimir a nossa experincia real. Depois entramos na esfera da moralidade, dasescolhas pessoais, onde surge o problema do certo e do errado, do prefervel e dopretervel, do melhor e do pior, no justificados em termos abstractos e universais masusados como legitimao das prprias aces e escolhas. E s depois de ter aprendido

    a usar a linguagem como instrumento para influenciar as outras pessoas quepodemos reflectir. A reflexo filosfica s pode surgir depois da conquista do poder

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    inerente retrica, o poder de nos justificarmos com base nos valores que acreditamosque os outros possuem. Antes de chegarmos filosofia temos de conseguir fazeralguma mediao dentro da sociedade, o que implica entrar nas escolhas pessoais, nopoder, na propaganda, na influncia, na poltica. Por isso a filosofia no umaactividade para crianas mas apenas para quem j pode agir como cidado.

    O conhecimento do possvel

    S atravs da imaginao podemos conhecer o possvel. Essa representao no temque ser exacta e pode ser condensada em smbolos que formam uma histriaaparentemente impossvel mas que expressa possibilidades reais. Na literatura vaiainda ocorrer uma compactao de experincias que normalmente se encontramseparadas. A imaginao trata ainda da experincia concreta, quer ela recorra memria ou seja elaborada em conjuno com a auto-conscincia e, como num sonho,

    poder expressar compactamente coisas que esto muito afastadas entre si mas cujajuno faz sentido. A capacidade expressiva no ser assim perdida quando se trata deum filme dramtico, que se sente como sendo real pela suspenso da descrena, ounum filme como O senhor dos anis, que se assiste como um sonho.

    Mas muita fico moderna elaborada em cima de hipteses realmente impossveis,como o exterminador que vem do futuro, as pessoas que trocam de corpo ou a quaseomnipotncia do super-homem. A imaginao vai ficar paralisada com hiptesesidiotas. H aqui um problema de coerncia imaginativa. As hipteses impossveis noentram no enredo como elementos onricos mas como premissas logicamenteinventadas. A razo construtiva consegue criar hipteses que vo muito alm do que

    aquilo que a imaginao pode conceber. A imaginao vai apenas colorir com imagenshipteses racionais que j se afastaram da realidade. J no se trata do conhecimentodo possvel mas de uma simples transio entre hipteses idiotas que nos emburrece.Devemos desconfiar dos produtos imaginativos que esto logicamente muitoestruturados. Na imaginao e na linguagem onrica e dos mitos existe uma contnuatransformao dos smbolos. Mas numa fico como o super-homem h uma regraimutvel, no um produto do imaginrio humano mas um jogo disfarado comimagens.

    O culto modernista do realismo imediatoCitando o poeta Jorge de Lima, a propsito do movimento modernista brasileiro:

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    Devemos recordar a influncia do grande Graa Aranha, que foi o maioranimador do movimento. Ele pretendia impor normas filosficas revoluo com a sua esttica da vida. Pretendia que o homem brasileiroatingisse a unidade vencendo a natureza que o esmagava. Era chavo

    repetir: No Brasil s o homem pequeno dentro da colossalidade daNatureza. Aconselhava o reformador que o homem vencesse o terror, omedo metafsico, a compreenso subjectiva impregnada de supostosatrasos que a deturpavam. Aconteceu, porm, o contrrio. Osmodernistas brasileiros compreenderam que, ao invs do queaconselhava Graa Aranha, o homem devia se entregar s suastendncias naturais, s suas pretendidas deficincias, identificar-se coma exuberncia da sua natureza, sua metafsica mesmo que saturada desupersties, a essa amalgama de inferioridades.

    O ser humano ficar em isolamento total se ficar apegado ao mundo sensorial directo,ao telrico, pois isso o colocar numa impotncia completa face natureza. A forahumana rene-se no mundo virtual, a comear pela linguagem. O livro Cangaceiros,de Jos Lins do Rego, mostra o nascimento da civilizao atravs da linguagem.Aqueles dados do mundo fsico recebidos pelos sentidos no tm qualquer unidade,que s obtida no mundo virtual mediante a transferncia efectuada pela linguagem. preciso fazer um certo sacrifcio do mundo sensorial, do carnaval, do sensualismoimediato. No significa eliminar estas coisas mas enquadr-las num cenrio maisalargado onde vo adquirir a justa proporo. Se passarmos de um sensualismo

    imediato para um sensualismo virtual estamos subindo na camada de personalidade,abrindo-nos para critrios superiores de integrao da personalidade que nos colocamna rota de objectivos mais elevados e abrangentes. O culto modernista prestado a umrealismo imediato, dos instintos, para algum que permaneceu na segunda camada.Nenhum instinto manifesta-se em contnuo, e uma vida neles baseada revela umaausncia de personalidade.

    A realidade do ser humano um trajecto em direco ao ideal, mas as pessoas sopressionadas a ignorar que as suas vidas decorrem num mundo virtual. A linguagemfica orientada apenas para a experincia fsica e as pessoas ficam com uma formadiminuda de existncia onde acham natural fracassar. A atitude face ao trabalho

    desliga o mundo das necessidades do mundo dos sonhos. A necessidade de trabalhar vista como a imposio de um mundo mau; o dever e a vocao so opostosinconciliveis e a justia ser alimentado por outros. Esta uma temtica presente nolivro O feijo e o sonho, de Orgenes Lessa. H aqui uma moralidade invertida, que serecusa a ver o trabalho como um dever moral e que, feito com amor, nos dar energiapara a vida intelectual. H que modificar a relao entre o ideal e o real. Quem temuma carreira baseada na fraude e na explorao do prximo no tem direito a ter umideal. Conquista-se esse direito cumprindo as nossas obrigaes, em primeiro lugarvendo-as como um dever de bondade para com os outros. A cruz tambm umsmbolo para a estrutura da realidade. A noo de um plano de vida est condicionada

    existncia de uma cruz a carregar; esse plano no necessrio no paraso. Mas para

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    lacunas devem ser preenchidas com uma nova pesquisa bibliogrfica at termos obtidoum desenvolvimento histrico contnuo o suficiente. Antes de montarmos a discussonuma ordem lgica temos de classificar as opinies segundo os pontos deconcordncia e discordncia, sem nos iludirmos com discordncias de pormenor quepodem ocultar um profundo acordo relativo s categorias essenciais em discusso.Quando a discusso montada logicamente, ela ir aparecer como uma nica hiptese,que poder conter ainda muitas contradies internas e perguntas por responder. Sdaqui em diante podemos dar a nossa prpria contribuio para o esclarecimento doproblema, se tal for possvel.

    O milenarismo

    Jesus Cristo proibiu formalmente a especulao sobre as datas dos planos de Deus parao futuro (Actos dos Apstolos, Cap. I, versculo 7). A expectativa milenarista, de milanos de paz com a vinda de Cristo, uma especulao volta destas coisas. SantoAgostinho iniciou uma filosofia crist da Histria que pretendia encerrar esta questo.Para ele havia apenas duas formas de entender as profecias doApocalipse e o smbolomil. Podia relacionar-se com o destino espiritual da histria da Igreja e o seu governono mundo. Esse milnio j haveria comeado, e desde o sculo IV de Agostinho at1400 a Igreja espalhou por toda a parte o senso da imortalidade da alma, o senso dasacralidade da pessoa humana, a caridade, inventou os hospitais, os orfanatos, asescolas, aboliu a escravido; pelo que esta interpretao ser vlida. Uma segundainterpretao, que no incompatvel com a primeira, via o milnio, o smbolo mil,como totalidade, nem seria um nmero mas a designao de algofechado.

    A salvao das almas a tarefa da Igreja e para isso de nada servem expectativasmilenaristas, nunca existiu uma sentena papal baseada no milenarismo. Especularsobre o fim da Histria implica simular uma posio existencial situada na eternidade,que permite ver a Histria e Deus como objectos na nossa mente, quando eles spodem ser concebidos como participao. Deus s pode ser concebido como foraagente em ns. Mesmo uma pessoa s pode ser conhecida como uma virtualidade, comas suas potencialidades, tenses, e no como objecto. S podemos conhecer uma coisade acordo com o seu modo real de existncia, e isto nada tem a ver com cepticismo. Aignorncia do fim dos tempos parte da nossa constituio, e o cristianismo realoumuitas vezes esta incerteza constitutiva. Mas depois de Agostinho a Igreja abandonou

    a filosofia da Histria, talvez por ele ter uma viso muito realista que no via sentidona Histria fora do cristianismo. Mas a Igreja tambm abandonou os estudos sobre afilosofia da natureza e as suas foras ocultas, sobre alquimia e astrologia, e estas coisaspassaram a ser monoplio das sociedades secretas com todo o tipo de disparatesassociados.

    As especulaes milenaristas continuaram e trouxeram um elemento essencial damentalidade revolucionria, que foi a inverso do tempo. O milenarismo entrouviolentamente na mentalidade ocidental e todos ns temos algo desta concepo. Elatem o erro fundamental de conceber a Histria da humanidade como se fosse a de umindivduo. Mas, ao contrrio da vida do indivduo, a Histria no tem um fimexpectvel nem uma unidade, composta de narrativas de sociedades sem contacto

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    entre si. Apenas existe unidade histrica perante a eternidade ou na cabea doshistoriadores. medida que os vrios historiadores vo tentando captar alguma ordemna Histria, a sucesso desses esforos a nica ordem da Histria, e por isso EricVoegelin dir que a ordem da Histria a histria da ordem. Fora disto existe a ordemdivina, que pode ser conhecida miticamente atravs da viso dada pela revelao, maso mito compactado, confuso e pode no nos esclarecer.

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    Aula 08 23/05/2009

    Sinopse:Esta aula sintetiza as aulas anteriores e traa algumas linhas para o curso epara a restante vida intelectual. Existe uma srie de blocos a serem desenvolvidos navida intelectual, de acordo com o esprito do COF e tendo em conta o estado actual dasociedade. Esses blocos so independentes mas tero de ser trabalhados em paraleloe articulados. A prpria filosofia o modelo da vida intelectual, na senda deSertillanges, onde as indicaes prticas so emanadas da viso unificada dos

    princpios mais gerais. A vida intelectual consiste em vencer as dificuldades e osempecilhos com que nos defrontamos, que no devem ser vistos como meros acidentesde percurso mas componentes essenciais. O primeiro bloco trata do Adestramento doImaginrio, baseado no longo convvio com a literatura de fico, o romance, a

    poesia, o teatro e o cinema. Apenas atravs da imaginao podemos conhecer pessoas

    diferentes de ns e que viveram em contextos diferentes. O segundo bloco oAdestramento Lingustico e ter de ser articulado com o anterior. Compreender esaber utilizar a linguagem, juntamente com a imaginao, so condies necessrias

    para retirar o fundo de experincia que se encontra por detrs da linguagemfilosfica. Quando entramos no terceiro bloco, o Adestramento da Auto-conscincia,procuramos dar um sentido ao nosso trabalho intelectual. O senso do ideal umelemento unificante que d nossa conscincia um padro que permite absorver cadasituao real da vida sua luz. No quarto bloco entramos na tarefa de pesquisaerudita, que segue de perto, em tcnicas e mtodos, a investigao histrica. Noquinto bloco entramos, finalmente, na tcnica filosfica propriamente dita, que se

    sustenta nos quatro blocos anteriores. Na tcnica filosfica partimos da opinio dossbios, como dizia Aristteles, e vamos tambm incluir o conhecimento por presena.A razo hipottica um tipo especial de imaginao, que foi formalizada e petrificadapara permitir a repetio exacta. A crtica literria a primeira disciplina filosfica epermite criar um consenso sobre as obras com real valor, enquadrando-asculturalmente e historicamente. Respeitar todas as opinies desrespeitar a verdade.

    O Adestramento do Imaginrio

    S atravs da imaginao podemos compreender pessoas diferentes de ns, que tero

    sempre um ponto de contacto connosco mesmo tendo vivido em pocas passadas ouem contextos totalmente diferentes e mesmo que sejam personagens de fico, comoAntgona, Ulisses ou Hamlet, j que no existe o totalmente heterogneo. Na nossavida cotidiana s podemos compreender o prximo atravs da imaginao, e se nofizermos o exerccio de nos colocarmos na situao do outro, a base do amor aoprximo, iremos julg-lo baseados num qualquer esteretipo. O adestramento doimaginrio feito pela longa convivncia com a literatura de fico, a poesia, oromance, o teatro e o cinema. Tudo isto por ns frudo como um sonho acordadodirigido que permite nos identificarmos com aquelas personagens retratadas. Maistarde, com a incorporao de novos dramas, conflitos, tenses, situaes, estaremos

    habilitados a criar as nossas prprias personagens e situaes, mesmo que estas fiquemapenas no nosso imaginrio e no sejamos capazes de as transpor para o papel.

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    Tambm a experincia importante para a filosofia mas ela nos compromete e vaipesar no nosso futuro. No possvel experimentar de tudo apenas para aumentar onosso arsenal experiencial sem assumir as devidas responsabilidades.

    Para conhecer algum com inteligibilidade necessrio enquadrar a pessoa num

    padro geral e abstracto. Mas o ajustamento ao caso concreto que a pessoa configuras pode ser feito atravs da imaginao. Esse ajustamento imaginrio facilitado se jtivermos uma galeria suficiente de personagens e situaes dramticas que se possamcombinar para formar uma imagem da pessoa real. A boa fico isola eventospertinentes e intensifica-os para ganhar nitidez. Mas na vida real existe umapluralidade de dramas desconexos. Como os problemas aparecem todos mesclados,torna-se quase impossvel s pessoas dar inteligibilidade ao seu sofrimento. Osofrimento s pode ganhar sentido se integrado num projecto biogrfico. precisoganhar discernimento com o adestramento do imaginrio para, retroactivamente,articular as situaes vividas com os nossos objectivos mais elevados. Neste

    adestramento as obras de literatura tm que ser vistas como documentos da vidahumana, depoimentos e no textos que vamos logo analisar. Essa anlise faz parte davida intelectual mas ficar para mais tarde. O adestramento do imaginriopode aindaprosseguir com o estudo da psicologia, tendo em vista a compreenso dos sereshumanos reais e no como disciplina teortica.

    Os livros de filosofia no devem ser lidos como teses das quais devemos concordar oudiscordar. A primeira tarefa a realizar a reconstituio do drama cognitivo e humanoali presente. Antes de vermos estes livros como verdadeiros ou falsos, a proclamar oua impugnar, temos de os perceber como expresses de uma busca humana. A fasecrtica no pode chegar antes de termos revivido experincias anlogas s vividas

    pelos autores que lemos. Nos livros de filosofia h o drama humano, que o primeiroa ser entendido, as respostas a outros filsofos, por exemplo, e existem os dramaspuramente cognitivos que advm da luta contra a opacidade dos factos e dosfenmenos. No so estes dramas sangrentos como certos dramas que ocorrem nasrelaes entre as pessoas, mas a longo prazo so determinantes para a humanidade.

    Adestramento Lingustico

    Juntamente e articulado com o adestramento do imaginrio, ter de ser desenvolvidoum segundo bloco respeitante ao adestramento lingustico, mais concretamente, sobre

    a compreenso e utilizao da linguagem. A obra literria veicula a experinciaconcreta, segundo Benedetto Croce, e ter de ser esse o nosso foco e no entrar logo nalinguagem abstracta da filosofia e das cincias. s experincias intelectuaiscorrespondem experincias existenciais concretas que temos de refazerimaginariamente para saber realmente do que se est a falar. Se recorrermos a umdicionrio filosfico teremos acesso apenas a definies de termos, atitudes oucorrentes esquematizados, que no correspondem realidade dos dramas intelectuaisque foram vivenciados longamente. A mera evocao do conceito abstracto nopermite evocar esse drama, mas se nos atermos a isso faremos como a criana que usaa imitao de palavras sem perceber o contexto. Precisamos de lastro imaginrio elingustico para retirar a situao existencial efectiva da linguagem filosfica. Por issoo adestramento da linguagemtem de vir junto ao adestramento do imaginrio.

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    O Adestramento da Auto-conscincia e o Senso do Ideal

    A nossa tarefa intelectual tem que ter uma real importncia para ns. Mas paradeterminar isso a nossa vida tem que ter uma unidade, que s pode existir mediante a

    adquirio de sentido. Ao desenvolver um senso do ideal, o que remete para oExerccio do Necrolgio, temos um padro para a nossa auto-conscincia que permiteque a nossa vida se torne numa sucesso de esforos que tm o objectivo de darsentido mirade de coisas que nos chegam desconexas. No podemos achar que anossa vida, da em diante, passou a ser como um mito onde tudo decorre daprovidncia divina. As coisas continuaro a chegar-nos sem ligao entre elas e onosso trajecto que ser unificado na medida em que damos sentido s coisas ereaproveitamos os obstculos como instrumentos para desenvolver em ns certasqualidades e habilidades necessrias para realizar a nossa vocao. Deixamos umaposio onde encarvamos o mundo como estando contra ns ou sendo indiferente

    nossa existncia, para outra posio em que nos vemos como uma tenso entre acircunstncia e a idealidade para a qual devemos tender. Ortega y Gassetcomplementou a frase Eu sou eu e a minha circunstncia, afirmando depois que Areabsoro da circunstncia o destino concreto do homem. No mesmo sentido,Goethe dizia que o talento se desenvolvia na solido mas o carcter na agitao domundo. As dificuldades e os obstculos devem ser encarados com o mximo de boavontade, seguindo o exemplo de Leon Bloy, pois assim iremos fortalecer o nossocarcter e dar contedo humano ao nosso trabalho intelectual. No nos podemospreservar da nossa prpria experincia ou a boa vida ir tornar-se num elementocorruptor. A falta de densidade humana no pode ser compensada por uma grande

    abrangncia dos estudos.Algumas ideias em voga so um empecilho para a unificao da auto-conscincia,como achar que o eu no existe ou que temos uma multiplicidade de eus queaparecem consoante o papel social que estamos desempenhando. Raul Seixas dizia queEu sou a metamorfose ambulante, e isto descreve a realidade da condio humana,em que uma personagem se forma atravs da sucesso contnua de transformaes. Oeu real s pode ser descrito num drama, e no de forma esttica num quadro ounuma escultura. Mas se esse eu no existisse tambm no poderamos contar a nossabiografia. Mesmo sendo a nossa personalidade constituda por uma data de

    fragmentos, ela tambm tem um elemento unificante, sem o qual no seria possvelfazer a transio entre os vrios papis. Algum que tenta realizar algo est fazendoum esforo para unir a sua conscincia.

    Este terceiro bloco ser aqui denominado de adestramento da auto-conscincia, queremete para a compreenso de cada situao real vista luz de um senso do ideal. Asprincipais dificuldades surgem dos nossos antagonismos internos. preciso umcuidado especial com a formao de uma auto-imagem, que acaba por ser o oposto doauto-conhecimento. Formamos a nossa auto-imagem a partir de supostos defeitos equalidades nossos, que surgem de um discurso interior de defesa e acusao. Mastrata-se de uma armadilha porque no revela efectivamente o que somos. A nossa

    conscincia no tem uma forma determinada e s existe na tenso entre um senso doidealperseguido e os recursos que nos so fornecidos. Ns somos apenas um operante

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    sem forma, um foco de luz que ilumina o que est obscuro nossa volta e no nossointerior. Apenas o observador omnisciente nos conhece verdadeiramente e tudo o quepodemos dizer sobre ns so auto-imagens provisrias e, na melhor das hipteses,apenas parcialmente verdadeiras. Desistir da auto-imagem e atermo-nos apenas a umncleo de auto-conscincia pode nos desorientar por momentos e nos criar umasensao de falta de identidade, mas isso provisrio. Temos de chegar a uma faseonde no seremos mais um retrato mas uma aco, seremos uma auto-criaopermanente que se substitui a uma auto-contemplao passiva e viciosa.

    ONecrolgio, antes de ser uma auto-imagem, o antagnico dela. um projecto parao qual temos de achar os meios para o realizar, e medida que o vamos concretizandovai deixando de ser uma meta para passar a ser um dever. Queremos ter uma auto-imagem porque desejamos expressar na perfeio o mundo dos nossos pensamentos.Mas a extino e o desaparecimento fazem parte da natureza das coisas temporais, oque permite nos libertarmos de uns pensamentos para dar espao a outros melhores.

    Mas aquilo que desaparece da escala temporal no vai para o mundo do no-ser, nopode tornar-se num nada, porque o nada nunca foi nada. Tudo o que alguma vezexistiu no se perde na escala da eternidade, onde tudo eterno e Deus pode colocarem ns o conhecimento perdido as vezes que quiser. esta a memria espiritual a quese refere Plato quando fala da anamnese. S quando comeamos a perceber apermanncia da eternidade por detrs da impermanncia que teremos um terrenofirme, como dizia S. Paulo apstolo, nEle nos movemos, vivemos e somos.

    A viso da individualidade fechada, do ego cartesiano, serve para paralisar ainteligncia. Quando acreditamos que tudo um estado subjectivo nosso, incluindopensamentos e percepes elementares, passamos a dar substncia a essa

    subjectividade e negamos a existncia de algo fora dela. O eu subjectivona verdadeno existe, limita-se a ser uma sucesso de estados impermanentes, mas se oconsiderarmos como um recipiente fechado, ele deixa de conseguir fazer a ponte entreos nossos estados interiores e o mundo exterior, que a outra sucesso deimpermanncias. Penso, logo existo, tem implcita, como a primeira e fundadoracerteza das restantes, a existncia do prprio ser cognoscente. Mas a prpriaformulao da frase implica a utilizao de uma linguagem que veio de fora, ou seja, aafirmao da nossa existncia no pode ser uma certeza fundadora mas j necessita dacerteza da existncia do mundo exterior. S que a frase dita para sugerir o contrrio.O sercom verdadeira substncia s existe na escala eterna, quando j adquiriu a suaforma fechada, e na escala temporal tudo precrio e impermanente. Mas tambm nopode existir uma impermanncia absoluta, que reduziria as coisas a nada, pelo que ascoisas no mundo temporal esto num estado intermdio, so semi-naturezas, semi-substncias em permanente estado de fluxo que s adquirem a verdadeirasubstancialidade vistas desde a eternidade. Ao invs de nos encerrarmos sobre o nossoeu subjectivo, o nosso processo de auto-construo consiste em nos darmos eprestarmos ateno a coisas incomparavelmente mais importantes que ns, e depoispodemos passar a personificar esses valores para outras pessoas, no por os termos emns mas por abrirmos a porta para eles. Muita gente no quer ver essas portas abertas eir odiar o nosso exemplo. Ningum foi mais odiado que Cristo. Mas isso umaposio alienada que est contra a estrutura da realidade e no podemos temer asreaces de pessoas como essas.

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    A tarefa de pesquisa

    Apenas quando chegamos ao quarto bloco, relativo s ferramentas de pesquisa erudita,o ensino moderno vai dedicar alguma ateno, se bem que deficitria. Devemos nos

    documentar sobre as questes que nos interessam. A investigao filosfica segue deperto a investigao histrica, partilhando tcnicas e mtodos. Um livro sugeridoquanto a isto The Modern Researcher, de Jacques Barzun, mas como devemosadequar a investigao ao pas e momento vivido, devemos tambm considerar oslivros de Jos Honrio Rodrigues, Teoria da Histria do Brasile Pesquisa Histricano Brasil. Depois de reunir o mximo de documentao possvel h que interpretaresse material e relacion-lo, seguindo na linha do historiador da filosofia ou das ideias.Para saber mais sobre como trabalhar estes assuntos devemos ler a apostila Problemasde mtodos nas cincias sociais.

    O artigo Quem filsofo e quem no , publicado no Dirio do Comrcio(disponibilizado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090507dc.html),aconselha que, em primeiro lugar, se faa uma pergunta que nos desperte realinteresse. Segue-se depois uma tarefa bibliogrfica e depois todo aquele material sermontado como se fosse uma teoria nica, ou seja, a partir da histria do problema composta a sua estrutura. Normalmente os livros fazem uma apresentao sistemticaque no revela a investigao histrica que esteve por detrs. Este processo estilustrado de forma magistral no livro de Joseph Marechal, Le Point de Dpart de la

    Mtaphysique. Neste livro colocado de incio o problema da afirmao metafsica edepois visto como este problema foi evoluindo ao longo do tempo nos pontos que

    interessavam ao autor. Na filosofia no seguida a investigao histrica estritamente,que avalia todos os problemas. H uma criao de foco na escolha de pontosconsiderados essenciais.

    A tcnica filosfica e o conhecimento por presena

    Apenas no 5. bloco vamos chegar tcnica filosfica propriamente dita. O 5. bloco suportado pelos blocos anteriores, como se fosse o tampo da mesa suportado pelos 4ps, que representam os outros blocos. Existe uma ponte com o bloco anterior, relativo tarefa documental, que efectuado pelo livro de Joseph Marechal j referido, onde

    seguida a ordem da pesquisa. Um filsofo merecedor de ateno aquele que colocaproblemas que so mortalmente srios para si e envolve toda a sua experincia pararecriar o drama passado pelos outros filsofos que fizeram esforos no mesmo sentido.A linguagem que ele utiliza ter de mostrar todo o seu arsenal memorativo eimaginrio, onde reside a substncia da vida intelectual. Isto os distingue daqueles queusam esquemas verbais e intelectuais com uma certa habilidade mas apenas na base daimitao.

    A tcnica filosfica sintetiza uma srie de esforos, que deve ser vista como um dramaa se desenrolar em ns e no como fenmeno histrico, desenvolvidos com vista alanar alguma luz sobre certos problemas. Todos os filsofos seguiram a sugesto deAristteles de que se devia partir das opinies dos sbios, que eram opiniesqualificadas que j tinham resolvido os problemas elementares. Quando entrarmos na

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    tcnica filosfica iremos usar dois livros,Manual de Metodologia Dialctica, de LouisLavelle (a ser traduzido e disponibilizado no COF) e Logique de la Philosophie, deEric Weil.

    Na tcnica filosfica ser includo o conhecimento por presena, algo negligenciado

    na histria da filosofia mas cujas elaboraes cientficas das ltimas dcadas tornarampossvel desde que se comeou a estudar a comunicao no verbal, a ressonnciamrfica descrita por Rupert Sheldrake, juntando ainda a obra de Antnio Damsio, sebem que sofrendo de alguma confuso de terminologia. A nossa orientao no mundodepende de muito mais conhecimento que aquele que sabemos que sabemos. Oconhecimento por presena est sempre presente e preenche os espaos vazios. Eleadvm do aparato de percepo que nasceu connosco, trazendo a marca da perfeiodivina; todas as crianas sabem que vivem no mesmo mundo sem terem disso sidoinformadas. Esse conhecimento permite que nos orientemos sem qualquer problemano mundo da mutao e da permanncia, e sabemos instintivamente o que h de

    aparente e real tanto na mutao como na aparncia. Mas quando tentamos transferireste mundo da percepo para o mundo da razo, apenas uma pequena fraco do quesabemos comunicvel. Os filsofos pr-socrticos tinham a mesma experincia domundo, mas Heraclito realava o fluxo de mutaes, enquanto Parmnides achava queexistia um ser absoluto e imutvel por detrs das mutaes, e Zeno de Eleia, com osseus famosos paradoxos, punha em dvida a prpria realidade do movimento e datransformao. Eles sabiam que viviam no mesmo mundo e no em mundos diferentes,viam o mesmo mundo mas expressavam-no de forma diferente porque a razo muitolimitada em comparao com o mundo da percepo. O que ns conhecemos delesresume-se apenas quilo que eles conseguiram transmitir e no o que eles

    efectivamente sabiam. O conhecimento por presenaest por baixo do efectivamentepercebido, estando mesmo por baixo do inconsciente, que s pode ter origem namemria ou em algum processo interno, que a prpria presena no real, pressupostode tudo. O esforo filosfico consiste em transferir uma pequena parcela da riquezainfinita da percepo real para o mundo da razo, onde as coisas so humanamentecomunicveis e podem ser discutidas.

    A crtica moderna do conhecimento, iniciada por Hume, seguido por Kant, criou aideia de que tudo o que no era absorvido pelos sentidos era criao mental, existindoassim o mundo natural e o da criao cultural. Como suposta prova disto temos asdiferentes imagens do mundo presentes em culturas diferentes. Estas imagens sorealmente diferentes mas isto no implica que a percepo do mundo tambmacompanhe estas diferenas. Aquilo que as civilizaes passadas nos deixaram no foia sua viso do mundo mas apenas o que conseguiram transmitir dessa viso emsmbolos que a condensaram. A prpria aquisio do patrimnio cultural pode setornar to pesada que v encobrir o anterior conhecimento do mundo real, e depoispassamos a confundir as representaes simblicas com o prprio mundo. Levandoisso ainda mais adiante, podemos comear a acreditar que a nossa vivncia imediata j ela mesma uma criao cultural quando ela a base de construo das criaesculturais.

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    A diferena entre a imaginao e a razo hipottica

    A razo hipottica segue o esquema descrito por Aristteles. Primeiro temos aspercepes, das quais guardamos na memria os esquemas dos factos e dos entes. Apartir desses esquemas extrado o esquema idtico, o esquema intelectual, que o

    esquema racional que se pode retirar dos factos e permite obter conceitos, que depoisse podem combinar na esfera racional. A imaginao precede sempre a razo, no tmuma diferena de natureza. A razo um tipo especial de imaginao; uma imaginaoformalizada e petrificada para permitir a repetio exacta. A simples imaginao lidaapenas com estados empricos e nunca chegaria a um conhecimento geral e universal.

    O processo de construo da razo j indicia claramente qual devia ser o processo deleitura de obras filosficas. Esta leitura deve seguir o procedimento inverso deconstruo da razo e reverter para a criao de imagens que recriem experinciasanlogas s tidas pelos filsofos. O trabalho fica muito incompleto se ficarmos apenasnos conceitos e nos restringirmos aos seus significados estabilizados em dicionrios.

    Estaremos assim a esquecer que a razo construtiva imaginao estabilizada epadronizada, mas ainda imaginao. Por outro lado, quando a literatura se empobrecee deixa de veicular a experincia real, deixa de ser possvel transmutar em conceitos aexperincia, e esta torna-se opaca. Resta apenas o uso de smbolos convencionais, queno transmitem nada dos dramas e problemas da vida real, e servem apenas para aidentificao de sentimentos grupais. O delrio auto-lisonjeiro a nica linguagempblica existente, e quando algum aponta este facto ser visto como pertencendo aum grupo contrrio.

    A crtica literriaA crtica literria a primeira disciplina filosfica por ser a expresso intelectual maisimediata da experincia literria. Sem a crtica literria seria difcil saber por ondecomear a estudar. Os crticos literrios so leitores privilegiados, por vezes grandesescritores, que conseguem exprimir algo da sua experincia de leitura e fazer ainsero das obras num quadro cultural e histrico maior. Desta forma vo formandoum consenso sobre o que tem valor. Sainte-Beuve foi um grande crtico do sculo XIXque enfatizava a experincia psicolgica. Mathew Arnold tem um grande valoreducativo e pedaggico. Entre os crticos portugueses destacaram-se Adolfo CasaisMonteiro e Fidelino Figueiredo. Entre os brasileiros, lvaro Lins, Augusto Maier e,sobretudo, Otto Maria Carpeaux.

    O relativismo opinativo

    comum a confuso, ou a hipocrisia assim disfarada, entre o direito em cada umopinar de sua livre vontade com a ideia de que todas as opinies tm valor idntico,isto feito em nome da liberdade. Este medo em violar um dos preceitos dopoliticamente correcto deprime a inteligncia. Pensar pensar que se est certo. Nofaz sentido ter uma opinio achando que outras so melhores ou de idntico valor. Se

    estivermos nesse ponto simplesmente estamos na indeciso. Respeitar a opiniomanifestamente errada cuspir na verdade.

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    Aula 09 06/06/2009

    Sinopse:Nesta aula so estabelecidos alguns princpios da tica da vida intelectual.O primeiro princpio da vida intelectual foi enunciado por Jean Guitton: Cave ondevoc est. Isto contraria a principal motivao para entrar na vida intelectual nosltimos sculos, que tem sido obter a suprema beatitude do entendimento(Burckhardt), que teve o seu paroxismo no eu transcendentalde Kant. Ao proibir asespeculaes milenaristas, Cristo j estava a indicar a limitao do conhecimentocomo sendo estrutural vida humana. A vida humana decorre no seio do mistrio,mas o mistrio pode dar-se a conhecer um pouco quando aceitamos totalmente anossa condio e fazemos a tcnica da confisso de Agostinho. A diferena entresaber e no saber s ser realmente apreendida depois de muito se meditar sobre a

    presena do mistrio, do desconhecido e do incognoscvel. A confiabilidade dos

    conhecimentos medida pelo grau de proximidade que os nossos conhecimentos tmrelativamente certeza que temos sobre o nosso legado auto-biogrfico. Quando avida intelectual no se norteia por estes princpios, o indivduo vai deixar-se seduzir

    por falsos enigmas lgicos, onde colocada uma escolha entre possibilidades quenunca se verificam na realidade, como altrusmo ou egosmo, determinismo ou livrearbtrio. A filosofia no pretende obter um conhecimento universalmente vlido masobter um esclarecimento suficiente para a nossa orientao na realidade. O pblicoespera do intelectual um exemplo de seriedade e no algum que apenas est ali paraagradar. Na vida humana, mas no na Histria, o futuro um elemento dinmico do

    presente que d retrospectivamente um sentido ao passado. O ser humano vive com o

    trauma da emergncia da razo porque nasce com o dom de criar estruturas racionaisuniversalmente explicativas mas estas s sero adequadas experincia da realidadeaps um longo processo de apropriao da razo, cujo afastamento provoca inmerasneuroses. Para compreender os processos histricos no podemos atribuir a eventosexplicveis pela aco humana deliberada uma causa derivada de foras histricasgenricas, e temos de saber que todos os agentes tm um horizonte limitado e algo

    pode ter agido atravs deles.

    As motivaes para entrar na vida intelectual

    A filosofia no deve ser abordada de forma cronolgica ou pela importncia histricamas por temas. Isso leva-nos directamente a um trabalho bibliogrfico e de pesquisa,facilitado hoje em dia pela Internet, onde sites como o www.questia.compodero serde grande valia. Os temas da nossa escolha no devem ser seleccionados pormotivaes acadmicas mas por interesse real, seguindo o conselho de Jean GuittonCave onde voc est. O objectivo mais comum para entrar na vida intelectual passapor atingir aquilo a que Jacob Burckhardt chamou de suprema beatitude doentendimento(ou conhecimento), que uma ascenso imaginativa onde se passa a teruma viso geral e organizada das coisas, da Histria, da natureza, da cincia, etc. ParaBurckhardt esta posio de contemplao, como um deus, pretende estar acima das

    coisas sem as influenciar, o que pode provocar boas sensaes pelo escapismo queproporciona. Mas existe uma variao activa desta suprema beatitude do

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    entendimento, especialmente adaptada aos marxistas, que no se contenta com umacontemplao passiva mas quer influenciar o fluxo das coisas; quer transformar omundo e mold-lo sua imagem e semelhana. A motivao bsica para entrar na vidaintelectual nos ltimos sculos tem sido alcanar um destes dois pontos, ou decompreenso ou de transformao. Em comum tem um recuo cognitivo, que at certoponto um artifcio necessrio para obter alguma objectividade. Kant vai levar esterecuo ao extremo do eu transcendental, que um ponto de observao ondecompreendemos o mundo da experincia e ainda a nossa prpria compreenso aenvolvida. O eu transcendental uma espcie de conscincia da conscincia por estarcolocado num plano onde lhe so reveladas as condies ocultas que permitem aexperincia, reveladas no prprio decorrer da experincia.

    Se as exigncias tcnicas obrigam a que, de facto, seja feito um certo recuo, nunca nospodemos iludir de que alguma vez seja possvel estar numa posio acima da realidadee a possamos observar como um deus. Assim perdemos a perspectiva espiritual de que

    acima de ns existe sempre o observador omnisciente, no vendo isto em termosreligiosos. A busca humana de um ponto de vista privilegiado no verdadeira, nuncaestaremos acima de ns mesmos. Santo Agostinho tinha uma atitude completamentediferente. Ele pretendia compreender-se a si mesmo, no como ego transcendentalousujeito do conhecimento, mas como sujeito humano no mundo da aco, da incerteza,do pecado, onde est envolvido um eu real, temporal e histrico e no h nenhumintermedirio entre ele e Deus. Esse intermedirio representado pelo eutranscendental, que um pseudo-deus que apareceu com Descartes como muleta paraobter a certeza absoluta, que ele acreditava ser a conscincia da conscincia. H aqui ailuso de dar substncia de realidade ao eu como puro conhecedor, quando se trata

    apenas de um papel desempenhado, por momentos, pelo eu real. Nos ltimos sculostem crescido a crena neste eu que tudo observa e, at, pode decidir, o que configuraum processo de auto-divinizao que atingiu um paroxismo no sculo XX na escolaesotrica do Gurdjieff. Ele considerava o eu cotidiano ilusrio e ensinava odesenvolvimento de um eu observador que no participava nos acontecimentos, notomava partido, era totalmente neutro. Mais que uma doutrina era uma prtica onde aspessoas perdiam a identificao consigo mesmas na construo do eu neutro,chegando a um estado totalmente amoral e cnico. Era um processo de estupidificaoque ao mesmo tempo dava s pessoas uma grande sensao de poder porque osiniciados imaginavam estar infinitamente acima dos restantes seres humanos. Nada

    pode ser mais irrealista do que ver o eu realcomo ilusrio e o eu observador, que uma coisa declaradamente criada, como real. Se fizermos isto estamos a negar aprpria histria, a fazer uma anti-confisso onde fugimos responsabilidade dosnossos actos. A fuga realidade e a negao da condio histrica so marcas dainspirao gnstica, de algum que no aguenta o mundo e ento finge que est acimadele.

    O princpio nmero um da vida intelectual foi delineado por Jean Guitton: Cave ondevoc est. Temos de compreender que a elevao acima do fluxo dos acontecimentos um exerccio temporrio e no corresponde nossa condio existencial. Agostinho o nosso exemplo e ele sempre cavou no local onde se encontrava pois sabia que arealidade da sua vida concreta, por mais humilhante que fosse, era algo preciosoporque aconteceu mesmo, no era mero pensamento. Este um terreno firme que mais

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    tarde servir de critrio para avaliar todo o tipo de conhecimentos. Agostinho sabiaainda que acima dele existia o observador omnisciente que no era ele mesmo. Semesta conscincia podemos ter a tentao de reduzir tudo ao nosso teatro mental. Esteteatro uma ferramenta importante na busca do conhecimento mas, se esquecermosque um artifcio temporrio, ficaremos como o sujeito na pea de Pirandello queacreditava ser o rei Henrique IV e obrigava as pessoas sua volta a serem a sua corte.Esta parbola representa muito bem os tempos modernos e aquilo que so osmovimentos de massas, onde uma pessoa doente, maligna, incapaz de suportar amisria da sua realidade, tenta escapar para um mundo idealizado. A vai desempenharum novo papel com uma intensidade, uma verosimilhana e uma devoo tais que faroutros acreditarem nele e entrarem tambm naquele teatro e fugirem realidade dassuas vidas. Os movimentos marxistas falam do proletariado mas so compostos quaseque s de pessoas das classes mdia e alta. A instituio acadmica oferece tambmum convite desse gnero para todos os estudantes, a promessa arrebatadora de realizara suprema beatitude do entendimento.

    As especulaes milenaristas e a limitao do conhecimento

    O milenarismo uma esperana de um reino futuro de paz, ordem e justia quedecorrer da vinda do Cristo. Tambm no Islo existe uma esperana milenarista sobreum futuro governante que venha trazer ordem e justia. O fenmeno antigo nahumanidade se pensarmos na religio judaica, que em certa medida um milenarismomas que no tenta se extrapolar para o mundo mas apenas para o povo judeu. Nosprimeiros sculos do cristianismo os elementos milenaristas voltaram a evidenciar-se,

    at que Santo Agostinho colocou um trmino no assunto. Uma nova vaga milenaristas aparecer muito mais tarde quando a autoridade do papa decaiu, sobretudo com atransferncia do papado para Avignon. Roma ficou ingovernvel, apareceram muitosmovimentos rebeldes e a presso islmica no exterior fez-se sentir. Neste estado demisria surgiram novamente as especulaes milenaristas.

    A Igreja sempre condenou o milenarismo com base no texto dos Actos dos Apstolos,quando Cristo diz que no para ns conhecermos o prazo do fim. Est aqui jimplcita uma inevitvel limitao do conhecimento. Cristo alerta para que,efectivamente, no iremos conhecer o futuro a longo prazo, no se limita a fazer umaproibio. No nos efectivamente possvel saber quando ser o fim dos tempos, nem

    qual contexto que o encerra; no sabemos, assim, qual o sentido da Histria. Kant e ospraticantes da cincia moderna falam das limitaes do conhecimento mas umflatusvocis. Para eles, esta limitao uma deficincia da realidade e acreditam que ahumanidade est no caminho da perfeio do conhecimento. Mas a humanidade noconhece nada, apenas os seres humanos. Estes no podem ter um conhecimentoinfinito pois tm uma existncia finita, e mesmo a vida eterna no promete oconhecimento total. A limitao do conhecimento inerente limitao da vidahumana e no aceitar isso constitui uma fuga estrutura da realidade.

    Na actualidade surgiram alguns movimentos com um forte carcter milenarista, como

    so os casos do movimento ecolgico e do que preconiza a criao de um EstadoMundial. Eles fazem previses catastrficas para o futuro que apenas podem ser

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    evitadas pelas suas propostas de paz e ordem, onde se arrogam saber mais que todos.O conceito de Estado Mundial no faz sentido porque um Estado organizado no spor motivos de organizao interna mas tambm para efeitos de representao face aoutras comunidades. O que realmente est em causa a criao de um papado supra-religioso, uma pretenso j antiga que visava instrumentalizar a Igreja para que eladeixasse de ser catlica e criar uma religio sincrtica. Mas o que caracterstico dosmovimentos ecumnicos a ausncia de espao conferido a Deus, apenas acohumana e masturbao mental.

    O mistrio como elemento constitutivo da realidade

    A limitao dos nossos conhecimentos no algo a ser vencido mas a ser aceite. Odesconhecido e o mistrio fazem parte da estrutura da nossa existncia e parteintrnseca do terreno onde temos de cavar. Mas se o mistrio est presente de forma

    permanente, por vezes ele revela-se um pouco e isso precioso. Estes momentos deabertura ficaro perdidos para ns se no aceitarmos a presena do mistrio eacharmos que h apenas um obstculo a ser vencido. A abertura do mistrio no temque ser vista no sentido religioso, pode ser apenas uma abertura que nos permitacompreender algo pertinente para ns, porque proporciona que nos instalemos melhorna realidade e teremos uma antecipao do conhecimento pelos sentidos. oconhecimento por presena, no verbal, vlido apenas para os momentos seguintes,essencial para nos orientar na realidade e que se perde quando queremos ir para aposio do eu transcendental. O importante no vencer o desconhecimento, que um dos pilares da nossa existncia, mas encontrar um modus vivendicom o mistrio

    que nos permita reagir de forma adequada e responsvel s situaes porque as nossasaces e pensamentos foram elaborados com base num coeficiente de luminosidadesuficiente. A realidade vai abrir-se para ns quando nos entregarmos a umainteligncia infinita mediante a tcnica da confisso de Agostinho, onde aceitamos anossa condio humana na plenitude. Cristo disse tambm que cada um deve pegar nasua cruz e segui-lo. A cruz simboliza, entre muitas coisas, o cruzamento das condiesde espao, tempo e nmero que nos limitam e definem, ou seja, a nossa realidadenaquele momento, o local onde temos de cavar. Mas carregar a cruz tambm arcarcom os prprios pecados, o que significa contar a nossa prpria histria. Mas como amente humana dialctica, precisa de um elemento de contraste e no pode se ater

    apenas aos pecados, o que seria dar uma fora aos demnios que eles no tm. Aqui jest delineada a confisso como o relato de uma tenso entre os anjos e os demnios.A sinceridade integral exigida pela presena do observador omnisciente, e era aquiloque dava fora a Santo Agostinho e a So Paulo apstolo, que falavam com a suaprpria voz um discurso que os instalava na realidade.

    Normalmente Deus visto como um objecto a ser analisado de forma teolgica. Mas ofundamental ver Deus como presena real actuante. Uma pessoa apresenta-se a nsporque no momento anterior estava noutro lugar, mas como Deus omnipresente nopode fazer isso, a sua presena na nossa vida abrangente e total e no singular elocalizada. Para notar essa presena temos de aceitar os limites do nosso conhecimento

    como um dado da realidade, perceber a nossa existncia no meio do mistrio masainda assim continuamos perfeitamente seguros, porque os elementos do mistrio

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    esto ali para nos esclarecer e ajudar. S podemos notar esta presena se fizermoscomo Agostinho e estive