COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS Nº 16 … · distribuídos por partes essenciais do cérebro –...

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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 06/05/2012 ————————————————————————————————————————————— 1 Nº 16 Cérebro: um simulador de ação (ROBERTA DE MEDEIROS) Pesquisadores descobriram um subconjunto de neurônios localizados no córtex parietal que disparam cada vez que vemos alguém executar uma ação. Uma característica que pode ser usada na reabilitação de pessoas com déficit motor POR QUE sorrimos quando vemos alguém sorrir? Ou por que ficamos com olhos marejados quando a protagonista do filme chora? Já reparou que nos retesamos quando vemos alguém com dor ou sentimos uma vontade incontrolável de bocejar quando alguém boceja? Afinal, o que nos leva a agir de acordo com o que as outras pessoas fazem? Isso acontece porque, quando vemos alguém fazendo algo, automaticamente simulamos a ação no cérebro, é como se nós mesmos estivéssemos realizando aquele gesto. Isso quer dizer que o cérebro funciona como um ―simulador de ação‖: ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação que observamos. Essa capacidade se deve aos neurônios-espelho, distribuídos por partes essenciais do cérebro o córtex pré-motor e os centros para linguagem, empatia e dor. Quando observamos alguém realizar essa ação, esses neurônios disparam daí o nome ―espelho‖. Por isso, essas células cerebrais são essenciais no aprendizado de atitudes e ações, como conversar, caminhar ou dançar. Eles permitem que as pessoas executem atividades sem necessariamente pensar nelas, apenas acessando o seu banco de memória. O cérebro funciona como um “simulador de ação”: ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação que observamos Os neurônios-espelho foram descobertos por acaso pela equipe do neurocientista Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma, na Itália. O grupo colocou eletrodos na cabeça de um macaco, um aparato que permitia acompanhar a atividade dos neurônios na região do cérebro responsável pelos movimentos através de um monitor. Cada vez que o macaco cumpria uma tarefa, como apanhar uva- passas com os dedos, neurônios no córtex pré-motor, nos lobos frontais, disparavam. Quando um aluno entrou no laboratório e levou um sorvete à boca, o monitor apitou foi uma surpresa para os cientistas, porque o macaco estava imóvel. O mais intrigante é que sempre que o macaco assistia o experimentador ou outro macaco repetir essa cena com outros alimentos os neurônios disparavam. Mais tarde, exames de neuroimagem mostraram que nós temos neurônios- espelho muito mais sofisticados e flexíveis que os dos macacos. ―Nosso conhecimento do motor e a nossa capacidade de ‗espelhamento‘ nos permitem compartilhar uma esfera comum de ação com os outros, dentro do qual cada ato motor ou cadeia de atos motores, sejam eles nossos ou dos demais, são imediatamente detectados e intencionalmente compreendidos antes e independentemente de qualquer mentalização‖, observa Rizzolati. A equipe do neurocientista Giovanni Buccino, da Universidade de Parma, usou ressonância magnética funcional para medir a atividade cerebral de voluntários enquanto eles assistiam a um vídeo que mostrava sequências de movimentos de boca, mãos e pés. Dependendo da parte do corpo que aparecia na tela, o córtex motor dos observadores se ativava com maior intensidade na região que correspondia à parte do corpo em questão, ainda que eles se mantivessem absolutamente imóveis. Ou seja, o cérebro associa a visão de movimentos alheios ao planejamento de seus próprios movimentos. Outras experiências mostram que os neurônios-espelho dos macacos ainda são ativados diante de um estímulo indireto, que é associado a uma tarefa. Por exemplo, o som de uma casca de amendoim se quebrando. Isso se deve a neurônios-espelho, audiovisuais que seriam importantes na comunicação gestual desses animais. Nos seres humanos isso O autismo causa severas limitações, como atraso no desenvolvimento da linguagem, dificuldade em manter relações sociais, comportamento estereotipado e foco de interesse muito restrito. O autista não estabelece laços sociais, o que, muitas vezes, se traduz em isolamento e indiferença às pessoas. No mundo, segundo a ONU, acredita-se ter mais de 70 milhões de pessoas com autismo

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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 06/05/2012

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Nº 16

Cérebro: um simulador de ação (ROBERTA DE MEDEIROS)

Pesquisadores descobriram um subconjunto de neurônios localizados no córtex parietal que disparam cada vez que vemos alguém executar uma ação. Uma característica que pode ser usada na reabilitação de pessoas com déficit motor

POR QUE sorrimos quando vemos alguém sorrir? Ou por que ficamos com olhos marejados quando a protagonista do filme chora? Já reparou que nos retesamos quando vemos alguém com dor ou sentimos uma vontade incontrolável de bocejar quando alguém boceja? Afinal, o que nos leva a agir de acordo com o que as outras pessoas fazem? Isso acontece porque, quando vemos alguém fazendo algo, automaticamente simulamos a ação no cérebro, é como se nós mesmos estivéssemos realizando aquele gesto. Isso quer dizer que o cérebro funciona como um ―simulador de ação‖:

ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação que observamos. Essa capacidade se deve aos neurônios-espelho, distribuídos por partes essenciais do cérebro – o córtex pré-motor e os centros para linguagem, empatia e dor. Quando observamos alguém realizar essa ação, esses neurônios disparam – daí o nome ―espelho‖. Por isso, essas células cerebrais são essenciais no aprendizado de atitudes e ações, como conversar, caminhar ou dançar. Eles permitem que as pessoas executem atividades sem necessariamente pensar nelas, apenas acessando o seu banco de memória.

O cérebro funciona como um “simulador de ação”: ensaiamos ou imitamos mentalmente toda ação que observamos

Os neurônios-espelho foram descobertos por acaso pela equipe do neurocientista Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma, na Itália. O grupo colocou eletrodos na cabeça de um macaco, um aparato que permitia acompanhar a atividade dos neurônios na região do cérebro responsável pelos movimentos através de um monitor. Cada vez que o macaco cumpria uma tarefa, como apanhar uva-passas com os dedos, neurônios no córtex pré-motor, nos lobos frontais, disparavam. Quando um aluno entrou no laboratório e levou um sorvete à boca, o monitor apitou – foi uma surpresa para os cientistas, porque o macaco estava imóvel. O mais intrigante é que sempre que o macaco assistia o experimentador ou outro macaco repetir essa cena com outros alimentos os neurônios disparavam.

Mais tarde, exames de neuroimagem mostraram que nós temos neurônios- espelho muito mais sofisticados e flexíveis que os dos macacos. ―Nosso conhecimento do motor e a nossa capacidade de ‗espelhamento‘ nos permitem compartilhar uma esfera comum de ação com os outros, dentro do qual cada ato motor ou cadeia de atos motores, sejam eles nossos ou dos demais, são imediatamente detectados e intencionalmente compreendidos antes e independentemente de qualquer mentalização‖, observa Rizzolati.

A equipe do neurocientista Giovanni Buccino, da Universidade de Parma, usou ressonância magnética funcional para medir a atividade cerebral de voluntários enquanto eles assistiam a um vídeo que mostrava sequências de movimentos de boca, mãos e pés. Dependendo da parte do corpo que aparecia na tela, o córtex motor dos observadores se ativava com maior intensidade na região que correspondia à parte do corpo em questão, ainda que eles se mantivessem absolutamente imóveis. Ou seja, o cérebro associa a visão de movimentos alheios ao planejamento de seus próprios movimentos.

Outras experiências mostram que os neurônios-espelho dos macacos ainda são ativados diante de um estímulo indireto, que é associado a uma tarefa. Por exemplo, o som de uma casca de amendoim se quebrando. Isso se deve a neurônios-espelho, audiovisuais que seriam importantes na comunicação gestual desses animais. Nos seres humanos isso

O autismo causa severas limitações, como atraso no desenvolvimento da linguagem, dificuldade em manter

relações sociais, comportamento estereotipado e foco de interesse muito restrito. O autista não estabelece laços sociais, o que, muitas vezes, se traduz em

isolamento e indiferença às pessoas. No mundo, segundo a ONU, acredita-se ter mais de 70 milhões de pessoas com autismo

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também é possível: os neurônios são ativados quando a pessoa imita, complementa uma ação ou quando apenas imagina ela própria realizando essas mesmas ações.

―Os neurônios-espelho mudaram o modo como vemos o cérebro e a nós mesmos, e têm sido considerado um dos achados mais importantes sobre a evolução do cérebro humano‖, diz o neurocientista Sérgio de Machado, pesquisador e pós-doutorando do Laboratório de Pânico da UFRJ. ―Se a tarefa exige compreensão da ação observada, então as áreas motoras que codificam a ação são ativadas. Isso indica que há uma conexão no sistema nervoso entre percepção e ação, e que a percepção seria uma simulação interna da ação‖, completa.

Questão de empatia

Alguns pesquisadores especulam quanto à verdadeira função desses neurônios. Podemos dizer que o observador estaria simulando mentalmente a ação ou estaria se preparando para agir? O pesquisador húngaro Gergely Csibra, do Departamento de Psicologia do Birkbeck College, no Reino Unido, sugere que o papel dos neurônios-espelho talvez não seja exatamente o de espelhar ou simular a ação, mas de antecipar as possíveis respostas a essa ação. O que nos leva a acreditar que o cérebro é um grande gerador de hipóteses que antecipa as consequências da ação e que permite a tomada de decisão.

Devido a essa capacidade, podemos imaginar aquilo que se passa na mente do outro, colocando-nos no lugar da outra pessoa, compreendendo suas ações. Por exemplo: se vemos uma pessoa chorar por algum motivo, os neurônios-espelho nos permitem lembrar das situações em que choramos e simular a aflição dela. Sentimos empatia por ela, sentimos o que a pessoa está sentindo. ―A capacidade de simular a perspectiva do outro estaria na base de nossa compreensão das emoções do outro, de nossos sentimentos empáticos‖, diz Machado.

Os neurônios-espelho foram descobertos, por acaso, pela equipe do neurocientista

Giacomo Rizzolatti, da Universidade de Parma

Isso faz toda a diferença, porque é graças a essa capacidade que podemos estabelecer relações sociais. ―A predição das emoções do outro é fundamental para o comportamento social. A pessoa não cometerá um ato que é doloroso ou prejudicial ao demais. Isso se deve à empatia, que é a capacidade de interpretar as emoções alheias. O ser humano é dotado da teoria da mente, isto é, a capacidade de se colocar mentalmente no lugar de outra pessoa. Ela é a base do julgamento de intenções‖, explica o neurocientista Renato Sabbatini, professor da Faculdade de Medicina da Unicamp.

A empatia seria determinada biologicamente desde o nascimento. ―É preciso existir uma maquinaria inata, que nos permite certas capacidades, porque nem tudo em nosso comportamento é aprendido‖, observa Sabattini. Ele lembra que os neurônios-espelho ainda são um mecanismo-chave para a aprendizagem. Um exemplo disso é que, desde bebês, somos capazes de imitar expressões faciais dos adultos, instintivamente reproduzimos caras e bocas. Isso acontece porque os neurônios- espelho começam a funcionar logo na primeira infância. Podemos, por exemplo, ampliar as nossas chances de sucesso em alguma tarefa, apreendendo com os ―experts‖.

Particularidades dos neurônios-espelho

O pesquisador Giovanni Buccino destacou algumas particularidades do seu estudo com os neurônios-espelho: • Os neurônios só são ativados quando o experimentador interage com um objeto (como uma mão pegando uma banana). • Os neurônios não são ativados quando a ação observada for simplesmente imitada, isto é, executada sem a presença do objeto. • Os neurônios não são ativados durante mera apresentação de objetos. • Nossa sobrevivência depende do entendimento das ações, intenções e emoções das outras pessoas. • Experimentos com tomografia por emissão de pósitron mostraram que as áreas ativadas durante a observação de um sujeito pegando um objeto foram: - sulco temporal superior - lobo parietal inferior - giro frontal inferior

(todos no hemisfério esquerdo) • Metáforas Os neurologistas Paul McGeoch, David Brang e Vilayanur Ramachandran, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, mostraram que é graças aos neurônios-espelho que somos capazes de interpretar metáforas.

O papel dos neurônios-espelho talvez não seja de espelhar ou simular a ação, mas de antecipar as possíveis respostas a essa ação

Os neurônios-espelho têm sido considerados um dos achados mais

importantes sobre a evolução do cérebro humano, pois mostram que há uma conexão no sistema nervoso entre percepção e ação

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A empatia envolve regiões do cérebro que existem há mais de 100 milhões de anos e funciona como a ―cola‖ que mantém as sociedades unidas, segundo o primatólogo holandês Frans de Waal, em seu livro A Era da Empatia. Como Wall, os cientistas partem do princípio de que os nossos cérebros são produto da seleção natural e que as pressões do ambiente social determinaram quais características deveriam ser mantidas para as gerações futuras – e uma dessas marcas seriam os neurônios-espelho. ―A maior parte dos gestos motores, como amarrar os sapatos, é aprendido por imitação, ou seja, tentativa e erro. Isso prevalece no reino animal, principalmente nos vertebrados‖, diz Sabbatini.

―Os estudos desses neurônios nos oferecem uma grande contribuição na compreensão da emoção: hoje sabemos que temos um sistema que partilha percepção e ação. O espelhamento permite o compartilhamento de emoções, presente no estado de empatia. Isso nos possibilita formular teorias mais compatíveis com os achados biológicos‖, diz a psicóloga Cláudia Passos, que se dedica ao estudo de Ética e Biotecnologias em seu pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela UFRJ.

Em O Cérebro Empático – Como, Quando e Por que?, a neurocientista alemã Tânia Singer e a filósofa francesa Frederique de Vignemont propõem quatro condições para que a empatia aconteça: 1-) alguém está num estado afetivo, como medo, raiva ou tristeza, por exemplo. 2-) esse estado é isomórfico ao estado afetivo da outra pessoa 3-) esse estado é produzido pela observação ou imaginação do estado afetivo de outra pessoa 4-) a pessoa sabe que a outra pessoa é fonte do seu próprio estado afetivo.

―Os achados de imagem cerebral permitem que sejam identificadas áreas de ‗espelhamento‘ do cérebro que são ativadas no estado de empatia, mas não se sabe exatamente como essas áreas cerebrais atuam nos estados da empatia descritos por essas pesquisadoras. Pode ser que um dia possamos ter uma precisão maior do que acontece no cérebro empático‖, prevê Cláudia.

Moralidade

Estudos sugerem que as pessoas ajudam mais as outras quando têm empatia por elas, o que explica porque a empatia geralmente é associada ao senso moral, justiça, altruísmo e cooperação. As pesquisas com neurônios- -espelho despontam como aliado no debate quanto à natureza de decisões morais. Elas reforçam a tese de que os comportamentos morais têm um traço afetivo porque envolvem a capacidade do indivíduo de sentir as emoções do outro, e dependem do sistema de recompensa (circuitos do cérebro ligados à sensação do prazer).

―Alguns teóricos defendem que as decisões morais são de natureza cognitiva e envolvem um pensamento moral. Mas os experimentos com neurônios-espelho fortalecem a ideia de que as emoções estão na base do sentimento moral. Isso significa dizer que não aprendemos apenas racionalmente, mas também somos educados sentimentalmente‖, diz a pesquisadora.

Apesar do entusiasmo da comunidade científica, a filosofia ainda despreza as descobertas das ciências cognitivas e a psicologia moral. ―A filosofia sempre operou com distinção entre fato e valor. Esses achados empíricos sobre neurônios-espelho são vistos com desconfiança, embora haja alguns naturalistas que tenham contribuído no diálogo com as ciências‖, completa.

A ―corrida‖ em busca desses neurônios em diferentes áreas do cérebro ajudou a lançar luz sobre uma questão que há muito intriga os cientistas: o autismo. Um estudo com ressonância magnética funcional mostra uma falha do mecanismo de espelho nessas crianças. Ao contrário do que ocorre em crianças normais, as crianças autistas não imitam gestos no espelho quando se veem face a face. ―Crianças com autismo têm grande dificuldade para se expressar, compreender sentimentos como medo, alegria ou tristeza, não percebem o significado emocional das ações alheias. O autista tem dificuldade de interagir e se assusta com expressões faciais e ruídos. Tudo indica que há uma falha no sistema de neurônios-espelho‖, diz Machado.

Somos capazes de imitar expressões faciais dos adultos desde a primeira infância. Desta forma, podemos, por exemplo, ampliar as nossas chances de sucesso em

alguma tarefa, aprendendo com os experts

Os estudos sobre neurônios-espelho podem contribuir na solução de questões de ordem prática, como a recuperação de pacientes com perda da função motora

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Grupos de crianças autistas e crianças normais tiveram a atividade do cérebro escaneada enquanto elas assistiam expressões emocionais. Os resultados mostraram uma ativação bem mais fraca em crianças autistas do que em crianças normais. Pesquisadores observaram crianças autistas e crianças normais enquanto elas assistiam ao experimentador agarrar um pedaço de comida para comer ou agarrar um pedaço de papel para colocar em um recipiente. A atividade elétrica do músculo envolvido na abertura da boca foi gravada. Os resultados mostraram a ativação dos neurônios correspondentes ao músculo da boca ao ver a comida em crianças normais, mas isso não aconteceu com as crianças autistas. Em outras palavras, enquanto a observação de uma ação feita por outra pessoa interferiu no sistema motor de uma criança normal que observava o movimento, o mesmo não aconteceu não no caso de uma criança autista.

―O autismo está associado a uma deficiência na habilidade de leitura da mente, na capacidade de interpretar as emoções do outro. É verdade que algumas crianças se mostram extremamente eficientes em outras habilidades cognitivas não sociais, como é o caso dos portadores de Síndrome de Asperger. Ainda assim, relatos de pessoas com esta síndrome atestam pouca ou nenhuma capacidade de introspecção‖, diz Sabbatini. Pessoas com síndrome de Asperger têm os mesmos traços dos autistas, mas com uma diferença: elas possuem grande capacidade cognitiva, o QI pode variar de normal até níveis muito mais altos.

Distúrbios neurológicos

Além de compreender melhor nosso comportamento, os estudos sobre neurônios-espelho podem ajudar na solução de questões de ordem prática, como a recuperação de pacientes com perda da função motora. Em 1992, o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, diretor do Centro do Cérebro e da Cognição da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, criou uma técnica que usa um espelho para tratamento de dor fantasma (pessoas que perderam um braço, por exemplo, sentem dores nesse membro como se ele ainda estivesse lá). A técnica permite que uma rede de neurônios responsáveis pelo controle de uma mão possa ser usada nos movimentos de outra mão numa determinada tarefa. A ideia é reeducar o cérebro com uma simples tarefa, em que a pessoa realiza movimentos com o braço saudável, vendo no espelho como se fosse o braço lesionado.

Alguns teóricos defendem que as decisões morais são de natureza cognitiva e envolvem um pensamento moral

―Assim é possível enganar o cérebro, fazendo com que ele imite os movimentos do braço lesionado através do reflexo do braço não lesionado no espelho‖, diz Machado. A técnica também tem sido empregada para recuperação do movimento em pessoas que sofreram AVC (derrame). Alguns pacientes são mais beneficiados que outros, dependendo do local da lesão e da duração do déficit após o AVC. Estimativas atestam que cerca de um décimo da população mundial será vítima de déficit motor por causa do AVC.

Às vezes, a perda do movimento está ligada também à alteração de visão. Isso acontece porque, nas fases iniciais do derrame, o cérebro apresenta um edema, deixando também temporariamente alguns nervos atordoados e ―desligados‖ que os especialistas chamam de ―paralisia aprendida‖. ―Caso exista ainda neurônios-espelho sobreviventes, a terapia espelho poderia revivê-los‖, diz Machado.

Durante a terapia, essas células tanto podem responder a gestos já praticados quanto a não aprendidos. O que significa que a capacidade desses neurônios de reagir à observação de uma tarefa não depende obrigatoriamente da nossa memória. A tendência é imitar, inconscientemente, aquilo que observamos, ouvimos ou percebemos. ―Tanto existe reação como aprendizagem durante o processo de reabilitação, há uma dupla função‖, diz Machado. Mas ele ressalva: ―Se há uma lesão nesse circuito, isso vai levar a um tipo de interferência, talvez não haja integração das informações‖.

Um estudo mostrou que as crianças autistas não

imitam gestos no espelho quando se veem face a face. Porque possuem grande dificuldade para se expressar e compreender sentimentos

Referência científica

Fransiscus Bernardus Maria (Frans) de Waal, PhD, é um holandês primatologista e etólogo, diretor do Centro Living

Links no Yerkes National Primate Research Center e autor de vários livros, incluindoPolítica do chimpanzé e nosso macaco Interior. Suas pesquisas tratam do comportamento social dos primatas e incluem a resolução de cooperação, a aversão à

desigualdade e a partilha de alimentos.Ele é membro da United States National Academy of Sciences e da Academia Real Holandesa de Ciências.

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A capacidade desses neurônios de reagir à observação de uma tarefa não depende obrigatoriamente da nossa memória

A antiga visão de que o cérebro é dividido em módulos autônomos com funções específicas e que interagem pouco uns com os outros vem do século passado e a neurologia ainda tem se baseado nela. Uma lesão em um dos módulos traria um problema neurológico irreversível. ―Os achados, no entanto, sugerem que é necessário repensar a visão de que o cérebro trabalha de forma seriada e hierárquica com seus módulos e substitui-la por uma nova visão mais dinâmica. O cérebro trabalha de forma integrada em paralelo e não de forma seriada. Existe atividade de várias áreas do cérebro ao mesmo tempo‖, diz Machado. Segundo ele, ao invés de pensar os módulos cerebrais como inflexíveis, devemos pensar em um equilíbrio dinâmico como conexões sendo constantemente formadas e reformadas em respostas a mudanças ambientais.

ROBERTA DE MEDEIROS é jornalista e escreve para esta publicação. Revista PSIQUE, Maio de 2012.

CLÁSSICOS PÓS-MODERNOS:

“O Show de Truman” e a vida devassada (JOSÉ LUÍS ALMEIDA MACHADO)

A existência humana pautada pelas onipresentes câmeras e pelo Big Brother previsto por Orwell são colocados em discussão no filme de Peter Weir.

NOS NOTICIÁRIOS de televisão preste atenção à regularidade com que notícias veiculadas são derivadas de câmeras de segurança instaladas em prédios, vias públicas, repartições governamentais, empresas, elevadores... Repare também que a disseminação dos telefones celulares com câmeras é um dos recursos que tem abastecido os jornais da TV e da internet. Na realidade o fenômeno da postagem de vídeos popularizado principalmente a partir do advento doYouTube faz com que cada vez mais as mídias tradicionais recorram à internet na busca por vídeos que venham a compor seus programas. E isso não ocorre só com os noticiários, estas publicações espontâneas e amadoras ganham espaço em programas de auditório, de esportes, de entrevistas, em humorísticos... George Orwell, escritor inglês que se notabilizou a partir da publicação de clássicos como ―A Revolução dos Bichos‖ e ―1984‖, já previa a proliferação das câmeras pela sociedade. E ia além disso, pois compreendeu ainda nos anos 1950 que o uso

acentuado deste recurso poderia ser ostensivo e que, de algum modo, iria atentar contra as liberdades individuais e a própria espontaneidade das pessoas. Cerceadas por câmeras, que poderiam ter imagens gravadas e utilizadas contra si, as pessoas teriam que agir dentro dos conformes ditados pela sociedade, empresas, governos e todo órgão representativo que de algum modo tivesse autoridade sobre elas.

Outro elemento cultural clássico que resgata este controle se disseminando socialmente a partir de câmeras instaladas aqui, lá, acolá e em qualquer canto do mundo é ―Brazil, o filme‖, de Terry Gilliam. Novamente a opressão ganha forma a partir do momento em que as câmeras acompanham as pessoas em todos os passos que dão. Seja em casa, nas ruas, no trabalho ou no lazer há sempre algum olho eletrônico bisbilhotando suas ações e, mesmo, escutando o que você diz. O pior é que tudo isso pode ser usado contra você. A favor também, mas cabe ao controlador das imagens definir se assim o fará ou se omitirá partes que sejam convenientes para sua defesa e extrapolar na exposição de trechos recortados que o coloquem em situação difícil.

―O Show de Truman‖ (1998), realizado por Peter Weir (diretor de ―A Testemunha‖ e ―Sociedade dos Poetas Mortos‖, entre outros) e estrelado por Jim Carrey, é também uma produção cinematográfica que elabora ao longo de seu desenvolvimento, apesar do tom aparentemente cômico, severa crítica ao Big Brother (expressão esta que foi criada por Orwell para designar o governo autoritário que por meio das câmeras monitorava seus cidadãos) que cada vez mais impera no planeta. Tendo em vista que a própria terminologia Big Brother foi desprovida de sua conotação crítica inicial, dada por Orwell em ―1984‖, e considerando-se que tenha virado show televisivo em que pouco mais de uma dezena de participantes vive em uma casa durante aproximadamente 3 meses sendo constantemente monitorados e em disputa por prêmio

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milionário, é preciso resgatar Truman e pensar a respeito desta relação de proximidade com o olho eletrônico que é cada vez mais presente.

O sentido do termo privacidade, trazido a nós pelos dicionários, elucida que se trata da intimidade, do necessário e fundamental espaço para que tenhamos nossas particularidades respeitadas, sem que qualquer tipo de olhar alheio intimide. Isto não quer dizer que a privacidade seja o espaço básico e vital onde podemos fazer tudo o que quisermos e que, assim sendo, possamos, por exemplo, burlar leis, a moral, os princípios éticos, a cidadania e, principalmente, o respeito ao próximo, ao outro. Espera-se que a família, a educação, o trabalho, a convivência social em todas as suas esferas seja capaz de orientar os atos das pessoas para que, desta forma, mesmo em sua intimidade e privacidade, sejam capazes de agir de forma correta, socialmente aceita e que não cause repercussões negativas para quem quer que seja.

―O Show de Truman‖ é um filme caricato, que busca ser sensível a ponto de comover o público em relação à história de um homem que nasceu num mundo de faz de conta, em um imenso estúdio de televisão no qual todos são atores, exceto ele. A hiperexposição às câmeras é ingrediente fundamental na história. A interpretação como elemento de relação humana basilar é outra característica presente o tempo todo. Como em cena, no que deveria ser simplesmente a vida de Truman (Jim Carrey), todos os participantes, exceto o protagonista, cumprem roteiros pré-estabelecidos, assumem papéis que lhes foram designados por um ou mais roteiristas e não têm escolha quanto às falas que trazem diante das câmeras e são vistas por milhões de telespectadores.

A esposa de Truman o ama diariamente diante de todo o público que acompanha a vida de seu marido desde o seu nascimento. Esse amor, assim como todo o romance prévio que os encaminhou para a vida conjugal foi previsto pelos escritores que foram concebendo a trajetória do astro do show. Estrela de TV que nem sabe ser esta a sua principal razão de existência. Assim como a esposa, os amigos, os colegas de trabalho, os comerciantes, as pessoas que andam pelas ruas e tudo o mais são impostores para Truman. O problema é que ele não sabe de nada disso e, sendo assim, aquela é a vida como ela é, ao menos para ele.

Quando realizamos a transposição de sua história para os dias de hoje, em que o monitoramento das pessoas é cada vez maior, não apenas pelas câmeras, mas também pelos computadores, através dos hábitos de consumo, por extratos bancários, nas redes sociais e/ou em qualquer tipo de informação que possa ser rastreada, é possível fazer a analogia com Truman. Até mesmo quanto ao fato de que as pessoas assumem papéis diante dos outros e que, mesmo nós, assim o fazemos tantas vezes. Nas redes sociais, por exemplo, quantas pessoas diariamente, pelo mundo afora, apregoam perfis que não são realmente condizentes com o que pensam, com a vida que levam, com as atitudes que tem?

O ‗Câmera Brother‘, que não é tão ―brother‖ assim, pois assiste em busca de falhas, imperfeições, defeitos e erros que todas as pessoas certamente têm ou cometem, está logo ali, no corredor ou no elevador a lhe monitorar. E se rimos de videocassetadas que se disseminam pelas redes de TV ou na web, ao mesmo tempo temos que nos dar conta de que há o outro lado da moeda, aquele no qual as imagens não são cômicas e sim trágicas e dramáticas.

Se por um lado as imagens podem também contribuir para a sociedade, pela identificação de pessoas que não respeitam as leis (como nos casos de corrupção filmados e trazidos a público e que demandam ações judiciais contra os infratores) ou ainda por conta do rastreamento de ações de violência e vandalismo, somente para ficar nos casos mais evidentes de contribuições trazidas pelos olhos eletrônicos onipresentes, o que se faz necessário é saber até onde vai a invasão de privacidade que assola ambientes públicos e privados e como se deve regular esta exposição demasiada e invasiva. A vida humana não pode ser devassada da forma como acontece em ―O Show de Truman‖. A ficção ali não é inspiradora no sentido das ações que diretores, técnicos, roteiristas e telespectadores assumem quanto à vida de um pobre homem, inocente quanto a todo o circo que o rodeia.

É nesta seara que a escola precisa e pode pensar ―O Show de Truman‖. Há outras, é claro, mas questões elementares relacionadas aos direitos individuais dos cidadãos, previstos em leis existentes no Brasil assim como em outras nações, tornam-se fundamentos a serem conhecidos para que os estudantes de hoje e de amanhã se posicionem quanto à violação de seus mais elementares instrumentos de cidadania. A preservação da identidade, dos valores, das preferências políticas, das bases éticas e morais, da cultura original e de tudo que se refere ao ser em sua essência não podem ser devassados pelos olhos eletrônicos do Grande Irmão.

JOSÉ LUÍS ALMEIDA MACHADO escreve para o site amais.com.br. Disponível em: http://cmais.com.br/educacao/o-show-de-truman-e-a-vida-devassada. Acesso em: Maio de 2012.

A palavra feia (LUIZ FELIPE PONDE)

Anos atrás, tive o prazer de conhecer o filósofo alemão Peter Sloterdijk. Encontrei com ele algumas vezes em sua casa em Karlsruhe, Alemanha. Partilhamos o gosto pelo charuto cubano, pelo vinho branco em grandes quantidades, pelo frango que sua esposa faz, pela visão trágica de mundo, pela heresia cristã pessimista conhecida por gnosticismo e pela pré-história. E também por usar palavras feias na filosofia e no debate público.

Cheguei a entrevistá-lo para esta Folha duas vezes. Em uma delas, em 1999, a pauta era a acusação que outro filósofo alemão, Jürgen Habermas, fazia a ele de retomar a palavra "eugenia" em solo alemão. Eugenia quer dizer criar

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jovens belos, bons e perfeitos. Esta controvérsia chegou até nós e ficou conhecida com o título do livro causador dela, "Regras para o Parque Humano", publicado entre nós pela editora Estação Liberdade. "Parque Humano" aqui significa parque num sentido quase zoológico.

Nesta peça filosófica, Sloterdijk dizia que o projeto eugênico ocidental é filho de Platão ("A República", por exemplo), e que se ele não deu certo nas engenharias político-sociais utópicas modernas, nem na educação formal propriamente, estava dando certo na biotecnologia e nas tecnologias de otimização da saúde.

Alguém duvida que academias de ginástica, consultoras em nutrição, espiritualidades narcísicas ao portador (como a Nova Era e sua salada de budismo, decoração de interiores e física quântica), cirurgias e tratamentos estéticos, checkups anuais, ambulatórios de qualidade de vida, pré-natal genético e interrupção aconselhada da gravidez de fetos indesejáveis sejam eugenia? E a primeira causa do impulso eugênico é o fato de que a vida é um escândalo de sofrimento, miséria física e mental. Mas, a reação a Sloterdijk na época não foi propriamente uma negação de seus postulados (difíceis de serem negados), mas sim uma reação pautada pela covardia filosófica e política diante da palavra feia que ele falava. Esta palavra feia era sua recusa em negar nossa natureza eugênica e a opção contemporânea pós-nazismo por realizar a eugenia no silêncio de uma razão cínica que nega suas motivações morais: tornar a vida perfeita sem dizer que está fazendo isso.

Ao tentar por "na conta do nazismo" a fala de Sloterdijk, Habermas e seus discípulos fugiam do debate, negando a fuga da agonia humana diante do sofrimento via nossa decisão (silenciosa) de tornar a vida perfeita a qualquer custo, mesmo que esta decisão venha empacotada em conceitos baratos como "qualidade de vida", "felicidade interna bruta" ou "direito a autoestima". Mas, engana-se quem pensar que Sloterdijk está querendo "aliviar" a intenção eugênica ao remetê-la a miséria estrutural da vida. Sloterdijk é um filósofo trágico, e por isso ele parte da aporia (impasse) da condição humana para pensar sua história, sua moral, sua política.

Sua intenção é trazer à luz aquilo que não se quer trazer à luz, ou seja, que nossa cultura e nossa ciência são eugênicas apesar de dizer que não são. A palavra feia aqui é um grito contra o cinismo dos que negam a intenção eugênica.

Mesmo que alguns intelectuais de esquerda tentem afirmar que o projeto político utópico revive nas mãos dos árabes e suas eleições islamitas, ou da crise do Euro, ou de desocupados que ocupam os espaços públicos dos que têm o que fazer, intelectuais estes que se apropriam de modo quase oportunista das constantes crises que acometem o mundo, sejam elas capitalistas, sejam elas de qualquer outra natureza, a verdadeira "esquerda" hoje é a afirmação do direito humano a ser mestre do seu destino através das ciências biotecnológicas e seu inegável impacto sobre as condições imediatas da vida cotidiana: longevidade, cirurgias transformadoras do corpo "original", vacinas, antibióticos, psicofármacos, contraceptivos, Viagras, terapias genéticas preventivas.

Diante do cinismo, Sloterdijk me disse uma vez que nos restava o "terrorismo pedagógico": dizer palavras feias que as pessoas não querem ouvir em seu sono dogmático.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Madrastas e padrastos (ROSELY SAYÃO)

A FAMÍLIA passou do singular ao plural. Antes, havia "a família". Quando nos referíamos a essa instituição todos compartilhavam da mesma ideia: um homem e uma mulher unidos pelo casamento, seus filhos e mais os parentes ascendentes, descendentes e horizontais. E, como os filhos eram vários, a família era bem grande, constituída por adultos de todas as idades e mais novos também.

Pai, mãe, filhos, tios e tias, primos e primas, avós etc. eram palavras íntimas de todos, já que sempre se pertence a uma família. Quando as palavras "madrasta" ou "padrasto" ou mesmo "enteado" precisavam ser usadas para designar um papel em um grupo familiar, o fato sempre provocava um sentimento de pena. É que na época da família no singular isso só podia ter um significado: a morte de um dos progenitores.

E o que dizer, então, da expressão "filho de casal separado"? Nossa, isso só podia ser um mau sinal. Mas essa ideia de família só sobreviveu intacta até os anos 60. Daí em diante "a família" se transformou em "as famílias". Os grupos familiares mudaram, as configurações se multiplicaram. Hoje, são tantas as formações que, creio eu, não conseguiríamos elencá-las.

O tamanho da família diminuiu - e não apenas por uma redução no número de filhos, mas também porque papéis antes tão íntimos tornaram-se distantes. Tios e tias ou mesmo primos e primas passaram a nomear antes pessoas próximas do que parentes de fato. Aliás, as palavras tio e tia passaram a servir para os mais novos nomearem qualquer adulto: professora, médico, pai do colega, entre outros. E, às vezes, essas palavras até são usadas de forma pejorativa: quem não conhece uma propaganda de carro afirmando que o modelo não é para um "tiozão"?

Por outro lado, palavras antes distantes e temidas, como madrasta e padrasto, tornaram-se íntimas de muitas crianças e muitos jovens no tempo da família no plural. Um grande ganho no tempo da diversidade. Mas há alguns problemas que precisamos enfrentar nesse contexto. O primeiro deles: qual é a responsabilidade das pessoas que assumem tais papéis perante os mais novos? Conheço crianças que se referem a essas pessoas como "a namorada de meu pai" ou "o marido de minha mãe". Outras chamam as pessoas que ocupam esse lugar de tia ou tio. Poucas nomeiam essas pessoas de madrastas ou padrastos. O que isso pode significar?

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Pode apontar, por exemplo, que nós ainda não conseguimos superar a antiga concepção dessas figuras, quando substituíam o lugar de alguém que havia morrido. Como hoje as pessoas estão bem vivas e exercendo ativamente seu papel de mãe ou pai, resta um constrangimento social com a palavra, não é? Mas pode também significar que os adultos não aceitam sua responsabilidade no convívio com essas crianças. E essa recusa não se limita ao novo marido ou à nova mulher, mas também aos ex.

Compreensível, já que vivemos na era da posse absoluta dos filhos. Outro dia ouvi várias mães dizerem: "Na educação do MEU filho, ninguém se mete". Quem vai querer comprar essa briga? Os mais novos perdem muito com essa nossa postura. Perdem oportunidades de uma relação educativa diferente e rica, por exemplo. E perdem o referencial de que todo adulto é responsável pelas crianças que com ele convivem. Ou não?

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha). Folha de São Paulo, Maio de 2012.

Cinema ou escolas? (JOSÉ PAVAN JÚNIOR)

O EPISÓDIO da suspensão (não houve cancelamento) do Festival de Cinema de Paulínia de 2012 nos remete a uma importante reflexão mais profunda sobre a política de utilização de recursos públicos. A reportagem "Filme queimado" (na Folha, no último dia 19) informa que o polo cinematográfico da cidade foi construído na administração passada, que ele custou R$ 490 milhões (R$ 490 milhões!) e que está subutilizado. É verdade.

Em outro trecho, o texto diz que o prédio da Escola Magia do Cinema "deu lugar a uma escola de ensino fundamental". Também é verdade. Ocorre que, nos últimos dez anos, Paulínia (SP) não recebeu nenhuma nova escola, apesar do grande crescimento da população. Agora, estamos entregando, no mês que vem, dois novos prédios escolares, para atender 1.800 alunos. Enquanto não ficam prontos, tomamos emprestadas as dependências da escola de cinema citada, onde centenas de meninos e meninas recebem aulas curriculares.

Mas, até o meio deste ano, o prédio será devolvido, dando continuidade a todo o trabalho que o polo cinematográfico vem fazendo: há dois filmes já em pré-produção e atendemos 2.100 alunos com aulas de dança, música, teatro e cinema. Há cursos e workshops de direção de arte, produção e fotografia, que continuam, e a temporada de concertos musicais já foi lançada. E muito mais.

A defasagem que hoje a Prefeitura de Paulínia está suprindo no atendimento direto à população não existe apenas na área de educação. Hoje, há 1.479 casas populares em fase final de construção, duas novas creches estão em acabamento e mais 550 novas vagas em creches foram viabilizadas em convênios com escolas particulares. O hospital atende com equipamentos de primeiro mundo. A cidade, antes poluída, ganha prêmios pela preservação do meio ambiente.

E, principalmente, há um grandioso programa de ação social que atende mais de 20 mil pessoas, com programas como o Renda da Família, o Bolsa-Educação, o Bolsa-Amamentação, a passagem de ônibus a R$ 1, a distribuição de cestas de alimentos, entre outros. O administrador é obrigado a fazer opções. A nossa, em Paulínia, está sendo priorizar as áreas que atendem à população, principalmente aos mais necessitados.

O Festival de Cinema teria um custo direto de R$ 3,5 milhões. Mas o próprio material de captação de recursos, editado pelos organizadores, informa que "o orçamento total é estimado em R$ 8,8 milhões". Todos sabem como são essas "estimativas". A realidade é que a captação de patrocínios só tinha conseguido contratar R$ 400 mil. A diferença fatalmente também recairia sobre os recursos municipais. Não é justo! Não é correto!

Em dezembro, um estudo qualitativo feito pelo Ibope apontou que a população da cidade está descrente e cansada do modelo administrativo que faz "foco na 'aparência' da cidade e na sua projeção nacional, em detrimento da atuação em áreas vitais para a população". É isso que estamos mudando. Nossa administração não está aqui para defender os interesses de um grupo de cineastas, por mais que eles precisem de ajuda e contem com a nossa compreensão. Triste para eles, melhor para a população de Paulínia!

JOSÉ PAVAN JÚNIOR, 53, é prefeito de Paulínia (SP). Folha de São Paulo, Maio de 2012.

APRESENTO-LHES: O BRASIL...

Vereadora que recebeu só um voto toma posse no Piauí.

Demais suplentes deixaram coligação - NATÁLIA CANCIAN - DE SÃO PAULO

COM APENAS um voto, o dela mesma, uma professora aposentada de 79 anos tomou posse na Câmara Municipal de Coivaras (88 km de Teresina), cidade de pouco mais de 3.800 habitantes. Constância Melo de Carvalho (PMDB) substituiu Raimunda Costa Santos (PSDB), cassada sob acusação de infidelidade partidária.

Evangélica, ela diz que só assumiu porque "Deus quis". "É como diz a palavra de Deus, nos provérbios de Salomão: 'O homem pode fazer os planos, mas a resposta vem do Senhor.'"

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Segundo Constância, a performance ruim no pleito se deveu ao fato de ter desistido da campanha para cuidar do filho, que estava doente e morreu meses depois. "O Neto, meu filho, era minha pedra forte. Ele queria que me candidatasse, mas eu não queria. Dizia para meus eleitores que meu nome tinha ficado lá, mas que não era mais candidata."

No dia da votação, Constância diz que resolveu votar em si para ajudar o partido. "Se eu votasse em mim, sustentaria o PMDB, o PSB e o PSDB, [partido] do prefeito." Segundo o presidente da Câmara de Coivaras, Carlos Alberto Araújo (PSB), os outros suplentes não puderam assumir por terem trocado de partido. Essa é a quarta vez que Constância assume a vaga na Câmara. A posse foi no dia 23 de abril.

NOTÍCIA. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

Faust moderno (CONTARDO CALLIGARIS)

FAZ TEMPO que sonho em escrever e montar um "Faust". A peça aproveitaria as ideias das melhores versões do mito, desde as de Christopher Marlowe e de Goethe até a mais recente, que está em cartaz em São Paulo, no Sesc Santana: "Fogo-Fátuo", de Samir Yazbek (coautoria de Helio Cicero e montagem bonita de Antônio Januzelli).

Numa hora intensa, inteligente e, às vezes, francamente engraçada, a peça apresenta o encontro entre um Faust escritor em crise (disposto talvez a vender sua alma) e um Mefisto que se pergunta qual função ainda tem o diabo num mundo em que os homens não precisam dele para fazer o pior. Se você estiver em São Paulo ou passar por aqui até 27 de maio, confira como Faust e Mefisto encontram uma solução original aos males de ambos.

Volto ao meu sonho. Por que a história do homem que vende sua alma ao diabo me parece ser um mito crucial da modernidade? Só topo vender a alma em troca de sucesso em minhas empreitadas terrenas se meu breve tempo de vida for, para mim, mais importante do que a eternidade no céu. Ou seja, Faust, para assinar o pacto, deve ser, se não ateu, suficientemente agnóstico para se preocupar mais com os homens do que com Deus.

Paradoxo: a aparição de Mefisto, interessado em comprar minha alma, confirma indiretamente a existência de Deus e torna o contrato impossível: eu venderia a alma ao Diabo à condição de não acreditar realmente nem na alma nem no Diabo. Várias soluções desse paradoxo são possíveis. Será que Mefisto se daria o trabalho de oferecer mares e montes a Faust só pelo prazer de lhe infligir as penas do inferno? Talvez Mefisto compre almas não para aumentar o rebanho dos pecadores (para isso, mal é necessário pagar), mas para alistar novos diabos. E ser diabo, mesmo de segunda linha, pode ser uma séria tentação.

Outra possibilidade é que Faust seja um vigarista, capaz de enganar até Mefisto. Já ao assinar o pacto, ele saberia que Mefisto será privado de sua "justa" recompensa: bastará, para isso, que Faust se arrependa, na última hora. De qualquer forma (nisto concordo com o Mefisto de Yzbek), o Faust que frequenta hoje os consultórios dos psicoterapeutas não precisa de diabo. Explico. Hoje (mas a observação já começa a valer na época romântica, quando Goethe escreve seu "Faust"), o sentimento é frequente, em adolescentes e adultos, de ter vendido a alma, sem que por isso Mefisto tenha tentado comprá-la. Diante de qualquer sucesso (inclusive nosso) agimos como se fosse coisa de empreiteira de obras públicas: levantamos a suspeita de que foi o fruto da venda da alma de quem se deu bem. Se conseguimos algum conforto (mesmo espiritual), é porque a gente se vendeu: traímos a nós mesmos.

Temos um casamento feliz? É porque renunciamos a procurar o amor de nossa vida. Somos prósperos? É porque topamos aquele emprego, em vez de tentar empreender por nossa conta. Temos paz de espírito? É porque desistimos de procurar a pedra filosofal -que era a única coisa que nos importava de verdade. O Faust de hoje já vendeu sua alma: ele vive com o sentimento de que seu sucesso, por modesto que seja, custou-lhe a renúncia à sua vocação, ao seu desejo, ao seu ser. As más línguas dirão que preferimos parecer covardes e vendidos a fracassarmos por incompetência na tentativa de realizar "nosso desejo". "Desisto da procura do Santo Graal para que meus filhos possam comer a cada dia" soa muito melhor do que "desisto porque cansei ou não sei procurar direito".

Mas não é só isso: o desejo, na nossa cultura, aparece quase sempre como uma coisa da qual desistimos, que fugimos, que reprimimos, ao menos em parte. Claro, Freud tem razão: a vida em sociedade exige repressão e renúncias. Mas talvez a sensação constante de ter traído nosso desejo (sabe-se lá qual) expresse sobretudo a nostalgia de um mundo passado, em que era mais fácil saber quem éramos e por que estávamos no mundo.

Cada vez mais, somos livres para inventar nossas vidas. E o preço inevitável dessa liberdade é nossa indefinição. "Quem sou eu? Veremos: o futuro mostrará de que sou capaz." Quando o futuro chegar, a pergunta mudará: "Tudo bem, fiz isso e aquilo, até que me dei bem, mas será que fiz mesmo o que eu queria? Será que preenchi todo meu destino?". Pois é, amigo, nunca vamos saber. Pois, justamente, o destino estava escrito naquela alma que a gente vendeu.

[email protected]. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

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Quanto vale uma convicção? (MALU FONTES)

UM FATO ocorrido no último feriado do trabalho, em Portugal, sem nenhum destaque nos telejornais brasileiros, deu a medida do quanto, no circo do consumo, tudo está à venda e pode ser negociado, principalmente as mais sólidas convicções ideológicas. Os brasileiros talvez tenham dificuldade de entender o ponto zero de todo o barulho gerado no feriado do trabalhador nas principais cidades portuguesas. No Brasil, há muito tempo, não apenas os supermercados, mas todo o comércio abre as portas durante os feriados e os finais de semana e ninguém reclama.

Este ano, em Portugal, bastou uma rede de supermercados anunciar que abriria suas lojas no feriado de primeiro de maio para todo o país dar início a um intenso e apaixonado debate sobre os limites do capitalismo e do consumismo e seus impactos na vida das pessoas. Os sindicatos propuseram imediatamente uma greve nacional visando tão somente impedir que a rede de supermercados levasse essa heresia adiante, com o apoio de entidades da sociedade civil. Os argumentos eram de que o desejo de lucro dos empresários não poderia se sobrepor ao direito do lazer e descanso dos trabalhadores no 1º de maio.

SARAMAGO - Enquanto a sociedade, a intelectualidade, o senso comum em cada esquina e os empregados de supermercados faziam do assunto a polêmica de ocasião, os donos da rede tiveram uma ideia que durante todo o dia de terça-feira transformou as cidades e bairros mais importantes do país em um cenário vivo do livro de Saramago, se este tivesse vivido o bastante para batizar sua obra de Ensaio Sobre o Consumo, em vez de Ensaio Sobre a Cegueira.

A rede de supermercados, uma das principais do país e que atende pelo sugestivo nome de Pingo Doce, achou a fórmula para obter consenso quanto à abertura das portas pela primeira vez na história portuguesa no 1º de maio: sem qualquer campanha publicitária, deixou correr pelas cidades os boatos verdadeiros de que, ok, cometeria uma heresia ideológica trabalhista mas, ofereceria uma compensação e tanto a quem aceitasse o convite para ir fazer umas comprinhas no feriado. Todos os clientes que comprassem mais de 100 euros, teriam um desconto de 50%. Foi o suficiente para as convicções dos trabalhadores e cidadãos portugueses sobre a sacralidade do 1º de maio se desfazerem. Afinal, que convicção resiste a uma proposta indecente que transforma uma conta de mil euros em 500? Com 50% de ganho, quase todo mundo vende a sua.

CIGANOS - As cenas exibidas pela TV portuguesa, descritas pelos jornais impressos do país e os vídeos disponíveis para o mundo no YouTube mostram em que pode se transformar um espetáculo de consumo. O surrealismo começou nas madrugadas anteriores ao feriado, com a população cigana. Negociantes natos do tipo que vislumbram de longe uma boa oportunidade de lucrar muito investindo pouco, os ciganos acorreram aos supermercados, enfiaram uma moeda de um euro para cada carrinho de compras que ficam nos estacionamentos das lojas (lá os carrinhos só são destravados após a inserção de uma moeda, devolvida ao fim das compras e quando do retorno do equipamento ao local de origem) e logo em seguida postaram-se a alugá-los para os primeiros madrugadores das filas e os alugavam a 25 euros. Naturalmente não havia, a essa altura, um só carrinho disponível para ser retirado em troca da tal moeda de um euro.

O cenário foi dantesco, para muito além do surto que acometia os personagens de Saramago no Ensaio Sobre a Cegueira. Centenas de pessoas presas, dez horas em filas para efetuar pagamentos nos caixas, laticínios devorados sem pagar dentro da loja pela fome que os clientes começaram a sentir diante de tantas horas de filas, caos e espera, pessoas quebrando garrafas para usar como armas com o intuito de disputar produtos, prateleiras absolutamente vazias antes do meio da tarde e cidades com engarrafamentos nunca vistos em nenhuma delas.

NABO - O caos foi tamanho que se tornou um problema de polícia, de estado, de segurança pública, de economia (dumping) e, acima de tudo, um debate ideológico sobre o que pode e até aonde vai a sanha ensandecida por consumo. Quem acha que convicção ideológica de trabalhador não tem preço, ofereça-lhe um desconto de 50% diante de um carrinho de supermercado cheio, mesmo que para vender-se por esse desconto o contemplado precise correr risco de vida. E embora a Rede Globo tenha um correspondente em Portugal, nenhum minuto dos telejornais da casa foi dado a este episódio. Ah, mas se fosse um nabo gigante colhido na quinta do seu Manuel em algum ponto da Beira Interior, certamente o Jornal Hoje

noticiaria com destaque...

MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em

06 de maio de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; [email protected]

Álcool para menores: lei e conscientização (GIOVANNI GUIDO CERRI)

JÁ FAZ PARTE do cenário de estabelecimentos comerciais e de outras instituições do Estado de São Paulo a placa da Lei Antifumo, que há três anos proibiu o uso de produtos fumígenos em ambientes fechados de uso coletivo, combatendo o tabagismo passivo, terceira maior causa de morte evitável segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). A lei pegou e inspirou legislações semelhantes em municípios e Estados brasileiros, o que culminou com a aprovação de uma legislação nacional, pelo bem da saúde pública.

Nos últimos cinco meses, outra placa, da campanha "Álcool para menores é proibido", invadiu bares, restaurantes, lanchonetes, casas noturnas, supermercados e lojas de conveniências paulistas. Hoje, ela também integra a rotina de quem

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frequenta ou trabalha nesses locais. A Lei de Contravenções Penais e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) proíbem vender ou oferecer bebidas alcoólicas a menores de idade. Por muitos anos, entretanto, perdurou a percepção de que a venda álcool a crianças e adolescentes era livre e impune, não somente em São Paulo, mas no Brasil.

O governo do Estado de São Paulo entendeu que era necessário endurecer a legislação, estabelecendo sanções administrativas e econômicas contra comerciantes que fossem coniventes com a venda, o fornecimento e a permissão de consumo de bebidas alcoólicas por menores no interior dos estabelecimentos. A Lei Antiálcool para menores, válida desde 19 de novembro de 2011, ainda é recente, mas é para valer. A cada dois minutos, em média, um estabelecimento é vistoriado por fiscais do Centro de Vigilância Sanitária, das vigilâncias municipais e regionais e do Procon-SP. São 4.500 agentes nas ruas, diariamente, incluindo finais de semana e feriados.

O índice de cumprimento da norma mais importante da lei, que é a proibição de venda, do oferecimento e da permissão de consumo de bebidas por menores, é de 99,8% entre todos os estabelecimentos visitados, similar ao observado no caso da Lei Antifumo. Apenas 15% das multas aplicadas até agora foram relacionadas à entrega de bebidas alcoólicas a menores, à permissão de consumo ou à venda sem solicitação de identidade. A maioria das autuações estava relacionada com a presença de bebidas com teor alcoólico misturadas a sucos, refrigerantes e água em uma mesma geladeira ou gôndola.

No caso da Lei Antiálcool, entretanto, o trabalho de fiscalização é mais complexo. Por isso, optou-se por agentes à paisana, porque dessa forma eles podem entrar e observar o que acontece no estabelecimento. Não há a evidência física do fiscal com o colete, o que pode dar a falsa impressão de que a fiscalização não está acontecendo. Mas está, que não haja dúvidas. São Paulo está combatendo de forma contundente a ingestão precoce e nociva de álcool na infância e juventude. A nova lei é, inclusive, um incentivo para que a sociedade reveja a permissividade com a qual se tratou, até agora, o consumo de bebidas alcoólicas por jovens adolescentes, inclusive dentro dos lares.

GIOVANNI GUIDO CERRI, 58, médico e professor titular da Faculdade de Medicina da USP, é secretário de Estado da Saúde de

São Paulo. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

Internet para os ricos e os demais (MOISÉS NAÍM)

DUAS DAS PRINCIPAIS tendências atuais são o acesso cada vez maior da população mundial à internet e o acirramento das desigualdades socioeconômicas. No futuro, essas duas tendências vão convergir.

Existirá uma internet para os que possuem mais e outra para os demais. Isto não significa que haverá duas "redes" diferentes, ou que a internet para os internautas com renda mais baixa deixe de oferecer as possibilidades maravilhosas que a rede abriu a todos nós, sem distinções de idade, nível econômico ou nacionalidade. De fato, a popularização da internet vem servindo para contrabalançar, de alguma maneira, a concentração de riqueza, renda e poder em muitos países.

Mas o problema é que aqueles que possuem menos serão mais vitimados por meio da internet que aqueles que têm meios para proteger-se. Todos nós já fomos vítimas dessa internet "má": vírus, spams, hacking, cracking e perda de privacidade. As transações fraudulentas e o "roubo de identidade" são delitos em ascensão. Em 2012, os prejuízos sofridos em nível mundial chegarão a US$ 114 bilhões.

Desde esse ponto de vista, não é arriscado prever que a experiência com a internet que terá um usuário de baixa renda no Brasil, na Itália ou no Canadá, por exemplo, será muito diferente daquela de um internauta que possua meios para comprar as maiores proteções que o mercado oferece. O "desnível digital" entre países pobres e ricos vai se reproduzir no interior de cada país: os usuários pobres viverão num mundo de internet mais perigoso que o dos ricos.

Isso acontece porque será necessário gastar valores altos com proteções e barreiras tão sofisticadas quanto os programas muito avançados que envenenam a rede. Se organismos de inteligência, grandes bancos, empresas e instituições de todo tipo são atacados regularmente por cibercriminosos, é natural que os indivíduos sejamos vulneráveis.

John Brennan, o principal assessor da Casa Branca para o antiterrorismo, afirma que, "num dia útil qualquer, empresas em todos os setores da economia são submetidas a uma enxurrada incessante de ciberataques.

São roubados sua propriedade intelectual, os desenhos de novos produtos ou as informações pessoais de seus clientes. Os dados mais delicados sobre sistemas de defesa e armamentos também estão em risco. No ano passado houve mais de 200 ciberataques, alguns bem-sucedidos e outros fracassados, contra os sistemas de controle de nossas redes elétricas, sistemas de transporte, aquedutos e refinarias -cinco vezes mais que em 2010".

Mas a desigualdade na internet não decorre apenas dos criminosos. Também haverá desníveis entre quem pode pagar por conteúdos jornalísticos da mais alta qualidade e quem acede apenas à informação gratuita que circula pela rede. Desta última - informação gratuita - continuará a haver cada vez mais.

De conteúdos que ajudam a entender objetivamente o que significa essa informação, haverá muito menos. O jornalismo de qualidade será pago, e isso nos dividirá. É urgente combater essas tendências.

@moisesnaim. Tradução de CLARA ALLAIN. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

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Longevidade irresponsável (DRAUZIO VARELLA)

EM 1900, a expectativa de vida ao nascer de um brasileiro era de míseros 33,7 anos. Nossa espécie desceu das árvores nas savanas da África há pelo menos 5 milhões de anos. Passamos quase toda a história abrigados em cavernas, atormentados pela fome, pelas doenças infecciosas e por predadores humanos e não humanos. A mortalidade infantil era estratosférica; poucos chegavam aos 20 anos em condições razoáveis de saúde.

Milhões de anos de privações moldaram muitas de nossas características atuais. A mais importante delas foi a maturidade sexual precoce. Vivíamos tão pouco que levavam vantagem na competição as meninas que menstruavam antes e os meninos que produziam espermatozoides mais cedo. Quanto mais depressa concebiam filhos, maior a probabilidade de transmitir seus genes às gerações futuras.

A precocidade da fase reprodutiva impôs limites mais modestos à duração da vida. Em todos os animais, quanto mais tarde acontece o amadurecimento sexual, maior é a longevidade. Nas drosófilas -a mosquinha que ronda as bananas maduras-, quando selecionamos para reprodução apenas as fêmeas e os machos mais velhos, em três ou quatro gerações a vida média da população duplica. Se nossos antepassados tivessem começado a ter filhos só depois dos 50 anos, agora passaríamos dos 120 com facilidade.

O acompanhamento de coortes de centenários confirma essa suposição: mulheres que engravidam pela primeira vez depois dos 40 anos têm quatro vezes mais chance de chegar dos 90 anos. A segunda característica moldada nas cavernas foi nosso padrão alimentar. A arquitetura das redes de neurônios que controlam os mecanismos de fome e saciedade no cérebro humano foi engendrada em época de penúria. Em jejum há três dias, o homem daquele tempo trocaria a carne assada do porco do mato que acabou de caçar por um prato de salada?

A terceira foi a necessidade de poupar energia. Em temporada de vacas magras, absurdo desperdiçá-la em esforços físicos desnecessários. Somos descendentes de mulheres e homens que lutavam para conseguir alimentos altamente calóricos, porque deles dependia a sobrevivência da família. Como o acesso a eles era ocasional, nessas oportunidades comiam até não poder mais. Bem alimentados, evitavam movimentar-se para não malbaratar energia.

Durante milhões de anos, nosso cérebro privilegiou os mecanismos responsáveis pelo impulso da fome e pela economia de gasto energético, em prejuízo daqueles que estimulam a saciedade e a disposição para a atividade física. De repente, veio o século 20, com o saneamento básico, as noções de higiene pessoal, as tecnologias de produção e conservação de alimentos, as vacinas e os antibióticos. Em apenas cem anos, a expectativa de vida no Brasil atingiu os 70 anos; mais do que o dobro em relação à de 1900, feito que nunca mais será repetido.

A continuarmos nesse passo, em 2030 atingiremos a expectativa de 78 anos. A faixa etária que mais cresce é a que está com mais de 60 anos. Sabendo que atualmente 75% dessa população sofre de enfermidades crônicas, a saúde pública estará preparada enfrentar esse desafio? Pelo andar da carruagem, é quase certo que não. Mas não é esse o tema que pretendo tratar neste sábado, leitor: quero chamar a atenção para a nossa irresponsabilidade ao lidar com o corpo.

Aos 40 anos, você pesa dez quilos mais do que aos 20. Aos 60, já acumulou mais uma arroba de gordura, não resiste aos doces nem aos salgadinhos, fuma, bebe um engradado de cerveja de cada vez, é viciado em refrigerante, só sai da mesa quando está prestes a explodir e ainda se dá ao luxo de passar o dia no conforto. Quando se trata do corpo, você se comporta como criança mimada: faz questão absoluta de viver muito, enquanto age como se ele fosse um escravo forçado a suportar desaforos diários e a aturar todos os seus caprichos, calado, sem receber nada em troca.

Aí, quando vêm a hipertensão, o diabetes, a artrite, o derrame cerebral ou o ataque cardíaco, maldiz a própria sorte, atribui a culpa à vontade de Deus e reclama do sistema de saúde que não fez por você tudo o que deveria. Desculpe a curiosidade: e você, pobre injustiçado, não tem responsabilidade nenhuma?

DRÁUZIO VARELA escreve quinzenalmente para esta coluna. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

Como salvar a biotecnologia (JOHN GAPPER)

"VOCÊ VAI precisar de um barco maior", diz o chefe de polícia interpretado por Roy Scheider em "Tubarão", quando ele vê o animal pela primeira vez. Diante do câncer, do diabetes e do alzheimer, precisamos de um veículo de investimento maior. À medida que a expectativa de vida cresce e as mortes causadas por enfermidades como as doenças cardíacas caem, os desafios que as companhias do setor de saúde enfrentam se tornam maiores e mais complicados. Mas os investidores se preocupam cada vez mais com o dinheiro perdido na busca de novos medicamentos.

Patentes sobre remédios cardíacos de sucesso como o Lipitor, da Pfizer, e o Plavix, da Sanofi, estão por expirar, e não há sinais de que o setor conseguirá substitui-las. O setor de capital para empreendimentos reduziu seu investimento na biotecnologia, por falta de retorno, e o investimento público em pesquisa de saúde está sob pressão nos EUA e em outras economias ricas.

Talvez seja hora de pensar no impensável: se os investidores privados já não querem sustentar a pesquisa médica, é preciso encontrar quem os substitua. Andrew Lo, professor de Finanças no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), diz que isso poderia envolver o recurso ao mercado de títulos de dívida, por meio de Obrigações de Dívida Caucionada

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(CDOs, na sigla em inglês). A ideia parece extravagante, dado o papel dos títulos caucionados na formação da bolha da habitação e o fato de que os projetos de pesquisa -os ativos que serviriam como caução, de acordo com a proposta de Lo- começam com receita zero. Mas o setor farmacêutico está há uma década tentando encontrar ideia melhor sem sucesso. Portanto, por que não tentar?

Dinheiro novo é necessário para as pesquisas de primeiro estágio-aquelas nas quais possíveis novos medicamentos são identificados antes de serem desenvolvidos e submetidos a testes clínicos. O setor de capital para empreendimentos deixou o segmento de lado devido à queda no número de empresas iniciantes que conseguiram chegar ao estágio de abertura de capital. O investimento das companhias norte-americanas de capital para empreendimentos em biotecnologia caiu 43% no primeiro trimestre.

O investidor está se comportando de modo racional -os retornos sobre a pesquisa vêm sendo modestos desde a era dos medicamentos de grande sucesso dos anos 1990. O índice de insucesso de remédios novos em testes clínicos vem subindo firmemente, e os esforços dos fabricantes de medicamentos para aumentar a produtividade -por exemplo, ao adotar modelos de pesquisa mais parecidos com os das empresas iniciantes de biotecnologia- não ajudaram muito.

Para a sociedade, porém, o resultado é desastroso. A ciência genética se tornou tão complexa que muitas pesquisas caras são necessárias para identificar tratamentos para doenças como o mal de Alzheimer. Mas investidores podem ganhar mais aplicando em outros setores. A ideia do professor Lo é atrair investidores em títulos de dívida que se satisfariam com retornos menores, mas firmes, e fazer com que o investimento se vincule a projetos específicos de pesquisa, e não a empresas. Mesmo que a maioria dos projetos fracasse, aqueles que obtivessem sucesso bastariam para bancar a remuneração dos CDOs.

A bolha da habitação terminou mal, mas provou, de acordo com Lo, que, "ao usar técnicas de engenharia financeira, é possível criar grandes fundos de capital". A perspectiva é atraente, não só para um setor que precisa de ajuda mas também para o segmento de crédito estruturado. A bolha da habitação conferiu aos CDOs e à engenharia financeira uma reputação merecidamente negativa. Se as mesmas técnicas fossem usadas para ajudar na pesquisa médica, Wall Street poderia melhorar sua imagem.

Há o risco de uma repetição do colapso na habitação e de atrair dinheiro para ideias ruins, o que resultaria em prejuízos bilionários para os investidores. Mas isso seria melhor que a alternativa: uma lenta deriva rumo ao investimento insuficiente em pesquisa de saúde. Como diz o professor Lo, "se surgir uma bolha do câncer, é algo com que posso conviver".

JOHN GAPPER é editor-associado e colunista do "Financial Times", jornal em que este artigo foi publicado originalmente. Tradução de PAULO MIGLIACCI. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

Dialética da mudança (FERREIRA GULLAR)

CERTAMENTE porque não é fácil compreender certas questões, as pessoas tendem a aceitar algumas afirmações como verdades indiscutíveis e até mesmo a irritar-se quando alguém insiste em discuti-las. É natural que isso aconteça, quando mais não seja porque as certezas nos dão segurança e tranquilidade. Pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob nossos pés.

Não necessito dizer que, para mim, não há verdades indiscutíveis, embora acredite em determinados valores e princípios que me parecem consistentes. De fato, é muito difícil, senão impossível, viver sem nenhuma certeza, sem valor algum. No passado distante, quando os valores religiosos se impunham à quase totalidade das pessoas, poucos eram os que os questionavam, mesmo porque, dependendo da ocasião, pagavam com a vida seu inconformismo.

Com o desenvolvimento do pensamento objetivo e da ciência, aquelas certezas inquestionáveis passaram a segundo plano, dando lugar a um novo modo de lidar com as certezas e os valores. Questioná-los, reavaliá-los, negá-los, propor mudanças às vezes radicais tornou-se frequente e inevitável, dando-se início a uma nova época da sociedade humana. Introduziu-se o conceito não só de evolução como o de revolução.

Naturalmente, essas mudanças não se deram do dia para a noite, nem tampouco se impuseram à maioria da sociedade. O que ocorreu de fato foi um processo difícil e conflituado em que, pouco a pouco, a visão inovadora veio ganhando terreno e, mais do que isso, conquistando posições estratégicas, o que tornou possível influir na formação de novas gerações, menos resistentes a visões questionadoras.

A certa altura desse processo, os defensores das mudanças acreditavam-se senhores de novas verdades, mais consistentes porque eram fundadas no conhecimento objetivo das leis que governam o mundo material e social. Mas esse conhecimento era ainda precário e limitado. Basta dizer que, até começos do século 20, ignorava-se a existência de microrganismos - como vírus e bactérias-, o que inviabilizava tratar doenças como a tuberculose.

Costumo dizer que o poeta Augusto dos Anjos foi assassinado pelo tratamento médico de uma pneumonia: submeteram-no a sangrias e lavagens intestinais, debilitando-o mais, ou seja, anularam-lhe as defesas naturais e o desidrataram. A descoberta dos vírus e bactérias como causas de muitas e graves enfermidades possibilitou a produção dos antibióticos, o que representou um enorme avanço na cura desse tipo de doenças.

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Igualmente significativas foram as mudanças nos terrenos econômico e político, resultantes da crítica ao capitalismo e da luta dos trabalhadores em defesa de seus direitos. O comunismo se impôs como uma alternativa à democracia burguesa e influi até hoje na visão ideológica de parte considerável da sociedade contemporânea. Todos esses fatos -que são apenas uns poucos exemplos do que tem ocorrido- tornam indiscutível a tese de que a mudança é inerente à realidade tanto material quanto espiritual, e que, portanto, o conceito de imutabilidade é destituído de fundamento.

Ocorre, porém, que essa certeza pode induzir a outros erros: o de achar que quem defende determinados valores estabelecidos, em contraposição a outros considerados inovadores, está indiscutivelmente errado. Em outras palavras, bastaria apresentar-se como inovador para estar certo. Será isso verdade? Os fatos demonstram que tanto pode ser como não. Mas também pode estar errado quem defende os valores consagrados e aceitos. Só que, em muitos casos, não há alternativa senão defendê-los. E sabem por quê? Pela simples razão de que toda sociedade é, por definição, conservadora, uma vez que, sem princípios e valores estabelecidos, seria impossível o convívio social. Uma comunidade cujos princípios e normas mudassem a cada dia seria caótica e, por isso mesmo, inviável.

Por outro lado, como a vida muda e a mudança é inerente à existência, impedir a mudança é impossível. Daí resulta que a sociedade termina por aceitar as mudanças, mas apenas aquelas que de algum modo atendem a suas necessidades e a fazem avançar.

FERREIRA GULLAR escreve semanalmente para esta coluna. Folha de São Paulo, Maio de 2012.

A audácia ou o beco sem saída (SERGE HALIMI)

ALGUMAS semanas após as eleições de 6 de maio, Sarkosy deverá participar de uma cúpula do G20. E, de cara, ele deverá aceitar, renegociar ou recusar um tratado europeu que aprofundará as políticas de austeridade. Sua escolha dependerá da orientação econômica e social da França, mas também de toda a construção européia.

Ainda que a eleição francesa provoque uma mudança de presidente, as questões decisivas do período iniciado em 2007 serão rompidas? A alternância política constituiria um alívio para os franceses, pois, para além dos defeitos mais notórios do presidente que parte – sua onipresença, seu exibicionismo, sua capacidade de dizer tudo e nada, a fascinação que ele tem pelos ricos, quase igual à sua disposição em transformar os desempregados, os imigrantes, os muçulmanos ou os funcionários públicos em bodes expiatórios de todas as cóleras –, os cinco anos corridos marcaram um retrocesso da democracia política e da soberania popular.

Depois do plebiscito de maio de 2005, os candidatos ao Eliseu dos dois principais partidos representados no Parlamento ignoraram a oposição de uma maioria de franceses a uma construção europeia da qual todos os erros de concepção se revelam hoje. A votação do plebiscito foi, no entanto, traduzida por um voto definitivo, ao final de um debate nacional com melhor qualidade do que a atual campanha eleitoral. E a presidência de Nicolas Sarkozy, que devia marcar o retorno do voluntarismo na política, se encerra com um encadeamento de declarações desconcertantes. Enquanto o conjunto dos candidatos de esquerda culpa os bancos, François Baroin, ministro francês da Economia, defende que ―atacar as finanças é tão idiota quanto dizer ‗sou contra a chuva‘, ‗sou contra o frio‘ ou ‗sou contra a neblina‘‖. Por sua vez, o primeiro-ministro François Fillon recomenda ao candidato socialista François Hollande ―submeter seu programa eleitoral à Standard & Poor‘s‖.1

A subordinação dos círculos dirigentes franceses à ―democracia conforme o mercado‖, credo afirmado por uma direita alemã cada vez mais arrogante, corrói também a soberania popular. O surgimento dessa hipótese está no centro da eleição em andamento. E faz os termos do debate europeu serem colocados sem rodeios. Ninguém ignora que os programas de austeridade colocados em ação com fúria nos últimos dois anos não trouxeram – e não trarão – nenhuma melhoria aos problemas de endividamento que pretendem resolver. Uma estratégia de esquerda que não coloque em questão esse garrote financeiro está por consequência condenada desde o princípio. E o ambiente político europeu impede de imaginar que isso possa ser conquistado em combate.

No momento atual, a embolia geral é contida por uma torrente de dinheiro que o instituto de emissão deposita a preço baixo nos bancos privados, com a condição de que estes reemprestem mais caro para os Estados. Mas esse descanso

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depende apenas da boa vontade do Banco Central Europeu (BCE), reforçado por uma ―independência‖ que os tratados imprudentemente consagraram. A longo prazo, a maioria dos países-membros da União se comprometeram, de acordo com as exigências alemãs docilmente consentidas por Paris, a endurecer suas políticas de rigor e a submeter os eventuais infratores a um mecanismo de sanção draconiano, o Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governança (TSCG), em curso de ratificação.

O castigo infligido à Grécia ameaça agora a Espanha, convocada a reduzir em um terço seu déficit orçamentário, quando sua taxa de desemprego já atinge 22,8%. Portugal não fica atrás. Deve amputar suas despesas públicas, ao mesmo tempo que a taxa de lucro de seus empréstimos explode (14% em março) e o país afunda na recessão (3% de desaceleração em 2011). Infligir um aperto orçamentário a Estados que caminham para o desemprego em massa não é um caso inédito − tal foi a grande receita econômica e social dos anos 1930 na França... Os socialistas explicavam então: ―A deflação agrava a crise, ela diminui a produção e diminui o rendimento dos impostos‖.2

A estupidez das políticas atuais só é desconcertante então para quem ainda imagina que elas tenham a vocação de servir ao interesse geral, e não a uma oligarquia rentável pendurada nos controladores do Estado. Se as finanças têm um rosto, é bem esse.3Nomear esse inimigo permitiria uma melhor mobilização contra ele.

Em caso de alternância política na França, questionar o TSCG (ou outras políticas de austeridade do mesmo tipo) deverá constituir uma prioridade absoluta do novo presidente, quem quer que seja. O sucesso ou o fracasso dessa empreitada determinará o resto: educação, serviços públicos, justiça fiscal, emprego. Hollande gostaria de dissociar o mecanismo de solidariedade europeia, que ele defende, da terapia de choque liberal, que ele contesta. O socialista se comprometeu a ―renegociar‖ o TSCG, com a esperança de acrescentar a ele ―um pouco de crescimento e emprego‖ junto com projetos industriais em escala continental.

―Nenhuma política de esquerda é possível no contexto desses tratados‖, estima por outro lado Jean-Luc Mélenchon. Logicamente, o candidato da Frente de Esquerda se opõe ao TSCG, assim como ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), que prevê uma assistência financeira aos países em perigo que tiverem previamente aceitado medidas draconianas de equilíbrio orçamentário. O candidato ecologista e os postulantes trotskistas também conduzem uma campanha por uma ―auditoria europeia das dívidas públicas‖, para talvez acusá-las de ilegitimidade argumentando que as baixas de impostos desses últimos vinte anos e os lucros encaminhados aos credores explicam o essencial de seu nível atual.

A “flexibilização” de 1997

Opondo-se a uma renegociação dos tratados, a maior parte dos Estados europeus, a Alemanha em primeiro lugar, não imagina nada do gênero. E muito menos emprestar somas importantes a Estados em dificuldade financeira sem que eles tenham dado garantias de sua ―boa‖ gestão. Quer dizer, aceitado ao mesmo tempo novas privatizações e a revisão de partes importantes de sua proteção social (aposentadorias, auxílio-desemprego, salário mínimo etc.). ―Os europeus não são mais ricos o suficiente para pagar todo mundo para não trabalhar‖, resumiu no dia 24 de fevereiro passado Mario Draghi, presidente do BCE, numa entrevista ao Wall Street Journal. O antigo vice-presidente da Goldman Sachs acrescentou que uma ―boa‖ austeridade necessitaria ao mesmo tempo uma redução dos impostos (o que nenhum candidato francês propõe, nem mesmo Sarkozy) e das despesas públicas.

É o mesmo que dizer que um presidente de esquerda enfrentaria tanto a oposição da maioria dos governos da União, majoritariamente conservadores, como a do BCE, sem esquecer a Comissão Europeia presidida por José Manuel Barroso. É sem dúvida deliberadamente que os primeiros-ministros britânico, polonês e italiano, assim como a chanceler alemã, recusaram-se a receber o favorito francês nas pesquisas, considerado menos cômodo que o atual presidente.

―Não somos a favor de uma renegociação‖, já indicou Jan Kees de Jager, ministro holandês das Finanças. ―Por outro lado, se Hollande quiser fazer mais reformas, então estaremos a seu lado, que se trate da liberalização dos serviços ou de reformas do mercado de trabalho.‖ Em suma, o apoio da Holanda será dado a qualquer presidente francês de esquerda que colocar em ação uma política ainda mais liberal que a de Sarkozy.

Angela Merkel não faz nenhum mistério sobre sua inclinação partidária: ela se declarou disposta a participar dos encontros da direita francesa. Os socialistas alemães mostram menos entusiasmo com relação a seus camaradas do outro lado do Reno. O presidente do partido, Sigmar Gabriel, se declarou solidário, mas outro dirigente, Peer Steinbrück, que espera também suceder a chanceler daqui a dezoito meses, julgou ―ingênuo‖ o comprometimento de Hollande em ―renegociar mais uma vez todos esses acordos [europeus]‖. Ele antecipa uma inversão do candidato francês: ―Se ele for eleito, sua política poderia concretamente diferir do que ele está dizendo‖.4

Não sabemos se tal hipótese deve ser excluída. Já em 1997 os socialistas franceses tinham prometido, antes das eleições legislativas, renegociar um pacto de estabilidade europeu assinado em Amsterdã – uma ―concessão feita absurdamente ao governo alemão‖, estimava Lionel Jospin. Uma vez no poder, a esquerda francesa não obteve nada além do acréscimo dos termos ―e de crescimento‖ ao título do ―pacto de estabilidade‖.

Pierre Moscovici, atual diretor da campanha de Hollande, voltou em 2003 a essa pirueta semântica. Ao relê-lo, é difícil não pensar na situação que poderia ocorrer em maio próximo: ―O Tratado de Amsterdã tinha sido negociado – muito mal – antes de nossa chegada às responsabilidades. Ele comportava inúmeros defeitos – primeiramente um conteúdo social muito insuficiente. [...] O novo governo teria podido legitimamente não aprová-lo [...], ou ao menos pedir sua renegociação. Não foi nossa escolha final [Moscovici era então ministro das Relações Europeias], pois estávamos confrontados, com Jacques

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Chirac no Eliseu, à ameaça de uma tripla crise. Crise franco-alemã, pois um recuo de nossa parte poderia complicar de início nossa relação com esse parceiro essencial [...]. Crise com os mercados financeiros, cujos operadores desejavam a adoção desse tratado. [...] Finalmente, crise de coabitação. [...] Lionel Jospin escolheu, com justeza, deslocar o terreno, procurando ao mesmo tempo uma flexibilização e uma saída por cima. Quer dizer, obtendo, pelo preço de seu consentimento no Tratado de Amsterdã, a primeira resolução de um Conselho Europeu consagrado ao crescimento e ao emprego‖.5

Na hipótese de uma vitória presidencial, depois parlamentar, da esquerda em maio-junho próximos, dois elementos difeririam do quadro pintado aqui. De um lado, o Poder Executivo francês não estaria mais dividido como há quinze anos; mas, por outro lado, o equilíbrio político da Europa, que pendia para a centro-esquerda em 1997, inclina-se agora fortemente para a direita. Isso posto, até mesmo um governo tão conservador quanto o do primeiro-ministro espanhol Mariano Rajoy se preocupou com a cura da austeridade perpétua que lhe reservam os governantes alemães. No último dia 2 de março, ele revelou sua ―decisão soberana‖ de não aceitar a camisa de força orçamentária europeia.

Quase no mesmo momento, uma dúzia de outros países, entre os quais a Itália, o Reino Unido e a Polônia, reclamou uma reorientação da política econômica tramada pelo conjunto germano-francês. Hollande poderia ficar feliz com isso. Ele espera que sua eventual eleição irá balançar as correlações de forças continentais, sem que ele tenha de engajar uma prova de força – o que ele manifestamente repugna – com diversos governos europeus, o BCE e a Comissão de Bruxelas.

Só um porém: a reorientação desejada pelos países liberais não tem nada a ver com a que ele mesmo recomenda. A palavra ―crescimento‖ significa para uns a adoção de políticas de oferta thatcherianas (redução dos impostos e desregulamentações sociais e ambientais), para outros um pequeno pacote de investimentos públicos (educação, pesquisa, infraestrutura). O equívoco não será mantido indefinidamente. Bem rápido, será necessário enfrentar a ―desobediência europeia‖ que recomendam Mélenchon e outras forças de esquerda. Ou então prosseguir sem esperanças no caminho já iniciado.

Para além do que os distingue – em matéria de justiça fiscal, por exemplo –, Sarkozy e Hollande apoiaram os mesmos tratados europeus, de Maastricht a Lisboa. Ambos endossaram objetivos draconianos de redução de déficits públicos (3% do PIB em 2013, 0% em 2016 ou em 2017). Os dois recusam o protecionismo. Eles esperam tudo do crescimento. Defendem orientações de política externa e defesa idênticas, agora que até a reintegração pela França do comando integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não é mais questionada pelos socialistas franceses.

Chegou a hora de romper com o conjunto desses postulados. Mudar de presidente é a condição para isso. Mas nem a história da esquerda no poder nem o desenrolar da campanha atual nos autorizam a imaginar que isso poderia ser suficiente.

Ilustração: Manohead

1 Respectivamente RTL, 22 jan. 2012, e Le Journal du Dimanche, Paris, 15 jan. 2012.

2 Preâmbulo da proposta de lei orçamentária do grupo socialista para 1933. 3 Ler o dossiê ―Le gouvernement des banques‖ [O governo dos bancos], Le Monde Diplomatique, jun. 2010. 4 AFP, 15 fev. 2012.

5 Pierre Moscovici, Un an après [Um ano depois], Flammarion, Paris, 2003, p.90-91.

SERGE HALIMI é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França). Le Monde Diplomatique, Maio de 2012.

Faixa de Gaza, no centro da questão palestina (JEAN-PIERRE FILIU)

A escalada de violência na Faixa de Gaza em março confirmou o caráter instável do status quo e o impasse da estratégia israelense

A Faixa de Gaza, como entidade autônoma, foi moldada pela guerra de 1948-1949. Durante o conflito, muitos palestinos expulsos afluíram para lá. O primeiro-ministro israelense, David ben Gurion, sempre visionário, compreendeu imediatamente o risco de tal concentração de refugiados no noroeste do Neguev. Isso porque a barreira natural do Deserto do Sinai impedia que ocorresse em Gaza um fenômeno de dispersão, como se deu nos países vizinhos, com o surgimento de campos de refugiados ao redor de Amã, Beirute e Damasco. Assim, para pelo menos dois terços de sua população, o território se transformou num enorme campo de refugiados. Ben Gurion pensou em resolver o problema com a oferta de anexação de Gaza, mas ela foi enterrada em 1949, na Conferência de Lausanne. O território tornou-se então o abscesso da frente meridional, campo de teste para incursões de intimidação e bombardeios indiscriminados.

A invasão israelense de 1956, durante a crise de Suez, foi acompanhada por uma sangrenta repressão, mas Gaza teve de ser evacuada, sob pressão internacional. Ben Gurion então achou que devia fazer uma aposta-padrão na mão de ferro do presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, o qual garantiu uma efetiva paz no território até 1967. Para Israel, a ocupação da Faixa de Gaza, desde a abertura da guerra de junho, era acima de tudo um desafio em termos de contrainsurreição, diante da uma guerrilha palestina de tenacidade inigualável. O general Moshe Dayan, tendo esmagado brutalmente os insurgentes, decidiu dissolver Gaza nas ―portas abertas‖ (livre circulação) com Israel e Cisjordânia. Essa política deu frutos por duas décadas. Em 1993, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin decidiu ao mesmo tempo sistematizar as ―barreiras‖ do território e abrir um diálogo com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

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Livrar-se de Gaza tornou-se a obsessão das autoridades israelenses, que buscavam transferir a manutenção da ordem a uma força palestina, mesmo reservando-se um direito de intervenção permanente em caso de ameaça. É evidente a continuidade estratégica entre a retirada parcial de 1994 e o desengajamento unilateral de 2005. Porém, enquanto Rabin desencadeou um processo de paz, o primeiro-ministro Ariel Sharon colocou Gaza diante do fato consumado.

CUSTO EXORBITANTE

(Garoto palestino agita a bandeira de seu país durante protesto na Faixa de Gaza)

Desde 2005, Israel enfrenta o impasse de sua abordagem exclusivamente securitária, que alimenta, com sua brutalidade, uma mobilização internacional pontuada por crises. As ―missões civis‖, nascidas da urgência humanitária, atingiram seu limite, pois não são capazes de dar uma perspectiva à população de Gaza. Esta continua suspensa no braço de ferro entre o Fatah, que nunca aceitou a vitória islâmica nas eleições de janeiro de 2006, e o Hamas, que assumiu o controle do território em junho de 2007. Assim, o impasse da estratégia israelense acentua o impasse humanitário, que por sua vez é agravado pelo impasse político que perdura na cena palestina. O 1,5 milhão de habitantes do território, já submetidos a um isolamento físico de rigor excepcional, são também prisioneiros desse triplo impasse. O desengajamento israelense e o desmantelamento das

colônias da Faixa de Gaza, no final do verão [do Hemisfério Norte] de 2005, foram seguidos, um mês depois, pelo início de uma ofensiva de nome premonitório: ―Eterno Recomeço‖. Sucederam-se as incursões e os bombardeios israelenses, o mais recente deles em março de 2012. A captura do soldado Gilad Shalit, no dia 25 de junho de 2006, inaugurou uma nova escalada militar. A quebra da trégua entre o Hamas e Israel, de junho a dezembro de 2008, levou à onda de violência da operação ―Chumbo Grosso‖, cujas vítimas se contam na proporção de um israelense para cada cem palestinos, ainda que, apesar da ação, os ataques de foguetes contra Israel não tenham cessado em 2009. Durante os seis primeiros meses de 2010, o ocupante matou 34 palestinos na Faixa de Gaza (incluindo onze civis), ao passo que os três israelenses mortos eram todos militares.1 O segundo semestre de 2010 terminou com um saldo de 37 palestinos mortos (incluindo doze civis) e nenhuma vítima israelense.2 Israel acredita ter encontrado a fórmula de gestão de sua fronteira meridional, a um custo sem dúvida exorbitante para os habitantes de Gaza, mas perfeitamente aceitável para a opinião pública.

A revolução egípcia, que eclodiu em 25 de janeiro de 2011 e em dezoito dias obrigou o presidente Hosni Mubarak a renunciar, logo dissipou essa ilusão estratégica. Numa inversão de papéis, é a Faixa de Gaza que alimenta, por meio de túneis, a cidade egípcia de Rafah, isolada do mundo – isto é, do Cairo – pelos motins do Canal de Suez. Israel, que insistiu para que o tratado de paz de 1979 com o Egito proibisse qualquer implantação militar no Sinai, autorizou uma presença sem precedentes das forças armadas egípcias a leste de Suez, a fim de conter a agitação revolucionária...

No dia 11 de outubro de 2011, por meio da mediação do Cairo e do serviço de inteligência alemão (BND), Hamas e Israel conseguiram chegar a um acordo de troca de prisioneiros. A libertação do soldado Gilad Shalit, uma semana depois, foi condicionada à libertação de 1.027 presos palestinos: 477 de uma lista aprovada pelo Hamas e Israel, mais 550 soltos a critério de Israel em um prazo de dois meses. É verdade que o Hamas não conseguiu a libertação das figuras emblemáticas do Fatah – Marwan Barghouti – e da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) – Ahmed Saadat. Mas garantiu a de muitos militantes do Fatah, dos Comitês de Resistência Popular e da Jihad Islâmica. Principalmente, assegurou o retorno de dezenas de quadros e membros históricos, alguns condenados a várias penas de prisão perpétua por envolvimento em ataques contra Israel.

Foram necessários quase 2 mil dias para que Israel aceitasse as exigências básicas transmitidas pelo Hamas após a captura de Shalit. Durante cinco anos e meio, seu Exército encadeou ofensivas para quebrar ou pelo menos dobrar o Hamas. O governo de Benjamin Netanyahu, no entanto, não sofreu nenhuma consequência do fracasso dessa opção estritamente militar, já que nunca foi capaz de ameaçar o controle do Hamas sobre a Faixa de Gaza. Pelo contrário, é o movimento islâmico que mantém a intensidade do conflito no nível mais baixo, contornando o bloqueio por meio de seus túneis, estimados em seiscentos pela ONU.

“FIM DA DIVISÃO”

No inverno [do Hemisfério Norte] de 2011, uma militância inédita em Gaza revelou-se sincronizada com as reivindicações populares em Túnis e no Cairo. Uma manifestação de apoio à revolução egípcia foi proibida no dia 31 de

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janeiro de 2011. A derrubada do presidente Mubarak, em 11 de fevereiro, animou os manifestantes palestinos. O grito ―O povo quer derrubar o regime‖ foi adaptado em Gaza para ―O povo quer o fim da divisão‖, colocando Hamas e Fatah lado a lado em nome dos interesses do povo palestino. No dia 14 de março de 2011, milhares de jovens manifestavam-se em favor dessa causa. No dia seguinte, eles já eram dez vezes mais numerosos, enquanto os protestos eram muito mais limitados na Cisjordânia. A manifestação degenerou, pois militantes do Hamas quiseram impor o emblema do partido aos manifestantes, que só permitiam a bandeira palestina.

Apesar desses incidentes, a dinâmica unitária preparou o terreno para uma reconciliação, pelo menos formal, entre Hamas e Fatah. A queda do regime de Mubarak, menos preocupado em mediar do que em conter o movimento islâmico, também contribuiu para isso. E o enfraquecimento da Síria de Bashar al-Assad forçou a liderança exilada do Hamas a dar mais valor às reivindicações de Gaza. Em 4 de maio de 2011, os dois dirigentes, Khaled Meshaal e Mahmoud Abbas, que não se encontravam desde a efêmera ―união nacional‖ concluída em Meca quatro anos antes, reuniram-se no Cairo para assinar um acordo. Um quadro de cooperação entre os serviços de segurança de Ramallah e de Gaza foi aceito. O princípio do acompanhamento pela OLP das negociações com Israel foi apoiado pelo Hamas, que não se considera ligado a essas conversações, mas está disposto a aceitar suas consequências.

Depois de tanto sangue derramado e tantas oportunidades perdidas, os habitantes de Gaza lutam para acreditar que a página das batalhas de uma Palestina contra a outra foi de uma vez por todas virada. Uma real reconciliação continua sendo condição indispensável para tirar o território do limbo em que ele foi relegado desde junho de 2007. A decisão última está nas mãos de Abbas e Meshaal, que vivem respectivamente em Ramallah e no Catar (desde que saiu de Damasco), bem longe de Gaza e suas preocupações. As vinganças de milícias rivais e a duplicação de grandes burocracias3 representam um sério desafio a qualquer forma de aproximação duradoura. Mas como imaginar um futuro decente e um destino coletivo para a população de Gaza enquanto os dois principais movimentos palestinos continuarem a se destruir mutuamente?

Três gerações cresceram nessa faixa de terra moldada pela história. A geração do luto, de 1947 a 1967, preparou o caminho para a do arrasamento, de 1967 a 1987, e em seguida para a das intifadas, de 1987 a 2007. Porém ali, como em todo o resto da Palestina, o caminho para sair desse pesadelo coletivo é simples e conhecido. Ele se desdobra num tríptico virtuoso: desenclave, desenvolvimento e desmilitarização. Tal dinâmica inverteria as tendências consistentemente seguidas há duas décadas. A juventude de Gaza já demonstrou, na mobilização de março de 2011, determinação em reverter uma ordem tão sinistra. Para conjurar essa fatalidade, seria preciso retornar ao pressuposto mais promissor dos acordos de Oslo: Gaza em primeiro lugar.

JEAN-PIERRE FILIU. Professor na Sciences Po Paris e autor, entre outros livros, de Histoire de Gaza, publicado pela Fayard.. Le Monde Diplomatique, Maio de 2012.

Economia do que? Não na educação (WALTER TAKEMOTO)

O SENHOR GUSTAVO Ioschpe, em entrevista ao portal Terra no dia 27 de abril, (que está disponível no link: http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias) ao comentar as greves de professores em defesa do piso salarial nacional declarou que reajustar os salários do magistério não significa que a educação no país vai melhorar: aumentar salário de professores não é um caminho para a melhoria da qualidade da educação, afirmou ele. O Sr. Ioschpe, especialista e mestre em economia da educação nos EUA, declarou ainda "É surpreendente e decepcionante que o País perca tanto tempo com uma discussão que toda a experiência internacional e brasileira já demonstrou ser infrutífera." Em encontros com professores eu costumo afirmar que reajustar os salários não significa que a aprendizagem dos alunos irá melhorar automaticamente, ou seja, se o magistério receber um reajuste de 100% não ocorrerá um impacto imediato de 100% na aprendizagem de matemática, ou nem mesmo de 10%. Pois, caso isso ocorresse, poderíamos concluir que antes os alunos não aprendiam por uma decisão deliberada

dos professores, como forma de protesto pelos baixos salários. E isso seria criminoso, por representar destruir o futuro de milhões de crianças e adolescentes (a grande maioria pobres), que não possuem nenhuma responsabilidade pelas decisões dos gestores e governantes.

Uma atitude desse tipo seria comparável ao médico que deixa parte dos seus pacientes morrerem por falta de tratamento para protestar contra o salário pago pelo SUS. Ou o engenheiro que sabota a construção do prédio para exigir

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aumento de salário, e coloca em risco a vida dos moradores. Discuto essa questão com os professores para que compreendam a armadilha que representa para a categoria quando o movimento sindical vincula, única e exclusivamente, o baixo salário ao grave problema da qualidade da escola pública brasileira. Essa vinculação é que abre espaço para que especialistas como o Sr. Ioschpe ofereçam os argumentos necessários para os que querem jogar sobre os salários pagos ao magistério o mal uso dos recursos destinados à educação.

E ai aproveito para perguntar ao Sr. Ioschpe: se reajustar os salários não vai elevar a qualidade da educação no país, mantê-los em níveis aviltantes vai contribuir para melhorar? As experiências educacionais internacionais que o senhor tanto estudou, comprovam que pagar baixo salário melhora a educação mais do que pagar salários dignos profissionalmente?

Diz, ainda, o Sr. Ioschpe na entrevista ―...trabalham em uma escola cumprindo carga horária inferior à maioria das profissões e com férias mais longas, e ganha aquilo que é de se esperar para o seu nível de formação e carga horária. Enquanto não superarmos esses estereótipos e mistificações, a discussão nacional não vai pra frente. Estamos discutindo falsos problemas". De quais professores fala o Sr. Ioschpe? Dos que trabalham em escolas privada consideradas de excelência, que atende parte da elite brasileira, que cobram mensalidades dos seus alunos que é muito superior ao que ganha na média o professor da escola pública, ou do custo aluno/ano estabelecido pelo FUNDEB?

Quando o Sr. Ioschpe fala de carga horária, provavelmente deve estar se referindo a jornada de trabalho medida em horas e esquecendo-se de analisar o efetivo exercício do trabalho docente e os seus desdobramentos. Segundo o censo escolar de 2009 do MEC/INEP, o Brasil conta atualmente com 1.882.961 professores atuando na educação básica.

Do total de professores da educação básica 63,8% atuam em um único turno, que são os que o Sr. Ioschpe diz que ―atuam em uma escola e cumprindo carga horária inferior à maioria das profissões‖, argumento que utiliza para defender que o salário pago aos docentes é compatível com o mercado. Na grande maioria esses docentes são os professores dos anos iniciais do ensino fundamental, contratados para uma jornada semanal de trabalho de 20 a 25 horas semanais, o que dificulta que possam acumular um outro contrato. São professores unidocentes ou polivantes, ou seja, são responsáveis por alfabetizar e ensinar todos os conteúdos curriculares para, em média, 35 crianças. São esses professores responsáveis, em grande parte, pelo futuro escolar dessas crianças, pois profissionalmente são responsáveis pelo complexo processo de alfabetização e letramento dos alunos, que muitos dos chamados especialistas em educação desconsideram quando se referem aos professores dos anos iniciais do ensino fundamental.

E se não sabe o Sr. Ioschpe é bom que passe a considerar em suas análises futuras: alfabetizar e ensinar 35 crianças é considerar que cada uma delas aprende em um processo e ritmo diferentes das demais, não sendo possível parametrizar e modelar técnicas que possibilitem ensinar todas ao mesmo tempo e do mesmo jeito, por mais que queiram impor essa concepção determinados especialistas. Os professores dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) são os professores especialistas, que em grande parte ministram uma única disciplina. Do total de professores dessa etapa da educação básica 66,3% atuam em até 5 turmas, ou seja, são responsáveis por ensinar para, em média, 175 alunos de escolas diferentes. E 17,8% dos professores atuam em mais de 9 turmas, o que representa ensinar para no mínimo 315 alunos!

Será que o Sr. Ioschpe tem noção do que significa ter sob sua responsabilidade por volta de 250 alunos por semana? Organizar aulas, materiais, lidar com problemas dos alunos e os próprios problemas, improvisar diante da falta de recursos, se locomover de uma escola a outra, conviver com os problemas sociais da comunidade que atravessam os muros da escola e muitas vezes explodem na sala de aula, entre outros que desafiam a resistência pessoal e profissional dos docentes? E será que o especialista em economia da educação sabe que a gestão de uma única turma significa, no cotidiano, lidar com situações diferentes a cada dia, pois a complexidade das relações que se estabelecem entre professor-aluno, aluno-aluno e os fatos sociais locais ou não, interferem decisivamente na dinâmica das mesmas e, portanto, no contexto da sala de aula?

Não quero aqui ser leviano e comparar o salário que é pago ao professor com o de outros profissionais, pois correria o risco de ser inconsequente. Importa dizer, como apontam pesquisas internacionais que o Sr. Ioschpe parece consultar e dar credibilidade, que o professor brasileiro recebe um dos piores salários pagos ao magistério no mundo, inclusive comparando com países com PIB mais baixo. E, por outro lado, em todo o mundo governantes e pesquisadores afirmam que a educação, principalmente a formal, é o principal recurso do qual dispõe a humanidade para fortalecer a democracia, implementar um modelo de desenvolvimento sustentável e mais justo socialmente, e reduzir as diferenças existentes entre os países e povos ricos e pobres.

Fundamental

Se a educação possui essa importância global, aqui no Brasil os governantes e os empresários dizem que o crescimento econômico verificado nos últimos anos não se sustentará sem que ocorra a melhoria efetiva da qualidade das escolas públicas, formando alunos que atendam aos desafios impostos pela competitividade da globalização e do mercado. São interesses fundamentalmente empresariais e econômicos, mas que demonstram o quanto a educação está no centro dos interesses de todos os setores sociais.

Se a educação é fundamental para o país, estamos falando, portanto, dos professores das escolas públicas, aos quais o governo federal garantiu em lei um piso salarial nacional que no inicio de 2012 deveria ser de R$ 1.451,00 para uma jornada de 40 horas semanais e que, infelizmente, muitos governantes não cumprem o que determina a lei.

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Leis descumpridas

O que diz o Sr. Ioschpe sobre os governantes que não cumprem a lei federal que determina o piso salarial como o menor salário a ser pago a um professor de escola pública? Nada! Se os governos estaduais e municipais cumprissem a lei do piso, inclusive criando planos de cargos, carreiras e remuneração que valorizem efetivamente o profissional da educação, não estaríamos aqui discutindo os salários aviltantes e nem os professores precisariam recorrer à greve, que sabemos o quanto é desgastante para o magistério e para os alunos e seus familiares. Bastaria os governantes fazerem o mínimo: cumprir a lei federal que instituiu o piso nacional como o menor salário a ser pago aos professores das escolas públicas que o desejo do Sr. Ioschpe seria atendido!

E ai poderíamos estar discutindo outras questões que estão associadas à qualidade da escola pública, como: - qual o currículo adequado para os cursos de formação inicial de professores, que efetivamente garanta aos futuros

profissionais o conhecimento didático necessário para que possam ensinar com qualidade a todos os alunos; - quais são as estratégias formativas mais adequadas, que possam substituir os estágios como hoje são desenvolvidos

em grande parte das instituições formadoras, para que os futuros professores possam se apropriar da cultura escolar e profissional, na perspectiva de contribuir para que a escola possa se transformar em uma organização social flexível e permeável;

- construir um amplo movimento de educadores, não subordinado aos órgãos governamentais, que debata nas escolas e comunidades o projeto educativo para o país que possa efetivamente orientar as políticas educacionais que são fundamentais para que a escola pública possa ser de qualidade;

- debater com as comunidades, sindicatos, conselhos escolares, do Fundeb, e outras instituições e movimentos interessados em discutir a educação, quais devem ser as prioridades para investimentos dos recursos destinados à educação e que estão associados a qualidade do ensino e da aprendizagem.

Debates

Esses, e muitos outros temas, devem fazer parte permanentemente dos debates entre os profissionais da educação, e seus sindicatos, pois quem faz a educação são aqueles que cotidianamente estão nas escolas e salas de aula, portanto são os que podem, e devem, estar a frente das definições das políticas educacionais do nosso país. Caso contrário, veremos sempre os especialistas dizendo o que é importante para a educação, um pequeno grupo planejando as políticas educacionais e as prioridades para o país, alguns determinando como e quando serão implementadas, os educadores nas escolas executando o que mandaram ser feito, e os milhões de alunos sofrendo os efeitos perversos do que se decidiu em algum lugar distante das escolas.

Isso não significa, como tenta nos fazer crer o Sr. Ioschpe, que a discussão salarial é perda de tempo, ou que os professores estão satisfeitos com a remuneração que recebem, e que falar em desinteresse pelo magistério é bobagem. Em todo o país grande parte dos professores são contratados em caráter precário, muitos lecionam disciplinas para as quais não foram formados em decorrência da dificuldade das secretarias de contratar professores habilitados em diversas especialidades, como física, química, matemática, biologia, entre outras. Por outro lado, como especialista em economia da educação deveria saber que quanto mais atrativos são os salários e os benefícios oferecidos, maior é a capacidade de se atrair e reter os profissionais mais qualificados. Não é por outro motivo que algumas das chamadas escolas privadas de excelência chegam a pagar salários superiores a R$ 10.000,00 mensais.

Medidas concretas

Finalizando, é preciso que a importância que se atribui à educação se converta em medidas concretas, valorizando a escola pública e seus educadores na mesma proporção da responsabilidade que se deposita na instituição escolar e seus profissionais. Da mesma forma que se avalia o professor e seus alunos, por meio das avaliações externas de desempenho, é preciso que a sociedade avalie os gestores, as políticas e as prioridades que definem, os modelos de gestão que adotam para o sistema de ensino e as relações que estabelecem com os educadores e as comunidades. Se a qualidade da educação tem como centro a escola pública (o que significa seus profissionais e alunos), é preciso não perder de vista que ela integra um sistema e, portanto, sofre as consequências das decisões que são tomadas no órgão central, que muitas vezes trata o desempenho escolar como responsabilidade única e exclusiva dos seus profissionais.

Se não sabe o Sr. Ioschpe é bom que saiba: muitos professores estão cansados, desiludidos de tanto ouvir que a educação é prioridade, e não perceberem essa importância se transformar em ações efetivas que mudem a realidade das escolas e salas de aula. Ou investimentos efetivos na valorização do trabalho que desenvolvem. O que garante os avanços que a escola pública vem tendo nos últimos anos é que, apesar de tudo que ao longo da história as elites e os governantes fizeram no nosso país para reduzir a qualidade da escola pública quando esta se tornou acessível para todos os pobres e excluídos, ainda existem muitos professores que teimam em militar pela profissão docente e a resistir por acreditarem que é possível uma outra escola pública. Diferente daquela que projeta o Sr. Ioschpe.

WALTER TAKEMOTO é educador. Revista CAROS AMIGOS, Maio de 2012.