Colecções Cíndinicas Terrisc - UC

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Paisagens de Socalcos e Riscos Naturais em Vales do Rio Alva 13 Introdução A partir da necessidade da revitalização de um conjunto de estruturas agrícolas tradicionais, surgiu um ambicioso projecto no seio dos países do Mediterrâneo, com o objectivo de dar a conhecer a importância dos socalcos, a premissa fundamental do Terrisc. Os socalcos agrícolas são estruturas que contrariam a natureza dos declives e permitem ao homem desenvolver actividades agrícolas em locais mais inóspitos. Ao mesmo tempo, por facilitarem a infiltração da água das chuvas, previnem o desencadeamento de riscos naturais, como movimentos em vertentes. Em Espanha, França e Portugal (fig. 1), procedeu-se a um exaustivo trabalho de investigação nos socalcos, desenvolvendo directrizes de estudo direccionadas para os governos locais, que alertam para a valorização destes espaços, para a recuperação das paisagens a eles associadas e para a prevenção de riscos naturais. Fig. 1: Localização dos grupos participantes no Projecto Terrisc.

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Paisagens de Socalcos e Riscos Naturais em Vales do Rio Alva 13

Introdução

A partir da necessidade da revitalização de um conjunto de estruturas agrícolastradicionais, surgiu um ambicioso projecto no seio dos países do Mediterrâneo,com o objectivo de dar a conhecer a importância dos socalcos, a premissafundamental do Terrisc. Os socalcos agrícolas são estruturas que contrariam anatureza dos declives e permitem ao homem desenvolver actividades agrícolasem locais mais inóspitos.

Ao mesmo tempo, por facilitarem a infiltração da água das chuvas, previnemo desencadeamento de riscos naturais, como movimentos em vertentes.

Em Espanha, França e Portugal (fig. 1), procedeu-se a um exaustivo trabalhode investigação nos socalcos, desenvolvendo directrizes de estudo direccionadaspara os governos locais, que alertam para a valorização destes espaços, para arecuperação das paisagens a eles associadas e para a prevenção de riscos naturais.

Fig. 1: Localização dos grupos participantes no Projecto Terrisc.

Luciano Lourenço (Coord.)14

Em Espanha, o grupo de Palma de Maiorca coordena o projecto a partirdo Departamento do Ambiente e da Natureza (fot. 1), do respectivo GovernoRegional, e tem como associados a Universidade de Las Palmas, das Canárias, ea Fundação El Solá, de Tarragona. Em França, são parceiros o Parque Nacionaldas Cévennes (fot. 2), em associação com o Centro Nacional de InvestigaçãoCientífica (CNRS) do Languedoc - Roussillon. Em Portugal, participam tambémcomo parceiros, as Faculdades de Letras das Universidades do Porto e deCoimbra, esta através do Núcleo de Investigação Científica de Incêndios Florestais.

Como é sabido, nas últimas décadas, e sobretudo nas áreas rurais, tem-seassistido a uma diminuição e envelhecimento da população, com particularincidência da que trabalha nas actividades agrárias (LOURENÇO, 1996). Este processofoi acelerado pelo êxodo rural que, por sua vez, contribui para o abandono nãosó dos socalcos, constituídos pelos tradicionais patamares e muros de suporte,mas também de toda uma série de elementos a eles adjacentes, tais como palheiras,currais, eiras, moinhos, levadas, diques, caminhos e escadarias, que assim entramem degradação. No conjunto, constituem o designado património de socalcosque urge preservar, pelo menos em parte, para que as gerações vindouras possamcontinuar a admirar o esforço humano dispendido na modelação da paisagemserrana, uma tarefa hercúlea, tendo em consideração as condições e os meiosque permitiram realizá-la.

Fot. 1: I Reunião de Coordenação, Governo Regional de Maiorca, Espanha, Março de 2004.

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Em Portugal os processos de erosão provocam, com grande frequência,fenómenos de desgaste do solo, que se devem sobretudo à acção não controladada água sobre a terra. Os movimentos de massa aparecem, habitualmente, depoisde chuvas mais abundantes e, se o solo carece de vegetação, a sua coesão podeficar comprometida. Nestas condições, alguns sectores das vertentes podemficar susceptíveis de se transformarem em verdadeiros fluidos viscosos.

Ao favorecerem a diminuição do declive da vertente, os socalcos contribuempara aumentar a infiltração da água, benéfica para a agricultura, e limitar oescoamento superficial, prevenindo a erosão hídrica e outros riscos inerentes.

No entanto, as transformações socioeconómicas que se foram desenvolvendono nosso país, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, manifestaram-se num progressivo abandono agrícola, que levou a uma deterioração dossocalcos. Por sua vez, os processos erosivos aumentaram com a desarticulaçãodos sistemas hidrológicos que regularizavam a escorrência, pelo que, na actualpaisagem de socalcos, são frequentes os fenómenos de deslizamento edesmoronamento.

Com efeito, a degradação das paisagens de socalcos está bem patente nasregiões serranas de Portugal. Foi a partir desta realidade que nos comprometemosa estudar alguns espaços e a avaliar o seu estado de degradação, no sentido defacultar a cada município da área de estudo elementos que os possam habilitar ajustificar e a actuar na revitalização dessas regiões.

Fot. 2: Sede do Parque Nacional das Cévennes, França, Maio de 2005.

Luciano Lourenço (Coord.)16

1. Objectivos

Os objectivos primordiais do projecto Terrisc, têm em linha de conta, trêsdirectrizes fundamentais:

- Estudar paisagens de socalcos em diferentes condições geológicas e emcontextos geomorfológicos e edafoclimáticos diferenciados, com o intuito deavaliar a respectiva importância tanto na regulação hídrica das vertentes, comona prevenção de riscos naturais, nomeadamente em termos de ocorrência deincêndios florestais e de erosão acelerada dos solos, através de deslizamentos deterras e de desmoronamentos dos muros de suporte;

- Inventariar as estruturas de socalcos existentes, bem como o seu estado deconservação e a respectiva ocupação do solo.

- Estabelecer e divulgar estratégias de conservação e de gestão das paisagensde socalcos, de inegável importância cultural, com vista a evitar o seu abandonoe, nos casos onde já ocorreu, estimular a sua recuperação.

Deste modo, caracterizar os socalcos e prevenir a sua degradação foram osprincipais propósitos que nortearam o trabalho de investigação desenvolvido noseio do Terrisc.

O que se pretende é, pois, avaliar a importância destas áreas de socalcos naregulação hídrica das vertentes e na prevenção de riscos naturais, nomeadamentenas situações relacionadas com deslizamentos de terras, incêndios florestais eerosão hídrica acelerada dos solos, assim como estabelecer e divulgar estratégiasde gestão e de conservação destas paisagens, prever a sua degradação e evitar oseu abandono, pois os socalcos constituem um património arquitectónico eambiental extremamente valioso que não deve ser desprezado.

2. Métodos e técnicas de análise

O projecto Terrisc contou com reuniões periódicas levadas a cabo pelosdiferentes parceiros, que, inicialmente, serviram para tentar establecer umametodologia comum e, depois, para comparar os resultados que se iam obtendo,face às especificidades de cada região e que, porventura, justificassem outrosmétodos e linhas de investigação.

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As reuniões dividiam-se em duas partes. A primeira, consistia numa reuniãode trabalho, na qual os diferentes parceiros apresentavam o ponto de situaçãodos trabalhos em curso, debatiam ideias e trocavam experiências. A segunda,consistia em saídas de campo (fot. 3) às áreas de estudo com o intuito de mostrara todos os intervenientes diferentes realidades geográficas, ligadas entre si peloscampos em socalcos.

No final do projecto, estas reuniões, culminaram com a realização dasJornadas sobre Campos em Socalcos e Prevenção de Riscos Naturais (fot. 4),nas quais estiverem presentes todos os sócios e associados do projecto, bemcomo, especialistas de outras áreas científicas e de diferentes organismos por elesconvidados.

Individualmente, o grupo de Coimbra, depois de definir a sua área de estudo,desenvolveu investigação a diferentes escalas de análise e de acordo com as fasesa seguir indicadas.

Fot. 3: Saída de campo, Coimbra, Outubro de 2004.

Fot. 4: Jornadas finais do Projecto Terrisc, Palma de Maiorca, Setembro de 2006.

Luciano Lourenço (Coord.)18

2.1. Escalas de análise

A área de estudo do Terrisc (fig.2) reparte-se, em termos administrativos,por três concelhos: Arganil, Oliveira do Hospital e Seia. Por sua vez, integra umconjunto variado de unidades geomorfológicas, num total de seis pequenas baciashidrográficas (143,4 km2) integradas na bacia hidrográfica do Rio Alva. Em cadauma dessas bacias hidrográficas delimitaram-se sete áreas-amostra (500 m x 500 m),representativas das condições físicas e humanas dos campos em socalcos dasrespectivas bacias hidrográficas.

Por último, em seis das áreas-amostra foram instalados camposexperimentais, para medir níveis de erosão do solo e de escoamento superficiale, em três deles, foram instaladas estações meteorológicas automáticas, paraobter informação sobre a precipitação e a temperatura do ar, entre outroselementos meteorológicos. Tanto as condições meteorológicas como a erosãoem campos de socalcos foram alvo de monitorização constante, através darecolha periódica e sistematização dos dados, de modo a melhor caracterizar aevolução destas paisagens.

Deste modo, na área de estudo, consideram-se as seguintes escalas deanálise: munícipio, bacia hidrográfica, área-amostra, campo experimental eparcela de erosão.

2.2. Fases de desenvolvimento

O estudo desenvolveu-se ao longo de três fases, a primeira das quaiscorrespondeu à Inventariação e Cartografia (fot. 5) das áreas ocupadas com socalcos,nelas constando aspectos relacionados com a construção dos socalcos bem comocom o seu estado actual e utilização, designadamente: tipo de socalcos, dimensão,forma, técnicas de construção, tipo de pedra usado, estado de conservação dosmuros de suporte, uso e ocupação do solo, espécies agrícolas cultivadas (socalcosprodutivos ou socalcos abandonados), fisionomia da vegetação espontânea(herbácea, arbustiva e/ou arbórea), identificação, catalogação e cartografia dossistemas específicos de regulação hídrica e de uso da água associados a estaspaisagens (diques, açudes, poças, minas, levadas, técnicas de regadio, moinhos,…)por forma a avaliar o seu estado de conservação, eficiência e funcionalidade.

A segunda fase contemplou a Experimentação e Quantificação, nomeadamenteconstrução e montagem de campos experimentais, em diferentes condições

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A última fase contemplou a Análise de Dados, a Elaboração de Documentação ea Difusão dos Resultados. Nesta fase do trabalho procurou-se determinar asrelações existentes entre as características estruturais dos campos de socalcos,o seu estado de conservação e o tipo de uso do solo; avaliar a eficiência doscampos de socalcos enquanto estruturas que facilitam os processos de infiltração,que melhoram a regulação dos recursos hídricos e mitigam as consequênciasde eventos extremos, tais como os incêndios florestais e a pluviosidade intensa.

Contempla, de igual forma, a elaboração de documentação, com oobjectivo de difundir, entre os vários parceiros do projecto e agentes locais, osresultados obtidos, fomentar acções de promoção do património de socalcos,criar de foruns de intercâmbio e de difusão de experiências relacionadas comas paisagens de socalcos, quer seja através da internet, acções de sensibilizaçãoou exposições itinerantes.

Fot. 5: Pormenor da inventariação doscampos em socalcos com recurso a

fotografia aérea de 1958.

Fot. 6: Pormenor da montagem da parcelaexperimental de erosão do Colcurinho.

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2.3. Instrumentos de medida

Os instrumentos de medida, que foram instalados em seis camposexperimentais da área de estudo, distribuem-se por parcelas de erosão e estaçõesmeteorológicas.

2.3.1 Parcelas para a quantificação da erosão do soloCada parcela de erosão (fot. 7 )tem uma área padronizada de 5 m2, sendo

constituída, basicamente, por um rectângulo com 5x1m de lado, no qual foraminstalados equipamentos para a medição da água da escorrência e dos materiaissólidos deslocados (fig. 3) (LOURENÇO, 1999).

O facto de se usar uma área padronizada permite estabelecer termos decomparação entre as diferentes parcelas instaladas.

A área padronizada foi delimitada com chapas zincadas de 5m decomprimento e 20 cm de altura, fixadas ao solo. A distância entre elas é de1m ficando paralelas entre si e perpendiculares à parcela. Todas estãofechadas no topo.

Fot. 7: Detalhe da recolha periódica dossedimentos, Cabeça.

Fig. 3: Esquema da parcela de erosão.

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Os componentes principais da parcela são: uma calha colectora, que armazenao material sólido, um limnígrafo de balança, para contabilizar a água deescorrência, e um totalizador, para armazenar a água da escorrência e recolher omaterial sólido mais fino transportado em suspensão (fig. 3). A ligação entreestes três elementos é feita por mangueiras de plástico flexível.

A calha é basicamente constituída por uma caleira semicircular, fechadalateralmente, e onde foram abertos furos para encaixar as mangueiras. Em cadafuro foi colocada uma rede, para impedir que os materiais grosseiros mais levesentupissem as mangueiras. A tapar a calha, encontra-se uma tampa em chapazincada, que impede a entrada directa da água da chuva no interior da caixa.

O limnígrafo é constituído por um cubo de plástico no interior do qual estáinstalada uma balança com dois pratos e um contador analógico, que marca onúmero de vezes que os pratos viram, permitindo no final totalizar a água queentrou no circuito fechado. No caso de avaria, é possível determinar a quantidadede água entrada, medindo a que se encontra no totalizador.

2.3.2. Estação meteorológica

Para quantificar um conjunto de variáveis meteorológicas indispensáveis àcaracterização do clima local, instalaram-se três estações meteorológicas (fot. 8).

Com estes equipamentos, pretendeu-se obter um registo de informaçõesrelativas à pluviosidade, temperatura, humidade relativa, pressão atmosférica,vento e, também, monitorizar episódios de precipitações concentradas.

Cada estação meteorológica é constituída por anemómetro, termo-higrómetroe pluviómetro e foi programada para a leitura destas grandezas ser feita deforma contínua, com um intervalo de 30 minutos, através de um sistemaautomático de aquisição e armazenamento de dados (fig. 4). A recolha, feitasemanalmente, salvo raras excepções, de carácter acidental, resultantes de avarias,rapidamente ultrapassadas com sucesso, devido à dedicação da equipa, permitiua constituição de uma importante base de dados com informação meteorológicacompreendida entre Janeiro e Setembro de 2006.

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2.4. Cartografia

O trabalho de gabinete encontrou muita da sua expressão na cartografia daárea ocupada por socalcos, já que a presença destes cumpre um conjunto definalidades específicas que importava avaliar, baseadas no aumento da espessurado solo, decorrente da diminuição do declive da vertente, e no favorecimentoda percolação da água, limitando assim o escoamento superficial e,consequentemente, a erosão hídrica.

Os objectivos deste parâmetro têm em vista a análise da estrutura dossocalcos, a avaliação do estado de conservação dos muros que os suportam e,numa análise mais específica, o seu uso agrícola e respectiva fisionomia vegetal.

A inventariação e o levantamento cartográfico das áreas ocupadas porsocalcos nas seis bacias hidrográficas iniciou-se com a análise conjunta das folhasda Carta Militar de Portugal à escala de 1/25 000, do Serviço Cartográfico doExército, das fotografias aéreas de 1958, existentes na mapoteca do Instituto deEstudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e deortofotomapas de 2004, cedidos pelas respectivas Câmaras Municipais.

Fot. 8: Estação meteorológica automática,Colcurinho.

Fig. 4: Esquema da estação meteorológicaautomática.

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De seguida procedeu-se à sua rasterização, com posterior georeferenciaçãoe integração num Sistema de Informação Geográfica. O resultado obtido passoua permitir uma melhor comparação entre as duas fotografias aéreas, de forma aestabelecer-se a evolução verificada nos espaços ocupados por terraços duranteo período de tempo decorrido entre os dois voos.

A partir da análise destas fontes de informação geográfica, procedeu-se àvectorização dos socalcos através do método e das ferramentas contidas nosoftware ArcGis 9.1. Inicialmente, delimitou-se a estrutura dos socalcos e orespectivo estado de conservação e, após esta fase, foi cartografado o uso agrícolae a fisionomia vegetal dos campos em socalcos. Posteriormente, esteslevantamentos cartográficos dos campos em socalcos foram validados comtrabalho de campo, visto serem parâmetros muito específicos que carecem deconfirmação no espaço (fot. 9).

Sabendo-se à partida que a construção de socalcos é um dos métodos maisconhecidos e utilizados para controlar a escorrência e a erosão em vertentes deinclinação significativa, ao serem definidas as directrizes metodológicas do seulevantamento, o factor declive teve especial ponderação dada a sua influêncianos parâmetros em estudo.

Com recurso ao software acima referido, o declive foi calculado de formaautomática, utilizando uma grelha com dimensão de 0,4 mm de lado,correspondendo a 10 m no terreno, ou seja, cada quadrado corresponde a 100 m2,

Fot. 9: Reconhecimento e validação das variáveis estudadas, na área-amostra doAlentejo, bacia hiidrográfica da ribeira do Rio de Mel.

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facto que oferece um pormenor relativamente elevado. Tal resolução só é possíveldevido ao facto de ser calculado por computador, já que seria incomportável asua realização manual.

Tendo em conta que a generalidade da área de estudo apresenta elevada aptidãoflorestal, as classes de declive foram definidas de modo a ser possível relacioná-lascom as condicionantes às operações florestais (QUADRO I). Por sua vez, este intervalogera, também, o efeito visual que mais se adequa para a área de estudo, permitindomostrar de que forma o declive pode interferir no ordenamento deste território e,consequentemente, nas utilizações a dar à área de estudo.

QUADRO I: Classe de declive e suas condicionantes.

Na cartografia das áreas ardidas, foram rasterizadas e georreferenciadas, asáreas queimadas entre 1975 e 1989, levantadas no campo pelos técnicos da antigaCircunscrição Florestal de Coimbra. Para os restantes anos, de 1990 a 2005,utilizou-se a cartografia digital, disponibilizada pela Direcção Geral dos RecursosFlorestais, pronta a usar em ambiente SIG. Por fim, efectuou-se uma operaçãode álgebra cartográfica, com a sobreposição da área ardida em cada um dosanos. No final, obteve-se um mapa do tipo grid, com um tamanho de pixel de 50m, ao qual está associado o número de vezes que ardeu, determinando-se assimo mapa de reincidência.

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3. A área de estudo

A bacia hidrográfica do rio Alvoco juntamente com a ribeira de Pomares,agrupa na área em estudo, um conjunto de seis sub-bacias que, a títuloadministrativo, se enquadram em três concelhos. No concelho de Arganildestacam-se as bacias hidrográficas das ribeira de Pomares e do Piódão. Noconcelho de Oliveira do Hospital, as bacias hidrográficas em estudo são as dasribeiras do Avelar, de Aldeia das Dez e do Rio de Mel. Enquadradas no municípiode Seia encontram-se a bacia hidrográfica da ribeira de Loriga e a parte terminalda ribeira do Piódão (fig. 2).

3.1. Caracterização física

As bacias hidrográficas estudadas localizam-se numa área de transição entreas serras do Açor e da Estrela, ambas com altitudes superiores a 1000 m e que seencontram no mais notável conjunto montanhoso de Portugal, a CordilheiraCentral (fig. 2)

Do ponto de vista litológico, a serra do Açor é predominantemente xistosa,estando inserida no denominado Complexo-Xisto-Grauváquico ante-Ordovícicoe séries metamórficas derivadas. Nela podem encontrar-se diversos tipos dexisto, alternando com bancadas de grauvaques, grés bem consolidado ou mesmofinas bandas de quartzito (LOURENÇO, 1989).

Em termos hidrogeológicos, as referidas formações litológicas apresentamuma baixa permeabilidade, pelo que contribuem para baixas taxas de infiltração1,levando, consequentemente, a elevados coeficientes de escoamento superficial2.

Nas cabeceiras da ribeira de Loriga, encontram-se rochas magmáticas, quaseexclusivamente constituídas por granitos, que podem apresentar-se como

1 Taxa de infiltração - quantidade máxima de água que um solo, em condições normais pré-

estabelecidas, pode absorver por unidade de superfície horizontal, durante a unidade de tempo,

geralmente mm/hora (GARCEZ, 1967, p. 153, citado em LOURENÇO,1989).2 Coeficiente de escoamento superficial - relação entre o volume de água escoado por uma

secção e o volume de água precipitado na bacia contribuinte (GARCEZ, 1967, p. 153, citado em

LOURENÇO, 1989).

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porfiróides, calco-alcalinos, de duas micas, normalmente biotíticos ou, então,não porfiróides, alcalinos, de duas micas, onde o de grão grosseiro, conhecidotambém como «dente de cavalo», ocupa maiores áreas.

Da mesma forma que os xistos, estas formações possuem umapermeabilidade muito reduzida, mas ao longo das numerosas diáclases e fracturasexistentes e devido ao ataque químico que a água faz aos feldspatos, podeorganizar-se uma rede de drenagem subterrânea com alguma importância.

Atendendo à baixa permeabilidade das rochas magmáticas presentes,juntamente com a dos xistos e grauvaques, as taxas de infiltração em toda a áreade estudo são baixas e os coeficientes de escoamento superficial elevados, o quecontribui para tornar estas áreas bastante vulneráveis, do ponto de vista da erosãohídrica.

Estas características vão desencadear o aparecimento de ravinamentos e deoutros movimentos em massa, tais como desabamentos, desmoronamentos edeslizamentos. São áreas fragilizadas que devem ser defendidas dos efeitoserosivos, em particular após a destruição da vegetação pelos incêndios florestais.

Do ponto de vista geomorfológico, reconhecem-se dois tipos extremos deformas: umas delas estão associadas às cumeadas e aos aplanamentos culminantes,enquanto que as outras se relacionam com o entalhe recente e vigoroso de certostramos da rede de drenagem, que, muitas vezes, denota claramente uma adaptaçãoda rede hidrográfica à estrutura, através de vales de fractura muito bem vincadoscomo é o exemplo do vale da ribeira do Piódão (fig. 5).

Por este motivo, a área de estudo encontra-se muito dissecada, por um ladodevido à fragilidade das rochas que a constituem e, por outro, como resultadoda apertada rede de fracturas que as atravessam.

O reticulado impresso pela elevada dissecação da rede de drenagemproduz vertentes com acentuados declives, uma das características dominantesda área de estudo (fig. 6). Com efeito, a maior parte dos seus 143,4 km2

(90%) corresponde a áreas com declives elevados (fig. 7 e QUADRO II)Em termos morfométricos, as bacias hidrográficas são muito diversificadas

no que respeita à sua relação largura comprimento. Existem bacias relativamentecompridas e estreitas, como é o caso das bacias hidrográficas das ribeiras de Lorigae de Rio de Mel, onde a relação é de 0,33 e 0,39, respectivamente (QUADRO III).

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Luciano Lourenço (Coord.)30

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A área das bacias é muito diferente, variando desde 44, 7 km2 na baciahidrográfica da ribeira de Pomares até aos 5,58 km2, na bacia hidrográfica daribeira de Aldeia das Dez. O maior perímetro, por sua vez, encontra-se na baciada ribeira de Loriga, com um valor de 36 km, contrastando com os 11,9 km dabacia da ribeira de Aldeia das Dez.

Todas as altitudes máximas atingem valores acima dos 900 m, sendo que ascabeceiras da ribeira de Loriga, na Serra da Estrela, alcançam a Torre (1993 m).

QUADRO III: Análise morfométrica das bacias hidrográficas em estudo.

QUADRO II: Distribuição da área das bacias hidrográficas (km2), por classe de declive.

Fig. 7: Distribuição da área de estudo, por classes de declive.

Paisagens de Socalcos e Riscos Naturais em Vales do Rio Alva 31

A estas altitudes, serão de esperar elevados quantitativos pluviométricos,tanto mais que a disposição geográfica destas cordilheiras serve de barreira decondensação às massas de ar húmido, provenientes do Atlântico, provocandointensa precipitação.

Assim, nas três estações meteorológicas do Terrisc foram registadosquantitativos médios de 883,3 mm, no período de Janeiro a Setembro de 2006,provando que se trata de uma área com uma grande disponibilidade de águapara erosão. Por sua vez, as temperaturas médias rondaram os 14,6º C e ahumidade relativa média 66,1% (QUADRO IV)

QUADRO IV: Condições meteorológicas locais, no período compreendido entreJaneiro e Setembro de 2006.

Em função das características do relevo, todas as bacias contam com elevadosdeclives médios (fot. 10), sempre acima de 30 %, atingindo mesmo 51 % nabacia da ribeira do Piódão, a velocidade de escoamento é elevada, o que contribuipara intensificar a acção dos processos erosivos.

Deste modo, agora como no passado, os agentes erosivos são sempreresponsáveis pelo desgaste e afeiçoamento das formas. Assim, nas anterioresfases de maior estabilidade, os rios terão alargado os seus vales originando níveisaplanados, que, muito mais tarde, seriam aproveitados para a agricultura. Noentanto, à medida que estes se foram tornando insuficientes, os agricultoressentiram a necessidade de controlar a erosão em geral e a escorrência em particular,no sentido de adaptarem à prática da agricultura terrenos que apresentavamgrandes declives. Para tal, construíram socalcos.

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3.2 Caracterização humana

O mundo rural reflecte os modos de adaptação das sociedades aoscondicionalismos do meio geográfico. É, pois, fundamental conhecer os diferentesritmos de evolução da população destas áreas, já que nos ajudam a compreendera configuração actual destes territórios rurais. Os agentes que mais contribuírampara o actual cenário de desequilíbrio nas zonas serranas são de origem diversa,mas, entre eles destaca-se claramente o êxodo rural, que, consequentemente, levouà falta de manutenção dos socalcos e à deterioração geral das paisagens.

A tendência de evolução demográfica é muito marcada pela influência dosgrandes centros urbanos do litoral, que viram a sua população aumentar à custado êxodo proveniente das áreas rurais, que, consequentemente, são as maisafectadas pela saída de população (fig. 8).

Embora o êxodo serrano seja naturalmente justificado pela procuralegítima de melhores condições de vida, acabou por acarretar profundasmodificações nas estruturas sócioeconómica, etária e profissional dosresidentes nas áreas serranas, as quais se fizeram repercutir negativamente nobinómio agricultura-floresta (LOURENÇO, 1996, p.385).

Fot. 10: Socalcos agrícolas em vertente com declives superiores a 70 %, Piódão.

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O abandono dos campos, quer se tenha verificado por êxodo rural,emigração ou por envelhecimento populacional, é uma realidade significativa.Com efeito, nos últimos 60 anos a população teve uma evolução regressiva,com consequências para a conservação das áreas rurais e, mais concretamente,dos campos em socalcos, que só tinha sido possível manter durante séculos,graças à existência de um contingente populacional permanente e que garantia oseu sustento através da exploração agrícola dos mesmos.

Com efeito, esta redução da população, repercutiu-se com um acentuadodecréscimo nas camadas mais jovens, em detrimento das camadas mais idosas,levando assim, ao desaparecimento de uma força de trabalho capaz de garantiro equilíbrio sócioeconómico destes lugares. Ao analisar o período compreendidoentre 1981 e 2001, verifica-se que a tendência geral foi para uma diminuiçãobrusca da população empregada no sector primário, sendo que, na generalidade,a população que ainda se ocupa neste sector apresenta uma média de idades jábastante elevada, o que de certa forma reflecte o cenário característico dosconcelhos do interior do país.

Num curto espaço de tempo, o índice de envelhecimento cresceuexponencialmente, sendo, pois, notória a redução da capacidade derejuvenescimento da população das áreas serranas (fig. 9).

Por sua vez, a reduzida dimensão e a dispersão das parcelas de cadaproprietário, também constituíram um constrangimento importante, ajudando a

Fig. 8: Evolução da população residente nas freguesias da área de estudo.

Fonte: Instituto Nacional de Estatística.

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perceber de que forma é que estas contribuíram e continuam a influenciar aactual situação de abandono que caracteriza muitas das áreas de socalcos.

Segundo o último recenseamento agrícola, em 1999 existiam 4920 produtoresagrícolas, dos quais 80% (3976) eram homens. Efectivamente, o trabalho exigidona agricultura, continua a privilegiar o homem para as tarefas mais duras. Todavia,enquanto em décadas passadas os jovens eram a força anímica que permitia umacontínua exploração agrícola dos solos, actualmente, quando observamos as faixasetárias dos produtores agrícolas, verificamos que, frequentemente, estes têm idadessuperiores aos 65 anos. Segundo os dados recolhidos, cerca de 75% dos produtorestêm idade igual ou superior a 55 anos (fig. 10).

Fig. 9: Evolução do índice deenvelhecimeto e do sector primário, nas

freguesias da área de estudo.

Fonte: Recenseamento Geral Agrícola de 1999, INE.

Fig. 10: Número de trabalhadores emexplorações agricolas, segundo a faixa

etária.

Fonte: Recenseamento Geral Agrícola de 1999, INE.

Tal cenário permite-nos desde já retirar uma conclusão que se prende,sobretudo, com o facto de se ter verificado um progressivo abandono doscampos em socalcos com uso agrícola, que compreendiam as terras mais afastadasdas aldeias, restringindo-se actualmente a actividade agrícola aos patamares maispróximos dos aglomerados populacionais (fot. 11).

Paisagens de Socalcos e Riscos Naturais em Vales do Rio Alva 35

A economia base de muitas famílias serranas assentou, ao longo de váriasgerações, na complementaridade agro-silvo-pastoril. No entanto, o sistema agráriotradicional, praticado pelas gentes de outrora, foi substituído por uma agriculturade complementaridade, em que, actualmente, predomina a importância dasunidades familiares, da pluriactividade e da agricultura de consumo doméstico.

Por outro lado, a introdução das reformas no sector primário permitiu que aagricultura e a criação de gado passassem também a ser encaradas como umcomplemento das economias familiares, contribuindo assim para a drástica reduçãodas terras cultivadas e do número de cabeças de gado.

Se tivermos em conta a evolução das cabeças de gado ovino e caprino naárea de estudo, verifica-se que, entre 1934 e 1955, ocorreu o aumento ou mesmomanutenção do número de efectivos animais. Após 1955, assistiu-se a uma reduçãosignificativa até 1979, ano a partir do qual, em regra, se nota uma certa tendênciapara a estabilização (fig.s 11 e 12).

A actividade de criação de pequenos ruminantes (fot. 12) desempenhava umpapel indispensável na economia serrana, permitindo múltiplos rendimentos,que iam desde a produção de carne, leite e queijo, até ao carvão que os própriospastores produziam enquanto apascentavam o rebanho.

Fot. 11: Socalcos produtivos em redor de Chão Sobral.

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Fig. 11: Evolução do gado caprino, por concelho. Fig. 12: Evolução do gado ovino, por concelho.

Fonte: Recenseamento Geral Agrícola de 1999, INE. Fonte: Recenseamento Geral Agrícola de 1999, INE.

Fot. 12: Pastoreio de gado caprino, Piódão.

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No entanto, esta exploração teve consequências geoecológicas significativas,uma vez que muitas das áreas de pastoreio intensivo ficaram desprovidas devegetação. Para obviar a esta situação e como medida preventiva, o Estadosubmeteu as áreas serranas de cota mais elevada ao regime florestal parcial , nosanos 40 do século passado. Uma vez que estas áreas ficaram interditas aosrebanhos, este facto foi o primeiro a contribuir para o declínio do número decabeças de gado que se deu a partir de então (LOURENÇO, 1996, p. 375).

Esta redução nos efectivos pecuários contribuiu para dificultar, ainda mais, asobrevivência dos povos serranos e terá sido mais um factor a contribuir para oacentuar o êxodo rural. Recentemente, assistiu-se a um novo incremento na criaçãode gado ovino, que pode ser justificado pelos apoios concedidos pela UniãoEuropeia para a reabilitação do queijo artesanal.

Por isso, não é de estranhar, que, nos dias de hoje, a agricultura já não determinea actividade principal dos meios rurais. Efectivamente, a actividade agrícola apenasconstitui o modo de vida das populações mais idosas, sendo hoje praticada atempo parcial, reflectindo o destino daqueles que, na maioria, já não têm uma vidaactiva, e vêem agora nos campos apenas uma ocupação dos tempos livres.

O abandono agrícola é um facto consumado (fot. 13) e a conjuntura sócio-económica que caracteriza o sistema agrário actual causou alterações significativasno mosaico agrícola das áreas rurais, nomeadamente no aproveitamento dos camposem socalcos, com consequências ao nível da redução da superfície agrícola utilizadae no aumento das áreas florestais (AMBROISE, FRAPA et GIORGIS, 1989).

Fot. 13: Campos agrícolas abandonados, Alentejo, bacia hidrográfica do Rio de Mel.