Coisas da Roça - a música sertaneja no cinma brasileiro - Marcia Carvalho

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Coisas da roça: a música sertaneja no cinemabrasileiro

Marcia Carvalho∗

Índice1 Na estrada e na roça, uma história cai-

pira de um cinema sertanejo 22 No rodeio e na cidade, onde o sertão é

o Texas 63 A voz esganiçada: do caipira ao brega 74 Bibliografia 8

O termo música sertaneja designa um gê-nero surgido da moda de viola rural, nos anosde 1920, que até hoje conserva a tradição docanto com duas vozes, a segunda delas umaterça acima da principal, que é chamada pri-meira voz. Este gênero foi popularizado porduplas como Alvarenga e Ranchinho, Jara-

∗Radialista formada pela Universidade EstadualPaulista (UNESP), mestre em Ciências da Comuni-cação pela Universidade de São Paulo (ECA-USP),e doutoranda em Multimeios, no Instituto de Ar-tes da Universidade Estadual de Campinas (IA-UNICAMP), com uma pesquisa sobre a canção popu-lar no cinema brasileiro, sob orientação do Prof. Dr.Claudiney Carrasco. Professora universitária e dire-tora de um programa de TV do Canal Universitáriode São Paulo.Contato: [email protected] artigo foi apresentado em forma de comunicaçãono Núcleo de Pesquisa de Comunicação Audiovisual,do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comu-nicação (INTERCOM), realizado em Santos, em 29de agosto a 02 de setembro de 2007.

raca e Ratinho, Tonico e Tinoco e outros.Com o sucesso de Cascatinha e Inhana, com“Índia” de 1952, abre-se caminho para novasduplas e artistas conquistarem não somenteo rádio e o cinema, mas também a televi-são, tendo a frente cantores que se dedicaramà carreira solo, como Inezita Barroso e Sér-gio Reis. Poucas duplas se conservaram fiesàs características do gênero, sendo muitasvezes denominados como representantes damúsica caipira ou de raiz. Entretanto, muitasnovas duplas sofreram fortes influências es-trangeiras, principalmente da música coun-try norte-americana, cujas características dosinstrumentos eletrônicos, como a guitarra, eaté mesmo os elementos visuais, de indu-mentárias e de comportamento e costumespassaram a predominar no gênero agora cha-mado de moderna música sertaneja, ou aindamúsica sertaneja urbana ou pop. Esta trans-formação se iniciou nos anos 70 com LeoCanhoto e Robertinho, sendo consolidadanos anos 80 com Chitãozinho e Xororó, Zezéde Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo,e vozes individuais como Roberta Miranda.

A música sertaneja de raiz é compostapor modas, toadas, cateretês, chulas, embo-ladas e batuques, com o uso de violas caipi-ras e acordeons para evocar a paisagem bu-cólica do campo, da vida e da gente sim-

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ples do interior, particularmente na regiãocentro e sudeste brasileiro. Segundo Ro-mildo Sant’Anna: “a moda caipira de raízese sua qualidade estável são o sorriso primor-dial da região centro-sul e sudeste do país”(SANT’ANNA, 2000, p. 239). No entanto,de maneira mais ampla, o termo também in-clui o baião, o xaxado e outras músicas pro-duzidas nas regiões norte e nordeste do Bra-sil, onde efetivamente há sertão, e que têmem comum a característica de não serem cul-tura das cidades grandes.

Desde o começo do século XX, temos mú-sica urbana produzida com sotaque interio-rano, que criaram os gêneros como sambasertanejo ou valsa sertaneja. No entanto, atransformação da música sertaneja fabricadana cidade tomou o rumo dos temas urba-nos, perdendo os seus vínculos com a temá-tica caipira, e passou a compor músicas maisdramáticas e negativas, com poucas brechaspara o humor, e com a predileção por temasrelacionados a perdições, traições e adulté-rios.

Em contrapartida, podemos nos pergun-tar se esta discussão não irá cair nas garrasdo juízo de gosto como critério de avaliaçãoda música sertaneja e de suas vertentes. Se-gundo Carmen Lucia José:

“A discussão sobre o gosto deve ocupar vá-rios dos espaços culturais e educacionais dasociedade brasileira, discussão essa viabili-zada pelas diversas noções de estética e pe-las várias correntes teóricas de comunicaçãoe informação, tanto do ponto de vista diacrô-nico como sincrônico. Só assim será pos-sível desmontar a superficialidade do argu-mento ‘Eu gosto e gosto não se discute’ pois,atrás dessa posição, existe a crença da de-cisão pessoal confirmada. Essa crença nãose fundamenta no conhecimento e sim no

impacto e na impressão que o fato culturalprovoca, alimentando a posição ideologica-mente conveniente à ordem sistêmica atualde que as relações sociais e a posição ocu-pada no organograma do sistema é mero pro-duto do modo como individualmente tomam-se decisões, apoiado exclusivamente na idéiade sorte, esperteza, destino, etc... Afinal, ogosto é produto da composição do repertórioe esse também é reflexo do modo como cadasegmento social participa da organização domodo de produção capitalista” (JOSE, 2002,p. 131).

Nesse sentido, para uma melhor compre-ensão e definição do que é música sertanejae quais são as suas diferentes vertentes valetambém lembrar as palavras de um dos maisimportantes historiadores da música brasi-leira, José Ramos Tinhorão: “a música cai-pira é manteiga, e a sertaneja é margarina”(Baccarin, 2000, p. 100).

1 Na estrada e na roça, umahistória caipira de um cinemasertanejo

Um dos primeiros usos da música sertanejano cinema brasileiro foi no primeiro longa-metragem sonorizado no Brasil: Acabaram-se os otários (1929) de Luís de Barros, emque Roque Ricciardi, o Paraguassu (ou Pa-raguaçu), cantou o samba sertanejo “TristeCaboclo”. A estória deste primeiro filme so-noro brasileiro, segundo Carlos Roberto deSouza (1981, p. 39), assemelha-se à nossaprimeira comédia: Nhô Anastácio chegou deviagem, em que o matuto Arrudinha (Ge-nésio Arruda) chega à cidade e acaba com-prando um bonde.

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Antes deste filme, o italiano Paulo Bene-detti produziu no Brasil vários curtas faladose cantados acompanhados por discos, sendoresponsável pela primeira tentativa de sono-rização pelo sistema Vitafone (ou Vitaphone,conjugação de disco gravado com imagens)no curta-metragem Bentevi (1927), curiosa-mente com a participação do cantor paulistaParaguassu. Benedetti realizou uma série decurtas-metragens musicais com músicos po-pulares. O Bando de Tangarás gravou qua-tro músicas, dublando seus próprios discospara a câmera na busca de sincronia das ima-gens com as músicas pré-gravadas. Almi-rante, Noel Rosa, João de Barro e os demaisintegrantes apareciam vestidos de sertanejospara cantar as emboladas “Galo garnizé” e“Bole bole”, o lundu “Vamos falá do norte”,e o cateretê “Anedotas” (TINHORÃO, 1972,p. 251 e AUGUSTO, 1989, p. 78).

Também Humberto Mauro colocou emdestaque o caipira nos curtas-metragens queproduziu para o Instituto Nacional de Ci-nema Educativo (INCE), órgão criado em1936 por Edgar Roquette Pinto. Mauro fil-mou entre 1936 e 1964 vários pequenos fil-mes sobre canções populares brasileiras re-colhidas por Villa Lobos e Mário de An-drade, entre eles a série de seis filmes intitu-lada Brasilianas, com os filmes Chuá-chuá eCasinha Pequenina (1945), Azulão e Pinhal(1948), Aboio e cantigas (1954), Cantos detrabalho (1955), Manhã na roça (1956); ouainda, Carros de bois e A velha a fiar (1964).

Mas foi Luís de Barros que deu conti-nuidade à produção de filmes falados, comoem O babão (1930), paródia do sucessonorte-americano Amor pagão (The pagan),no qual, segundo Alex Viany, Genésio Ar-ruda parodiava Ramón Novarro, o galã domusical americano, “de cuecas, com sotaque

de caipira paulista” (VIANY, 1959, p. 115-116). Neste filme, Luís de Barros utiliza umsistema próprio de sincronismo entre o pro-jetor e os discos em que gravava os diálogos.

Em seguida, podemos citar os filmes comtemática sertaneja: Sertão em festa (1931)e Fazendo fita (1935) de Vittorio Capel-laro, com a dupla Alvarenga e Ranchinho(pseudônimos do mineiro Murilo Alvarengae do paulista Diésis dos Anjos Gaia). Estadupla, famosa pela música e pelos diálogoscômicos no cinema, participou de vinte fil-mes, entre eles destacam-se Tereré não re-solve (1938), Samba em Berlim (1943) ePif-paf (1945), de Luís de Barros, e Aba-caxi Azul (1944),de Wallace Downey e RuyCosta.

Com a popularização do sistema sonorono Brasil, inaugura-se a trajetória da produ-ção de musicais, preferencialmente carnava-lescos promovidos pela Cinédia e pela Atlân-tida. O filme desbravador deste percursoé Coisas nossas (1931) do norte-americanoWallace Downey, produzido em São Paulo,que aposta na popularidade de Paraguassu,Batista Júnior, Jararaca e Ratinho (pseudôni-mos do alagoano José Luiz Rodrigues Cala-zans e do paraibano Severino Rangel de Car-valho), e outros astros e estrelas da radiofo-nia na época.

A famosa dupla sertaneja de músicas cô-micas Jararaca e Ratinho participou de vá-rios filmes, entre eles Voz do Carnaval(1933) de Humberto Mauro e Adhemar Gon-zaga; Berlim na Batucada (1944) de Luísde Barros; Romance proibido (1938-1944) eLoucos por música (1945-1949), de Adhe-mar Gonzaga; e foram protagonistas de Notrampolim da vida (1946). Sem o seu par-ceiro, Jararaca atuou em Salário mínimo(1969-1970), de Adhemar Gonzaga, e tam-

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bém em programas humorísticos na televi-são.

Neste panorama historiográfico, é impos-sível não citar os filmes de Amácio Maz-zaropi, que estreou na Rádio Tupi de SãoPaulo, no final dos anos 40, com um pro-grama de conversa com os caipiras da cidadegrande. O sucesso no rádio o impulsionoupara a televisão, praticamente inaugurando aTv Tupi de São Paulo, em 1950, com o pro-grama Rancho Alegre. Convidado para fazerfilmes na Vera Cruz, Mazzaropi entra defi-nitivamente para a história do cinema brasi-leiro, particularmente com o filme Jeca Tatu(1959), uma adaptação de Monteiro Lobato,com direção de Milton Amaral. Nele, Maz-zaropi incorpora a sua caricatura histriônicade caipira, cristalizando o esteriótipo e os cli-chês do homem do campo ou do interior pau-lista como indolente, simples, conformado eastucioso. Entretanto, é importante lembrara presença no filme Tristeza do Jeca (1961),dirigido pelo próprio Mazzaropi, da toada-paulista: “Tristezas do Jeca”, criada por An-gelino de Oliveira, uma das canções mais im-portantes do cancioneiro sertanejo; e a parti-cipação do compositor e acordeonista MárioZan, que também participou dos filmes Daterra nasce o ódio (1954) de Antoninho Hos-sri e Casinha pequenina (1963) de GlaucoMirko Laurelli. Ou ainda, é impossível nãolembrar que a sua composição “Chalana” foitema principal da novela Pantanal, da RedeManchete de televisão nos anos 90, junto aossucessos de Almir Sater.

Com carisma inexplicável, esta fusão en-tre Jeca e Mazzaropi se desenvolve em mui-tas aventuras em inúmeros filmes, todos se-guidores do mesmo esquema de enredo sen-timentalista e alienado, se tornando até hoje,um dos maiores marcos do trabalho de pro-

dução/ distribuição/ exibição e também deaceitação de público para um filme brasi-leiro. A divulgação em massa da estereoti-pia de Mazzaropi vai de Sai da Frente (1952)e Candinho (1954) dirigidos por Abílio Pe-reira de Almeida; Chico fumaça (1958) deVíctor Lima; Jeca Tatu (1959) de MiltonAmaral; Tristezas do Jeca (1961) dirigidopelo próprio Amácio Mazzaropi; Casinhapequenina (1963) de Glauco Mirko Laurelli;O puritano da rua Augusta (1965) e Jecae a freira (1968) com direção de AmácioMazzaropi; Uma pistola para Djeca (1969)de Ary Fernandes; até O Jeca macumbeiro(1974), Jeca contra o Capeta (1975), Je-cão... um fofoqueiro no céu (1976), Jeca eseu filho preto (1978), e Jeca e a Égua Mi-lagrosa (1980) com direção de Pio Zamuner,entre outros.

Talvez devido a esta façanha comercial,Luiz Alberto Pereira tenha homenageadoMazzaropi no filme Tapete Vermelho (2005),em que o ator Matheus Nachtergaele imitaas suas pernas espaçadas e o seu vocabulário,bem acompanhado pela música do caipira le-trado Renato Teixeira.1

Outro sucesso bastante lembrado é o filmeO cangaceiro (1952) dirigido por Lima Bar-reto, épico no qual podemos notar no famosoplano geral do deslocamento de cangacei-ros a canção “Muié Rendêra” ou a canção“Saudade meu bem saudade” de Zé do Norte

1 Também com os mesmos parâmetros de precon-ceito e de clichê de caipira como sinônimo de pé des-calço, molambento e destituído, não se pode esquecera versão mirim de Jeca Tatu cristalizada no persona-gem Chico Bento, de Maurício de Souza, criado em1963 para as tiras de jornais, gibis e almanaques daMônica e do Cebolinha (Editora Abril), e almanaquee gibi Chico Bento (Editora Globo), que circulam atéos dias de hoje.

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no meio dos vários mecanismos americani-zados adotados no filme. Ou ainda, é precisoapontar a presença de “Beijinho doce” na tri-lha musical do filme Aviso aos navegantes(1951), dirigido por Watson Macedo.

Também a dupla caipira Tonico e Tinoco(os paulistas João Salvador Perez e JoséPerez) esteve presente no cinema brasileiroatravessando várias décadas de produção.Entre os filmes destacam-se Luar do sertão(1949), primeiro filme brasileiro do italianoMário Civelli; Lá no meu sertão (1962) eObrigado a matar (1964) de Eduardo Llo-rente; A marca da ferradura (1970) e Ostrês justiceiros (1970-1972) de Nelson Tei-xeira Mendes; Luar do sertão (1971) de Os-valdo Oliveira, que também dirigiu a comé-dia rural musical Sertão em festa (1970),com Tião Carreiro & Pardinho, e No ranchofundo (1971), terceiro filme do diretor comos cômicos Simplício e Nhá Barbina, e coma participação de, ainda meninos, Chitãozi-nho e Xororó; O menino jornaleiro (1980-1982); e A Marvada Carne (1985) de AndréKlotzel.

É curioso lembrar que André Klotzel foiassistente de direção de Nelson Pereira dosSantos em A estrada da vida (1980), filmeque conta a história da dupla sertaneja Mili-onário e José Rico, que comentaremos maisadiante. A marvada carne, uma comédia ins-pirada nos costumes da roça, é o seu longa-metragem de estréia. Trata-se de uma adap-tação de uma peça de Carlos Alberto Soffre-dini, com uma volta ao estilo do filme ruralpor meio de personagens e diálogos cômicosque buscam construir a ingenuidade e a sa-piência dos moradores do campo, com trilhamusical de Rogério Duprat e Passoca (MarcoAntônio Vilalba).

O paulistano Sérgio Reis, que em 1972

tornou-se o primeiro artista sertanejo a to-car em uma emissora FM (Baccarin, 2000,p. 130), emplacou as suas músicas sertanejasde sucesso nos filmes O menino da porteira(1976) e Mágoa de boiadeiro (1977) de Jere-mias Moreira Filho; e O filho adotivo (1984)de Deni Cavalcanti. Além de ter estendido asua atuação para as telenovelas e como apre-sentador de televisão. Estes filmes citadosanteriormente também contaram com a par-ticipação do cantor e humorista Zé Coqueiro(Walter Raimundo).

Outras músicas sertanejas de sucesso ins-piraram filmes, como Pára, Pedro (1969) dePereira Dias, baseado na música de sucessode José Mendes; Cabocla Tereza (1980) deSebastião Pereira, baseado na toada de RaulTorres e João Pacífico; ou Fuscão preto(1983) com direção de Jeremias Moreira Fi-lho, baseada na canção brega homônima deAtílio Versuti e Jeca Mineiro.

Um pouco distante do cinema sertanejo,devemos lembrar que a cantora Inezita Bar-roso e o contador de histórias e cantor Ro-lando Boldrim também atuaram no cinema.Boldrim participou de Doramundo (1976) deJoão Batista de Andrade, e Ele, o boto (1986)de Walter Lima Jr. Já Inezita Barroso atuouem Ângela (1951) dirigido por Tom Payne eAbílio Pereira de Almeida; É proibido bei-jar (1953) de Ugo Lombardi; Destino emapuros (1953) de Ernesto Remani; O craque(1953) de José Carlos Burle; é protagonistaem Mulher de verdade (1954) de Alberto Ca-valcanti; e canta “Estatuto de gafieira”, deBilly Blanco, no filme Carnaval em lá maior(1954) de Adhemar Gonzaga. Para eterni-zar o tom bem humorado das músicas caipi-ras, Inezita gravou em 1953 a famosa e mar-cante moda de viola “N’a moda da pinga”(de Ochélsis Aguiar Laureano, Raul Torres,

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com estrofes de Paulo Vanzolini e tambémreivindicada por Mariano, Nono Basílio), re-gistrando o vocabular de tom jocoso e ca-rismático da cantora. Atualmente, Inezita eBoldrim dedicam-se às suas carreiras de re-sistência e divulgação da cultura caipira natelevisão. Eles comandam os mais represen-tativos programas televisuais que abrem es-paço para a música caipira, os seus costumese histórias que são Viola, minha viola e Sr.Brasil, ambos veiculados pela Tv Cultura deSão Paulo.

2 No rodeio e na cidade, onde osertão é o Texas

Um exemplo bastante contundente da proli-feração da música sertaneja nos grandes cen-tros urbanos, determinando uma transforma-ção neste gênero musical, é a história da du-pla Milionário e José Rico retratada no ci-nema em Estrada da vida (1980) de NelsonPereira dos Santos. Além da sonoridade pop,a dupla escolhida é representativa dos novosrumos tomados pela música sertaneja nosanos 70, tanto no figurino como na temática einstrumentação das canções inspiradas pelasimagens do cowboy norte-americano. Estadupla sertaneja também participou do filmeSonhei com você (1988) de Ney Sant’anna.

Para Zuza Homem de Mello, a música ser-taneja perdeu o seu vínculo com o campo:“É totalmente oportunista, forçando a barrapara abandonar sua origem. O único pontode identificação com o universo rural são ostemas de boi e peão, mantidos por causa dosrodeios que atraem grande público” (NEPO-MUCENO, 1999, p. 216).

Sem humor ou expressão autêntica da ora-lidade de quem vive e trabalha com a terra,

esta música sertaneja tornou-se música defundo para o circuito de festas e bebedeirasdos “agroboys” ou novos ricos do interior,que vivem no faroeste da riqueza vinda damonocultura da cana-de-açúcar e dos gran-des negócios agropecuários. Este caipira debutique, expressão de José Ramos Tinhorão(1991, p. 5), são os fãs e patrocinadores dejogos eqüestres – Festas de Rodeios e Festasde Peões-boiadeiros, militantes de uma polí-tica agrária conservadora e modista.

Segundo Waldenyr Caldas (1987), o pú-blico desta música vive no meio urbano-industrial, são os consumidores de baixarenda que moram na periferia das grandes ci-dades e os novos ricos do interior. De serta-neja mesmo, sobrou apenas o nome. Dadoque, esta música atingiu os grandes veícu-los de comunicação e tornou-se parte de umcomportamento massificado de consumo.

Um dos filmes que pegou carona na po-pularidade das festas de rodeio, que segundoo barretense apresentador Cuiabano, é “ca-valo, poeira, cerveja, mulher e desquite nasegunda-feira” (NEPOMUCENO, 1999, p.221), é Buena sorte (1998) de Tânia La-marca. Este filme, rodado na região agro-pecuária de Uberaba e Barretos, e que in-clui cenas da Festa do Peão de Boiadeiro deBarretos, tira o chapéu para a cultura coun-try e o gênero western de cinema. O filme éfalado em português e inglês, possui perso-nagens americanos, danças e roupas típicasdo Texas. Na trilha sonora, a música origi-nal namora o estilo country em temas como“Country etílico”, “Tema do Texas” e “Temado Zorro”. Mas também não se esquece deeleger onze músicas sertanejas bem conhe-cidas e respeitadas, entre elas “Rio de lágri-mas” de Lourival dos Santos, Tião Carreiro ePiraci; “Disco voador” de Palmeira; e “Luar

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do sertão” de Catulo da Paixão Cearense, navoz de Vicente Celestino.

Outra aposta de sucesso do cinema serta-nejo cafona é à fuga de Zezé di Camargo eLuciano das festas de Reis com violas, re-zas e danças características de Goiás, ondeforam criados, para a cidade grande de SãoPaulo retratada em 2 Filhos de Francisco(2005), primeiro longa-metragem dirigidopor Breno Silveira. O filme baseado na vidados cantores de “É o amor” (Mirosmar Josédi Camargo e seu irmão Welson David Ca-margo), contou com a astuta ajuda de Ca-etano Veloso para selecionar junto aos su-cessos da dupla algumas modinhas caipiras,que ganharam nova roupagem para acompa-nhar as eficientes cenas de infância da du-pla, entre elas “Tristeza(s) do Jeca” de An-gelino de Oliveira, com a bela interpretaçãode Caetano Veloso e Maria Bethânea; “Ca-lix Bento”, do folclore mineiro com arranjode Tavinho Moura, interpretado por Ney Ma-togrosso; e “Luar do Sertão” de Catulo daPaixão Cearense, infelizmente nas vozes deChitãozinho e Xororó e Zezé di Camargo eLuciano.

No filme, o tom da malandragem do Jecaficou por conta da teimosia de Francisco(interpretado por Ângelo Antônio) que criasua indústria de jabá para impulsionar a car-reira dos filhos. Assim, o filme universa-liza a transformação da música caipira emmúsica sertaneja urbana, com seus temas deamor romântico não correspondidos, adulté-rio, traição e frustração, com todo o senti-mentalismo e romantismo eficazmente pop.

3 A voz esganiçada: do caipiraao brega

A viola não é mais o coração da música bra-sileira. Nem o pandeiro, nem o violão. Amúsica brasileira se rendeu à guitarra e aossons elétricos tão distantes do universo docaipira, que parece quase não existir maisatravés do cinema. O artista sertanejo atualquer ser country, o caipira americano, masnunca descendente dos matutos de sua terra,com seus versos, seus causos, sua viola esuas histórias da roça. Isto talvez aconteçapor vergonha do perfil ridicularizado de JecaTatu, traçado por Monteiro Lobato, concreti-zado no cinema por Mazzaropi.

Daí o conflito “caipira X sertanejo”, coma oposição da autenticidade do caipira com asua fusão com o chamado “brega”, que criouos rótulos “breganojo”, do radialista MoraesSarmento (MUGNAINI JR, 2001, p. 61), ou“sertanojo” de Rita Lee, roqueira vegetari-ana e alinhada com o pensamento da socie-dade protetora dos animais. Entretanto, nãose trata de uma discussão de gosto. A des-caracterização do gênero sertanejo não estásomente na recepção ou nos arranjos instru-mentais e no figurino, mas também no reper-tório criado sem qualquer preocupação coma qualidade melódica ou de elaboração dasletras.

Além disso, segundo Antônio Cândido(2001) e Walter de Souza (2005), o caipirase move entre territórios por desbravar dife-rentes paisagens, sem conseguir criar raízesem lugar algum. Muitas vezes, ao se trans-ferir para as grandes cidades permanece naperiferia, nos limites, produzindo e consu-mindo uma música que flutua entre o fol-clórico e o massivo. Nesse sentido, entre ovaivém da ficção e da realidade, o que resta

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do velho canto caipira, de sua viola e de seuhumor misturado a sua tristeza estranha, é odueto de vozes esganiçado, agora utilizadopara cantar música romântica brega. Assim,de tempos em tempos, podemos ver e ouvir amúsica caipira que resiste enquanto a músicasertaneja, com inflexão passional na melodiae na letra, fatura muito dinheiro ao assegu-rar o seu espaço no rádio, na televisão, norodeio, e também nas telas do cinema.

4 BibliografiaBACCARIN, Biaggio (org.). Enciclopédia

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