Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

25
Cognição e Linguagem Luiz Henrique de Araújo Dutra UFSC/UnB/CNPq …estamos interessados apenas no que eles sentem e pensam qua membros de certa comunidade. Ora, neste caso, seus estados mentais recebem uma impressão, se tornam estereotipados pelas institui- ções nas quais vivem, pela influência da tradição e do folclore, pelo próprio veícu- lo do pensamento, isto é, a linguagem. O ambiente social e cultural no qual eles se movem os força a pensar e sentir de uma maneira definida. Malinowski, 1922. 1 Cognição e linguagem é o tema deste texto, tal como nos foi soli- citado pelos organizadores do volume, mas “cognição, linguagem e sociedade” seria o título mais fiel à abordagem que pretendemos adotar para tratar do assunto. No último século, depois dos de- senvolvimentos teóricos, experimentais e de observação tanto da linguística como da antropologia, assim como, nas décadas mais recentes, da ciência cognitiva, houve e tem havido inúmeras obras sobre a relação entre cognição e linguagem, assim como sobre cognição e meio social, e também linguagem e meio social. E tem havido também, é claro, obras sobre a relação tripartite entre Cf. MALINOWSKI, 2002, p. 17. 1 1

Transcript of Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

Page 1: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

Cognição e Linguagem

Luiz Henrique de Araújo DutraUFSC/UnB/CNPq

…estamos interessados apenas no que eles sentem e pensam qua membros de

certa comunidade. Ora, neste caso, seus estados mentais recebem uma impressão,

se tornam estereotipados pelas institui-ções nas quais vivem, pela influência da

tradição e do folclore, pelo próprio veícu-lo do pensamento, isto é, a linguagem. O ambiente social e cultural no qual eles se movem os força a pensar e sentir de uma

maneira definida.

– Malinowski, 1922.1

Cognição e linguagem é o tema deste texto, tal como nos foi soli-citado pelos organizadores do volume, mas “cognição, linguagem e sociedade” seria o título mais fiel à abordagem que pretendemos adotar para tratar do assunto. No último século, depois dos de-senvolvimentos teóricos, experimentais e de observação tanto da linguística como da antropologia, assim como, nas décadas mais recentes, da ciência cognitiva, houve e tem havido inúmeras obras sobre a relação entre cognição e linguagem, assim como sobre cognição e meio social, e também linguagem e meio social. E tem havido também, é claro, obras sobre a relação tripartite entre

Cf. MALINOWSKI, 2002, p. 17. 1

1

Page 2: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

cognição, linguagem e o meio social ou, mais exatamente, a cultu-ra de determinado povo. Portanto, é nesta linha mais complexa de questionamentos que desejamos encaminhar nossa discussão, isto é: como em determinada cultura ou meio social, dadas suas cren-ças e valores, se dão os processos cognitivos e linguísticos. O tema é muito amplo para ser tratado num texto destas dimensões e por isso é natural que apenas delineemos os aspectos mais gerais dessa problemática.

Vale destacarmos desde logo que uma adequada aborda-gem a esses assuntos deve ser também de caráter evolutivo. E, dado isso, um quarto elemento se juntaria naturalmente à discus-são, a saber, a maneira como, do ponto de vista da biologia evolu-tiva de nossa espécie, co-evoluíram nossa linguagem verbal (as línguas naturais), nosso aparato neurofisiológico (e mental) e o pensamento conceitual, assim como a consciência superior, que é uma das condições de base para os processos intelectuais mais sofisticados. Um bom exemplo de discussão nesta linha é a obra de Terrence Deacon, The Symbolic Species (DEACON, 1997). Con-tudo, esse excelente livro não contempla todos os aspectos antes mencionados, o que procuraremos fazer aqui, embora esquemati-camente, como já dissemos.

Para a teoria do conhecimento ou epistemologia praticada pelos filósofos, o aspecto evolutivo da mente humana e da cogni-ção é sempre algo a se desconsiderar. O pressuposto é que o hu-mano adulto maduro – transformado em sujeito genérico ou até mesmo transcendental, como se diz na tradição kantiana – possui o aparto intelectual consolidado e, logo, fixo com o qual lida com a experiência, a memória e até mesmo as emoções. Com isso ele tem a seu dispor matéria e forma do pensamento ou dos proces-sos cognitivos. Isso vale até mesmo para uma boa parte da ciência cognitiva e apenas na psicologia do desenvolvimento infantil, tal como vemos nas abordagens paradigmáticas de, por exemplo, Pi-aget e Vygotsky, entre outros, se considera o processo evolutivo – neste caso, no plano ontogenético – que vai desde o suposto esta-

2

Page 3: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

do de nenhuma cognição, na criança muito jovem, até o adoles-cente, quando (também supostamente) o aparato intelectual hu-mano está formado. Mesmo assim, há uma diferença importante entre os dois autores que acabamos de citar neste domínio de pesquisas. Enquanto Piaget desconsidera os aspectos culturais propriamente, as diferenças de meio social, pressupondo que suas conclusões se aplicam a quaisquer crianças humanas, em qualquer parte do planeta, Vygotsky é sensível às contribuições do meio social ao desenvolvimento psicolinguístico da criança e do adoles-cente. Portanto, ele abre caminho para que também a cognição do humano adulto seja considerada do ponto de vista interativo entre meio social, desenvolvimento da linguagem e dos processos inte-lectuais. Isso mostra por que até hoje sua obra mais conhecida (Pensamento e linguagem, cf. VYGOTSKY, 2012) continua a desper-tar interesse não só da parte dos que estudam o desenvolvimento linguístico e cognitivo de crianças e adolescentes, mas também daqueles que se ocupam da cognição e do uso da linguagem pelo humano adulto.

Todavia, embora seja sensível ao aspecto social que men-cionamos em relação à linguagem e à cognição, Vygotsky não faz aquele trabalho que apenas o antropólogo e o linguista de campo podem fazer, isto é, mostrar como cada cultura influencia não apenas os processos cognitivos e linguísticos consolidados no adulto, mas também, se instrumentalizados por teorias como a do próprio Vygotsky (e mesmo aquela de Piaget), os processos cogni-tivos e linguísticos da criança e do adolescente. Assim, deste pon-to de vista evolutivo no plano ontogenético, não podemos falar da relação entre cognição e linguagem tout court. É preciso conside-rarmos como, em determinada cultura, o indivíduo chega a adqui-rir suas ideias e valores a partir do aprendizado da língua falada nessa cultura, nesta comunidade ou meio social.

Desta maneira, podemos ter um enfoque mais exato do que pretendemos discutir aqui, o que pode ser formulado na se-guinte questão: como nossas ideias e valores, que são o conteúdo

3

Page 4: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

básico de nossas cognições, são adquiridas por nós ao aprender-mos nossa língua materna? Mas, de fato, podemos ir até um pouco mais longe e falarmos não apenas do conteúdo das cognições, mas de sua forma. A este respeito, há exemplos interessantes, um dos quais vamos já mencionar: a grande maioria das pessoas (e isso se constata nas classes de filosofia, na disciplina de lógica) não enca-ra como correta a forma inferencial denominada expansão na lógi-ca clássica. Sua forma é a seguinte: Se p, então p ou q. Por exem-plo, podemos aplicar essa forma de inferência no seguinte argu-mento: Se a Terra é redonda, então a Terra é redonda ou há habi-tantes em Marte. A pessoa comum (o não lógico) não costuma encarar tal conclusão como legítima e, logo, o argumento como válido. Sua intuição não é a mesma do lógico clássico. É preciso fazer um curso de lógica clássica, de cálculo proposicional, para aprender isso e pensar assim. Portanto, há uma diferença entre a cognição do lógico e aquela da pessoa comum, algo que diz respei-to à própria forma do pensamento, podemos dizer.2

Vale acrescentarmos aqui uma breve explicação para os não iniciados 2

nesses assuntos da lógica clássica: a sentença “A Terra é redonda ou há habitantes em Marte” é verdadeira se a sentença que dela faz parte “A Terra é redonda” for verdadeira, em virtude de como o conectivo “ou” (o “ou” inclusivo, tecnicamente falando) se comporta com relação à verda-de e falsidade das sentenças que liga. Se uma delas é verdadeira, então a sentença disjuntiva toda também é verdadeira. Aparentemente, a intui-ção da pessoa comum é aquela de tomar o conectivo “ou” no sentido exclusivo, o que faria com que, se uma das sentenças da disjunção é ver-dadeira, a outra tem de ser falsa, ou vice-versa. Logo, para a pessoa co-mum, aquela conclusão não parece aceitável; ela é pelo menos suspeita. Na linguagem comum, a disjunção exclusiva costuma ser indicada pela expressão “ou…, ou…”. Assim, a pessoa comum, encarando desta forma a disjunção, diria que ou é verdade que a Terra é redonda, ou é verdade que há habitantes em Marte; como é verdade que a Terra é redonda, en-tão não pode ser verdade que há habitantes em Marte. Vemos, portanto, como o processo cognitivo neste caso é diferente daquele representado na lógica clássica pela forma inferencial expansão.

4

Page 5: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

Nosso ponto principal será procurar argumentar da ideia de que é na aquisição do vocabulário e das formas sentenciais consideradas gramaticalmente corretas de uma língua que adqui-rimos também as bases de nossas cognições, o que varia de cultura para cultura. Na seção 1 tratamos da distinção tradicional entre conhecer e interpretar o mundo, argumentando que, de fato, ela não se sustenta e que o que há é um único processo cognitivo. Na seção 2 analisamos outra distinção tradicional que está relaciona-da com a problemática acima indicada, isto é, a distinção entre pensamento conceitual e linguagem e a questão se pode haver pensamento sem linguagem. Vamos argumentar que do ponto de vista evolutivo a questão não é pertinente. Na seção 3 vamos es-boçar uma concepção unificada da cognição, da linguagem e da ação, argumentando que a cultura é tão essencial para o desenvol-vimento cognitivo e linguístico quanto o amadurecimento neuro-fisiológico.

1 A ideia de visão de mundo

A noção tradicional de visão de mundo (worldview, Wel-tanschauung) que encontramos na filosofia e em outras partes das humanidades implica tomar de um lado o próprio mundo, como algo dado e que pode ser conhecido pelas ciências naturais ou pe-las ciências exatas, pelo menos em seus aspectos físicos, químicos, biológicos etc. essenciais, e de outro a maneira como o encara-mos, como o interpretamos, como reagimos subjetivamente a ele, o que pode ser estudado pelas humanidades em geral. Essa noção está incorporada na antropologia e na linguística de campo tam-bém e aparece em exemplo bem simples e frequentemente cita-dos, como a disparidade entre a distinção que o falante do francês faz entre rivière e fleuve e aquela que o falante do português faz entre rio e riacho. O francês entende que um fleuve corre para o mar e que uma rivière desagua em outro curso d’água, em um fleu-

5

Page 6: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

ve, por exemplo. O português entende que a diferença importante não é essa, mas a de volume d’água. E enquanto é mais fácil dis-tinguir um fleuve de uma rivière, é mais difícil distinguir um rio de um riacho, pois isso pediria um critério ou padrão de volume d’água; mas essa visão dos cursos d’água é intuitiva. Essas visões parciais do mundo são, de todo modo, incomensuráveis, pois não adiantaria dizermos em português que uma rivière é, para nós, um afluente, uma vez que isso nada tem a ver com o volume d’água. Contudo, supomos que os cursos d’água são o que são – lá no mundo –, independentemente de como imprimimos sobre essa parte de nossa experiência diferentes esquemas conceituais. As classificações mais ou menos rigorosas são diferentes, podem di-vergir e divergem, mas não afetam o que o mundo é. Se o falante do francês e o falante do português estiverem diante do Senna, pouco importa se um vê um fleuve, enquanto o outro vê um rio. E se estiverem diante do Tietê, pouco importa se o primeiro vê uma rivière e o segundo continua a ver um rio. Achamos que o Tietê e o Senna continuam a ser o que são independentemente deles. Es-ses dois rios são objetos de percepção sensorial e, logo, não po-dem mudar em si, mas apenas na maneira como cada cultura inter-preta a mesma percepção.

Bem, as coisas não são assim tão simples. Malinowski, ao estudar o povo das ilhas do arquipélago de Trobriand (Papua Nova Guiné; cf. MALINOWSKI, 2013, cap. VII), relata o fato curioso para nós ocidentais de que dois filhos do mesmo pai (e da mesma mãe), ambos parecidos entre si e com seu pai, não são assim vistos pelas pessoas desse povo. A semelhança entre os dois irmãos é patente para nós; mas não é para eles mesmos. Poderíamos dizer que eles veem a semelhança, mas que, por razões culturais (uma espécie de tabu), não a admitem publicamente, embora a reco-nheçam privadamente. Muzafer Sherif (1936, p. 9s) sugere que se trata de uma das maneiras pelas quais as normas sociais podem afetar a própria percepção, o que, de fato, não é tão claro no rela-to do próprio Malinowski. Se compararmos este caso com aquele

6

Page 7: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

dos cursos d’água, poderemos então dizer, supondo que esta in-terpretação seja correta, que os falantes do francês e do português veem o mesmo curso d’água e admitem isso privadamente (ou tal-vez inconscientemente), mas que pública e conscientemente, de-monstram ver coisas diferentes. Ora, isso não se sustenta nem num caso, nem no outro. No caso dos habitantes das ilhas Trobri-and, teríamos de supor uma espécie de cinismo coletivo, digamos assim, e no caso das diferenças de recorte da realidade natural por parte de diferentes línguas, teríamos de supor uma distinção igualmente conceitual improvável, isto é, que de um lado perce-bemos determinadas coisas e, de outro, a elas aplicamos uma in-terpretação.

Os relatos de viajantes e etnógrafos trazem inúmeros ca-sos interessantes a este respeito. Um deles é aquele descrito pelo missionário jesuíta Martin Dobrizhoffer, que conviveu com a tri-bo Apipone no Paraguai no fim do século XVIII. Esses bravos guerreiros costumavam imitar o rugido de onças para afugentar invasores; contudo, eles mesmos ficavam apavorados ao ouvirem esses rugidos, possivelmente mais do que os possíveis invasores de suas aldeias (cf. DOBRIZHOFFER, 1822, p. 77). Esse temor que eles não sentiam pelas onças reais não era fingido e sua explicação ao missionário deixa claro como as concepções socialmente com-partilhadas moldam até mesmo nossas respostas emocionais, como afirma Sherif. Os Abipones diziam que temiam as onças imaginárias porque não podiam matá-las, ao contrário do que po-diam fazer com as onças reais.

Este caso também mostra que não se sustenta esse tipo de distinção cognitivamente improvável entre percepção e interpre-tação, como dois episódios cognitivos diferentes e independentes um do outro. Isso é comentado também por Thomas Kuhn (1970, cap. X) a respeito das concepções científicas propriamente. Kuhn se refere ao fato de que, depois de uma revolução científica, é como se o cientista vivesse em outro mundo, em outro planeta. Não é o caso, segundo ele, que cientistas pertencentes a diferen-

7

Page 8: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

tes paradigmas vejam as mesmas coisas e as interpretem diferen-temente. Por exemplo, diz o autor, onde um aristotélico via um corpo tendendo ao seu lugar natural com dificuldade, Galileu viu um pêndulo. Ora, o conceito de pêndulo e aquele de gravidade ao qual ele está ligado são incomensuráveis com aquele de lugar na-tural dos aristotélicos. Assim, não se pode dizer que tanto os físi-cos modernos como os aristotélicos observam o mesmo fenôme-no e apenas o interpretam ou explicam de maneiras diferentes. Essa mudança de percepção a que Kuhn se refere é amparada por ele com base em conceitos da Gestalt da mesma forma como She-rif já tinha feito em sua citada obra. Ora, em todos esses casos, seja de uma língua natural e dos valores sociais nela veiculados, seja no caso de um dialeto científico e dos conceitos teóricos nele expresso, é improvável que as pessoas observem ou percebam algo sempre igual e apenas o interpretem de maneiras diferentes, em-bora inconscientemente.

De fato, essa distinção entre processos cognitivos pura-mente observacionais e, logo, reveladores das coisas tal como elas aparecem a todos de uma suposta única comunidade epistêmica humana, e processos cognitivos de interpretação, no pensamento da Modernidade, remonta à obra de Kant e a sua distinção entre juízos determinantes, dos quais sua Crítica da razão pura trata, e juí-zos reflexionantes, dos quais se ocupa sua Crítica do juízo (cf., res-pectivamente, KANT, 1998 e 2008). Os juízos teleológicos, jus-tamente aqueles que os aristotélicos faziam mesmo com respeito aos fenômenos físicos, diz Kant, são reflexionantes, expressando apenas uma forma de encararmos a natureza (como arte, diz Kant) e não como os objetos da experiência são pensados por meio das categorias e dos princípios do entendimento, que nos dão os juízos determinantes que são universais.

É interessante citarmos este ponto em relação à perspec-tiva darwinista, que também baniu os juízos teleológicos das ex-plicações dos processos evolutivos das espécies biológicas, con-servando para os processos adaptativos apenas explicações em

8

Page 9: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

termos de causas eficientes, como prega a ciência moderna em geral para todos os processos naturais. A explicação evolutiva darwinista padrão, digamos, é que primeiro ocorrem mutações ocasionais e, depois, dependendo do meio ambiente no qual o organismo vive, se isso lhe permite sobreviver e procriar, ele passa sua nova característica genética à prole. Portanto, o transformis-mo das teorias evolutivas anteriores a Darwin, como a de La-marck, que é teleológico, é eliminado do horizonte científico: os organismos vivos não se modificam com a finalidade de se adapta-rem. A adaptação é um processo mais complexo e isento de finali-dade do ponto de vista darwinista. Contudo, também não é assim que, além dos transformistas antigos, a pessoa comum encara os seres vivos. É claro que podemos dizer que os juízos teleológicos da pessoa comum estão errados e que são as explicações darwinis-tas que estão corretas.

Ora, é isso o que a mentalidade científica de hoje aceita, mas, voltando a Kant na citada obra sobre os juízos reflexionan-tes, vale lembrarmos que esse autor afirma que, apesar de não po-dermos tomar como de valor objetivo os juízos teleológicos no âmbito dos seres vivos em geral, por exemplo, no caso de concep-ções antiquadas e também refutadas pela ciência moderna como míticas, como aquela de que o reino vegetal tem por finalidade servir de alimento ao reino animal, do ponto de vista de Kant, quando consideramos um organismo vivo isoladamente e sua eco-nomia interna ou sua estrutura, seus órgãos e seu funcionamento coordenado, não podemos dizer que seja absurda e meramente mítica a ideia de uma finalidade das partes para o todo. Por isso, quando a pessoa comum diz que nossos olhos, por exemplo, exis-tem para enxergarmos, seu juízo reflexionante se reveste de uma plausibilidade que não pode se reduzir à mera expressão de um ponto de vista arbitrário. E mesmo o biólogo evolutivo darwinista mais ortodoxo deve concordar que nossos olhos existem para que enxerguemos. Ele apenas talvez insistiria em inverter a ordem das

9

Page 10: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

sentenças, dizendo que enxergamos porque temos olhos. Mas, no fundo, a concepção é a mesma.

Essa disparidade entre as noções comuns, legítimas ou não, e os conceitos científicos rigorosos é comentada também por Vygotsky (2013, cap. 6; cf. também DUTRA, 2018, cap. 6) a res-peito do desenvolvimento psicolinguístico da criança e do adoles-cente. Segundo Vygotsky, apesar de utilizarem a mesma palavra, a criança e o adulto não têm a mesma compreensão do que estão dizendo, sendo que os conceitos do adulto, que correspondem aos conceitos cientificamente mais elaborados, são aprendidos pelo adolescente já no nível do ensino médio, levando a uma mudança semântica na qual a associação do termo com o que Vygotsky de-nomina complexo, no caso da criança, deixa de ser feita para dar lugar à sua associação com um conceito. O complexo tem origem na experiência comum e, de fato, indo além do que o autor afirma, podemos constatar que ele sobrevive também em concepções comuns compartilhadas pelos próprios adultos que não têm esco-laridade mais avançada. Por exemplo, não apenas as crianças, mas 3

também os adultos, que vivem em regiões tropicais, onde nunca há a ocorrência de neve ou geada, nem temperaturas abaixo de zero, não possuem a noção comum nas regiões temperadas de que a água se expande quando congelada. Por analogia com outros ma-teriais, essas pessoas podem supor que certa porção de água au-mentaria de volume ao ser aquecida, e diminuiria ao ser resfriada.

Tal como discutimos em nosso citado livro (DUTRA, 2018, cap. 6), o 3

complexo de que fala Vygostky é aproximadamente aquilo que os filóso-fos da linguagem denominam definição extensional ou enumerativa de um termo, enquanto o conceito é sua definição intesional e, logo, teóri-ca, indo além dos casos que a definição extensional indica como instân-cias da aplicação ostensiva do termo para nomear situações correntes da experiência comum. Por exemplo, a criança associa o termo “água” ao que vê nos rios, lagos, na caixa d’água de sua casa, na chuva etc., mas não com neve e gelo. Só depois de aprender a teoria científica de que a água é H2O, ela passa do complexo (extensional) para o conceito (intensional).

10

Page 11: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

É apenas a explicação teórica aprendida no ensino médio que fala do arranjo das moléculas de H2O que vai corrigir essa noção co-mum. Voltando ao que diz Vygotsky, o que ocorre entre uma fase e outra do desenvolvimento psicolinguístico da criança e do ado-lescente não é que este último, por exemplo, continuaria a enten-der a água como o conteúdo de rios, lagos etc., mas a interpretaria como H2O. A mudança semântica importante e real consiste exa-tamente em passar a ver H2O onde antes se via chuva, rios, lagos etc. A mudança semântica é o processo cognitivo de aquisição do conceito, tal como Kuhn também diz a respeito das mudanças de paradigma.

Por fim, e voltando a casos talvez mais centrais em nossa maneira de ver o mundo, casos similares logicamente àquele já comentado de início sobre a forma inferencial da expansão, a des-crição da maneira de ver o mundo e pensar de culturas não euro-peias por parte da antropologia traz também inúmeros exemplos que, mesmo em termos lógicos ou com respeito ao que no jargão kantiano se denomina princípios do pensamento empírico, são casos interessantes de desvio em relação a nossa visão de mundo euro-peia e científica moderna e contemporânea. Isso é recuperado em grande medida, por exemplo, pelas discussões de Lévy-Bruhl a partir dos relatos de viajantes e etnólogos (cf. LÉVY-BRUHL, 1922; 1951; 1963). Um dos exemplos mais expressivos é o das dife-rentes concepções de causalidade. Os povos que possuem aquilo que Lévy-Bruhl denomina concepção mística (que não se confunde com o tipo de misticismo religioso que encontramos no Cristia-nismo ou em outras religiões) aceitam, por exemplo, que a morte de uma pessoa foi por causa de uma infecção (se explicarmos a eles o que é uma infecção por micro-organismo), mas continuarão a dizer que tal infecção é apenas um meio que uma causa mística oculta utiliza para alcançar seu objetivo. Não é que a pessoa desses povos entenda algo como efeito de uma causa próxima (infecção-morte) e apenas interpreta isso como também um efeito de uma causa remota (força mística-morte). Na morte do indivíduo por

11

Page 12: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

infecção ela vê a ação daquela entidade mística. O crocodilo que devora uma criança à beira de um rio é o avatar de um agente mís-tico oculto que dele se serviu. O indivíduo não vê o ataque do crocodilo e infere aquele agente oculto, o verdadeiro responsável pela morte da criança; ele vê no ataque do crocodilo a manifesta-ção daquele agente místico.

Acreditamos que os comentários até aqui sejam suficien-tes para pelo menos colocarmos em xeque nossa noção tradicional de que na percepção e na interpretação temos dois processos cognitivos distintos. O que já sugerimos, por exemplo, no comen-tário que fizemos a respeito da teoria de Vygotsky, é que a aquisi-ção de linguagem também não é um processo cognitivo distinto dos dois primeiros. É neste sentido da discussão que devemos avançar um pouco mais.4

2 A distinção entre pensamento e linguagem

Há uma longa discussão entre os filósofos desde a Moder-nidade – discussão essa retomada pelos cientistas cognitivos hoje em dia – sobre haver ou não pensamento sem linguagem, isto é, em termos mais exatos: se é possível pensar independentemente da linguagem verbal. O pensamento conceitual é certamente de caráter também linguístico. Nossos comentários acima a respeito dos diferentes recortes das línguas naturais, como naquele caso do francês e do português a respeito de cursos d’água, sugeriram que não podemos separar o conceito do termo que o veicula. As tenta-tivas mais sofisticadas de fazer isso, como aquela de Jerry Fodor

Ainda a respeito da distinção acima aventada nos casos da infecção e 4

do ataque do crocodilo, de ver uma coisa e inferir outra, que está oculta e seria, em si mesma, inobservável, cf. também nosso artigo (DUTRA, 2017) no qual procuramos mostrar que mesmo as realidades abstratas são objetos de percepção e não de inferência. Este é o caso de diversos obje-tos culturais, como, por exemplo, as realidades linguísticas.

12

Page 13: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

(cf., por exemplo, FODOR, 1975), acabam tendo de postular a existência de outro tipo de linguagem, aquela do pensamento que, por sua vez, seria traduzida para as línguas naturais quando nos comunicamos verbalmente. Elas podem também implicar, como aparentemente é o caso da teoria do próprio Fodor, que há con-teúdos inatos na mente humana. Embora não se possa refutar essa postura, que vem até nós pelo menos desde Descartes, ela não conta com nenhum apoio empírico.

Os casos reais que poderiam trazer qualquer sustentação empírica em favor desse tipo de inatismo conceitual – implicando que pelo menos no que diz respeito às línguas naturais que fala-mos os conceitos são independentes de seus veículos verbais – são os casos de crianças ferais já estudados com certo rigor científico, entre eles destacando-se o caso do menino Victor, encontrado nas proximidades de Aveyron na época da revolução francesa, e o caso da menina Genie, encontrada na periferia de Los Angeles nos anos 1970. Quando comparamos esses relatos com a ficção filosó5 -fica de Tufail, no século XII, como representante do inatismo pré-cartesiano, que narra a evolução de uma criança solitária em uma ilha e que desenvolve não apenas uma língua própria, mas também ciência e filosofia próprias, vemos o quanto a fantasia filosófica sobre o pensamento e a linguagem pode se distanciar da dura realidade das crianças que são privadas do contato social no período em que deveriam em condições normais de vida adquirir sua língua materna. As crianças ferais, depois de trazidas para o convívio da sociedade humana, não apenas não falam língua ne-nhuma, como também não apresentam nenhuma noção moral, obviamente – e como poderia ser de outra forma? Mas o que tal-vez seja mais impressionante é que elas também parecem ser

Cf. o relato do médico Jean Itard a respeito do primeiro caso (ITARD, 5

1801; cf. também SHATTUCK, 1980) e aquele de Russ Rymer a respeito do segundo caso (RYMER, 1994; cf. ainda CURTISS, 1977). Sobre o ina-tismo pré-cartesiano, comentado a seguir, cf. TUFAIL, 1907.

13

Page 14: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

mentalmente deficientes, não conseguindo desenvolver as habili-dades intelectuais mais rudimentares que tentamos lhes ensinar. E não é menos impressionante o fato de que até mesmo a forma como elas reagem aos estímulos ambientais é diversa da nossa. Por exemplo, o médico Itard se impressionava com a grande tole-rância que Victor tinha ao frio do inverno do norte da França.

Mesmo que desconsideremos certa ingenuidade, digamos, de posturas como aquela de Tufail, que não poderia imaginar toda a sofisticação que nossas teorias linguísticas e cognitivas atuais possuem, e mesmo que, tendo em conta essas teorias e sua expli-cação para as deficiências verbais e cognitivas das crianças ferais, esses casos não deixam de ser significativos. Do ponto de vista de Chomsky (cf., por exemplo, CHOMSKY, 2009), o que ocorre com tais crianças ferais é apenas que elas deixaram de ser expos-tas aos estímulos verbais na idade adequada para que suas estrutu-ras linguísticas (seu órgão da linguagem inato) possam se desen-volver. A ideia aqui é que, assim como no caso de outros órgãos nossos, como, as pernas que usamos na locomoção, é o estímulo ambiental no momento adequado do desenvolvimento da criança que permite seu desenvolvimento adequado e amadurecimento, resultando num órgão perfeitamente funcional. Assim, para o ina-tismo de Chomsky, a disfuncionalidade linguística das crianças ferais se deve apenas à falta do estímulo ambiental e não ao fato de que tal estímulo seria, como pensam outros, não apenas estimu-lador, mas gerador, das habilidades linguísticas humanas normais.

Contudo, mesmo que Chomsky esteja certo a este respei-to, a não ser que aceitemos uma posição inatista mais forte, como aquela de Fodor, dizendo respeito não apenas à forma (à sintaxe), mas também ao conteúdo (à semântica) da linguagem, só teremos uma boa explicação para a evolução ontogenética da linguagem

14

Page 15: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

humana se separarmos a cognição da linguagem. Todavia, os ca6 -sos normais de aquisição da língua materna – o caso de todos nós – (e em certa medida também os casos de aquisição de uma se-gunda língua) mostram que, de fato, é no mesmo período de de-senvolvimento psicolinguístico da criança que ela adquire não apenas a língua, mas também habilidades motoras e cognitivas, assim como noções relativas ao convívio social, inclusive noções morais. Portanto, é apenas quando de maneira analítica e a posteri-ori elaboramos um modelo da aquisição da linguagem desconside-rando a aquisição de habilidades cognitivas que podemos falar da linguagem independentemente do pensamento. E, inversamente, como os filósofos e os psicólogos também fazem, podemos elabo-rar modelos da aquisição de habilidades cognitivas desconside-rando a aquisição da linguagem. Mas na criança real tudo se dá ao mesmo tempo.

O que ocorre então – filosoficamente falando – se não se-pararmos cognição de linguagem, mas se procurarmos elaborar uma teoria que tome os fenômenos do desenvolvimento infantil como processos ao mesmo tempo intelectuais ou de pensamento e linguísticos ou de comunicação? Ora, necessariamente o ambi-ente social deve ser também levado em conta, já que, como já en-fatizamos, sem ele não há esse desenvolvimento psicolinguístico. Essa foi exatamente a perspectiva adotada por Vygotsky, que já comentamos. A criança adquire formas de pensar juntamente com formas de se comunicar e com formas de conviver com os que a rodeiam. Ela entra no espaço cultural, social, por meio do apren-dizado da língua, que, por sua vez, é também o aprendizado do pensamento. Se é isso o que vemos, por que tentarmos inferir ou-tra coisa?

No plano filogenético, a teoria de Terrence Deacon (1997), já mencio6 -nada, apresenta uma crítica e alternativa radical à postura de Chomsky. Justamente, o que Deacon defende em termos evolutivos é que nosso cérebro e nossas capacidades cognitivas evoluíram conjuntamente com a linguagem.

15

Page 16: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

3 Um modelo unificado de comportamento, pensamento e comunicação

Costumamos localizar nossos processos cognitivos na ca-beça ou, em linguagem supostamente mais elaborada, na mente. E localizamos o comportamento e a comunicação no mundo, no ambiente no qual vivemos. Esta é mais uma das noções dualistas que conservamos em grande parte da ciência e da filosofia. O ór-gão da linguagem do qual Chomsky fala está dentro de nós, na mente ou talvez, mais exatamente, na cabeça, no cérebro. Essa competência interna é que nos permite, dado um estímulo ambien-tal, realizar atos de comunicação. A competência estará sempre lá – se o indivíduo adquirir sua língua materna – mesmo que ele nunca se comunique. Dada a constituição normal, digamos, do cérebro humano, é verdade que, uma vez adquirida a língua ma-terna, o indivíduo não vai mais perder sua capacidade linguística básica. Ele também não perde sua capacidade básica de agir e pensar se, na idade adequada de seu desenvolvimento, ele alcan-çou o amadurecimento de suas potencialidades motoras e men-tais. Mas nada disso implica que o pensamento, a comunicação e o comportamento dependam no adulto apenas de suas capacida-des adquiridas ou mesmo inatas, aquelas que ele pode conservar mesmo com pouco uso. É assim também que se passam as coisas em nosso organismo em geral.

A fisiologia animal contemporânea emprega as noções de órgão e sistema. O coração, por exemplo, é um órgão que faz par-te do sistema circulatório. Mas esse sistema congrega outros ór-gãos (as artérias e veias, os pulmões e os rins, para ficarmos nos mais conhecidos e óbvios). O sistema circulatório pode ser repre-sentado de forma mais ou menos abrangente. De uma maneira mais abrangente ainda, poderíamos incluir também a medula ós-sea, que é responsável pela produção de hemácias, sem as quais o sistema circulatório também não pode funcionar. Além disso, os

16

Page 17: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

órgãos podem fazer parte de mais de um sistema e isso é, afinal, o mais comum. Os rins, por exemplo, também têm papel essencial no sistema excretor. A genitália humana, por sua vez, toma parte tanto no sistema excretor como no sistema reprodutivo. Tudo isso é bem conhecido e está fora de disputa hoje. O órgão da lingua-gem de Chomsky e o sistema mental do qual ele faria parte é algo mais controvertido.

Contudo, aceitemos esse órgão da linguagem de Chomsky; aceitemos também o órgão do pensamento ou do co-nhecimento de Kant (embora este autor não se expressasse assim); e, por fim, aceitemos o órgão do comportamento de Skin-ner, por exemplo (embora este autor também não viesse a aceitar essa nossa maneira de colocar as coisas). A noção de sistema é mais abstrata que aquela de órgão e mesmo que Chomsky empre-gue o termo “órgão” num sentido que também é abstrato e não concreto, como no caso da fisiologia, a noção de sistema ainda é mais abstrata. Um sistema é basicamente uma forma abstrata de representar determinada funcionalidade. Por isso alguns dos ór-gãos internos nossos podem fazer parte de diversos sistemas. Es-ses órgãos desempenham suas funções fisiológicas rotineiras, di-gamos, e nós é que descrevemos seu papel como aquele que con-tribui neste ou naquele sistema fisiológico. Os possíveis órgãos chomskyano, kantiano e skinneriano, acima mencionados, tam-bém podem tomar parte em diferentes sistemas mentais. Se iso-larmos a cognição, tomada como o processamento interno da in-formação, poderemos incluir neste sistema cognitivo tanto o ór-gão chomskyano como o órgão kantiano. Se isolarmos o sistema comunicativo, poderemos incluir agora o órgão skinneriano ao lado do órgão chomskyano. Não estamos aqui apenas tentando brincar com conceitos e inventar patchworks teóricos cujo valor seria meramente de curiosidades intelectuais, de exercícios filosó-ficos talvez com a intenção de pôr às claras as limitações dos con-ceitos científicos rigorosos que seus autores pretenderam elabo-rar.

17

Page 18: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

Tomemos a sério a ideia de um sistema de relação entre os indivíduos humanos. Esse sistema requer que determinadas fun-cionalidades estejam presentes nesses indivíduos, entre elas aque-las que permitem a emergência de cognições, de processamento de informação, de respostas a estímulos ambientais e de certo domínio ou controle sobre um dos tipos de respostas a tais estí-mulos, exatamente aquele tipo de resposta verbal que podemos exibir por meio da fala. Para isso, uma boa parte de nossa capaci-dade mental instalada, digamos assim, de nossas competências ou inatas, ou adquiridas, deverá ser mobilizada. Agora podemos de forma mais exata descrever esse sistema como aquele que é res-ponsável pelas relações verbais entre os indivíduos humanos. Nos atos de comunicação ou fala, os indivíduos precisam controlar as verbalizações de acordo com determinadas normas sociais, sob pena de não serem compreendidos por seus interlocutores. No plano mais abstrato, dizemos que eles têm de ter, portanto, de-terminada capacidade gramatical ou sintática. Mas esses indivídu-os também precisam entender o que estão dizendo, o que signifi-ca que, no plano mais abstrato, eles têm de ter determinada capa-cidade semântica ou cognitiva no sentido mais usual do termo. E, por fim, esses indivíduos precisam também responder (no sentido da análise do comportamento, não no sentido verbal ordinário) adequadamente aos estímulos verbais que recebem, o que quer dizer que eles também precisam ter certa capacidade comporta-mental, digamos. Sem isso tudo, as relações humanas ordinárias se tornam completamente disfuncionais.

Quando analisamos as coisas tomando o ponto de vista do comportamento verbal, percebemos que o indivíduo precisa tam-bém ter a capacidade de internalizar (para utilizarmos um termo tradicional) determinadas normas sociais. Elas estão relacionadas tanto com suas respostas ou reações comportamentais em geral como com aqueles especificamente verbais (por exemplo, as re-gras gramaticais). Mas elas estão presentes também nos processos cognitivos internos mais comuns, por exemplo, na interpretação

18

Page 19: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

adequada dos termos utilizados na fala, na capacidade de lidar semanticamente de forma adequada com os símbolos. Há, por-tanto, também regras semânticas, digamos, que são aquelas expres-sas em dicionários e que têm relação com a compreensão coletiva das palavras e expressões de uma língua. É tudo isso que pode co-locar adequadamente o indivíduo em sintonia com seu meio soci-al. E tudo isso ele internaliza ou aprende ao mesmo tempo que adquire sua língua materna. No processo concreto, é impossível separar o aspecto semântico do sintático e daquele que tem a ver com as normas sociais de convivência de maneira geral, como as normas morais e outras que regulam a convivência dos indivíduos em determinado grupo. Por isso podemos dizer que aprender a língua do grupo é também aprender a conviver nesse grupo.

Os sistemas que descrevemos são modelos e os modelos são sempre estruturas parciais. É legítimo e mesmo recomendável nas ciências (e por que não também na filosofia?) isolar partes da realidade através da elaboração de modelos para podermos enten-der melhor seu funcionamento. Mas devemos ter clareza que com isso estamos abstraindo das condições reais em que os diversos processos se dão. Voltemos um instante ao caso dos sistemas fisio-lógicos de nosso organismo. Dissemos que numa das formas de descrição do sistema circulatório os rins fazem parte dele, embora também façam parte do sistema excretor. Os rins colaboram na economia parcial do sistema circulatório que, por sua vez, irriga também os próprios rins, para que eles possam funcionar. No nos-so organismo, na sociedade, na realidade toda em geral não há fronteiras rígidas, embora haja determinadas fronteiras permeá-veis naturais que podem servir de guia para nossa atividade de modelagem. Nossa pele, por exemplo, é uma dessas fronteiras permeáveis. Nossos órgãos dos sentidos são outra.

Quando tratamos da relação entre cognição, e linguagem, e cultura, é claro que podemos elaborar diversos modelos. Pode-mos, por exemplo, isolar nossas funções cognitivas internas (ou mentais, no sentido tradicional) e procurarmos descrever como

19

Page 20: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

esse sistema lida com a informação. É o que em geral a ciência cognitiva procura fazer e já foi o que Kant fez em seu sistema. Podemos também procurar isolar nossas funções comunicativas ou linguísticas e, num nível de máxima abstração, descrevê-las como uma língua natural, seja o que está expresso num manual de gramática e num dicionário, seja o que é afirmado por uma teoria linguística abstrata como a de Chomsky, entre outras. Podemos fazer o mesmo com a cultura de um povo, que é o que a antropo-logia procura fazer. Mas na realidade viva tudo isso funciona con-juntamente. Os sistemas se comunicam, se interpenetram e afe-tam as funcionalidades uns dos outros.

Portanto, para efeitos das modelagens que fazemos, po-demos procurar considerar a cognição como se ela fosse indepen-dente da linguagem, ou esta daquela, ou ambas da cultura, e vice versa. E com isso podemos aprender muito, é claro. Mas também podemos aprender muito quando procuramos elaborar modelos mais abrangentes que integrem esses modelos parciais menores. Podemos tentar imaginar como seria a cognição humana se não possuíssemos o tipo de linguagem verbal que possuímos. Não sa-bemos como seria isso, é muito difícil imaginar, pois o caminho que a evolução de nossa espécie seguiu nos levou a ter uma estru-tura cognitivo-linguística adaptada a sua própria constituição. Nisso Chomsky tem razão, aparentemente, ao dizer que seria muito difícil e talvez impossível aprendermos qualquer língua ali-enígena, isto é, de outra espécie que não seja a humana. Isso não impediria completamente a comunicação, é claro, como não im-pede que nos comuniquemos com nossos animais domésticos. Essa comunicação só não pode ser encarada como linguística.

Então é claro que tanto no plano filogenético como no plano ontogenético a cognição humana é dependente da lingua-gem verbal, e esta daquela, e ambas das estruturas sociais, como normas e valores compartilhados. E também é fato que toda essa estrutura social, cultural, só existe tal como é porque conta com os recursos de nossa linguagem e da cognição que ela propicia.

20

Page 21: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

Em nosso já citado livro, Autômatos geniais (DUTRA, 2018), apre-sentamos as noções de espaço cultural e de espaço linguístico, que é parte do primeiro, mas que é, por assim dizer, de fato, sua base. Esses dois espaços são também abstrações, pois a linguagem e a cultura evoluem lado a lado, tanto filo como ontogeneticamente falando. E qualquer espaço cognitivo, digamos, que seria o âmbito do processamento da informação em nossos cérebros, como insis-te Deacon, também já citado, evoluiu e evolui filo e ontogeneti-camente em conjunto com nossas línguas e – acrescentemos – com nossas culturas.

4 Considerações finais

É por meio da linguagem que as representações coletivas se tornam representações individuais, para utilizarmos as expres-sões devidas a Durkheim (1924, p. 1s). É por meio da aquisição da língua que as representações coletivas passam a ser também re-presentações individuais. As representações coletivas são as con-cepções e valores que os membros de uma coletividade comparti-lham. Elas estão, obviamente, distribuídas por esses membros. Cada um deles é uma instanciação dessas representações na me-dida em que exibe uma versão individual delas. Uma norma de conduta, por exemplo, na medida em que é aceita por um mem-bro da coletividade que a aprende dos demais é uma representa-ção coletiva que se torna representação individual. A única manei-ra pela qual o indivíduo pode aprendê-la dos demais é falando a mesma língua que eles. Não há processos cognitivos não linguísti-cos que sejam capazes de transmitir com exatidão a norma, com fidelidade à própria representação coletiva. Esta última deve ser suficientemente geral para poder ser assumida por qualquer um da coletividade. E essa generalidade só é atingida nas formas verbais de comunicação. É essa capacidade de generalização dos proces-sos cognitivos propiciados pela comunicação verbal que torna, de

21

Page 22: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

um lado, representações individuais quaisquer, na medida em que venham a ser adotadas pela coletividade, representações coletivas e, fazendo o caminha inverso, é o que permite que cada indivíduo, por sua vez, possa instanciar tais representações.

Vimos na seção 1 deste texto que a distinção tradicional entre conhecer, de um lado, e interpretar, de outro, não se susten-ta. Separar os dois tipos de processos cognitivos implica um en-tendimento inadequado do mundo. Há, de fato, um único proces-so cognitivo que envolve os dois aspectos. Ao conhecer, já esta-mos de alguma forma interpretando e não há interpretação que não seja informada por algum conhecimento no sentido mais ob-jetivo de descrever estados de coisas.

Na seção 2, por sua vez, analisamos a distinção entre pen-samento conceitual e linguagem e a questão se pode haver pen-samento sem linguagem. Argumentamos que, do ponto de vista evolutivo, essa questão nem é pertinente. Embora possamos ad-mitir que haja processos cognitivos não linguísticos, por outro lado, devemos reconhecer que os processos mais decisivos para nossa inserção no mundo, para o entendermos adequadamente e nele agirmos, são processos cognitivos por meio da linguagem verbal.

Por fim, na seção 3 procuramos esboçar uma concepção unificada, reunindo cognição, linguagem e ação. Argumentamos que a cultura na qual o indivíduo se insere ao aprender sua língua materna é tão essencial para seu desenvolvimento e amadureci-mento cognitivo quanto a própria consolidação das estruturas cerebrais sem as quais nem cognição, nem linguagem podem exis-tir.

É essa visão unificada da ação humana com os processos cognitivo linguístico, tal como comentamos acima, que explica como chegamos a fazer parte de uma coletividade e, ao mesmo tempo, ser nós mesmos, sermos parte de uma coletividade de eus individuais com discernimento e autonomia. Devemos, por fim, reconhecer que é nas normas morais de uma sociedade que atin-

22

Page 23: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

gimos o grau máximo das representações coletivas que são tam-bém representações individuais. Ora, a moralidade é o mais com-plexo e ricos dos processos cognitivos que a linguagem nos ofere-ce.

Referências bibliográficas

CHOMSKY, Noam. Cartesian Linguistics. A Chapter in the His-tory of Rationalist Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2009 [1966].

CURTISS, Susan. Genie: A Psycholinguistic Study of a Modern-Day “Wild Child”. Salt Lake City: Academic Press, 1977.

DEACON, Terrence W. The Symbolic Species. The Co-Evolution of Language and the Human Brain. Nova York: Norton, 1997.

DOBRIZHOFFER, Martin. Account of the Abipones. An Equestri-an People of Paraguay. Vol. 2. Londres: John Murray, 1822.

DURKHEIM, Émile. Sociologie et philosophie. Paris: Félix Alcan, 1924.

DUTRA, Luiz H. de A. A beleza está nos olhos de quem a vê? A percepção de realidades abstratas. Principia, vol. 21, n. 2, p. 251-289, 2017.

DUTRA, Luiz H. de A. Autômatos geniais. A mente como sistema emergente e perspectivista. Brasília: Editora UnB, 2018.

FODOR, Jerry A. The Language of Thought. Nova York: Thomas Y. Crowell, 1975.

23

Page 24: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

ITARD, Jean M. G. De l’éducation d ’un homme sauvage ou des premi-ers développemens physiques et moraux du jeune sauvage de l’Aveyron. Paris: Goujon Fils, 1801.

KANT, Immanuel. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

KANT, Immanuel. Critique of the Power of Judgement. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1970.

LÉVY-BRUHL, Lucien. La mentalité primitive. Paris: Félix Alcan, 1922.

LÉVY-BRUHL, Lucien. Les fonctions mentales dans les sociétés inféri-eurs. 9a. edição. Paris: Presses Universitaires de France, 1951 [1910].

LÉVY-BRUHL, Lucien. L’âme primitive. Paris: Presses Universi-taires de France, 1963 [1927].

MALINOWSKI, Bronislaw K. Argonauts of the Western Pacific. An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea. Londres: Routledge, 2002 [1922].

MALINOWSKI, Bronislaw K. The Father in Primitive Psychology. (Malinowski Collected Works, vol. V). Londres: Routledge, 2013 [1922].

RYMER, Russ. Genie. A Scientific Tragedy. Nova York: Harper, 1994.

SHATTUCK, Roger. The Forbidden Experiment. The Story of the Wild Boy of Aveyron. Nova York: Washington Square Press, 1980.

24

Page 25: Cognição e Linguagem - lhdutra.paginas.ufsc.br

SHERIF, Muzaffer. The Psychology of Social Norms. Nova York e Londres: Harper & Brothers, 1936.

TUFAIL, Ibn. The Awakening of the Soul. Londres: John Murray, 1907 [séc. XII].

VYGOTSKY, Lev. Thought and Language. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 2012 [1934].

25