COLÓQUIO DE DIREITO LUSO-BRASILEIRO, promovido pela ... · 12- Processo penal e criminalidade...

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∗COLÓQUIO DE DIREITO LUSO-BRASILEIRO, promovido pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP / Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa, realizado de 12 a 16 de maio de 2014, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. ∗∗Organizadores: José Fernando Simão, Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP e Fernando Araújo,

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto de Direito Brasileiro da Universidade de Lisboa.

COLÓQUIO DE DIREITO LUSO-BRASILEIRO∗

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

12 a 16 de Maio de 2014

Parte II Organizadores∗∗

José Fernando Simão

Fernando Araújo

n. 30, 2014

Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

©2011 Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP / Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida desde que citada a fonte (Postgraduate Studies Commission of the School of Law of the University of Sao Paulo. This publication may be reproduced in whole or in part, provided the source is acknowledged / Comisión de Posgrado de la Facultad de Derecho de la Universidad de São Paulo. La presente publicación puede ser reproducida total o parcialmente, con tal que se cite la fuente.

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Elaborada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Direito da USP

Cadernos de Pós-Graduação em Direito : estudos e documentos de trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011-. Mensal ISSN: 2236-4544 Publicação da Comissão de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 1. Direito 2. Interdisciplinaridade. I. Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de

Direito da USP CDU 34

Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

Os Cadernos de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, constitui uma publicação destinada a divulgar os trabalhos apresentados em eventos promovidos por este Programa de Pós-Graduação. Tem o objetivo de suscitar debates, promover e facilitar a cooperação e disseminação da informação jurídica entre docentes, discentes, profissionais do Direito e áreas afins. The Postgraduate Legal Conference Papers are published by the School of Law of the University of Sao Paulo in order to publicize the papers submitted at various events organized by the Postgraduate Program. Our objective is to foster discussion, promote cooperation and facilitate the dissemination of legal knowledge among faculty, students and professionals in the legal field and other related areas. Los Cuadernos de Posgrado en Derecho de la Facultad de Derecho de la Universidad de São Paulo son una publicación destinada a divulgar los textos presentados en eventos promovidos por este Programa de Posgrado. Su objetivo es suscitar debates, promover la cooperación y facilitar la diseminación de información jurídica entre docentes, discentes, profesionales del entorno jurídico y de áreas relacionadas.

Monica Herman Salem Caggiano Presidente da Comissão de Pós-Graduação

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo President of the Postgraduate Studies Commission

School of Law of the University of Sao Paulo Presidente de la Comisión de Posgrado de la

Facultad de Derecho de la Universidad de São Paulo

Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

APRESENTAÇÃO

A proposta de organização de colóquio de Direito luso-brasileiro entre a Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa e a Faculdade de Direito da USP – Largo de São Francisco surgiu naturalmente do

convívio acadêmico profícuo e diuturno dos organizadores do evento.

É verdade que as trocas acadêmicas entre as Instituições são antigas e têm sido mais ou menos intensas

de acordo com certos períodos de sua História. Apesar da existência de constantes convívios pessoais entre

docentes das Instituições, para uma perenidade das trocas, é importante que exista uma relação institucional.

Já em 2012, diversos docentes da Faculdade de Direito da USP foram recebidos em Lisboa, e se

discutiram formas de intensificar as atividades acadêmicas previstas em Convênio assinado pela FDL e a

FDUSP.

No ano de 2013, quando a Faculdade de Direito de Lisboa comemorou seu centenário, o então Diretor da

Faculdade de Direito da USP, Antonio Magalhães Filho, foi um dos convidados a palestrar, representando a mais

antiga Faculdade de Direito do Brasil.

O Colóquio de Direito Luso-Brasileiro (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP /

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) ocorrido entre os dias 12 a 16 de Maio de 2014 somente

significou o prosseguimento da fundamental atividade de trocas acadêmicas.

Nos cinco dias de trabalhos profícuos, as conferências proferidas foram as seguintes:

1- Concorrência sucessória no Brasil: o estado da arte na lei, na doutrina e nos tribunais (Giselda Hironaka)

2- Biografias não autorizadas: liberdade de expressão e direitos da personalidade (Silmara de Abreu Chinellato)

3- Garantias (António Menezes Cordeiro)

4- Responsabilidade civil pelo risco da atividade (Claudio Luiz Bueno de Godoy)

5- Efeitos sucessórios da relação de filiação não decorrente de acto sexual (Jorge Duarte Pinheiro)

6- A experiência das parcerias público-privadas no Brasil (Floriano Azevedo Marques)

7- Responsabilidade civil por dano ecológico (Carla Amado Gomes)

8- O fenômeno da corrupção e financiamento das campanhas eleitorais (Monica Herman Caggiano)

9- A análise económica do crime: uma breve Introdução (Miguel Patrício)

10- Prova ilícita no processo penal (Antonio Magalhães Gomes Filho)

11- Discricionariedade judicial (Sílvia Anjos Alves)

12- Processo penal e criminalidade organizada (Gustavo Badaró)

13- Seguro de responsabilidade civil (Pedro Romano Martinez)

14- Interpretação dos contratos empresariais (Rodrigo Broglia Mendes)

15- Análise económica dos programas de clemência no direito da concorrência (Paula Vaz Freire)

16- Interpretação dos contratos empresariais (Paula Forgioni)

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17- A Experiência das PPP`s em Portugal (Nuno Cunha Rodrigues)

18- O processo em ebulição: as tentativas de reforma do processo civil brasileiro (Carlos Alberto de Salles)

19- As reformas do processo civil português: Insucessos e Mistificações (José Luís Ramos)

20- Proteção penal da integridade física do feto (Mariangela Gama de Magalhães Gomes)

21- Constituição Histórica versus Constituição Escrita. Portugal – Brasil (Gonçalo Sampaio e Melo)

Os textos que ora se publicam, na Revista de Direito Brasileiro editada pelo Instituto de Direito Brasileiro

da Faculdade de Direito de Lisboa e nos Cadernos de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP são

representativos das conferências proferidas e servem para aqueles que não puderam presenciar o evento

tenham acesso às importantes reflexões e debates ocorridos, revelando-se um importe contributo para a ciência

do Direito e para a investigação científica.

Lisboa e São Paulo, dezembro de 2014.

Fernando Araújo

José Fernando Simão

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SUMÁRIO/CONTENTS/ÍNDICE

Parte II

PROVA ILÍCITA NO PROCESSO PENAL ........................................................................................................................................................7 Antonio Magalhães Gomes Filho PROCESSO PENAL E CRIMINALIDADE ORGANIZADA ............................................................................................................................. 15 Gustavo Badaró ANÁLISE ECONÓMICA DOS PROGRAMAS DE CLEMÊNCIA NO DIREITO DA CONCORRÊNCIA ......................................................... 33 Paula Vaz Freire A EXPERIÊNCIA COM PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS EM PORTUGAL ............................................................................................. 40 Nuno Cunha Rodrigues PROTEÇÃO PENAL DA INTEGRIDADE FÍSICA DO FETO: ESTUDO A PARTIR DE UM CASO CONCRETO ......................................... 47 Mariângela Gama de Magalhães Gomes; Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula; Eduardo Augusto Alves José Ferioli Pereira; Fábio Roberto Cabar; Naiara Vilardi Soares Barberio CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA VERSUS CONSTITUIÇÃO ESCRITA. PORTUGAL – BRASIL .................................................................... 61 Gonçalo Sampaio e Mello CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO: ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO .......................................................... 70

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Parte II

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A INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO DIREITO BRASILEIRO*

Antonio Magalhães Gomes Filho**

1. Considerações gerais sobre a inadmissibilidade da prova ilícita

As questões relacionadas ao tema da prova judiciária são quase sempre difíceis e polêmicas.

Isso decorre, certamente, do caráter social dos procedimentos probatórios: as provas não visam

somente a estabelecer a verdade sobre os fatos discutidos no processo, mas objetivam, de forma mais ampla,

justificar perante a sociedade a decisão que vier a ser adotada. Daí porque não se trata de simples atividade

técnica e neutra, mas, ao contrário, de tarefa influenciada por fatores culturais, políticos, ideológicos e até

mesmo religiosos, cujas características têm sido muito variáveis no tempo e no espaço.

Isso explica a formação de dois diferentes sistemas probatóriosna Europa continental e na Inglaterra: no

continente desenvolveu-se a técnica do inquérito, na qual a busca de uma verdade absoluta era praticamente

ilimitada e constituía verdadeira obsessão do juiz inquisidor – admitindo-se qualquer tipo de informação, até

mesmo com o recurso à tortura. Mesmo depois das transformações introduzidas no processo penal pela

Revolução liberal do século XVIII, a consagração do sistema misto ou reformado permitiu que traços inquisitórios

se mantivessem nesse sistema, confundindo-se o livre convencimento com uma liberdade quase incontrolada na

aquisição da prova.

Ao contrário, na tradição inglesa, depois levada aos outros países de “common law”, as características

dos julgamentos pelo júri popular conduziram a um modelo em que a atividade probatória é confiada às partes e,

ao mesmo tempo, limitada por uma série de regras de exclusão (“law of evidence”), cujo objetivo é evitar que o

convencimento dos jurados seja contaminado por informações irrelevantes ou errôneas. Nessa ótica, interessa

menos a verdade do que o bom método para chegar a ela.

Essa diferença fundamental não impediu que na evolução mais recente desses dois modelos muitas

daquelas características tenham se alterado. E tal mudança ocorreu muito especialmente a partir do final da

Segunda Guerra - sobretudo com a internacionalização das garantias processuais relacionadas à prova,

propiciada pela edição dos documentos supranacionais de direitos humanos -, sendo possível constatar então

uma progressiva e recíproca influência entre os dois sistemas.

Exemplo disso é a vedação do ingresso no processo das chamadas “provas ilícitas”.

A restrição ao ingresso de tais provas tem uma função política, em sentido amplo, e visa à proteção de

certos valores importantes para a sociedade, especialmente os direitos fundamentais do indivíduo, cujo sacrifício

representaria um custo desproporcional em comparação com o interesse na apuração da verdade processual.

Isso vale principalmente na justiça criminal, pois seria absurdo que o Estado, para impor a pena ao autor de um

crime, permitisse a prática de métodos criminosos para apurar a verdade sobre o fato.

*Palestra proferida no “Colóquio de Direito Luso-Brasileiro”, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

nos dias 12 a 16 de maio de 2014. **Professor Titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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O fundamento mais importante das proibições de prova é, portanto, relacionado à proteção dos direitos

fundamentais assegurados aos indivíduos pelas Constituições dos países que adotam o regime democrático.

Isso significa que o interesse da apuração da verdade dos fatos discutidos no processo judicial deve conviver

com outros interesses que também são protegidos pela ordem jurídica. Como escreveu Foriers, a disciplina da

prova deve permitir a coexistência entre o interesse da sociedade e o interesse de apuração da verdade.

A vedação da prova contra legem constitui resultado de longa elaboração jurisprudencial, iniciada na

Suprema Corte americana no final do século XIX e, depois, nas décadas de 60 e 70 do século passado, pelo

Tribunal Supremo Federal alemão (BGH) e pela Corte Constitucional italiana.

Coube à jurisprudência norte-americana a primazia na consideração da inadmissibilidade processual da

prova obtida ilicitamente.

Até o final do século XIX, prevalecia o entendimento de que a admissibilidade da prova não era afetada

pela ilegalidade nos meios utilizados para sua obtenção. Somente no célebre julgamento do caso Boyd v. United

States, de 1885, a Suprema Corte americana entendeu inadmissível como prova um documento que o acusado

fora obrigado a apresentar no processo, entendendo que isso configurava, a um só tempo, violação das

Emendas IV, que assegura a inviolabilidade dos papéis privados, e V, que garante o acusado contra a auto-

incriminação.

Depois disso, em 1914, na importante decisão do caso Weeks, a Suprema Corte considerou ter sido um

prejudicial error a admissão, por uma corte federal, de documentos apreendidos na casa do acusado sem o

respectivo mandado, com violação da IV Emenda; a partir daí, fixou-se, nas cortes federais, a regra de exclusão

segundo a qual são inadmissíveis as provas obtidas com violação das garantias constitucionais; e essa regra

passou a vigorar também, posteriormente, na maioria dos estados americanos.

Na justificação dessa orientação, a maioria dos juízes da Suprema Corte observou que a previsão de

sanções civis, penais ou administrativas não constitui freio suficiente à atuação ilegal da Polícia; assim porque,

em primeiro lugar, na maioria dos casos os abusos são cometidos contra pessoas das classes menos

favorecidas, que não teriam recursos para promover ações de ressarcimento; segundo, porque a repressão

penal dependeria da iniciativa dos mesmos órgãos de persecução aos quais se destinavam as provas obtidas

ilicitamente e, em um sistema dominado pela oportunidade da ação penal, dificilmente tal ocorreria; finalmente,

seria muito otimismo esperar que os próprios organismos policiais aplicassem penalidades disciplinares em seus

membros, incentivando-os a somente agir dentro da lei; por tais motivos, entendeu-se que apenas a exclusão

das provas conseguidas ao arrepio da lei seria um eficaz impedimento a tais abusos.

O interesse pelo tema nos países de civil law, embora mais recente, tem sido intenso, resultando não

somente em trabalhos doutrinários e decisões dos tribunais, mas, posteriormente, em previsões legais e

constitucionais a respeito da inadmissibilidade das provas resultantes de procedimentos ilegais.

Assim é que, mesmo em ordenamentos como o alemão, no qual a componente inquisitória do sistema

misto e a crença na verdade material, como objetivo supremo do processo penal, representam sérios obstáculos

à aceitação das regras de exclusão, a partir da década de 60 o Bundesgerichtshof (BGH) vem fixando a

orientação de que, no Estado de Direito, existem limites intransponíveis à busca da verdade processual: não é

nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo preço; o objetivo de

esclarecimento e punição dos crimes é, seguramente, do mais elevado significado; mas ele não pode

representar sempre, nem sob todas as circunstâncias, o interesse prevalente do Estado.

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Essa observação foi consagrada no conhecido dictum da Corte Federal de Justiça Alemã, de 1960: “It is

not a principle of criminal procedure to arrive at the truth at any cost”, que tem sido seguido de forma

praticamente unânime nos países de “civil law” a partir de então. A tarefa de esclarecer e punir os crimes é, sem

dúvida, muito importante, mas não ao ponto de derrogar a proteção dos direitos constitucionais dos individuos .

Também na Itália, onde a doutrina e a jurisprudência vinham relutando em aceitar, definitivamente, a

inadmissibilidade das provas obtidas com violação de normas de direito material,a Corte Constitucional, em

decisão de 1973, a respeito de interceptações telefônicas realizadas sem prévia e motivada autorização judicial,

assentou a impossibilidade de utilização de provas obtidas com infrigência a garantias constitucionais.

Em alguns países, a proibição foi consagrada na própria Constituição, como se verifica na Carta

portuguesa de 1976, cujo texto, nesse particular, foi mantido na revisão de 1982: Artigo 32.o... 6. São nulas

todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva

intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

O Código de Processo Penal italiano, de 1988, também inseriu disposições expressas, no art. 191, nos

seguintes termos: 1. Le prove acquisite in violazione dei divieti stabiliti dalla legge non possono essere utilizzate.

2. L’inutilizzabilità è rilevabile anche di ufficio in ogni stato e grado del procedimento; com base nisso, a doutrina,

embora sem unanimidade, vem entendendo que a ampla previsão da norma se aplica não somente às

proibições previstas na lei processual, mas também inclui os tipos incriminadores da lei penal, que,

evidentemente, também constituem una legge che vieta.

2. A inadmissibilidade no Brasil, antes da Constituição de 88

No Brasil, durante muito tempo vigorou nessa matéria o que Ricardo Cintra Torres de Carvalho

denominou “princípio da veracidade da prova”, segundo o qual a prova era analisada pela carga de

convencimento que continha, abstraída a forma de sua obtenção; eventual irregularidade era vista como matéria

de ilícito administrativo ou penal, a ser apurada em órbita própria, sem repercussão em sua admissibilidade.

A partir do final da década de 1960, registrou-se, no entanto, acentuada tendência do Tribunal de

Justiça de São Paulo de considerar que irregularidades cometidas pela Polícia, principalmente em casos de

buscas e apreensões realizadas em casos de entorpecentes, contaminavam todo o processo.

Também significativa, foi a posição do Supremo Tribunal Federal, antes mesmo de ser incluída a

proibição no texto constitucional, em três julgamentos – dois em matéria de família e um criminal -, ao proclamar

a inadmissibilidade processual das provas obtidas por meios ilícitos1.

3. O art. 5º, LVI, da Constituição de 1988

A Constituição de 1988 veio a consolidar essa posição do STF, afastando do processo brasileiro – e

qualquer natureza, civil penal ou administrativo – a admissibilidade das provas ilícitas.

“São inadmissíveis no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

1RTJ 84/606, 110/798 e 122/47.

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Em primeiro lugar, deve-se observar que a Constituição trata inquestionavelmente das provas obtidas

com violação do direito material, especialmente as que decorrem de violação dos direitos e garantias individuais.

Em segundo lugar, ao prescrever expressamente a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a

Constituição brasileira considera a prova materialmente ilícita também processualmente ilegítima, estabelecendo

a sanção de inadmissibilidade.

O que equivale dizer que essas provas simplesmente não podem ter ingresso no processo e portanto

não existem como provas para o julgamento. Mais do que isso, a recente reforma do Código de Processo Penal,

de 2008, estabeleceu que essas provas (rectius, a sua documentação) devem ser desentranhadas dos autos e

inutilizadas (art. 157, § 3º, CPP). Esta última providência parece ser excessiva, pois em alguns casos a prova

obtida mediante um ato ilegal pode ser necessária para a punição desse mesmo ato ilícito.

Observe-se que no direito português, embora a Constituição e o Código de Processo Penal declarem

“nulas” as provas obtidas com violação às proibições expressas pela lei, ligando as proibições de prova ao

regime das nulidades, observa-se uma tendência mais atual em distinguir o sistema das proibições de prova em

face do sistema das nulidades. O primeiro é organizado em torno de regras de proibição de produção de provas,

com a consequência da proibição de valoração de provas, enquanto o segundo enfatiza a distinção entre

nulidades e irregularidades, segundo a gravidade do vício do ato, que conduz às distinções entre nulidades

absolutas ou relativas, sanáveis e insanáveis etc. No entanto, o que se tem por assentado é que a consequência

ligada à proibição de prova é a proibição de sua valoração pelo juiz.

Depois da Constituição de 1988, com a proibição expressa do ingresso da prova ilícita no processo (art.

5º, LVI), em inúmeros julgados, os tribunais estaduais, federais e superiores vinham aplicando o preceito

constitucional, sem que fosse necessária qualquer regulamentação legislativa.

4. As disposições da Lei 11.690/2008: era necessária a regulamentação do art. 5º, LVI, da Constituição Federal?

Com a nova redação dada ao art. 157 CPP e pela inclusão de três parágrafos, a Lei 11.690/2008

pretendeu disciplinar, no plano infra-constitucional, a matéria das provas ilícitas, antes restrita à previsão do art.

5, LVI, da CF: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

A opção pelo tratamento legislativo de tema tão controverso e sujeito a variadas interpretações não

parece ter sido a melhor, especialmente diante de certos equívocos e imprecisões do legislador, que em seguida

serão indicadas.

Daí porque as disposições trazidas pela Lei 11.690/2008, naquilo que confirmam o preceito

constitucional – e também os entendimentos jurisprudenciais assentados -, eram perfeitamente dispensáveis.

Mas o pior, como se verá, é que em determinados pontos os textos poderão gerar confusões e, em outros,

consagram mesmo flagrante inconstitucionalidade, como se verá adiante.

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5. Segue: o conceito legal de prova ilícita (art. 157 caput CPP, na redação da Lei 11.690/2008

O caput do novo art. 157 do CPP fornece uma definição do que se deve entender por provas ilícitas: “as

obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.

A vedação processual da admissibilidade da prova ilícita, como se viu (supra, n. 1), foi a solução

encontrada pelas cortes constitucionais para a proteção de certos direitos e garantias fundamentais, que não

devem ceder nem mesmo diante do interesse estatal na obtenção de provas. Trata-se, em resumo, de uma

forma especial de tutela destinada a assegurar a efetividade daqueles direitos e garantias.

Daí a distinção, proposta por Nuvulone e acolhida na doutrina, entre provas ilícitas e provas ilegítimas:

as primeiras constituem o resultado de uma violação do direito material, enquanto nas segundas o vício decorre

da infringência de normas processuais. Outra diferença entre elas decorre do momento em que se configura a

ilegalidade: nas ilícitas, ela ocorre quando da sua obtenção; nas ilegítimas na fase de produção. Também é

diversa a conseqüência dos respectivos vícios: as ilícitas são inadmissíveis no processo (não podem ingressar e,

se isso ocorrer, devem ser desentranhadas); as ilegítimas são nulas e, por isso, a sua produção pode ser

renovada, atendendo-se então às regras processuais pertinentes.

Não parece ter sido a melhor, assim, a opção do legislador nacional por uma definição legal de prova

ilícita, que longe de esclarecer o sentido da previsão constitucional, pode levar a equívocos e confusões,

fazendo crer, por exemplo, que a violação de regras processuais implica ilicitude da prova e, em conseqüência, o

seu desentranhamento do processo.

O descumprimento da lei processual leva à nulidade do ato de formação da prova e impõe a

necessidade de sua renovação, nos termos do que determina o art. 573 caput do CPP.

6. Segue: a prova ilícita por derivação (art. 157, § 1º)

A disposição contida no § 1º, do art. 157, cuida da chamada prova ilícita derivada, ou seja, do problema

da extensão dos efeitos da ilicitude da prova.

Trata-se aqui de verificar se, reconhecida a violação de uma regra do ordenamento para a obtenção da

prova, deve ser excluída somente a prova assim conseguida, ou, por derivação, devem também ser afastadas

eventuais outras provas cuja descoberta somente foi possível a partir daquela inicialmente viciada.

Essa questão foi colocada à Suprema Corte norte-americana no julgamento do caso Silverthone

Lumber Co. v. U.S., em 1920, que a partir de então formulou a chamada fruit of the poisonous tree doctrine ou

taint doctrine, segundo a qual a regra de exclusão é aplicável a toda prova maculada por uma investigação

inconstitucional.

O tema também tem sido objeto de consideração pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, que, não

sem dissensões, tem-se manifestado contra o chamado efeito à distância (fernwirkung) em relação à prova

proibida: entende o BGH, por exemplo, que se o acusado é confrontado com o resultado de uma gravação ilícita,

as declarações daí resultantes não podem ser valoradas como prova; mas, se nas mesmas condições,

menciona fatos novos, estes já não constituem prova ilícita. Em sentido contrário, segundo informa Gössel, o

tribunal tem reconhecido um efeito à distância em casos de interceptação telefônica quando, através de uma

operação autorizada para apuração de um dos crimes catalogados, descobre-se uma prova de um outro crime,

não relacionado entre os que admitem a interceptação.

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

Apesar das evidentes dificuldades que se apresentam para uma solução uniforme de tais situações,

dadas as particularidades de cada caso concreto, é impossível negar a priori a contaminação da prova

secundária pela ilicitude inicial, não somente por um critério de causalidade, mas principalmente em razão da

finalidade com que são estabelecidas as proibições em análise. De nada valeriam tais restrições à

admissibilidade da prova se, por via derivada, informações colhidas a partir de uma violação ao ordenamento

pudessem servir ao convencimento do juiz; nessa matéria importa ressaltar o elemento profilático, evitando-se

condutas atentatórias aos direitos fundamentais e à própria administração correta e leal da justiça penal.

Nesse sentido, no Brasil, a orientação consagrada pelo STF no julgamento do HC n. 69.912-0-RS, em

que prevaleceu voto do Ministro Sepúlveda Pertence: “vedar que se possa trazer ao processo a própria

degravação das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas

pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que sem tais informações, não colheria,

evidentemente, é estimular e, não, reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina de conversas

privadas”.

Na jurisprudência norte-americana, a adoção do critério dos frutos da árvore envenenada não tem

levado, entretanto, a uma proibição absoluta da utilização de elementos derivados da prova ilícita, sendo

admitidas algumas exceções, dentre elas a da independent source, e a da inevitable discovery, casos em que a

prova derivada pode vir a ser aproveitada.

A exceção pela “fonte independente” (independent sourcelimitation) foi reconhecida pela Suprema

Corte, no caso Bynum v. U.S., de 1960, assim resumido: o acusado havia sido preso ilegalmente e, nessa

ocasião, foram tiradas suas impressões digitais que comprovavam seu relacionamento com um roubo; a prova

foi excluída porque derivada da prisão ilegal. Num segundo julgamento, a acusação trouxe, para comparação,

outras impressões digitais, mais antigas, que estavam nos arquivos do F.B.I.; assim, reconheceu-se a validade

da prova, pois agora não havia conexão com a prisão arbitrária.

Com outra linha de argumentação, no caso Nix v. Williams (Williams II), de 1984, a Suprema Corte

concluiu que a doutrina dos frutos envenenados também não se aplicava aos casos em que a prova seria

inevitavelmente descoberta por uma investigação legal (inevitable discovery). Na situação então examinada, o

acusado havia matado uma criança e ocultado o corpo. Iniciadas buscas pela Polícia, com a ajuda de cerca de

200 voluntários, o acusado fez uma confissão, ilegalmente obtida, indicando a localização do corpo. A Corte

considerou ilegal essa confissão, mas válida a descoberta do corpo, pois era inevitável e não tinha relação com

a ilegalidade.

Os fundamentos dessas duas exceções à contaminação da prova são evidentemente diversos: na

hipótese de haver uma fonte independente, a prova derivada tem concretamente duas origens: uma ilícita e

outra lícita, de tal modo que, ainda que suprimida a fonte ilegal, o dado probatório trazido ao processo subsiste

e, por isso, pode ser validamente utilizado. Já na situação de descoberta inevitável, a prova tem efetivamente

uma origem ilícita, mas as circunstâncias do caso permitem considerar, porhipótese, que seria inevitavelmente

obtida, mesmo se suprimida a fonte ilícita.

Assim, no primeiro caso (fonte independente) nem mesmo seria correto falar em exceção à regra de

contaminação da prova derivada, pois na verdade o que se exclui é a própria relação de causalidade. Esse é,

por sinal, o entendimento do Tribunal Supremo espanhol, que tem aplicado o conceito de fonte independente

afirmando que não se dá a contaminação da prova derivada quando for possível estabelecer desconexão causal

entre a prova que fundamenta a condenação e as obtidas ilicitamente. Daí porque a questão não está colocada

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como exceção à regra de exclusão, mas como permissão de valoração por não ocorre derivação de prova

inconstitucional.

O legislador nacional, com a nova redação dada ao art. 157 e parágrafos do CPP, a Lei 11.690/2008,

acolheu expressamente a orientação que reconhece a inadmissibilidade processual das provas derivadas da

ilicitude inicial, ressalvando, no entanto, duas situações: a) “quando não evidenciado o nexo de causalidade

entre umas e outras”; e b) “quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das

primeiras”.

Em relação à primeira situação, era perfeitamente desnecessária a previsão normativa, na medida em

que o conceito de prova derivada supõe, por si só, a existência de uma relação de causalidade entre a ilicitude

da primeira prova e a obtenção da segunda. Se o vínculo não estiver evidenciado, é intuitivo que não se trata de

prova derivada.

Mas, apesar de redundante, essa parte do texto legal não parece trazer inconvenientes na sua

aplicação.

7. Segue: o equivocado conceito de fonte independente

Mais grave foi o equívoco da lei ao consagrar a exceção da fonte independente.

Aqui o legislador afastou-se completamente da noção original fixada na jurisprudência americana, que,

como visto, supõe que o dado probatório possua efetivamente duas origens, uma ilícita e outra lícita, subsistindo

como elemento de convicção válido, mesmo com a supressão da fonte ilegal.

Com efeito, já na parte final do § 1º, ao empregar o verbo no condicional - “puderem ser obtidas” -, a lei

dá a entender que basta a simples possibilidade de que a prova viesse a ser obtida por meio lícito para afastar a

sua contaminação pela ilegalidade inicial.

Não bastasse isso, no § 2º, aventurou-se o legislador a estabelecer um conceito normativo de fonte

independente que subverte não só aquela idéia original, mas também coloca em risco a própria finalidade da

vedação constitucional, que não é outra senão a de coibir atentados aos direitos individuais estabelecidos na Lei

Maior.

Ao dizer que “considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de

praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”, a

disposição analisada abre as portas para que, sob esse fundamento, toda e qualquer prova derivada de outra

ilícita venha a ser convalidada.

Pense-se, como exemplo extremo, numa confissão obtida mediante tortura e na qual o suspeito indique

o local em que se encontra uma prova documental. Realizada uma busca e apreensão, com mandado judicial e

com observância de todas as formalidades, o documento é apreendido.

Segundo o entendimento consagrado a respeito da inadmissibilidade da prova derivada, essa segunda

prova será também ilícita, uma vez que tem como causa uma grave violação de direito fundamental. Mais do que

isso, admitir tal prova seria, na verdade, incentivar atividades ilegais, como sublinhado no acórdão do STF antes

mencionado.

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Mas, pelo que se depreende do texto do § 2º introduzido pela Lei 11.690/2008, nem mesmo seria

necessário que a prova derivada tivesse sido efetivamente conseguida de forma regular, bastando que houvesse

uma mera possibilidade disso. Trata-se, à evidência, de disposição que subverte o espírito da garantia

constitucional do art. 5º, LVI.

Parece ter havido aqui uma confusão do legislador entre as exceções da fonte independente e da

descoberta inevitável. Assim mesmo, como antes anotado, na situação de inevitable discovery, são

circunstâncias especiais do caso concreto (como no exemplo do encontro do cadáver) é que permitem

considerar que a prova seria inevitavelmente obtida, mesmo se suprimida a fonte ilícita. Ao contrário disso, o

texto legislativo examinado permite que se suponha sempre a possibilidade de obtenção da prova derivada por

meios legais, o que esvazia, por completo, o sentido da garantia.

Em resumo, como está redigido, o texto do art. 157 § 3º estabelece exceção à regra de contaminação

da prova derivada que limita, indevidamente, a garantia constitucional.

No entanto, em recente decisão - HC 91.867-PA, julgado em 24.4.2012, relator Ministro GILMAR

MENDES –, a Segunda Turma do STF concluiu pela licitude de prova derivada, argumentando justamente com o

suposto acolhimento, pelo referido art. 157 § 3º CPP, da teoria da descoberta inevitável construída pela

Suprema Corte norte-americana.

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PROCESSO PENAL E CRIMINALIDADE ORGANIZADA∗

Gustavo Badaró**

1. Introdução

O objeto do presente estudo sobre o crime organizado e o processo penal é a análise das

características da recente legislação brasileira sobre o tema e, quando pertinente, uma singela comparação com

a situação na legislação portuguesa, devido aos propósitos do trabalho.

Para tanto, será necessário, ainda que de modo sucinto, expor os principais institutos disciplinados no

ordenamento jurídico nacional quanto ao processo penal nos casos de crime organizados.

Esse panorama da evolução e do estado atual da legislação brasileira permitirá que se obtenha uma

conclusão específica sobre as mudanças legislativas pelas quais passamos nas duas últimas décadas, bem

como uma conclusão geral sobre o combate à criminalidade organizada.

2. O conceito de crime organizado

A definição legal do crime organizado foi objeto de muita polêmica na doutrina e na legislação brasileira,

até a recente mudança legislativa operada pela Lei n. 12.850, de 8 de agosto de 2013.

Antes de abordar a evolução da legislação interna propriamente dita, é importante destacar que o Brasil

ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que foi promulgada, no

direito brasileiro, por meio do Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004.1

A primeira lei a disciplinar a organização criminosa no ordenamento jurídico brasileiro foi a Lei nº 9.034,

de 3 de maio de 1995, que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de

ações praticadas por organizações criminosas.2 Seu artigo 1º estabelecia que “Esta lei define e regula meios de

prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando”. Ou

seja, limitou-se a equiparar o conceito de crime organizado à antiga figura da quadrilha ou bando prevista no art.

288 do Código Penal, cuja delifinção legal era de 1940.

∗O presente estudo foi elaborado para a apresentação de palestra no Colóquio Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo e Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, promovido em Lisboa, entre os dias 12 a 16 de maio de 2014. Agradeço aos Professores José Fernando Simão, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e Fernando Araújo, atual presidente do Instituto de Direito Brasileiro, da Universidade de Lisboa, pelo convite que me foi formulado

**Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Professor Associado do Departamento de Direito Processual, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado Criminalista.

1O Decreto nº 5.015/2014 pode ser consultado em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5015.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

2A revogada Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, pode se consultada em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9034.htm.d>. Acesso em: 10 jan. 2014.

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Posteriormente, a Lei 9.034/1995 foi alterada pela Lei nº 10.217, de 11 de abril de 2001,3 que deu nova

redação ao art. 1º daquela lei: “Art. 1º Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios

que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou

associações criminosas de qualquer tipo”.

Após muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o Supremo Tribunal Federal acabou firmando

posicionamento no sentido de que a Lei nº 9.034/1995, que foi alterada pela Lei nº 10.217, de 11 de abril de

2001, não continha uma definição de crime organizado ou organização criminosa.

Tal cenário alterou-se, parcialmente, com a edição da Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012,4 que

dispôs sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por

organizações criminosas. Embora não trazendo uma norma incriminadora, nem definindo o tipo penal de

organização criminosa, referida lei definiu, para os fins da decisão judicial objetivando instaurar um colegiado de

primeiro grau, que “para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou

mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com

objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja

pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional” (art. 2.º).

Todavia, a grande e mais significativa mudança ocorreu recentemente, com a Lei nº 12.850, de 2 de

agosto de 2013,5 que estabeleceu um conceito legal de organização criminosa, bem como tipificou o crime de

organanização criminosa. Ressalte-se que na referida lei, embora haja, do ponto de vista material, a definição

(art. 1º) e a tipificação (art. 2º) de organização criminosa, há um claro predomínio de aspectos processuais sobre

os substanciais.

A nova lei está dividida em três capítulos. O Capítulo I conceitua e tipifica organização criminosa (arts.

1º e 2º). O Capítulo II disciplina as atividades destinadas à obtenção da prova durante a investigação e instrução

criminal, estando assim subdividido: Seção I, da colaboração premiada (arts. 4º a 8ª); Seção II, da ação

controlada (arts. 8º e 9º); Seção III, da infiltração de agentes (arts. 10 a 14); Seção IV, do acesso a registros,

dados cadastrais, documentos e informações (arts. 15 a 17); e, Seção V, que trata dos crimes ocorridos na

investigação e na obtenção da prova (arts. 18 a 21). Por fim, o Capítulo III, dispõe sobre as disposições finais e o

procedimento (arts. 22 e 23).6

3A Lei nº 10.217, de 11 de abril de 2001, pode se consultada em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei no 10.217, de 11 de

abril de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10217.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

4A Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012, pode ser consultada em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12694.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

5A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, pode ser consultada em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12850.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

6De se esclarecer, ainda, que tramita no Congresso Nacional brasileiro um novo Projeto de Código Penal. O Projeto de Lei nº 236/2012 foi objeto de centenas de emendas e, no dia 10 de dezembro de 2013, o Senador Pedro Taques apresentou relatório final, pela aprovação de um substitutivo, cujo artigo 265, caput, tipifica o crime de organização criminosa nos seguintes termos: “Organização Criminosa - Art. 265. Organizarem-se três ou mais pessoas, de forma estável e permanente, para o fim específico de cometer crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos, mediante estrutura organizada e divisão de tarefas, com hierarquia definida e visando a auferir vantagem ilícita de qualquer natureza: Pena – prisão, de três a dez anos, sem prejuízo das penas relativas aos crimes cometidos pela organização criminosa” (SENADO FEDERAL. Parecer nº 1.576, de 2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=143751&tp=1>. Acesso em: 10 jan. 2014).

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A definição – mas não a tipificação – de “organização criminosa”7 está prevista no art. 1º, § 1º, da Lei nº

12.850/2013: “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente

ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou

indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas

sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

Diante disso, poderia parecer que, atualmente, há dois conceitos de organização criminosa no

ordenamento jurídico brasileiro: o primeiro, da Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012, com vista à constituição de

um juízo colegiado em primeiro grau de jurisdição, para proferir de decisões e sentença em processo por crimes

praticados por organizações criminosas; o segundo, da nova Lei nº 12.850/2013, para a aplicação dos meios de

investigação e obtenção de provas nela previstos. Assim, não teria havido uma revogação da primeira lei, pela

segunda, com base na máxima lex posterior derrogat legi priori, até mesmo porque, a Lei nº 12.694 define

competência “para os efeitos dessa Lei”.

Não é essa, contudo, a melhor interpretação. A ressalva acima mencionada, que limita a primeira

definição, para os efeitos da lei que dispõe sobre a instituição de juízo colegiado, se justificava, historicamente,

pois quando entrou em vigor a Lei nº 12.694/2012, não havia no ordenamento jurídico brasileiro um tipo penal de

organização criminosa. Por isso, referida lei pretendeu deixar claro que não estava tipificando tal delito – até

mesmo porque não comina sanção penal –, mas apenas conceituando organização criminosa, para fins de

instalação do juízo colegiado. Daí a expressão “para os efeitos dessa Lei”. Todavia, com a edição da Lei

nº 12.850/2013, passou a existir um conceito de organização criminosa (art. 1º) e um tipo penal do delito de

organização criminosa (art. 2º). Logo, na parte em que conceitua organização criminosa, o art. 1º, § 1º, da Lei nº

12.850/2013 revogou tacitamente o art. 2º da Lei nº 12.694/2012. Assim, o conceito de organização criminosa,

inclusive para os fins da Lei nº 12.694/2012, passou a ser o da nova Lei nº 12.850/2013.8

Por outro lado, a tipificação do crime de organização criminosa encontra-se no art. 2º da referida lei:

“Art. 2o. Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização

criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às

demais infrações penais praticadas”.

3. Regras especiais quanto ao crime organizado

Houve um avanço significativo, na legislação brasileira, do ponto de vista da legalidade, no que se

refere aos dos meios de obtenção de prova aplicáveis às organizações criminosas, em comparação com a

legislação anterior.9

7Embora a lei não tenha estabelecido uma denominação ou rubrica com o nome do crime, a figura vem sendo denominada

de “organização criminosa”. Cf.: NUCCI, Guilherme de Souza. Organização criminosa: comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 20.

8Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 22. 9Toda a disciplina dos meios de obtenção de prova estava prevista em um único art. da revogada Lei nº 9.034/1995 que

previa: Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: I - (Vetado; II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações; III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais; IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial; V – infiltração por agentes de polícia ou de

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A revogada Lei nº 9.034/1995 se limitava a “nominar” os meios de obtenção de prova, sem estabelecer

qualquer disciplina legal. Nao havia previsão de hipóteses de cabimento, prazo de duração da medida,

necessidade ou não de autorização judicial, eficácia probatória das medidas, etc.

Já a Lei nº 12.850/2013, ainda que possa ser criticada em alguns pontos, no que toca aos meios de

obtenção de prova aplicáves ao crime organizado, preocupou-se em estabelecer um efetivo regramento a tais

meios de prova, ao invés de simplesmente nominá-los.

3.1. Colaboração premiada

A colaboração premiada, mais conhecida como “delação premiada”, vem prevista na Seção I do

Capítulo II da Lei nº 12.850/2013, em seus artigos 4º a 9º.

A colaboração processual terá três fases: (i) fase de negociação e acordo; (ii) fase de homologação

judicial; (iii) fase de sentença, em que se decidirá sobre o cumprimento ou não do acordo, aplicando-se ou não o

benefício proposto.10

São requisitos para que a colaboração premiada produza seus efeitos, a obtenção de “um ou mais dos

seguintes resultados”: “I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das

infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da

organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização

criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela

organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”.

A lei não estabelece que tais requisitos sejam cumulativos, como deixa clara a expressão “um ou mais

dos seguintes resultados”. Todavia, quanto mais forem os resultados atingidos, maior terá sido a relevância da

colaboração, ampliando-se as chances de se obter um benefício melhor, seja por uma maior redução da pena,

seja, até mesmo, pelo perdão judicial. Além disso, em qualquer caso, “a concessão do benefício levará em conta

a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato

criminoso e a eficácia da colaboração”.11

Havendo acordo sobre a colaboração premiada, deverá ser lavrado um termo, por escrito, conforme

disposto no art. 6º, merecendo destaque a necessidade de conter “o relato da colaboração e seus possíveis

resultados” (inciso I), “as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia” (inciso II) e “a

declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor”.

Visando a preservar sua imparcialidade, o juiz não participa das negociações do acordo de

colaboração, que ocorrerão entre Delegado de Polícia, o Investigado assistido por seu defensor e o Ministério

Público.12

inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial. Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.

10GRECO FILHO, Vicente. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 40-41.

11Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 2º. 12Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 6º.

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O acordo de colaboração premiada deverá, então, ser homologado judicialmente (art. 7º, caput).13 As

informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao juiz.14

Embora sem muita clareza, a lei estabelece a necessidade de apreciação judicial do acordo de

colaboração, pois há previsão de que, ao receber o acordo o juiz, “decidirá no prazo de 48 (quarenta e oito)

horas”.15 Mais do que isso, o Juiz poderá deixar de homologar o acordo, se a proposta “não atender aos

requisitos legais”.16 Para tanto, além de analisar o conteúdo das declarações prestadas pelo colaborador, o juiz

deverá verificar a “regularidade, legalidade e voluntariedade” do acordo, podendo, para tal apreciação, ouvir

sigilosamente o colaborador, na presença de seu defensor.17 Ou seja, o juiz não se limitará a analisar aspectos

formais ou vícios de vontade, podendo também apreciar aspectos relacionados ao cabimento do acordo e os

efeitos propostos.

Quanto aos efeitos ou consequências da colaboração processual, o caput do art. 4º prevê que, ao final

do processo, por ocasião da sentença, “o juiz poderá ... conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois

terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado

efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal”. Além disso, mesmo que o perdão

judicial não tenha sido previsto na proposta inicial, “considerando a relevância da colaboração prestada”, o

Ministério Público poderá requerer ao juiz que tal benefício seja aplicado ao final. 18

A colaboração também poderá ter efeitos processuais. Se for celebrada na fase de investigação

preliminar, poderá haver suspensão do prazo para oferecimento da denúncia, por até seis meses, prorrogáveis

por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração.19 Por outro lado, o Ministério Público

poderá deixar de oferecer denúncia, se o colaborador for o primeiro a prestar efetiva colaboração, e não for o

líder da organização criminosa.20 Ou seja, em tal caso, não haverá oferecimento de denúncia, sendo a

colaboração processual apta a afastar a regra da obrigatoriedade da ação penal.

A colaboração também poderá ser celebrada no curso do processo, hipótese em que este ficará

suspenso, também pelo prazo de seis meses, prorrogável por igual período. 21

A colaboração processual ainda poderá ser posterior à sentença, hipótese em que a pena poderá ser

reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos. 22

Depois de homologado o acordo, o colaborador, quando for depor, “renunciará, na presença de seu

defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade”.23 E, mesmo que já

tenha sido proferida sentença, sendo concedido o perdão judicial, ou mesmo no caso em que sequer seja

13Lei nº 12.850/2013, art. 7º, caput. 14Mesmo distribuído em juízo, o acesso aos autos do acordo de colaboração será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao

delegado de polícia. Por outro lado, é assegurado “ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento”. O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que for recebida a denúncia (Lei nº 12.850/2013, art. 7º, § 3º).

15Lei nº 12.850/2013, art. 7º, § 1º. 16Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 8º. 17Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 7º. 18Lei nº 12.850/2013, art. 7º, § 1º. 19Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 3º. 20Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 4º. 21Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 3º. 22Lei nº 12.850/2013, art. 7º, § 1º. 23Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 14.

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denunciado em razão da colaboração, o colaborador poderá ser ouvido em juízo, em processo envolvendo os

delatados, seja por requerimento das partes, seja por iniciativa ex offício da autoridade policial. 24

Por outro lado, as partes poderão se retratar da proposta, No caso de retratação da colaboração, “as

provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu

desfavor”. Como a lei prevê que não poderão ser utilizadas “exclusivamente” contra ao colaborador, o conteúdo

da delação poderá ser utilizado em relação aos delatados, contra os quais poderão ser valoradas.25 A lei não

estabelece, porém, se essa retratação é um direito potestativo do delator ou do Ministério Público, isto é, que

poderá se dar por mero ato de vontade da parte, ou se depende da ocorrência de determinados fatos, como por

exemplo, o inadimplemento de algum dos compromissos assumidos, ou a inobservância dos direitos

assegurados ao delator, no art. 5.º Não havendo qualquer restrição ou condicionamento na lei, entende-se que a

delação pode ser retratada a qualquer momento, por mero ato dispositivo do delator.26

Há, por fim, importante regra legal de valoração da prova, no que diz respeito ao valor da colaboração

premiada, em relação os coautores ou partícipes delatados. O § 16 do art. 4º prevê que “nenhuma sentença

condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Será necessário,

portanto, que o conteúdo da colaboração processual venha corroborado por outras provas. Este, aliás, já era o

posicionamento que vinha sendo seguido pela jurisprudência27 em relação às delações, anteriormente à Lei nº

12.850/2013.

3.2. Ação controlada

A “ação controlada” – também denominada em muitos ordenamentos de “entrega vigiada” – está

prevista na Seção II do Capítulo II da Lei nº 12.850/2013, nos artigos 8º e 9º.

A ação controlada consiste, segundo definição do art. 8º, “em retardar a intervenção policial ou

administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob

observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de

provas e obtenção de informações”.

A medida deverá ser “previamente comunicada” ao juiz28 que, “se for o caso, estabelecerá os seus

limites e comunicará ao Ministério Público”.

24Lei nº 12.850/2013, art. 4º, § 12. 25Lei nº 12.850/2013, art. 7º, § 10. 26Como a delação contém uma confissão do delator, a admissão da retratação da delação, pelo menos em relação à

autoincriminação do delator, implica que se está diante de regra especial, no caso de crime organizado, em relação ao art. 200 do Código de Processo Penal que prevê: “A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto”. Isso porque, a ressalva de que o juiz poderia formar o seu convencimento com base na confissão retratava, implicava que ela ainda assim pode ser valorada contraria ao acusado, o que está vedado na Lei n.º 12.850/2013.

27O STF já decidiu que: “É certo que a delação, de forma isolada, não respalda decreto condenatório. Sucede, todavia, que, no contexto, está consentânea com as demais provas coligidas. Mostra-se, portanto, fundamentado o provimento judicial quando há referência a outras provas que respaldam a condenação” (STF, RExt. nº 213.937, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 26.03.1999, v.u, DJ 25.06.1999, p. 30). Neste mesmo sentido: STF, HC nº 71.803, 2ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.11.1994, v.u, DJ 17.02.1995; STF, RExt. nº 213.937, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 26.03.1999, v.u, DJ 25.06.1999, p. 30; STF, HC nº 75.226, 2ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12.08.1997, v.u., DJ 19.09.1997, p. 45.528.

28Essa comunicação será sigilosa, não contendo elementos ou informações que possam indicar a operação a ser efetuada (art. 8º, § 2º), ficando o acesso aos autos, até o encerramento da diligência, “restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações” (art. 8º, § 3º).

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Terminada a diligência, será elaborado um auto circunstanciado sobre a ação controlada.29

3.3. Infiltração de agentes policiais

A “infiltração de agentes policiais”, também denominada “agente encoberto” está prevista na Seção III

do Capítulo II da Lei nº 12.850/2013, em seus artigos 10 a 14.

É possível a infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação de organizações criminosas,

seja mediante representação da autoridade policial, seja mediante requerimento do Ministério Público, desde

que precedida de “motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites”.30

A infiltração policial será autorizada pelo prazo de 6 meses, podendo ser a autorização prorrogada,

“desde que comprovada sua necessidade”.31 De qualquer forma, findo o prazo de autorização, o agente infiltrado

deverá apresentar ao juiz relatório circunstanciado das atividade desenvolvidas.32

O requerimento de infiltração de agentes deverá contar “a demonstração da necessidade da medida, o

alcance das tarefas dos agentes e, quando possível, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e o local

da infiltração” (art. 11).

O pedido deverá ser decido pelo juiz no prazo de 24 horas.33

Concluída a infiltração, os autos contendo as informações da operação de infiltração acompanharão a

denúncia do Ministério Público, quando serão disponibilizados à defesa, assegurando-se a preservação da

identidade do agente.34 Até porque, mesmo cessada a infiltração do agente policial, é direito do agente “ter seu

nome, sua qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais preservadas durante a

investigação e o processo criminal, salvo se houver decisão judicial em contrário”.35

Do ponto de vista do direito material, a lei prevê uma causa excludente de culpabilidade em relação os

crimes praticados pelo agente, “quando inexigível conduta diversa”,36 podendo, todavia, o agente responder

pelos excessos praticados.37

A grande questão que a lei não trata, do ponto de vista da reconstrução histórica dos fatos é se o

agente infiltrado seria apenas um meio de obtenção de prova, ou se, ao contrario, seria uma fonte de prova,

cujos elementos de prova de que tem conhecimento poderiam ser introduzidos no processo, por meio de

depoimento pessoal.

29Lei nº 12.850/2013, art. 8º, § 4º. 30Lei nº 12.850/2013, art. 10, caput. 31Lei nº 12.850/2013, art. 10, § 3º. 32Lei nº 12.850/2013, art. 10, § 4º. Além disso, o Delegado de Polícia e o Ministério Público poderão requisitar, a qualquer

momento durante a infiltração, que seja apresentado um relatório da atividade. (art. 10, § 5º). 33Lei nº 12.850/2013, art. 12, § 1º. 34Lei nº 12.850/2013, art. 12, § 2º. 35Lei nº 12.850/2013, art. 14, inc. III. 36Lei nº 12.850/2013, art. 13, parágrafo único. 37Lei nº 12.850/2013, art. 13, caput. Trata-se de solução semelhante à do direito português, prevista na Lei nº 101/2001, de

25 de agosto – que estabelece o regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal – que no art. 6.1, sob o título “Isenção de responsabilidade”, prevê: “Não é punível a conduta do agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta, consubstancie a prática de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata, sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma”.

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Já tivemos oportunidade de defender que “A infiltração do agente policial também deve ser considerada

um específico meio de obtenção de prova, de aplicação restrita aos casos de criminalidade organizada, visando

a descoberta de fontes de provas que levarão à posterior produção do meio correspondente. Assim, por

exemplo, o agente infiltrado descobre quem são os funcionários públicos que cedem à corrupção do grupo, bem

como onde e como se dão os pagamentos, visando posterior quebra de sigilo bancário ou meio de prova

pertinente. Identifica onde é o depósito da droga e a rota utilizada para seu transporte, o que poderá justificar

futuras medidas de busca e apreensão ou prisões em flagrante, e assim sucessivamente. Não poderá ele,

porém, servir como testemunha em juízo, sob pena de se ter um depoimento absolutamente incontrolável, pois

qualquer fato por ele narrado relativo ao grupo e seus integrantes teria foros de verdade absoluta. Como produzir

a contraprova diante de uma afirmação do agente infiltrado? Se incluísse em seu depoimento fatos inexistentes

ou agentes que deles não participaram, ou se, por outro lado, omitisse determinado fato ocorrido ou se calasse

sobre um integrante que desejasse proteger, novamente não haveria como descobrir a falta com a verdade”.38

Essa posição, parece ter sido a adotada na disciplina do agente infiltrado, nos artigos 10 a 14 da Lei nº 12.850/2013.39 Não se trata de um meio de prova, não podendo o agente infiltrado ser reduzido à mera

testemunha como uma simples fonte oral de prova. Tanto assim que a infiltração se inclui entre os

“procedimentos de investigação e formação de prova”, para ser utilizada “em tarefas de investigação”. Não se

trata, pois, de um meio de prova que se presta, diretamente, a convencer o julgador (o que poderia ter essa

função seria o depoimento prestado em juízo pelo agente infiltrado, sobre fatos que teve conhecimento durante o

período em que integrou a organização criminosa), mas a obtenção de elementos relevantes para a

reconstrução dos fatos (os lugares onde a droga fica armazenada, os agentes públicos que são corrompidos, as

formas de lavagem de dinheiro utilizadas pela organização criminosa, os locais de venda de produtos ilícitos

etc.).40

3.4. Acesso a registros, dados cadastrais, documentos e informações

O art. 3º da Lei nº 12.850/2013 prevê, também, entre os meios de investigação e obtenção de prova, “o

acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados

públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais”.

E, dando regramento a tal previsão, a Seção IV do Capítulo II da Lei nº 12.850/2013, disciplina o

“acesso a registros, dados cadastrais, documentos e informações”, nos artigos 15 a 17, sendo que todas essas

medidas independem de autorização judicial.

O art. 15 da Lei nº 12.850/2013 estabelece “O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso,

independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem

exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas

38BADARÓ, Gustavo. Processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 267. Em sentido contrário, no direito

português, Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4 ed. Lisboa: Universidade Católica Ed., 2011. p. 362) tem se admitido que, desde que sua atuação se dê nos âmbito da Lei 101.2001, “é admissível o depoimento do agente policial infiltrado sobre os factos criminosos a que tenha assistido, nomeadamente, sobre o que ouviu dizer ao arguido durante a prática dos factos criminosos (nele se incluindo os actos preparatórios e de execução, até à consumação do crime)”.

39Isso fica claro no caput do art. 3º da Lei no 12.850/2013, que prevê: “Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova ... VII infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11”. (destaques nossos)”.

40BADARÓ, Gustavo. op. cit., p. 268.

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telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito”.

O dispositivo não é novidade no ordenamento jurídico nacional. Recentemente, a Lei nº 12.683/2012

acresceu o art. 17-B, à Lei nº 9.613/1998,41 com regra idêntica.

O dispositivo gerou polêmica na Lei de Lavagem de Dinheiro e, certamente, causará polêmica nos

processo de organização criminosa.42

Embora a questão seja controvertida, parte-se da premissa de que os dados cadastrais se referem a

dados ou informações não acobertadas pelo âmbito de proteção do inc. X do caput do art. 5.º da Constituição.

A qualificação pessoal a que se poderá ter acesso é composta pelo nome, nacionalidade e

naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, número de carteira de identidade e número de registro

no cadastro de pessoas físicas da Receita Federal. A filiação consiste na indicação do nome do pai e da mãe.

Por fim, o endereço, vez que não houve qualquer restrição na lei, consiste na indicação precisa do local de

residência e de trabalho, caso ambos os dados estejam disponíveis.

A Justiça Eleitoral normalmente dispõe apenas de dados cadastrais dos eleitores e, quando muito, se

votaram ou não em determinadas eleições. Assim sendo, não haverá maiores problemas na solicitação direta de

informações que, de qualquer forma, devem se resumir, exclusivamente, aos dados cadastrais.

Quanto às instituições financeiras e operadoras de cartões de créditos, que detêm em seus registros

informações sensíveis e, indubitavelmente, protegidas pelo sigilo bancário, o acesso deve se restringir aos

dados cadastrais para a abertura das contas correntes ou aplicações financeiras, bem como para a solicitação

dos cartões de créditos. Não estão incluídos nos conceito de “dados cadastrais” a data de abertura da conta

corrente ou de início de utilização do cartão de crédito, a identificação das contas correntes de origem e de

destino de operações financeiras, as datas e valores de tais operações, nem mesmo o volume total de

movimentação financeira em um determinado período. Todos estes dados são protegidos pelo sigilo bancário,

enquanto forma de resguardar a intimidade e o acesso a eles depende de prévia autorização judicial.

No que diz respeito aos provedores de internet, novamente não se poderá ter acesso, sem ordem

judicial, a dados que extrapolem as simples informações cadastrais. Será possível saber quais os dados

cadastrais informados para a abertura de uma conta de email, de um blog, ou dos serviços de acesso do

provedor. Por outro lado, estarão protegidos pela intimidade, as senhas de acesso utilizadas, o conteúdo dos

emails e informações sobre com quem há trocas de mensagens eletrônicas, as datas e horas de tais mensagens

etc. Também não se poderá solicitar informações sobre sites visitados.

O art. 16 da Lei nº 12.850/2013 estabelece “As empresas de transporte possibilitarão, pelo prazo de 5

(cinco) anos, acesso direto e permanente do juiz, do Ministério Público ou do delegado de polícia aos bancos de

dados de reservas e registro de viagens”.

Inicialmente, aqui não se trata de simples acesso a dados cadastrais de usuários do sistema financeiro

e de serviços de telefonia e internet, mas de dados relativos à utilização do serviço em si, no caso, do serviço de

transporte: as reservas e registros de viagem.

41A Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, pode ser consultada em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 9.613, de 3 de

março de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. 42Uma análise mais detida do tema, com citações doutrinárias e jurisprudenciais, pode ser encontrada em BADARÓ,

Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. III, item 11.

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Em se tratando de empresas de transportes públicos, não há que se cogitar de violação ao direito a

privacidade. Quem se utiliza de transporte de metro, ônibus ou mesmo de um avião de empresa comercial, não

está praticando um ato no âmbito restrito da sua vida privada. O transporte público é de livre acesso a todos e

quem opta por utilizá-lo, não poderá esperar qualquer forma de reserva ou sigilo.

A questão, contudo, será diversa, no caso de empresas de transporte particular. Por exemplo,

empresas de táxi-aéreo ou de aluguel de veículos particulares. Nestes casos, é razoável considerar que a

utilização do transporte pode envolver aspectos de âmbito privado, como por exemplo, visitar uma pessoa ou ir a

um determinado local de forma reservada, sem que isso se torne do conhecimento de todos. Nesse caso, a

medida deverá ser precedida de ordem judicial, sob pena de caracterizar indevida restrição da intimidade,

gerando a ilicitude da prova obtida.

Por fim, o art. 17 da Lei nº 12.850/2013 dispõe: “As concessionárias de telefonia fixa ou móvel

manterão, pelo prazo de 5 (cinco) anos, à disposição das autoridades mencionadas no art. 15, registros de

identificação dos números dos terminais de origem e de destino das ligações telefônicas internacionais,

interurbanas e locais”.

Em nosso entender, o dispositivo não estabelece o direito de acesso direto da autoridade policial e do

ministério público, sem prévia autorização judicial.

Se assim o fizesse, seria inconstitucional, na medida em que o acesso aos dados relativos às ligações

telefônicas nele previsto, como números das linhas de origem e destino da ligação, embora não impliquem

interceptação de comunicações telefônicas, podem envolver aspectos da intimidade e da vida privada do usuário

do serviço de telefônica.

O que o art. 17 estabelece é um prazo, no caso, de 5 anos, no qual as concessionárias de telefonia

deverão conservar em seus registros e arquivos os dados “registros de identificação dos números dos terminais

de origem e de destino das ligações telefônicas internacionais, interurbanas e locais”.

Nesse período os dados deverão ser preservados e ficarão “à disposição” das autoridades policiais e do

ministério público. Estar “à disposição” não é o mesmo que “ter acesso, independentemente de autorização

judicial”, como prevê, por exemplo, o art. 15. Ou seja, os dados estão à disposição, isto é, disponíveis, mas para

a eles se ter acesso, será necessária prévia autorização judicial.

A finalidade da regra, portanto, é assegurar um período de manutenção de tais dados, possibilitando

que, futuramente, em caso de necessidade de tais elementos, para fins de utilização em investigação ou

instrução criminal, possam ser solicitados judicialmente.

4. Interceptações telefônicas

No ordenamento jurídico brasileiro a disciplina da interceptação das comunicações telefônicas não está

prevista no Código de Processo Penal, mas na Lei nº 9.296/1996.

E, no caso de organizações criminosas, a Lei nº 12.850/2013 faz expressa referência à aplicação do

regime geral das interceptações telefônicas. O inciso V de seu art. 3º prevê que, “em qualquer fase da

persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção

da prova ... interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica”.

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Cabe ressaltar que, as interceptações telefônicas são admissíveis em relação a todos os crimes

punidos com reclusão,43 entre os quais se inclui, obviamente, a participação em organização criminosa, do art.

2.º da Lei nº 12.850/2013.

Por outro lado, no caso de crimes praticados pela organização criminosa, os chamados “crimes da

organização”, devido a amplitude da regra legal que admite a interceptação telefônica para todo crime punido

com reclusão, certamente a grande maioria de tais delitos admitirá a interceptação telefônica, vez que para

caracterização da organização criminosa, será necessário que tal associação delinquencial tenha por objetivo de

obter, vantagem de qualquer natureza, “mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam

superiores a 4 (quatro) anos”.44

5. Afastamento do sigilo bancário e fiscal

Na Constituição brasileira não há regra expressa assegurando o sigilo bancário e fiscal. Todavia, é

relativamente tranquila a conclusão de que o sigilo bancário está abrangido na tutela da intimidade e da vida

privada prevista no art. 5.º, caput, inc. X, da Constituição.45

Cabe observar que, diferentemente da proteção da inviolabilidade das comunicações telefônicas (inciso

XII) e do domicílio (inciso XI), em que há expressa previsão de reserva de jurisdição, no caso da tutela da vida

privada e da intimidade, não há expressa previsão de que sua restrição terá que se dar apenas por ordem

judicial. Todavia, é também relativamente tranquilo, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que o

afastamento do sigilo bancário somente poderá se dar mediante ordem judicial fundamentada, de acordo com as

particularidade do caso concreto.

No plano infraconstitucional, a Lei Complementar nº 105/2001,46 em seu art. 1.º, estabelece o dever das

instituições financeiras preservarem o sigilo bancário, que poderá ser afastado, por ordem judicial, durante o

inquérito ou processo penal, em relação a qualquer crime, quando a medida for “necessária para apuração” de

sua ocorrência.47

De qualquer forma, é necessária uma decisão judicial que, analisando a situação no caso concreto,

considere necessária a quebra do sigilo bancário. Há, pois, reserva de jurisdição.48

43Na legislação brasileira não há um rol ou catálogo de crimes que admitem interceptação telefônica. Utilizando uma

criticável técnica de definição negativa, o art. 2º da Lei nº 9.296/1996, prevê que: “Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção”.

44Lei nº 12.850/2013, art. 1º, § 1º. Pouquíssimos crimes previstos no Código Penal tem pena máxima superior a quatro anos, mas são punidos com detenção.

45O inciso X do caput do art. 5.º assegura que “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”

46A Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, pode ser consultada em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm>. Acesso em: 10 ago. 2014.

47Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados (...)§ 4º A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes: I – de terrorismo; II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção; IV – de extorsão mediante sequestro; V – contra o sistema financeiro nacional; VI – contra a Administração Pública; VII – contra a ordem tributária e a previdência social; VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores; IX – praticado por organização criminosa”.

48No mesmo sentido parece ser o regime português, cuja Lei n.º 5/2002, de 30 de abril, - que estabelece medidas de

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O dispositivo é extremamente aberto. Em tese, todo e qualquer meio de obtenção de prova é,

necessário para a apuração de um crime. Caberá ao juiz, no caso concreto, uma análise da pertinência e

relevância da medida em relação ao objeto do processo. Por outro lado, não há um catálogo de crimes, na

medida em que o rol é meramente exemplificativo. Ao mais, inexiste requisito legal definido específico, havendo

apenas a amplíssima previsão de que tal meio de obtenção de prova será cabível quando “necessário para a

apuração de qualquer ilícito”.

De outro lado, com relação ao sigilo fiscal, o Código Tributário Nacional,49 em seu art. 198, caput,

alterado pela Lei Complementar nº 104/2001, prevê que é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública,

de informações fiscais dos contribuintes, excetuando-se os casos de “requisição de autoridade judiciaria no

interesse da justiça”.50

A hipótese de cabimento de levantamento do sigilo fiscal é muito ampla, bastando que tal se dê “no

interesse da justiça”, o que permite, em linhas gerais, que sempre que uma prova se mostre pertinente e

relevante diante do objeto do processo, que se considere haver interesse da justiça, na medida em que uma

correta reconstrução histórica dos fatos sempre é do interesse da justiça, para uma decisão judicial de melhor

qualidade.

Por outro lado, não há qualquer delimitação quanto aos crimes em relação aos quais se admite o

levantamento do sigilo fiscal. Logo, em relação a qualquer delito é de se admitir tal medida.

7. Questões não disciplinadas na Lei das Organizações Criminosas

Tendo como paradigma as leis de crimes organizados de diversos países, é de se observar que parte

do conjunto de institutos de emergência que costumam ser objeto de regras especiais não foi disciplinado, de

forma especial e, evidentemente, mais severa, do que para a generalidade dos delitos.

Entre esses institutos estão: (i) a vigilância eletrônica; (ii) a prisão cautelar; (iii) as medidas cautelares

patrimoniais; (iv) a interceptação telefônica.

7.1. Vigilância eletrônica

A vigilância eletrônica foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, inicialmente como medida para

vigilância dos presos condenados que se encontravam cumprindo pena no regime semi-aberto, e obtivessem o

direito a saídas temporárias.51

combate à criminalidade organizada e económico-financeira – em seu art. 2.2 prevê que o segredo profissional envolvendo dados financeiros e fiscais cede no caso de “ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado”.

49O Código Tributário Nacional pode ser consultado em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 ago. 2014.

50CTN: “Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”.. § 1º Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça”.

51A medida está prevista no parágrafo único do cart. 122, da Lei de Execução Penal, que foi acrescido pela Lei nº 12.258/2010. A Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210/1984 – pode ser consultado em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

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Mais recentemente, foi prevista como uma das medidas cautelares alternativas à prisão, segundo

enuncia o inciso IX do caput do art. 319, com a redação dada pela Lei 12.403/2011, e regulamentada pela

Decreto n.º 7.627/2011.52

Não há, pois, qualquer regra especial sobre vigilância eletrônica em relação às organizações

criminosas, mas também não há qualquer vedação a sua aplicação para tais delitos.

7.2. Prisão cautelar

No processo penal visando o combate a criminalidade organizada, não há A ausência de regras

especiais e mais severas no que toca à prisão preventiva. Assim, por exemplo, não há previsão de requisitos

mais tênues para sua decretação da prisão.53 Não se estabelece, também, prazos maiores de duração da prisão

preventiva, em processos por organização criminosa.54 Tal regime poderia sugerir que, no processo penal

brasileiro, a prisão preventiva não se sujeita a regras mais severas no caso de investigações e processos penais

por organizações criminosas que aqueloutras vigorantes para os crimes normais.

Essa conclusão, contudo, embora não seja equivocada, necessita de um esclarecimento.

A desnecessidade de regrais mais gravosas decorre do fato de que, mesmo no regime geral da prisão

preventiva, previsto no Código de Processo Penal, é extremamente fácil a decretação de prisão preventiva, e mais

ainda, no caso de criminalidade organizada. Logo, embora não haja regime legal especial, a simples alegação de que

se trata de criminalidade organizada, como uma expressa ou implícita evocação da “gravidade abstrata do crime”, é

suficiente para que na enorme maioria dos casos, o juiz decrete a prisão preventiva. Não há, portanto, necessidade

concreta de qualquer regra facilitadora da decretação da prisão preventiva, em crime organizado, porque em tal tipo de

criminalidade, a prisão preventiva é a regra e não a exceção.

Por outro lado, a ausência de uma disciplina especial, prevendo prazos de duração mais elevados para

a prisão cautelar em crime organizado decorre do fato que não há no ordenamento jurídico brasileiro prazos

máximos de duração da prisão preventiva.

Em todo e qualquer crime, seja relativo à criminalidade organizada, seja um delito comum, a prisão

preventiva não tem um prazo máximo de duração previsto em lei. Os tribunais tem reconhecido que a

prisão se torna ilegal, se exceder a duração razoável, nos termos do art. 7.5, da Convenção Americana de

Direitos Humanos, mas este critério da razoabilidade tem se mostrado bastante elástico. E, no caso de

criminalidade organizada, tem se considerado que, devido à complexidade do caso e, normalmente, o

maior número de acusados, o tempo que se considera razoável a duração da prisão é mais amplo que o

52Decreto n.º 7.627/2011, que regulamentou a monitoração eletrônica de pessoas prevista no Código de Processo Penal

e Lei de Execução Penal – pode ser consultado em PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 7.627, de 24 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7627.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

53Apenas à título de exemplo, na Itália, o art. 2.º, comma 1.º, do Decreto-legge n.º 11, de 23 de fevereiro de 2009 – Misure urgenti in materia di sicurezza pubblica e di contrasto alla violenza sessuale, nonché in tema di atti persecutori) –, convertido na Lei n.º 38, de 23 de abril de 2009, alterou o comma 3.º do art. 272 do CPP italiano, estabelecendo uma presunção absoluta de necessidade de prisão cautelar, para os delitos cometidos valendo-se das condições previstas no crime de associação de tipo mafioso, do art. 416-bis, do Código Penal. italiano. A Corte Constitucional italiana, com a sentença n.º 57, de 29 de março de 2013, declarou a ilegitimidade do novo dispositivo.

54É o caso, por exemplo, do processo penal português, em que os prazos de duração máxima da prisão preventiva, previstos no art. 215.1, do Código de Processo Penal, são ampliados no caso de “criminalidade violenta ou altamente organizada”, de acordo com o item n. 2 do mesmo artigo.

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prazo para um crime menos grave e menos complexo.55

7.3. Medidas Cautelares Patrimoniais

A nova Lei do Crime Organizado – Lei nº 12.850/2013 – não estabeleceu nenhuma regra cautelar

específica para os processos que tenham por objeto as organizações criminosas.

Porém, como já destacado, o Brasil é signatário da Convenção de Palermo de Combate ao Crime

Organizado Transnacional, que prevê o confisco e a apreensão do produto ou instrumentos do crime (art. 12) e

medidas de cooperação internacional para efeitos de confisco do produto do crime, bens, equipamentos e

instrumentos do crime (art. 13).

Não havendo nenhuma regra especial sobre medidas cautelares para as organizações criminosas, seja

em relação às medidas cautelares pessoais, como prisões cautelares e medidas cautelares alternativas à prisão,

seja em relação às medidas cautelares patrimoniais, como sequestro e arresto de bens, esses crimes se

sujeitam às medidas cautelares do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal, embora sem um tratamento sistemático, prevê as seguintes medidas

cautelares patrimoniais ou reais: (i) sequestro de bens imóveis, que sejam produto ou proveito do crime;56 (ii)

sequestro de bens móveis, que sejam produto ou proveito de crime e não tenham sido apreendidos;57 (iii)

especialização e registro da hipoteca legal, incidente sobre bens imóveis do acusado, de origem lícita;58 (iv)

arresto de bens imóveis, também de natureza lícita, prévio ao registro e especialização da hipoteca legal59 e, por

fim, (v) arresto subsidiário de bens móveis, igualmente de natureza lícita, quando o acusado não possuir bens

imóveis ou os possuir em valor insuficiente para a reparação do dano.60

Tais medidas cautelares patrimoniais apresentam duas finalidades distintas: a medida de sequestro

destina-se a assegurar o cumprimento do efeito da condenação consistente na perda do produto do crime61. Já a

inscrição e registro da hipoteca legal, bem como o arresto prévio, visam à reparação do dano causado pelo

delito62. Enquanto o sequestro impede o lucro ilícito, a especialização e registro da hipoteca legal e o arresto

asseguram a reparação do dano que o crime causou à vítima.

Mais recentemente, a Lei nº 12.964/2012 alterou o Código Penal para prever a possibilidade da “perda

de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime” (art. 91, § 1º), bem como possibilitou que “as

medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do

investigado ou acusado para posterior decretação de perda” (art. 91, § 2º). Com isso, o legislador acabou por

55Apenas a título de exemplo, o STJ decidiu que: “Os prazos para a conclusão da instrução criminal não são peremptórios,

podendo ser flexibilizados diante das peculiaridades do caso concreto, em atenção e dentro dos limites da razoabilidade. 2. Constatando-se que eventual retardo na tramitação do feito deu-se não em razão de desídia do Estado-Juiz, mas sim em função de sua notória complexidade, dada pluralidade de réus que integram o processo - 18 (dezoito) - acusados da prática de inúmeros delitos, em associação criminosa, em detrimento dos cofres públicos, não há o que se falar em constrangimento ilegal a ser sanado pela via eleita” (STJ, HC n.º 110.704/RJ,5.ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 16.12.2008, v.u.).

56CPP, art. 125 a 131. 57CPP, art. 132. 58CPP, art. 134 a 135. 59CPP, art. 136. 60CPP, art. 137. 61Código Penal, art. 91, caput, inc. II, letra “b”. 62Código Penal, art. 91, caput, inc. I.

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criar uma modalidade de “sequestro subsidiário”,63 que poderá atingir bens lícitos em valores equivalentes aos

do produto ou proveito do crime, somente quando estes “não forem encontrados ou se localizarem no exterior”.

7.4. Interceptação telefônica

Como já visto, também não há no regime legal especial de combate a criminalidade organizada, regras

especiais sobre a interceptação telefônica, sendo que a lei se limita a fazer remissão a aplicação do regime geral

de tal meio de obtenção de prova.

Novamente, a ausência de regras especiais se deve a desnecessidade de um “processo penal de

emergência” em tal tema. É extremamente fácil, em relação a qualquer crime punido com reclusão, obter a

interceptação telefônica. Em se tratando de criminalidade organizada, normalmente é desnecessário qualquer

esforço argumentativo, sendo qual que algo que se extrai naturalmente das características de tais delitos.

Assim, é comum se afirmar, pura e simplesmente, que por se tratar de crime grave, com várias pessoas

envolvias, com divisão de tarefas e sofisticação em seus métodos de atuação, que inclui procurar dificultar a

descoberta de provas, a interceptação telefônica é o único meio possível para a desvendar o crime e os seus

autores.

Por outro lado, também não há necessidade de um prazo diferenciado de duração da interceptação

telefônica, porque diante da interpretação jurisprudencial que vem prevalecendo na exegese do art. 5.º da Lei

n.º 9.296/1996, tem se aceito que haja tantas prorrogações por períodos de 15 dias, quantas forem necessárias,

desde que devidamente fundamentadas. Isso, na prática, significa a ausência de um prazo máximo para a

restrição da liberdade das comunicações telefônicas.

Conclusão

A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, representa um significativo avanço do ordenamento jurídico

brasileiro no combate à criminalidade organizada. Não é uma lei que mereça apenas elogios. Mas, ainda que

críticas possam e devam lhe ser dirigidas, certamente há mais acertos do que erros.

Mas, ainda que se tenha evoluído no campo legislativo, é preciso ter em conta a advertência de Grevi,

de que na luta contra o crime organizado, não é o processo penal o lugar exclusivo, ou mesmo mais adequado,

para tal enfrentamento, que deve se desenvolver especialmente antes e fora do processo, nos diversos níveis

em que se colocam os fatores criminógenos.64 Não ter isso em mente pode fazer com que se cobre do processo

penal uma tarefa que ele não tem condições de cumprir.

A revogada Lei 9.034/1995, de um lado, não definia nem tipificava organização criminosa e, de outro,

do ponto de vista processual, se limitava a nominar um rol de meios de obtenção de prova aplicáveis às

organizações criminosa. A nova legislação sinaliza para o caminho de um estratégia normativa específica para o

combate à criminalidade organizada, ainda que tenha sido omissa em pontos que mereceriam um regime

diferenciado, em especial, a criação de regras procedimentais específicas.

63A denominação “sequestro subsidiário” é foi por nós utilizada em BADARÓ, Gustavo. Processo penal, cit., p. 806-808. 64GREVI, Vittorio. Nuovo Codice di Procedura Penale e processi di criminalità organizzata: un primo bilancio. In: GREVI,

Vittorio (Org.) Processo penale e criminalità organizzata. Roma-Bari: Laterza 1993. p. 3.

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O grande problema superado pela nova lei é a definição legal de organização criminosa, até então

inexistente na legislação brasileira, bem como a criação de um tipo específico de organização criminosa.

Por outro lado, é fácil notar o predomínio dos aspectos processuais sobre os de direito penal na Lei

12.850/2013. De direito material há, apenas, definição e tipificação de organização criminosa. Tudo o mais é

disciplina processual dos meios de investigação e obtenção de provas.

Na Lei 12.850/2013 é inegável que o predomínio do enfoque investigatório gera um grande risco de

desvirtuamento do processo penal. Essa hipertrofia pré-processual no combate à criminalidade organizada tem

feito com que a posterior fase processual da persecução penal, em que deve se dar a produção das provas

pelas partes, em contraditório, perante o juiz terceiro e imparcial, se transforme em uma etapa de escasso

significado heurístico, em que há mera ratificação ou chancela de tudo o que foi produzido inquisitorialmente

durante a investigação.

Essa característica de antecipação da intervenção penal para a fase de investigação é fruto das

“sociedades de risco”, para usar a expressão cunhada por Ulrich Beck.

A população como um todo se sente ameaçada por graves riscos, de escala global, e com efeitos

incontroláveis: crises financeiras em escala mundial, como a ocorrida nos anos de 2008 e 2009, consumindo

poupanças de toda uma vida e gerando desempregos em massa; contaminações ambientais por produtos

geneticamente modificados; desastres nucleares contaminando pessoas e alimentos, como em Fukushima, no

ano de 2011; contaminações e mortes de milhares de pessoas por epidemias provadas por vírus, com no caso

da Febre Hemorrágica Ebola, que atingiu vários países da África, neste ano ; ataques terroristas que podem ser

desencadeados a qualquer momento e em qualquer lugar, como ocorreu com as torres gêmeas, nos EUA, no

fatídico 11 de setembro de 2001, chegando ao extremo como o de grupos ultrarradicais como o Estado Islâmico

em 2014. Nesse campo se inclui, é claro, o medo do crime organizado.

O risco, como explica Bauman, é um perigo (ou medo) previsível, com o qual é possível conviver.65

Existem os medos pessoais, que ameaçam o corpo e as propriedades; os medos da durabilidade da ordem

social, que implicam perigo para a segurança do sustento (renda, emprego, previdência); e, o medo quanto à

posição do ser no mundo, isto é, o perigo de degradação ou exclusão social (hierarquia social e identidade de

classe, gênero, religiosa etc)

O Estado, falhando nas missões de prover bem estar social, que geram os medos de segunda e terceira

ordem, volta-se para prover segurança individual, com repressão penal, isto é, mais e mais incremento da repressão

penal.66 Há, pois, uma inegável relação entre sociedade de risco e maior necessidade de controle.67

Depois de lançar mão de diversas estratégicas de direito penal, numa antecipação da intervenção penal

material, como por exemplo, com a ampla utilização de crimes de perigo abstrato,68 expansão dos crimes omissivos,

65BAUMAN, Zygmundt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 18. 66Id. Ibid., p. 10-11. 67HASSEMER, Winfried. Verdad e búsqueda de la verdad en el proceso penal: la medida de la Constitución. Trad. de Tania

Ixchel Atilano Camacho. México D.E.: Editorial Ubijus, 2009. p. 12-13. 68Como explica Winfried Hassemer (Viejo y nuevo derecho penal. In: HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y

responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita. Santa Fe de Bogotá: Temis, 1999. p. 24.) “Es fácil entender por qué el legislador utiliza esta vía. Los delitos de peligro abstracto amplían enormemente el ámbito de aplicación del derecho penal, al prescindir del perjuicio, se prescinde también de demostrar la causalidad. Basta solo con probar la realización de la acción incriminada, cuya peligrosidad no tiene que ser verificada por el juez, ya que solo ha sido el motivo por el que el legislador la ha incriminado”.

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ou mesmo os crimes de participação em associações criminosas,69 como nova estratégia de “contenção do risco” ou

ao menos para gerar na sociedade o efeito sedante de que os riscos estão sendo controlado.

Mas por que esse avanço seria prejudicial para o cidadão? Por que resistir a uma restrição de direitos

que atingirá um membro de organização criminosa, um inimigo da sociedade, se eu ou você, caro leitor, não

somos criminosos ou nocivos?

A resposta está num famoso poema do pastor luterano alemão Martin Niemöller, perseguido pelo

regime nazista:

“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar”.70

Agora, digo eu: Incomodemo-nos, todos nós!

Referências

ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4 ed. Lisboa: Universidade Católica Ed., 2011.

BADARÓ, Gustavo. Processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

______; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013.

BAUMAN, Zygmundt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

GRECO FILHO, Vicente. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.

GREVI, Vittorio. Nuovo Codice di Procedura Penale e processi di criminalità organizzata: un primo bilancio. In: GREVI, Vittorio (Org.) Processo penale e criminalità organizzata. Roma-Bari: Laterza 1993.

HASSEMER, Winfried. Verdad e búsqueda de la verdad en el proceso penal: la medida de la Constitución. Trad. de Tania Ixchel Atilano Camacho. México D.E.: Editorial Ubijus, 2009.

______. Viejo y nuevo derecho penal. In: HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita. Santa Fe de Bogotá: Temis, 1999.

MARCUSE, Harold. Martin Niemöller’s famous quotation: ‘First they came for the Communists…’. Disponível em: <http://www.history.ucsb.edu/faculty/marcuse/niem.htm>. Acesso em: 28 set. 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Organização criminosa: comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013.

69SERENI, Andrea. Causalità e responsabilità penale: dai rischi d’impresa ai crimini internazionale, Torino: Giappichelli,

2008. p. 25. 70Há várias versões sobre tal poema, incluindo diversas categorias, como socialdemocratas e sindicalistas, bem como

apresentando-o em diversas sequências. Independentemente do teor, o inegável é o alerta para nos incomodarmos com os ataques aos “outros”. Para uma análise sobre tais divergência, cf.: MARCUSE, Harold. Martin Niemöller’s famous quotation: ‘First they came for the Communists…’. Disponível em: <http://www.history.ucsb.edu/faculty/marcuse/niem.htm>. Acesso em: 28 set. 2014.

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5015.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

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______. Lei no 10.217, de 11 de abril de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10217.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

______. Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12694.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

______. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12850.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

______. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 ago. 2014.

______. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014.

______. Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9034.htm.d>. Acesso em: 10 jan. 2014.

______. Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm>. Acesso em: 10 ago. 2014.

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SENADO FEDERAL. Parecer nº 1.576, de 2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=143751&tp=1>. Acesso em: 10 jan. 2014.

SERENI, Andrea. Causalità e responsabilità penale: dai rischi d’impresa ai crimini internazionale. Torino: Giappichelli, 2008.

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ANÁLISE ECONÓMICA DOS PROGRAMAS DE CLEMÊNCIA NO DIREITO

DA CONCORRÊNCIA∗

Paula Vaz Freire∗∗

Introdução

Os programas ou políticas de clemência (também designados como de leniência, amnistia ou

imunidade) são usados pelo direito da concorrência como um instrumento de detecção e punição de cartéis.

Como é sabido, os cartéis constituem organizações estáveis entre concorrentes que estabelecem

acordos entre si, relativos a aspectos essenciais do mercado (preços, quantidades, territórios), com vista à

maximização do lucro individual. Os cartéis são organizações sofisticadas de cooperação em que a atuação de

cada um dos agentes no mercado passa a integrar-se numa estratégia concertada.

A cartelização trata-se, por definição, de um “produto” de estruturas de mercado oligopolístas, isto é,

verifica-se em mercados com um número reduzido de agentes do lado da oferta, os quais ao adoptarem uma

estratégia de mercado única procuram aproximar-se dos resultados associados às situações de monopólio. Ao

formar-se um cartel há, portanto, um reforço do poder de mercado daí redundando as típicas perdas de bem-

estar decorrentes da diminuição da concorrência: (i) preços mais elevados, (ii) diminuição das opções do

consumidor e (iii) encerramento do mercado a empresas efetiva ou potencialmente concorrentes.

Por serem práticas ilícitas na generalidade dos ordenamentos jurídicos, os cartéis têm na sua base

acordos secretos o que torna difícil a sua detecção. Com vista a obviar a dificuldade em detectar a existência de

cartéis instituem-se mecanismos jurídicos que atribuem benefícios às empresas, participantes num cartel, que os

denunciem junto das autoridades competentes.Trata-se de uma solução adoptada tanto no ordenamento jurídico

norte-americano1, como no direito europeu2 e no direito dos Estados-membros.

As autoridades de defesa da concorrência têm uma perspectiva muito entusiasta sobre as políticas de

clemência uma vez que estas permitem aumentar o número de cartéis detectados, apreciados e punidos;

possibilitam obter, a baixos custos, a informação necessária à sua atuação e, por tudo isso, viabilizam uma

reafectação de meios materiais e humanos para a detecção de outras infrações. Em síntese, aqueles regimes

contribuem para aumentar a ação e a visibilidade pública do trabalho dos aplicadores do Direito, incrementando

a sua relevância e aceitação social3.

∗Este artigo tem por base a comunicação apresentada, a 15.5.2014, no Colóquio de Direito Luso-Brasileiro, Org.: Faculdade

de Direito do Largo de São Francisco USP/ Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. ∗∗Professora Associada da FDUL. 1A política de leniência foi instituída nos Estados Unidos em 1976; para a sua melhor compreensão: DEPARTMENT OF

JUSTICE. Corporate Leniency Policy. Disponível em: <http://www.usdoj.gov/atr/public/guidelines/0091.pdf>.. 2Instituída desde 1996; para a sua melhor compreensão: Comunicação da Comissão Relativa à imunidade em matéria de coimas e

à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (2006/C 298/11) J.O. C 298, de 8.12.2006, p. 17-22. 3HARRINGTON, JR., Joseph E. When is an antitrust authority not aggressive enough in fighting cartels? International

Journal of Economic Theory, v. 7, n. 1, p. 39-50, 2011; HARRINGTON, JR., Joseph E.; CHANG, Myong-Hun. Modeling the birth and death of cartels with an application to evaluating competition policy. Journal of the European Economic Association, ano 7, n. 6, p. 1400-1435, 2009.

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Regime jurídico português

Em Portugal o “estatuto de clemência” foi introduzido pela Lei 39/20064, encontrando-se atualmente

regulado pelaLei 19/20125, lei de defesa da concorrência (LdC), a qual nos seus artigos 75º a 82º estabelece o

regime de “dispensa ou redução da coima em processos de contraordenação por infração às regras da

concorrência”. A clemência abrange acordos ou práticas concertadas proibidas que tenham por objectivo

coordenar comportamentos ou influenciar variáveis concorrenciais relevantes, nomeadamente, através de

práticas de fixação de preços, definição de quotas de produção e de vendas, repartição de mercados,

concertação em leilões e concursos públicos, restrições à importação ou exportação, e outras atuações

anticoncorrenciais (art. 75º LdC).

Da designação - “dispensa ou redução da coima” - decorre a existência de situações valoradas de

forma distinta: as que conduzem à dispensa, isto é, à imunidade, e aquelas a que está associada uma redução

da sanção.

Assim, há lugar a dispensa, ou isenção, para a primeira empresa que forneça informações e elementos

de prova de que a Autoridade da Concorrência (AdC) ainda não disponha e que permitam verificar a existência

da prática ilícita. Para que a dispensa da coima seja concedida a empresa em causa deve, cumulativamente,

cumprir as seguintes condições: (i) cooperar plena e continuadamente, (ii) por termo à participação na infração e

(iii) não ter exercido coação sobre as demais empresas para participarem na infração (art. 77º LdC).

A redução da coima pode ser concedida às empresas que subsequentemente à primeira forneçam

informações e provas de valor adicional significativo para a investigação e prova da infração. Prevê-se para a

primeira empresa uma redução de 30% a 50%; para a segunda uma redução de 20% a 30% e para as seguintes

uma redução até 20% (art. 78º LdC).

Planos de análise

A existência de programas de clemência pode ser objecto de diversas reflexões, segundo prismas de

análise distintos.

Assim, podem suscitar-se considerações de índole moral desde logo porque aqueles programas

consubstanciam um “incentivo à delação” o que, em geral, é uma conduta socialmente reprovável. No entanto,

por se tratar de práticas ilícitas tal significa que se procura tutelar um bem jurídico como maior valor do que o

desvalor eventualmente associado à conduta delatora, a saber: o bem-estar dos consumidores.

Também sob o prisma da justiça distributiva algumas reservas podem ser formuladas pois afinal está a

beneficiar-se o infractor, ou seja, um agente que, tendo lucrado com a existência do cartel, não é objecto de

punição.Por outro lado, pode argumentar-se que se introduz um tratamento diferenciado entre aqueles que

praticam uma mesma infração, porquanto uns beneficiam da clemência e os outros, participantes do mesmo

cartel, são punidos. Nos sistemas jurídicos onde se associa a concessão de imunidades à reparação do dano,

ou seja, a uma responsabilização por via de ações cíveis de consumidores e concorrentes, esta percepção de

4Lei nº 39/2006, DR 1ª série, Nº 164, de 25 de agosto. Regulamento nº 214/2006, da Autoridade da Concorrência, sobre o

Procedimento administrativo relativo à tramitação necessária para a obtenção de dispensa ou atenuação especial da coima nos termos da Lei nº 39/2006, de 25 de Agosto.

5Lei nº 19/2012, DR 1ª série, Nº 89, de 8 de maio. Regulamento nº 1/2013, da Autoridade da Concorrência, sobre o Procedimento administrativo relativo à tramitação necessária para a obtenção de dispensa ou atenuação especial da coima nos termos da Lei nº 19/2012, de 8 de maio.

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injustiça tende a ser atenuada. Por outras palavras, a ideia de que o infractor escapa à punição é mitigada

quando a clemência é atribuída na medida do estritamente necessário e quando exista a restituição dos ganhos

a favor dos lesados. É também de acordo com estas preocupações que se compreende a não concessão de

imunidade ao instigador do cartel.

Apesar da pertinência destes prismas de reflexão propõe-se, nesta sede, analisar os incentivos ao

comportamento das partes criados pela clemência, isto é, perceber em que medida os regimes de clemência, e a

forma como são desenhados, condiciona e determina a conduta dos agentes participantes de um cartel, bem

como a atuação das autoridades encarregadas de aplicar as normas de defesa da concorrência.Trata-se

portanto de uma perspectiva de Análise Económica do Direito de acordo com a qual se procura aferir em que

medida uma dada solução jurídica pode conduzir aos comportamentos socialmente mais desejáveis, ou melhor,

mais eficientes.

Fundamentos comportamentais dos programas de clemência: o “dilema do prisioneiro”

A atuação dos cartéis consubstancia-se em atividades ilícitas, envolvendo vários agentes, os quais

formam organizações com algum grau de sofisticação.

Nesta medida, a cartelização pode ser considerada como uma forma de crime organizado à

semelhança da corrupção reiterada, da colusão entre agentes e supervisores, dasfraudes em larga escala, ou

das atividades de grupos terroristas ou de tráfico ilegal.Todas estas atuações têm em comum a constituição de

relações dinâmicas de longo prazo, onde a reputação e os contratos implícitos substituem os contratos

explícitos. Nesta medida, as referidas estruturas organizacionais partilham os mesmos problemas de

“governação interna”: (i) o risco moral, (ii) a captura (“hold up”), e (iii) a impossibilidade de recorrer aos

mecanismos legais de cumprimento dos contratos. Por outro lado, a todas estas formas de organização colectiva

de atividades ilícitas está associado um custo social elevado.

Do que ficou dito resulta que são transversais os ensinamentos da análise económica sobre qualquer

situação de cooperação no âmbito de atividades ilícitas6/ 7, resultando também como válida a ideia de que o

modo como o sistema jurídico se desenha na luta contra uma destas atividades permite retirar conclusões

aplicáveis a outros domínios.

Os programas de clemência são, em geral, adequados a lidar com violações da lei que tenham como

características serem (i) continuadas, (ii) colectivas ou colusivas e (iii) difíceis de detectar.Aqueles programas

constituem uma solução jurídica que opera uma modelação de incentivos individuais por forma a colocar os

participantes numa situação similar à do “dilema do prisioneiro”. Como é sabido, o “dilema do prisioneiro”

consiste numa hipótese comportamental, amplamente estudada pela teoria dos jogos, em que cada sujeito tem a

possibilidade de escolher entre duas alternativas cujos resultados (“payoff”) dependem de uma escolha idêntica

6Gary Becker (1968) foi pioneiro na análise económica destas situações de cooperação, no âmbito de atividades ilícitas; a

partir da construção de modelos dinâmicos de relações criminais colusivas conclui que são essenciais elevadas penas (modelo de óptimo de prevenção): BECKER, Gary. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.

7Aplicando esta análise aos cartéis: KOFFMAN, Fred; LAWAREE; Jacques. A prisoner’s dilemma model of collusion deterrence. Journal of Public Economics, v. 59, p. 117-136, 1996; TIROLE, Jean. Hierarchies and bureaucracies: on the role of collusion in organizations. Journal of Law, Economics and Organization, v. 2, n. 2, p. 181-214, 1986. Para uma visão global sobre estas aplicações: AUBERT, Cecile; KOVACIC, William; REY, Patrick. The impact of leniency programs on cartels. IDEI Toulouse, 2003. Disponível em: <http://idei.fr>.

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feita por outro indivíduo. Confrontados com esta situação cada um, agindo racionalmente na prossecução do

interesse próprio, concorre para que se verifique um resultado pior do que aquele que se verificaria se

cooperassem8.

No que respeita aos carteis em particular,ao atribuir-se aos seus membros a possibilidade de obter uma

recompensa - não punição ou redução das coimas - por confessar gera-se uma diminuição da confiança entre os

agentes. Por outras palavras, introduz-se a falta de confiança no interior do cartel, o que enfraquece a

solidariedade e aumenta a probabilidade de retirada de um dos membros9. Torna-se mais elevado o risco de

cooperar numa atividade ilícita pelo que estesó será assumido se existir um elevado grau de certeza de que os

outrosparticipantes se manterão fieis ao acordado.

Efeitos dos programas de clemência

Ao consagrar-se, num ordenamento jurídico,uma solução de clemência privilegia-se não tanto o intuito

de punição mas sim a detecção, e consequente termo da infração,bem como o efeito de persuasão. Esta

conclusão é sustentada a partir da análise dos efeitos que os regimes de clemência geram na conduta dos

agentes de mercado e dos aplicadores do Direito.

Como ficou referido, para os eventuais participantes de um cartel a clemência torna mais difícil criar e

manter a colusão. A concertação entre concorrentes implica a definição de condutas no mercado e a correlativa

distribuição de ganhos, assim como a existência de formas de monitorização de condutas desviantes e de

desincentivo ao afastamento do acordo. Ora, a clemência, ao aumentar o benefício de “fazer batota”, diminui a

confiança interna e aumenta os custos de vigilância recíproca. Neste contexto, o grau de estabilidade do cartel

passa a depender não apenas do nível ganhos ou lucrosperspectivado, mas também da mais

elevadaprobabilidade de detecção e punição, na ausência de cooperação, e do benefício esperado da

clemência.

Para os aplicadores do Direito os regimes de clemência permitem a obtenção de informação e de

matéria de prova a baixo custo, e a consequente diminuição dos custos de adjudicação. Assim é porque a

detenção de um conjunto de informação relevante por parte das autoridades públicas torna mais provável a

aceitação de acordos, pelas empresas envolvidas, pondo termo aos procedimentos por infração através de

transação ao invés de serem empreendidos morosos e dispendiosos litígios judiciais.

No entanto, como tem vindo a ser evidenciado pela literatura o recurso a isenções ou reduções, para

premiar a cooperação, têm como efeito uma diminuição do nível geral das penas (até porque é frequente o

acordo), do qual poderá resultar uma redução do efeito de dissuasão.Há ainda que considerar um possível efeito

perverso associado ao facto das autoridades responsáveis pela aplicação das normas de defesa da

concorrência passarem a confiar exclusivamente na clemência. Com efeito, a aplicação destes programas

assenta na percepção que os participantes no cartel têm do risco das autoridades públicas poderem vir a

instaurar, contra si, procedimentos por violação daconcorrência, caso não optem pela clemência. Aquele risco

8O “dilema do prisioneiro” foi formulado pelo matemático Albert W. Tucker, em 1950. Note-se que no caso dos cartéis há

uma diferença substancial relativamente aquela situação pois não existe matéria para condenar, ou porque ainda é insuficiente ou porque não há sequer investigação; neste contexto, confessar é uma estratégia dominante fraca.

9LESLIE, Christopher R. Antitrust amnesty, game theory and cartel stability. Journal of Corporation Law, 31, p. 453-488, 2006; WILS, Wouter P. J. Leniency in antitrust enforcement theory and practice. World Competition: Law and Economics Review, v. 30, n. 1, p. 25-64, 2007.

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

depende da reputação que as autoridades públicas consigam criar e isto pressupõe que, previamente, a

autoridade construa um nível suficiente de credibilidade sobre a sua capacidade de detectar e punir práticas

ilícitas. É, por isso, aconselhável que as autoridades da concorrência não confiem exclusivamente na clemência

e que, de tempos a tempos,prossigam uma atuação punitiva sem recurso a esse regime.

Clemência estratégica

A presente análise deve ainda ser complementada com mais algumas reflexões sobre as estratégias

das partes envolvidas. Trata-se de equacionar a possibilidade dos programas de clemência poderem ser

explorados pelos respectivos intervenientes, em seu benefício, gerando efeitos perversos, ou seja, “desvios” ao

comportamento que a lei deseja incentivar.

Por seu turno, a partir da identificação de tais condutas, torna-se possível operar alguns ajustes no

desenho dos programas de clemência, com vista a corrigir esses enviesamentos e alcançar um nível óptimo de

clemência.

Os cartéis são organizações sofisticadas com capacidade de se ajustarem, por via de processos de

aprendizagempelo que, ao considerar-se a conduta dos seus participantes, deve também ser ponderado o

desenvolvimento de estratégias adaptativas, em face do quadro legal existente.

Nesta medida, pode equacionar-se a utilização estratégica da clemência pelos participantes num cartel

com o intuito de minimizar os efeitos de desestabilização da colusão e de explorar a seu favor esses

programas10.Uma das hipótese de tal acontecer verifica-se num cenário em que as mesmas empresas que

participam em vários cartéis em diferentes mercados, ou repetidamente no mesmo mercado, criam um sistema

de, face à iminente detecção de um cartel, cada uma delas, à vez, avança para a clemência. Ainda de acordo

com algumas análises o facto dos sistema de clemência serem muito generosos (reduzindo o nível geral das

sanções e benefícios para vários dos participantes que confessem) gera o efeito perverso de incentivar a

formação de cartéis (efeito pró-colusivo), em que a estratégia dominante é a colusão – denúncia11.

A clemência pode também ser usada de forma estratégica para debilitar empresas concorrentes -em

virtude da sua desvalorização pela elevada multa que têm de suportar e da diminuiçãoda respectiva reputação

comercial - a fim de as adquirir. Neste caso, o participante do cartel que se colocou ao abrigo do estatuto de

clemência expurga do seu passado as condutas anticoncorrenciais por si praticadas, ao mesmo tempo que

enfraquece as empresas que partilham consigo o mercado. Paradoxalmente, se esse enfraquecimento propiciar

a aquisição, gera-se uma maior concentração de mercado.

Atente-se que, ao considerar a relação estratégica entre as empresas, deve ter-se em conta a estrutura

de mercado. Assim, situações de oligopólios, com um reduzido número de agentes com idêntico poder de mercado,

ou de conglomerados, onde a retaliação se pode fazer em mercados paralelos, consubstanciam estruturas de

mercado que aumentam a fidelidade ao cartel por medo de retaliação, o que desincentiva a confissão.

10ZHIJUN, Chen; REY, Patrick. On the Design of Leniency Programs. IDEA Working Papers 452, 2007. Disponível em:

<http://ideas.repec.org/p/ide/wpaper/7038.html>; ELLIS, Christopher; WESLEY, Wilson. Cartels, Price-fixing, and corporate leniency policy: what doesn’t kill us makes us stronger. OR 97403, University of Oregon, 2002. Disponível em: <https://editorialexpress.com>.

11MOTTA, Massimo; Michele Polo. Leniency programs and cartel prosecution. International Journal of Industrial Organization, 21, p. 347-379, 2003; SPAGNOLO, Giancarlo. Divide et impera: optimal leniency programmes. CEPR Discussion Papers 4840, 2004. Disponível em: <http://repec.org>.

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A utilização estratégica da clemência por parte das autoridades responsáveis pela aplicação das

normas de defesa da concorrência é também equacionável, por esta razão os sistemas jurídicos que consagram

aqueles regimes introduzem mecanismos destinados a minimizar essa possibilidade, por forma a assegurar o

respeito pelos direitos e garantias fundamentais dos particulares12. Nestes termos, de acordo com a

jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, os processos devem ser transparentes e num mesmo

cartel devem ser dadas iguais condições a todos os participantes, assim, a ação das autoridades não pode

incentivar a uma corrida para ser o primeiro a cooperar, ao contactar apenas com um deles ou ao não lhes dar

iguais condições de acesso quando estes contactam a Comissão13.

Pode ainda equacionar-se a situação em que a autoridade da concorrência dispõe apenas de

informação e prova relativa a ilícitos de menor relevância e dá a conhecer esses factos a fim de induzir à

confissão.

A respeito dos regimes de clemência duas outras questões têm sido amplamente consideradas. Uma

delas prende-se com as vantagens e desvantagens associadas aos sistemas que premeiam apenas o primeiro

agente que confessa e aos sistemas em que a confissão, subsequente, dos demais é também premiada. A favor

dos sistemas que restringem a imunidade ao primeiro defende-se que esta solução gera um significativo efeito

de aumento do risco da colusão ilícita que, quando combinado com elevadas sanções, induz à confissão. Por

seu turno, a informação fornecida pelo primeiro pode não ser suficiente para provar os fatos tornando-se

necessária a cooperação de um segundo participante do cartel; neste caso, justifica-se que lhe seja atribuída

uma redução substancial da sanção. É, no entanto, questionável a atribuição sucessiva de reduções de pena

aos demais o que, por gerar uma diminuição do nível geral das sanções, ou o mesmo é dizer uma diminuição

das recompensas, pode conduzir a uma maior estabilidade dos cartéis. Em abono desta solução argumenta-se

ainda que premiar os demais cria um sistema de incentivos que aumenta a rapidez da confissão, e incentiva

todos os participantes no cartel a deter informação relevante.

Outros dos aspectos objecto de reflexão consiste na articulação entre os programas de clemência e as

ações cíveis de particulares para ressarcimento de danos decorrentes de infrações à concorrência (“follow-on

private actions for damages”)14.Ao reconhecer que praticou uma infração, a empresa está a expor-se a ser

demandada por consumidores e concorrentes com vista a serem indemnizados pelos danos sofridos. A não

existirem mecanismos de proteção o participante do cartel não teria incentivos a confessar, o que comprometeria

o sucesso dos programas de clemência. Para que tal não aconteça são instituídas regras de não revelação de

informação confidencial, de redução do montante dos danos, de limitação individual da responsabilidade, ou

formas de concessão de imunidade também quanto aquele tipo de ações.

12Sobre a compatibilidade com os direitos de defesa, afirmando a não existência de coação ou de auto-incriminação: Ac.

ThyssenKrupp Stainless, Proc. C-65/02 P, Col. 2005, p. I-6773, pf. 52-53, “o reconhecimento da infracção imputada tem carácter meramente voluntário para a empresa em causa. Esta não é, de modo algum, obrigada a reconhecer o acordo”. Também Ac. BASF/ Comissão, Proc. T-15/02, Col. 2006, p. II-497, pf. 58.

13Ac. Krupp Thyssen/ Comissão, Proc. T-45/98, Col. 2001, p. II-3757; Ac. BASF/ Comissão, Proc. T-15/02, Col. 2006, p. II-497.

14Proposta de Diretiva do Parlamento europeu e do Conselho relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infrações às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia (COM/2013/0404 final/2 - 2013/0185 (COD)).

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Conclusão

Do que ficou dito é possível concluir que o sucesso dos programas de clemência depende da

observância de alguns parâmetros. Assim, a clemência deve coexistir com sanções elevadas a fim de aumentar

do risco da colusão, uma vez que quanto mais elevadas forem as penas – ou inversamente, quanto maior for a

dimensão do “perdão” - maiores serão os incentivos à denúncia. Deve também coexistir com uma forte

credibilidade das autoridades de defesa da concorrência, por forma a aumentar da probabilidade de detecção, o

que contribui para a confissão.

Apesar das dúvidas sobre a conformação óptima dos regimes de clemência eles constituem um

instrumento adicional de aplicação ou cumprimento da lei.Nesta medida, pode afirmar-se que à clemência estão

associados ganhos líquidos de bem-estar, uma vez que a sociedade - consumidores e empresas – beneficia,em

geral, com a existência de menos cartéis.

Referências

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HARRINGTON, JR., Joseph E. When is an antitrust authority not aggressive enough in fighting cartels? International Journal of Economic Theory, v. 7, n. 1, p. 39-50, 2011.

______; CHANG, Myong-Hun. Modeling the birth and death of cartels with an application to evaluating competition policy. Journal of the European Economic Association, ano 7, n. 6, p. 1400-1435, 2009.

KOFFMAN, Fred; LAWAREE; Jacques. A prisoner’s dilemma model of collusion deterrence. Journal of Public Economics, v. 59, p. 117-136, 1996.

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A EXPERIÊNCIA COM PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS EM PORTUGAL

Nuno Cunha Rodrigues∗

Assistiu-se, em Portugal, a um aumento exponencial de parcerias público-privadas (PPP) durante a

última década, em virtude da modificação do paradigma de intervenção do Estado na economia que passou de

um modelo de intervenção direta - a partir da revolução de 25 de abril de 1974 e durante toda a década de 80 -,

para um modelo de intervenção indirecta, agora como consequência das privatizações entretanto ocorridas bem

como do impulso regulatório provindo da União Europeia. O recurso a PPP`s foi igualmente motivado em razão

dos constrangimentos orçamentais ocorridos a partir de 1997, ano a partir do qual Portugal ficou vinculado ao

Pacto de Estabilidade e Crescimento o que, atendendo à circunstância de o crescimento da dívida pública ter

passado a estar condicionado pela União Europeia,1 levou à utilização das PPP`s como forma de, através da

obtenção de financiamento privado imediato, contornar as limitações de recurso a financiamento público.

As PPP foram gradualmente aumentando, desde os anos 90, sobretudo nos sectores dos transportes

rodoviários e ferroviários, no saneamento básico e distribuição de água e na saúde.

Este instrumento apresentava vantagens significativas nomeadamente porque permitia desbloquear

estrangulamentos na construção de infra-estruturas, em particular no caso de infra-estruturas rodoviárias,

facultando ao Estado acesso a know-how de entidades privadas. Por outro lado, estimulava e dinamizava o

sector privado, aumentava a inovação e, quando assentes em premissas rigorosas, permitia determinar

atempadamente despesas públicas futuras e proceder a um melhor planeamento orçamental.

Apesar das PPP terem surgido há mais de vinte anos, com a construção da ponte Vasco da Gama, foi

apenas em 2003 que, pela primeira vez, se edificou um regime jurídico especificamente aplicável a esta forma

de associação entre parceiros públicos e privados. Com a aprovação doDecreto-Lei nº 86/2003, de 26 de Abril,

instituiu-se um regime jurídico de enquadramento genérico das PPP sem inviabilizar a aplicação de legislação

adicional.

Até esse ano – 2003 – as parcerias público-privadas eram reguladas, de forma avulsa, por legislação

sectorial – como acontecia no caso da saúde2 ou no sector rodoviário – bem como por diplomas aplicáveis a

áreas conexas tais como a Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado3 ou o regime de aquisição de bens e

serviços.4

A inexistência de um quadro jurídico estável não impediu, ainda assim, que, até 2003, fossem

celebradas algumas parcerias público-privadas que se traduziram na construção de um conjunto significativo de

estradas e auto-estradas, bem como de novos hospitais o que permitiu ao país colocar-se na vanguarda da

Europa relativamente àquelas infra-estruturas.

∗Doutor em Direito. Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 1A este propósito v. CABRAL, Nazaré Costa. Enquadramento orçamental e contabilístico das parcerias publico-privadas. In:

FERREIRA, Eduardo Paz; RODRIGUES, Nuno Cunha (Orgs.). Novas fronteiras da contratação pública. Coimbra: Coimbra Ed., 2014. p. 143-156 (máxime p. 152-156).

2Cfr. Decreto-Lei n.º 185/2002, de 20 de agosto que regula o regime das parcerias na área da saúde. 3Cfr. artigos 19.º, n.º 2 e 31.º, n.º 1, alínea l) da Lei n.º 91/2001, de 29 de agosto, republicada na sequência da sétima

alteração operada pela Lei n.º 37/2013, de 14 de junho. 4Cfr. Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de junho.

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

Mais tarde, em 2012, e na sequência da aplicação do Programa de Assistência Económica e

Financeira, o regime que vigorou desde 2003 foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de

maio.

Este último Decreto-Lei visou clarificar a noção de PPP, reforçar o papel do Ministério das Finanças -

assegurando uma tutela financeira integrada e um controlo orçamental acrescido - e ampliar o âmbito subjectivo

de entidades públicas que se lhe encontram sujeitas. Passaram a estar abrangidas por este regime empresas

públicas até então fora do alcance legislativo.

Por PPP passou a entender-se, genericamente, o “contrato ou união de contratos por via dos quais

entidades privadas se obrigam de forma duradoura perante um parceiro público a assegurar, mediante

contrapartida, o desenvolvimento de uma actividade tendente à satisfação de uma necessidade colectiva, em

que a responsabilidade pelo investimento, financiamento, exploração e riscos associados, incumbem, no todo ou

em parte, ao parceiro privado.”5

Não obstante a amplitude desta noção, ela é, ainda assim, mais precisa do que a que resultava do

diploma anterior, pois implica que a responsabilidade pelo investimento, financiamento, exploração e riscos

associados deva incumbir, no todo ou em parte, ao parceiro privado, o que não sucedia anteriormente.

O conceito de PPP é, por conseguinte, extenso, não existindo um elenco taxativo de contratos

qualificáveis como tal.

O que está em causa é uma “opção alternativa de provisão pública, assente numa fórmula estruturada

de cooperação entre os universos público e privado, tendo em vista o desenvolvimento de projectos em parceria,

segundo o princípio basilar da partilha de risco num quadro de optimização da afectação de riscos.”6

No artigo 2.º, n.º 4, o diploma enuncia diversos exemplos de contratos qualificáveis como PPP, a saber:

a) contrato de concessão ou de subconcessão de obras públicas; b) contrato de concessão ou de subconcessão

de serviço público; c) contrato de fornecimento contínuo; d) contrato de prestação de serviços; e) contrato de

gestão ou f) o contrato de colaboração, quando estiver em causa a utilização de um estabelecimento ou uma

infraestrutura já existentes, pertencentes a outras entidades que não o parceiro público (cfr. artigo 2.º, n.º 2 do

Decreto-Lei n.º 111/2012).7

A criação e execução de PPP não está apenas sujeita ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 111/2012 –

que funciona como um regime genérico ou de cúpula, de forma semelhante ao diploma anterior de 2003. Ocorre

ainda a aplicação, às PPP`s, de outros diplomas – como a Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado (cfr.

artigo 6.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 111/2012) ou o Código dos Contratos Públicos (cfr. artigo 15.º, n.º 1

do Decreto-Lei n.º 111/2012). Há ainda regimes sectoriais, como vimos atrás, nomeadamente nos sectores

rodoviário e da saúde.

5Cfr. artigo 2.º, n.º 1. 6Assim, cfr. AZEVEDO, Maria Eduarda. As parcerias public-privadas: a evolução do enquadramento jurídico. In: FERREIRA,

Eduardo Paz; RODRIGUES, Nuno Cunha (Orgs.). Novas fronteiras da contratação pública. Coimbra: Coimbra Ed., 2014. p. 100.

7O mesmo Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de maio, procede à delimitação negativa das PPP`s excluíndo um conjunto taxativo de contratos do âmbito de aplicação daquela lei: (a) as parcerias que envolvam um encargo bruto para o scetor público menor que 10 milhões de euros e um investimento inferior a 25 milhões de euros; (b) as concessões de distribuição de água e (c) as chamadas parcerias público-públicas (que envolvam apenas entes públicos).

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O conceito de parceria público-privada contempla duas formas:

i) As PPP de tipo meramente contratual normalmente assentes no modelo concessivo, mediante o qual

se estabelece uma relação directa entre o parceiro privado e o utente final, sendo o financiamento

assegurado através da cobrança de taxas ou do modelo de private finance iniciative (PFI) provindo,

neste caso, a remuneração do parceiro privado de pagamentos regulares efectuados pelo parceiro

público;

ii) As PPP de tipo institucional por via das quais o Estado participa, como sócio, em estruturas

societárias com parceiros privados.8

O que está em causa são formas de cooperação entre parceiros públicos e parceiros privados que tem

por objectivo assegurar o financiamento, a construção, a renovação, a gestão ou a manutenção de uma infra-

estrutura ou a prestação de um serviço.

Ora, a este propósito, o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de maio, prevê que, na repartição

de responsabilidades, incumbe ao parceiro público o acompanhamento, a avaliação e o controlo da execução do

objeto da parceira, de forma a garantir que são alcançados os fins de interesse público subjacentes e que, ao

parceiro privado, é cometido o exercício e a gestão da atividade contratada bem como o financiamento, no todo

ou em parte.

A criação de parcerias público-privadas tem sido, em termos concretos, caracterizada pela duração

relativamente longa da relação entre o parceiro público e o parceiro privado – estruturada, em particular,

segundo contratos de concessão - e pelo modo de financiamento do projeto, que envolve complexas montagens

jurídico-financeiras, atendendo a que o financiamento é normalmente obtido simultaneamente através do Estado

e de sindicatos bancários.

Impõe-se identificar previamente as vantagens da realização de uma PPP, pela aplicação do princípio

do comparador do sector público e da defesa do value for money.

Na verdade, uma das premissas essenciais para garantir o sucesso das PPP`s diz respeito à sua

avaliação prévia.

A pedra-de-toque, neste domínio, é representada pelo referido comparador do sector público.

Esta regra, ou princípio, resultante do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 111/2012

e do artigo 19.º, n.º 2 da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado9, implica que seja feita uma análise

comparativa prévia entre os custos que a realização do projeto subjacente à parceria envolve, caso seja

realizada pelo Estado, e os custos a que a mesma daria lugar se for concretizada no modelo de parceria

público-privada. Procura-se, deste modo, valorar os ganhos de eficiência para a administração pública para que

se perceba, a final, que a opção pelo modelo PPP é mais vantajosa para o Estado, tendo em conta,

8Registe-se que, no Brasil, a Lei n.º 11.079, de 30 de dezembro de 2004 determina que a criação de uma PPP seja

precedida da constituição de uma sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria. Cfr. artigo 9.º da Lei 11.079.

9O qual determina que “a avaliação da economia, da eficiência e da eficácia de programas com recurso a parcerias dos setores público e privado tomará como base um programa alternativo visando a obtenção dos mesmos objetivos com exclusão de financiamentos ou de exploração a cargo de entidades privadas, devendo incluir, sempre que possível, a estimativa da sua incidência orçamental líquida.”

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

nomeadamente, a qualidade dos serviços públicos e a eficiência do sector privado.10

Por outro lado, uma das características essenciais das parcerias público-privadas reside na

necessidade de se assegurar uma verdadeira divisão de tarefas bem como a partilha efetiva do risco, sendo a

distribuição equitativa de riscos entre o parceiro público e o parceiro privado essencial.

Um dos problemas verificados, nos últimos anos com a execução de parcerias público-privadas

relacionou-se, justamente, com o desequilíbrio verificado na distribuição do risco contratualmente assumido.

Os contratos celebrados, em Portugal, até há poucos anos, eram geralmente vantajosos para o parceiro

privado, uma vez que este raramente assumia qualquer tipo de risco o que obrigou frequentemente, a proceder

ao reequilíbrio financeiro dos contratos para compensar o parceiro privado face à ocorrência de riscos que não

estavam contratualmente previstos. Aconteceu assim, por exemplo, com riscos de tráfego, por se concluir que a

circulação automóvel era inferior à inicialmente prevista, com riscos ambientais, dada a descoberta de espécies

endémicas durante a construção de obras e mesmo com riscos arqueológicos ou de construção.

O que significa que o sucesso de uma PPP tem como pressuposto uma prévia distribuição equilibrada

do risco entre os parceiros, com um levantamento atempado que permita antever a maioria dos riscos

associados para que a repartição se faça de acordo com a capacidade de cada uma das partes para gerir esse

risco e assegure uma significativa e efectiva transferência de risco para o sector privado (cfr. artigo 7.º, n.º 1 do

Decreto-Lei n.º 111/2012).

A distribuição atempada e efectiva dos principais riscos pode evitar problemas durante a execução do

contrato, garantindo que o objectivo da parceria é efectivamente alcançado.

Com isto, está em causa minimizar o risco de encargos adicionais para o Estado durante a vigência do

contrato.

Uma das críticas apontadas às PPP em Portugal, numa fase inicial, estava justamente relacionada com

aquilo que o tribunal de Contas designou, em 2008, por “inexistência da explicitação da matriz de risco de cada

PPP”.11

A necessidade de uma efectiva partilha de riscos – tendo por objectivo que tanto o parceiro público

como o parceiro privado dividam lucros e prejuízos, nomeadamente mediante a previsão de cláusulas clawback,

a eventual fixação dos preços ou a determinação de margens máximas de lucro para o parceiro privado - está

expressamente consagrada nos artigos 7.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 111/2012.12

Para efectivar essa partilha devem equacionar-se previamente os diferentes tipos de risco,

nomeadamente riscos genéricos, que podem estar associados a qualquer PPP, tais como o (i) risco de

concepção/construção (v.g. defeitos de construção, atrasos na obra); (ii) risco de financiamento (v.g.

alteração das taxas de juro, de valores cambiais); (iii) risco de execução (v.g. a continuidade e a qualidade

dos serviços prestados); (iv) risco da procura (do serviço prestado – v.g. no caso do tráfego automóvel nas

PPP`s de estradas) ou o (v) risco do valor residual do bem no momento em que este venha a ser

10No Brasil, o artigo 4.º da Lei 11.079 enuncia, de forma mais genérica, objectivos idênticos para as PPP. 11Cfr. Auditoria à gestão de PPP`s - concessões rodoviárias – Relatório n.º 10/2008, PORTUGAL. TRIBUNAL DE CONTAS.

Disponível em: <http://www.tcontas.pt/>. 12Sobre este problema, v. MELO, Pedro. A distribuição do risco nos contratos de concessão de obras públicas. Coimbra:

Almedina, 2011.

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transferido para o Estado.13

O risco deve ser previamente determinado e quantificado para que possa ser comparado numa

perspectiva de hipotética realização da PPP quer pelo sector público, quer pelo sector privado.

Deve ainda ser apreciado o chamado value for money da PPP que corresponde a um conceito anglo-

saxónico que não se encontra expressamente afirmado na lei Portuguesa. É uma noção próxima da ideia de

relação custo-benefício (cfr. artigo 6.º, n.º 1, alínea f) do Decreto-Lei n.º 111/2012) que implica, para o Estado,

nos termos resultantes do Decreto-Lei n.º 111/2012, que o lançamento de uma PPP seja antecedido,

nomeadamente, (i) da memória descritiva das razões que implicam o recurso a uma PPP; (ii) de um programa

alternativo à PPP; (iii) da fixação de limites máximos de compromissos a assumir e (iv) da apreciação da PPP à

luz dos princípios da economia, eficiência e eficácia (cfr. artigo 6.º, n.º 1, alíneas a) a p) do Decreto-Lei n.º

111/2012).

Um dos motivos que levou a graves prejuízos para o Estado, na execução de parcerias público-privadas

deveu-se à inexistência de estudos prévios que permitissem concretizar o comparador do sector público.

Associado à inexistência, em alguns casos, de um caso-base e à falta de uma matriz de risco, a ausência de

estudo prévio originou que o Estado tivesse de compensar financeiramente o parceiro privado durante a

execução do contrato.

Esta circunstância derivou igualmente da falta de especialização do Estado neste domínio, em contraste

com a qualidade e quantidade de consultores e assessores financeiros e jurídicos que assistiam o parceiro

privado, o que motivou a alteração resultante da aprovação do Decreto-Lei n.º 111/2012 (cfr. artigos 26.º a 30.º e

34.º a 42.º) prevendo a criação da UTAP (Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos), que concentra,

numa única entidade do Estado, os dados e recursos humanos relativos a PPP´s, até então dispersos por

diversos serviços públicos cuja coordenação se revelava penosa.

Na verdade, até 2012 verificavam-se graves problemas de informação assimétrica na relação entre

parceiro público e parceiro privado, normalmente desfavoráveis ao Estado, quer durante a execução dos

contratos quer após a execução destes.14

A criação da UTAP assegurou, por conseguinte, uma recolha formal, sistemática e periódica de dados e

casos relevantes para melhorar a gestão das PPP acompanhando a evolução da curva de aprendizagem

(lessons learned) em linha, aliás, com a recomendação do Tribunal de Contas de 2008.15

13Numa análise mais fina, considerando os sectores, verifica-se a necessidade de acautelar alguns riscos tais como, no

sector rodoviário: a) Risco de projecto e concurso; b) Risco de construção; c) Risco de exploração/manutenção; d) Risco financeiro; e) Risco ambiental; f) Risco de procura; g) Risco de disponibilidade; h) Risco legislativo; i) Risco de força maior;

14O que frequentemente potenciava a criação de “benefícios-sombra”, nomeadamente em novas contratações, para os parceiros privados, sem qualquer contrapartida para o Estado.

15Cfr. Linhas de orientação do Tribunal de Contas sobre PPP`s de 2008, documento disponível em PORTUGAL. TRIBUNAL DE CONTAS. Disponível em: <http://www.tcontas.pt/>.

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Procurou-se, dessa forma, secundar em Portugal exemplos de outros Estados que criaram unidades

técnicas especializadas em PPP`s.16 Sucede assim, por exemplo, no Brasil (cfr. artigo 14.º da Lei n.º 11.079).17

É ainda necessário acautelar o impacto que uma PPP pode acarretar para todo o sector privado.

Com efeito, frequentemente, a criação de uma PPP tem por consequência o aparecimento de um

monopólio, nomeadamente quando está em causa uma concessão18. Sendo assim, a duração da PPP não deve

exceder o período necessário à amortização dos investimentos e a uma remuneração razoável dos capitais

investidos, de modo a não restringir ou limitar a livre concorrência.

Outro dos problemas sinalizados, em Portugal, com a execução de PPP`s relacionou-se com a falta de

planeamento orçamental que deu lugar ao agravamento da despesa pública nos anos mais recentes.19

Neste contexto, a Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado foi alterada, passando a incluir uma

norma que consagra a necessidade de as PPP`s serem previamente avaliadas, incluindo a estimativa da sua

incidência orçamental líquida.20

Discute-se, em Portugal, a possibilidade de a lei ir mais longe, limitando, em termos orçamentais, o

recurso a PPP`s na esteira do que resulta da lei brasileira, nos termos da qual apenas podem ser contratadas

parcerias público-privadas quando a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das

parcerias já contratadas não tiver excedido, no ano anterior, 1% (um por cento) da receita corrente líquida do

exercício, e as despesas anuais dos contratos vigentes, nos 10 (dez) anos subsequentes, não ultrapassem 1%

(um por cento) da receita corrente líquida projetada para os respectivos exercícios.21 Esta discussão não está,

por ora, encerrada a nível nacional.

Em termos concretos, existiam, em Portugal, no ano de 2013, trinta e cinco projectos considerado como

parcerias público-privadas.22

As trinta e cinco parcerias compreendiam vinte e duas, no sector rodoviário23, duas no sector ferroviário,

16A criação de uma PPP envolve ainda, à luz da atual lei Portuguesa, a intervenção de um conjunto amplo de comissões.

Assim, será necessário constituir uma equipa de projecto que desenvolve os trabalhos preparatórios necessários ao lançamento da parceira (cfr. artigo 10.º a 12.º). De forma subsequente, e após ter decorrido o procedimento pré-contratual prévio, será necessário constituir o júri do procedimento (cfr. artigo 17.º) bem como a eventual comissão de negociação (renegociação) (cfr. artigo 22.º).

17Cfr. também o exemplo da África do Sul, com a Unit of the National Treasury. 18Neste contexto coloca-se ainda um outro problema que se relaciona com o apuramento do custo efectivo do serviço

prestado em situações de monopólio, que não iremos tratar aqui. 19Cfr., a este propósito, o relatório da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS FINANÇAS.

Direção-Geral do Tesouro e Finanças. Parcerias publico-privadas e concessões. Relatório 2012. Disponível em: <www.dgtf.pt>. Acesso em: ago. 2012.

20Cfr. artigo 19.º, n.º 2 da Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, na versão resultante da Lei n.º 37/2013, de 14 de junho: “A avaliação da economia, da eficiência e da eficácia de programas com recurso a parcerias dos setores público e privado tomará como base um programa alternativo visando a obtenção dos mesmos objetivos com exclusão de financiamentos ou de exploração a cargo de entidades privadas, devendo incluir, sempre que possível, a estimativa da sua incidência orçamental líquida.”

21Cfr. artigo 22.º da Lei n.º 11.079. 22Cfr. a este propósito, o documento da Direção-Geral do Tesouro e Finanças “PPP e concessões”, relatório 2012.

PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS FINANÇAS. Direção-Geral do Tesouro e Finanças. Parcerias publico-privadas e concessões. Relatório 2012. Disponível em: <www.dgtf.pt>.

23Em particular, no sector rodoviário os modelos de parceria escolhidos abrangem concessões que se dividem em: i) Concessão tradicional com portagens reais; ii) Concessões com modelo de disponibilidade, sendo estas segmentadas em: a. Pagamento pelo Estado ao parceiro privado pela disponibilidade da via, recebendo este apenas o valor cobrado nas portagens;

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dez na área da saúde e uma respeitante a um sistema interno de segurança e emergência do Estado Português.

As PPP que surgiram no sector rodoviário implicaram alguns litígios com o Estado, durante a fase de

execução, em resultado de pedidos de reequilíbrio financeiro realizados pelo parceiro privado, relacionados

fundamentalmente com atrasos nas expropriações da responsabilidade do Estado, com imposições ambientais

que obrigaram a alterações de traçado ou a deficiente cálculo da matriz de risco de tráfego.

É de referir que as PPP celebradas em Portugal, envolvendo o sector rodoviário, possibilitaram a

acumulação de ampla experiência neste domínio que tem sido replicada, por empresas portuguesa, noutros

países, como os Estados Unidos da América ou o Brasil.

No sector ferroviário há, em Portugal, duas parcerias público-privadas:

i) O Metro ao Sul do Tejo;

ii) O eixo Ferroviário Norte-Sul (Fertagus):

A segunda parceria mencionada – Fertagus - é considerada um caso de sucesso. A procura de utentes

excedeu as previsões e motivou a partilha de receitas (adicionais) obtidas entre o Estado e o parceiro privado,

uma vez que tinham sido prevista no contrato uma cláusula claw-back.

No sector da saúde, as parceiras público-privadas traduziram-se em dois modelos:

i) Parcerias envolvendo a construção, manutenção da infraestrutura e gestão do estabelecimento de

saúde;

ii) Projeto de co nstrução e manutenção do edifício;

Pode, em síntese, afirmar-se que, em Portugal, a celebração e a efectivação de PPP`s não foi isenta de

engulhos. A informação assimétrica que inicialmente se verificava entre o Estado e o parceiro privado foi

corrigida ao longo dos anos o que legitima a afirmação de que as PPP´s alcançaram um relativo sucesso.

Aprendeu-se com os erros e construíram-se infra-estruturas que, de outra forma, não teriam sido viabilizadas.

Referências

AZEVEDO, Maria Eduarda. As parcerias public-privadas: a evolução do enquadramento jurídico. In: FERREIRA, Eduardo Paz; RODRIGUES, Nuno Cunha (Orgs.). Novas fronteiras da contratação pública. Coimbra: Coimbra Ed., 2014.

CABRAL, Nazaré Costa. Enquadramento orçamental e contabilístico das parcerias publico-privadas. In: FERREIRA, Eduardo Paz; RODRIGUES, Nuno Cunha (Orgs.). Novas fronteiras da contratação pública. Coimbra: Coimbra Ed., 2014.

MELO, Pedro. A distribuição do risco nos contratos de concessão de obras públicas. Coimbra: Almedina, 2011.

PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS FINANÇAS. Direção-Geral do Tesouro e Finanças. Parcerias publico-privadas e concessões. Relatório 2012. Disponível em: <www.dgtf.pt>. Acesso em: ago. 2012.

______. TRIBUNAL DE CONTAS. Disponível em: <http://www.tcontas.pt/>.

b. Pagamento pela infraestrutura com eventual dedução dos períodos de indisponibilidade da via; c. Pagamento pela disponibilidade do sistema de cobrança; iii) Subconcessões : neste cenário, o Estado recebe diretamente o valor cobrado pelas portagens, pagando ao concessionário o valor referente a: a. Disponibilidade da via; b. Serviço (indexado ao tráfego).

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PROTEÇÃO PENAL DA INTEGRIDADE FÍSICA DO FETO

ESTUDO A PARTIR DE UM CASO CONCRETO∗

Mariângela Gama de Magalhães Gomes∗∗

Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula; Eduardo Augusto Alves José

Ferioli Pereira; Fábio Roberto Cabar; Naiara Vilardi Soares Barberio∗∗∗

1. Introdução

Em 1981, foi identificada, pela primeira vez, a si�ndrome da imunodeficiencia adquirida (AIDS).

Atualmente, a infecca �o pelo vi�rus da imunodeficiencia humana (HIV) representa fenomeno global, dinamico e se

destaca entre as doenças infecciosas emergentes pela grande magnitude e extensa�o dos danos causados aos

indivíduos. Desde a sua origem, cada uma de suas repercusso�es tem sido exaustivamente discutida pela

comunidade cienti�fica e pela sociedade em geral.

A epidemia de AIDS mostra-se bastante complexa, com subepidemias regionais. No Brasil, assim como em alguns pai�ses da Ame�rica do Sul, Suda�o, Tailandia e Etio �pia, a prevalencia da infecca �o pelo HIV e� superior a

5% em uma ou mais subpopulaco �es com comportamento de alto risco, mas a prevale ncia entre gestantes

atendidas em cli�nicas de acompanhamento da gestação (clínicas de pré-natal) revela-se menor do que 5%. Tal

característica difere da epidemia generalizada, que ocorre nos pai�ses da A�frica subsaariana e Haiti, onde a

infecca �o pelo HIV deixou de ser restrita às subpopulaco �es de comportamento de risco, que apresentam elevadas

taxas de prevalencia da infecc a�o, e a prevalencia entre gestantes atendidas em cli�nicas de pre�-natal é igual ou

superior a 5%.1

Refletindo as enormes desigualdades sociais brasileiras, a disseminação da infecca �o pelo HIV no Brasil

revela epidemia de mu�ltiplasdimenso�es que sofre, ao longo do tempo, transformaco �es significativas em seu perfil

epidemiolo�gico. No início era restrita àsmetro�poles nacionais (Sa�o Paulo e Rio de Janeiro), era

predominantemente masculina, atingindo homens com pra�tica homossexual e indivi�duoshemofi�licos; em 1984,

71% dos casos notificados eram referentes a homossexuais e bissexuais masculinos. Posteriormente, seguiu-se certa estabilizaca �o na prevalência da infecção, especialmente entre homens pertencentes aos estratos sociais ∗Trabalho apresentado, no Colóquio de Direito Luso-Brasileiro realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

no dia 16 de maio de 2014. Este trabalho é resultado dos estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa em Temas Atuais de Direito Penal do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

∗∗Professora Associada de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP); Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; Professora responsável pelo Grupo de Pesquisas em Temas Atuais de Direito Penal, junto ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP..

∗∗∗Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula (Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP; membro do Grupo de Pesquisas em Temas Atuais de Direito Penal, junto ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP); Eduardo Augusto Alves José Ferioli Pereira (Estudante de graduação na Faculdade de Direito da USP; membro do Grupo de Pesquisas em Temas Atuais de Direito Penal, junto ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP); Fábio Roberto Cabar (Médico, Mestre e Doutor em Medicina pela USP; estudante de graduação na Faculdade de Direito da USP; membro do Grupo de Pesquisas em Temas Atuais de Direito Penal, junto ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP); Naiara Vilardi Soares Barberio (Mestranda em Criminologia na Faculdade de Direito da USP; membro do Grupo de Pesquisas em Temas Atuais de Direito Penal, junto ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP).

1ZUGAIB, M. Obstetrícia (Doenças Sexualmente Transmissíveis). 1. ed. Barueri: Manole, 2008. p. 965-1000.

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me�dios urbanos, em meio aos quais verificou-se relevante mobilizaca �o social e mudanca de comportamento no

sentido de pra�ticas sexuais mais seguras.2

Logo após este primeiro momento, houve importante aumento na proporção de transmissa�o

heterossexual: de 6,6 %, em 1988, para 39,2% em 1998. Esta característica tem contribuído de modo decisivo para o aumento de casos em mulheres, traduzido na progressiva reduca �o da raza�o de sexo (raza�o entre os

casos do sexo masculino e os casos do sexo feminino), em todas as categorias de exposica�o: passaram de

24:1, em 1985, para 6:1 em 1990 e 2:1 em 1997. Assim, pode-se dizer que há, na atualidade,processos de heterossexualizaca �o, feminizac a�o, além deinteriorizaca �o e da pauperizaca �o da epidemia3. No início dos anos

2000, entre as mulheres contaminadas, 57% eram donas de casa, em todos os ni�veis de escolaridade, na faixa

eta �ria de 20 a 39 anos. Por sua vez, a feminilização da epidemia ocasionou o aumento dos casos de crianças

infectadas por transmissa�o materno-infantil (TMI). Tambe�m chamada de transmissa�o vertical, a TMI pode ocorrer

durante a gestaça�o, o parto ou a amamentaça�o, sendo que cerca de 65% dos casos ocorrem durante o trabalho

de parto. Em 1986, esta categoria correspondia a 0,2% do total de casos e, em 2000, representava 2,6%. Dentre os fatores associados a� TMI, destacam-se: a alta carga viral materna, tempo prolongado de rotura da bolsa

amniótica, a presença de infecça�o sexualmente transmissível, o tipo de parto, o parto prematuro e o uso de

drogas injetáveis3.

Os avanços tecnolo�gicos e o melhor conhecimento da doença permitiram o surgimento de novas

estratégias diagno�sticas, profila�ticas e terapêuticas, a que pode ser atribui�do o significativo aumento da

sobrevida dos doentes. Ale�m disso, o desenvolvimento dos conhecimentos e a utilizaça�o de tecnologias cada

vez mais eficazes fez com que a AIDS tivesse sua histo�ria natural alterada: da evolução rápida e letal dos

primeiros casos, a doença assumiu cara�ter crônico, em que longos peri�odosassintoma�ticossa�o interrompidos

pelo surgimento de infecço�es oportunistas. O tratamento antirretroviral combinado foi extremamente importante

para esta alteração da histo�ria natural da AIDS4. Desde 1994, sabe-se que o uso da zidovudina (AZT) pela

gestante infectada e pelo rece�m-nascido, durante as primeiras semanas de vida, pode reduzir em cerca de 70%

o risco de a criança ser infectada, sendo considerado um dos principais avanços no conhecimento sobre a AIDS. Ale �m disso, o uso de terapia antirretroviral combinada, ou seja, a utilizaça�o simultânea de duas ou mais drogas,

e � capaz de reduzir significativamente a carga viral no sangue da gestante, reduzindo, assim, o risco de

transmissa�o do HIV para o rece �m-nascido.5

Os governantes do Brasil vêm se empenhando para reduzir as taxas de transmissa�o vertical do HIV no

pai�s. Entre as medidas tomadas nos últimos anos, destacam-se o aconselhamento e a realização de sorologia

para HIV durante o acompanhamento pre�-natal, a administraça�o de drogas antirretrovirais para as gestantes

infectadas, a utilização da zidovudina durante o trabalho de parto e a contraindicação ao aleitamento materno. Importante ressaltar que esses procedimentos esta�odisponi�veis a toda populaça�o de forma universal e gratuita.

Em estudo realizado no Estado de Sa�o Paulo, anterior a� introduçao da terapia antirretroviral universal, a taxa de

transmissa�o vertical foi estimada em 16%; estudo posterior, realizado no Rio de Janeiro, que acompanhou

gestantes infectadas pelo HIV, mostrou reduça�o acentuada da TMI, para 3% entre aquelas que seguiram todas 2CABAR, F. R. Obstetrícia: principais temas para provas de residência médica (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida e

Gestação). 10. ed. São Paulo: Medcel, 2014. p. 85-98. 3GOMES, A. M. T.; SILVA, E. M. P.; OLIVEIRA, D. C. de. Representações sociais da AIDS para pessoas que vivem com

HIV e suas interfaces cotidianas. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 19, n. 3, 2011. 4BARTLETT, J.G.; GALLANT, J.E. Tratamento clínico da infecção pelo HIV. Baltimore: Johns Hopkins University, 2001-

2002. 5SOUZA JR., P. R. B. de; SZWARCWALD, C. L.; BARBOSA JR., A.; CARVALHO, M. F. de; CASTILHO, E. A. de. Infecção

pelo HIV durante a gestação: estudo-sentinela parturiente. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 6, 2004.

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as recomendaço�es médicas preconizadas6.

Desta forma, resta absolutamente clara a importância da utilização das medidas de prevenção no

sentido de se evitar que o filho da gestante infectada pelo HIV nasça com a doença, crônica, porém fatal.

A aderência a tratamentos é tema bastante importante, principalmente quando se trata de doenças

crônicas. Trata-se da conduta do paciente no sentido de seguir a prescrição médica, que abrange a posologia, a

quantidade de medicamentos por horário, o tempo de tratamento e as recomendações especiais para

determinados medicamentos. O termo pode ainda ser interpretado de maneira mais ampla, como uma atividade na

qual o paciente não apenas obedece as orientações médicas, mas segue, entende e concorda com a prescrição

estabelecida pelo médico. Representa um acordo entre o médico e o paciente, relação em que são firmadas as

responsabilidades de cada um e também de todas as outras pessoas envolvidas no processo.

A aderência ao tratamento é ainda mais importante para pessoas infectadas pelo HIV. O uso incorreto

dos medicamentos antirretrovirais está relacionado diretamente à falência terapêutica, facilitando o aparecimento

de cepas do vírus que sejam resistentes aos medicamentos disponíveis. Como o número e as combinações

destes ainda são limitadas, o uso inadequado e irregular dessas drogas pode criar situações nas quais serão

necessárias combinações com mais de quatro drogas, o que acaba por comprometer ainda mais a aderência.

Para manter a carga viral indetectável por tempo mais longo e obter aumentos significativos na contagem de

linfócitos CD4+, a aderência aos medicamentos deve ser superior a 90%. Em gestantes, este fator é ainda mais

importante, visto que o tratamento inadequado expõe o concepto ao risco de transmissão vertical do vírus7.

2. Descrição do caso concreto

M.J.S, 28 anos, encontrava-se na quarta gestação em 2011. As gestações anteriores resultaram dois

filhos (vivos e saudáveis) e um aborto espontâneo. No momento do diagnóstico de gestação índice, a paciente

encontrava-se no quarto mês de gravidez; já era conhecedora de seu status sorológico, tendo recebido o

diagnóstico de positividade para HIV em setembro de 2010, sendo que, até aquele momento, não havia

indicação médica para utilização de medicamentos antirretrovirais. Durante a primeira consulta do

acompanhamento pré-natal, M.J.S. foi orientada a respeito dos riscos envolvidos para ela própria e para seu

concepto em virtude da infecção; foram solicitados exames gerais (indicados para todas as gestantes) e

específicos (como carga viral, contagem de linfócitos CD4+ e CD8+), assim como recomendou-se,

explicitamente, que a paciente iniciasse imediatamente a utilização de medicação antirretroviral, conforme

Protocolo Assistencial para gestantes infectadas pelo HIV do Ministério da Saúde do Brasil. Após não

comparecer à consulta para acompanhamento pré-natal, agendada para o mês seguinte à primeira visita, foi

ativamente convocada pela assistente social a comparecer ao Serviço Médico. No retorno, encontrava-se com

seis meses de gestação e os exames mostraram alta carga viral, linfócitos CD4+ e CD8+ sem alterações

significativas, sendo considerados normais os demais exames de pré-natal. A paciente informou, naquela

oportunidade, não estar tomando regularmente a medicação prescrita, por “decisão própria”; foi novamente

orientada a respeito dos riscos envolvidos e da importância da utilização dos medicamentos para prevenção da

infecção de seu concepto. Embora novos exames tivessem sido solicitados e nova consulta pré-natal fosse 6MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA. Programa Nacional de DST e Aids.

Recomendações para profilaxia da transmissão vertical do HIV e terapia anti-retroviral em gestantes, 2002/2003. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.

7WILDE, M.; PATERSON, R. Fusion inhibitors in HIV infection. Summary and table. Drugs R&D, Auckland, v. 2, n. 5, p. 333-335, 1999.

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agendada para o mês seguinte, a gestante somente retornou à consulta para acompanhamento pré-natal após

dois meses, afirmando ainda não ter iniciado o tratamento medicamentoso prescrito. Exames de sangue

mostraram aumento discreto da carga viral sanguínea, além de pequena diminuição nas concentrações de

CD4+, confirmando, naquele momento, o não cumprimento das recomendações médicas. Diante desses fatos, a

equipe médica discutiu a possibilidade de internação da gestante para realização do tratamento, o que foi

prontamente rejeitado por não haver indicação médica que justificasse tal conduta: a medicação estava

disponível, sendo oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a administração das drogas

deveria ocorrer por via oral e, além do mais, a permanência de indivíduo portador de HIV em ambiente hospitalar

pode significar aumento de risco de infecção oportunista, o que é absolutamente indesejável. A despeito das

recomendações recebidas, tal gestante só voltou ao hospital em trabalho de parto, aos nove meses de gestação.

A partir daí, todas as medidas médicas foram ativamente tomadas no sentido da prevenção da TMI:

administração materna, por via endovenosa, de zidovudina nas doses preconizadas durante todo o trabalho de

parto, além de oferecimento de tratamento profilático adequado ao recém-nascido (xarope de zidovudina); a

amamentação natural foi formalmente contraindicada. No pós-parto, a paciente foi encaminhada para

acompanhamento médico em ambulatório de doenças infecto-contagiosas e o recém-nascido foi matriculado em

ambulatório de pediatria de serviço médico terciário. Os primeiros exames de sorologia mostraram que a criança

era portadora do HIV, o que foi confirmado em exames posteriores.

Desde 1999, quando os procedimentos para prevenção de transmissão de HIV passaram a ser

adotados no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, este foi o primeiro caso em que se verificou a

transmissão do vírus HIV da mãe para seu filho.

3. Das implicações jurídico-penais

Diante do caso descrito, surgem questionamentos acerca do tratamento penal que deve ser dado à

matéria, uma vez que, claramente, a saúde da criança recém-nascida encontrou-se comprometida devido a um

comportamento deliberado e evitável por parte da sua mãe.

Pressuposto para qualquer análise é a constatação de que a saúde é, no Brasil, bem jurídico com

status constitucional, indispensável para o desenvolvimento do ser humano.

Ao estabelecer que a vida é um direito fundamental para todos os cidadãos, o art. 5º da Constituição

Federal brasileira também acaba por inserir a saúde entre os elementos essenciais para o desenvolvimento do

ser humano; mais do que isso, o mesmo texto constitucional elegeu a dignidade da pessoa humana como

fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro (artigo 1°, III, CF), o que implica que o direito à vida não

é o direito a qualquer forma de vida, mas há a necessidade de se assegurar uma vida digna, o que

necessariamente implica o amparo da saúde.

De forma ainda mais expressa e direta, a saúde é considerada um direito social e um dever do Estado,

encontrando-se assegurada entre os artigos 196 e 200 da Constituição Federal. A tutela deste direito é realizada

pelo Estado de diversas formas: pela prestação de serviços médicos gratuitos, pela judicialização de demandas

que obrigam o Estado a fornecer medicamentos para o tratamento de determinadas doenças, pela tipificação de

condutas que possam originar danos à saúde de terceiros.

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Feitas essas observações, buscar-se-á identificar o tratamento que, eventualmente, poderá ser dado

pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro a situações concretas como a descrita acima, tendo em vista aquilo

que já foi enfrentado pela doutrina e pela jurisprudência nacionais em casos que guardam alguma semelhança

com o objeto deste trabalho.

4. Em busca de um enquadramento jurídico-penal

4.1. Considerações iniciais

De início, cabe observar que os únicos tipos penais que tratam especificamente da proteção do feto, no

direito brasileiro, são aqueles referentes ao crime de aborto. Este delito, como se sabe, refere-se à conduta de

quem, dolosamente, causa a morte do produto da concepção, durante o período da gestação. Não se adequa,

portanto, ao caso em tela, uma vez que não há, aqui, a morte do feto, mas apenas o comprometimento de sua

saúde.

Na tentativa de verificar eventual adequação típica da conduta acima descrita, optou-se, nesse trabalho,

por analisar, primeiramente, a forma como nossos tribunais vêm tratando os casos em que o agente, sabendo-se

portador do vírus HIV, pratica relações sexuais sem preservativos com parceiro que desconhece sua condição

ou, mesmo, perpetra qualquer outro ato hábil a transmitir o vírus, de modo consciente e voluntário8. Embora

claramente diversa da conduta da gestante que opta por não evitar a transmissão de doença ao nascituro, a

escolha desse método comparativo fundamenta-se na constatação de que são estas as principais hipóteses

enfrentadas pela jurisprudência quando o assunto diz respeito à transmissão do HIV, o que não deve ser

desprezado no estudo que será desenvolvido. Em seguida, a partir dos resultados obtidos, buscar-se-á um

cotejamento com as fontes doutrinárias e com experiências em ordenamentos jurídicos estrangeiros.

4.2. Da jurisprudência brasileira

Sinteticamente, pode-se dizer que, nos mais diversos casos, as condutas aptas a vulnerar a saúde de

terceiros pela transmissão do HIV têm sido definidas juridicamente com base em um dos três tipos penais que se

seguem: o homicídio – às vezes, até mesmo, em sua forma qualificada pelo uso de meio insidioso (art. 121, § 2º,

inciso III, do CP) –, a lesão corporal grave da qual resulta enfermidade de natureza incurável (art. 129, § 2º,

inciso II, do CP) e o crime de perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 do CP). Quanto ao homicídio, de

modo geral, as denúncias são oferecidas pela modalidade tentada (art. 14, inciso II, do CP), uma vez que, nesta

fase da persecução, ainda que alguns sintomas da AIDS já tenham se manifestado, não se concretizou o

resultado morte causalmente vinculado ao vírus HIV.

Em uma primeira abordagem, é possível identificarmos uma evolução linear da jurisprudência no que

diz respeito ao enquadramento típico das condutas aqui examinadas. Como já foi dito, por ser este o substrato

fático mais corriqueiro nos julgados, com algumas poucas exceções, os casos mencionados tratarão de atos

sexuais envolvendo agente soropositivo que omite esta informação do parceiro e deixa de tomar as cautelas

cabíveis para evitar o contágio. Assim, de início, não seria desacertado afirmar que, em sua generalidade,

8Vale destacar que, ainda que haja uma série de situações hipotéticas em que um agente atue de modo a tornar possível a

transmissão do vírus, os julgados atinentes à matéria versam, em sua maioria, a respeito de práticas sexuais.

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julgados mais antigos – de fins dos anos de 1990 e início da década de 2000 – optavam pela qualificação

objetiva dos fatos como tentativa de homicídio9.

Não obstante, em tempo próximo, com o desenvolvimento de técnicas e tratamentos que têm se

mostrado bastante eficazes, os pacientes soropositivos, ainda que não curados definitivamente, têm conseguido

um padrão de vida estável com o uso de antirretrovirais. Essa evolução no campo médico-farmacêutico parece

ter influenciado nos posicionamentos dos tribunais brasileiros; estes, em alguma medida, passaram a ter em

conta as chances – agora mais reduzidas – de a contaminação pelo vírus resultar em morte da vítima, desde

que esta receba um acompanhamento terapêutico adequado.

Vale mencionar, a título ilustrativo, julgado relativamente recente do Tribunal de Justiça de São Paulo10

em que é descrita esta evolução no tratamento jurisprudencial da matéria, a qual teria permanecido atrelada ao

progresso das ciências médicas. No voto do relator, incorporado ao acórdão, pode-se ler expressamente que a

imputação de homicídio – consumado ou tentado, a depender da situação – era a via corrente no tempo em que

os tratamentos disponíveis, ainda limitados, não poderiam garantir muito mais do que “alguma sobrevida ao

doente”. Isto teria sido alterado em tempo recente, quando a síndrome da imunodeficiência humana passou a

ser tomada por especialistas em infectologia como doença crônica, que pode ser compatível com uma vida de

qualidade, desde que o paciente seja guarnecido pelos fármacos e terapias necessários.

Assim, estaria aberto o caminho para a atribuição de qualificações jurídicas diferentes do homicídio

(consumado ou tentado) – em especial, os crimes de lesão corporal gravíssima (em razão da enfermidade

permanente decorrente da contaminação) e de perigo de contágio de moléstia grave. Ressalte-se que não se

pretende discutir, neste momento, questões referentes à tipicidade subjetiva, que assumem inegável importância

9Nesse sentido: TJRS, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Marcelo Bandeira Pereira, Recurso Criminal n. 698485232, j.

17/12/1998. Neste acórdão, é bom que se ressalte, os julgadores não optaram pela qualificação definitiva dos fatos como tentativa de homicídio. Tratando-se de recurso em sentido estrito interposto pela defesa em face da decisão de pronúncia, como se pode inferir a partir da leitura do voto do relator, a Câmara julgadora entendeu, tão-somente, que, ante a descrição fática, era de rigor a remessa do feito para julgamento pelo Tribunal do Júri. Assim, nos termos do voto do relator, apenas o Conselho de Sentença poderia decidir sobre a eventual configuração do animus necandi. Como apontado por Andrei Zenkner Schmidt (Aspectos jurídico-penais da transmissão da AIDS. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 10, n. 37, p. 211, jan./mar. 2002), em razão dessa decisão foi impetrado habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, HC n. 9.378/RS, j. 18/10/1999) que, à unanimidade, ratificou o posicionamento da corte gaúcha, entendendo possível a tipificação como tentativa de homicídio. Igualmente nesse sentido, pode-se citar: TJSP, Terceiro Grupo de Câmaras Criminais, Rel. Des. Luzia Galvão Lopes, Revisão Criminal n. 232.233-3/1-00, j. 14/09/2000. Neste julgamento, o peticionário pretendia a desconstituição de sentença emanada do Tribunal do Júri e que o havia condenado pela prática de duas tentativas de homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I e IV, do Código Penal), sendo uma delas em concurso formal com o crime de atentado violento ao pudor (art. 214 do CP, antes da reforma promovida pela Lei n. 12.015/09) e a outra acompanhada da causa de aumento prevista na antiga redação do § 4º do art. 121, in fine (homicídio doloso praticado contra menor de 14 anos). Para os fins aqui pretendidos, basta destacar que o peticionário pleiteava o reconhecimento de decisão manifestamente contrária à prova dos autos em relação a uma das tentativas de homicídio, sustentado ausência de comprovação de animus necandi e impossibilidade de transmissão do HIV por beijo. A despeito da manifestação da Procuradoria de Justiça pela procedência do pedido com atribuição de nova qualificação jurídica ao fato, a relatora, pautada em citação de trecho da 11ª edição da obra “Medicina Interna de Harrison”, votou pela manutenção da decisão rescindenda, visto que o autor havia beijado a vítima “de maneira agressiva e perfeitamente capaz de produzir a transmissão de saliva ou substância hematóide infectada”. Os demais julgadores, unanimemente, acompanharam o voto, no qual também se lê que é presumível o animus necandi, “uma vez que o resultado morte é consequência normal da AIDS”.

10TJSP, 1ª Câmara Criminal, Rel. Des. Figueiredo Gonçalves, Recurso em Sentido Estrito n. 0023398-40.2009.8.26.0590, j. 10/09/2012. Neste caso, a Câmara julgadora decidiu pela manutenção da decisão do magistrado de primeiro grau que determinou a desclassificação e remessa dos autos ao juízo competente, por entender que não haveria crime doloso contra a vida, sendo que a denúncia havia sido oferecida por tentativa de homicídio qualificado pelo uso de meio insidioso.

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nas abordagens doutrinárias a respeito deste tema11. Por seu potencial para figurar como leadingcases em

julgamentos posteriores, vale o destaque para dois acórdãos prolatados pelas Cortes Superiores brasileiras em

tempo recente.

O primeiro deles, do Supremo Tribunal Federal12, é um habeas corpus impetrado em favor de paciente

a quem foi atribuída a prática de tentativa de homicídio, pois este, conhecedor de sua condição de portador do

HIV, teria mantido, em tempos distintos, “relacionamento amoroso e sexual” com três mulheres, que

desconheciam sua doença. O writ pretendia, em síntese, a desclassificação para o tipo previsto no art. 131 do

CP, evitando, assim, o julgamento pelo Tribunal do Júri. O relator, Ministro Marco Aurélio, manifestou-se no

sentido de que “descabe cogitar de tentativa de homicídio na espécie, porquanto há tipo específico considerada

a imputação – perigo de contágio de moléstia grave. Verifica-se que há, até mesmo, presente o homicídio, a

identidade quanto ao tipo subjetivo, sendo que o do artigo 131 é o dolo de dano, enquanto, no primeiro, tem-se a

vontade consciente de matar ou assunção de risco de provocar a morte. Descabe potencializar este último a

ponto de afastar, consideradas certas doenças, o que dispõe o artigo 131 (...)”.

O voto do relator foi acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli e Cármen Lúcia, até a interrupção do

julgamento pelo pedido de vista do Ministro Ayres Britto. Na sessão em que este foi retomado, o Ministro Ayres

Britto proferiu seu voto, discordando do relator quanto à qualificação jurídica que este atribuíra aos fatos postos

para análise. Calcado em lições doutrinárias a respeito do tema, bem como em pesquisa acerca da

criminalização da transmissão do HIV no Europa, o voto-vista orientou-se no sentido de que, em última análise, a

transmissão dolosa do HIV, considerados os resultados que dela podem advir, pode ser considerada,

juridicamente, como qualquer das condutas típicas supramencionadas (homicídio, lesão corporal gravíssima em

razão da enfermidade permanente ou perigo de contágio de moléstia grave). E, com relação ao quadro fático do

caso específico examinado naquele habeas corpus, o Ministro entendeu que poderia haver a desclassificação,

ante a manifesta ausência de animus necandi, mas não a precisa atribuição de nova qualificação jurídica, a qual

teria de ser dada pelo juízo competente.

A decisão foi dada de forma unânime – para afastar o julgamento pelo Tribunal do Júri13 –, mas, se

examinados detida e individualmente os pronunciamentos de cada ministro, podem ser observadas divergências.

De fato, o próprio Ministro Ayres Britto chegou a asseverar que, se lhe fosse dado desclassificar o delito,

“desclassificaria para ‘lesão corporal qualificada pela enfermidade incurável’”. Também nessa linha, a posição do

Ministro Ricardo Lewandowski, para quem “no atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela

11Para fazer apenas uma referência, Cezar Roberto BITENCOURT (Tratado de direito penal: parte especial – Dos Crimes

Contra a Pessoa. 12. ed. São Paulo, Saraiva, 2012. v. 2, p. 220) entende que, no caso da transmissão do HIV, o enquadramento delitivo como perigo de contágio de moléstia grave, lesão corporal ou, ainda, homicídio, dependerá, basicamente, da “intenção do agente”.

12STF, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC n. 98.712/SP, j. 05/10/2010. 13A competência do Tribunal do Júri – colegiado heterogêneo composto por um juiz togado (juiz de direito que figura como

seu presidente) e por jurados (juízes leigos escolhidos entre os cidadãos) – vem fixada no art. 5º, inciso XXXVIII, “d”, da Constituição Federal do Brasil de 1988. No dispositivo referido, há previsão no sentido de que fica reservada ao júri “a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”, quais sejam, o homicídio, o induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, o infanticídio e o aborto. Conforme adverte Gustavo BADARÓ (Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2012. p. 467), esta é uma competência mínima e obrigatória do Tribunal do Júri, decorrente da letra da própria Constituição, mas não há impedimentos para que a lei infraconstitucional a amplie, o que, contudo, não se verifica na atual legislação brasileira. Na decisão comentada, ao afastar o julgamento pelo Tribunal do Júri, o Supremo Tribunal Federal considerou inconteste a não caracterização do homicídio (consumado ou tentado), ainda que não tenha se posicionado, de forma unânime, quanto à melhor qualificação jurídica dos fatos.

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não só é grave, nos termos do artigo 131, como também é incurável”14.

Já o mencionado julgado do Superior Tribunal de Justiça15 – igualmente, um habeas corpus –

demonstra maior precisão quanto à definição de uma figura típica objetiva. Neste caso, no mérito, o impetrante

pretendia o enquadramento da conduta do paciente16 – condenado por lesão corporal gravíssima em razão da

enfermidade incurável resultante – em um dos tipos penais constantes do Capítulo III do Título I da Parte

Especial do Código Penal (“Da periclitação da vida e da saúde”)17.

Em seu voto, a relatora – que foi acompanhada por todos os integrantes da Turma julgadora –, fez

expressa referência ao HC n. 98.712/SP do STF, especialmente ao voto-vista do Ministro Ayres Britto e ao

mencionado posicionamento do Ministro Lewandowski, para concluir que, do modo como os fatos e as provas

vinham dispostos, a melhor solução seria a manutenção da capitulação jurídica já conferida (art. 129, § 2º, inciso

II, do Código Penal). Da leitura do acórdão, também é possível inferir que esta decisão foi pautada na convicção

de que, no atual estágio da ciência, a síndrome da imunodeficiência adquirida ainda se enquadra na definição de

“enfermidade incurável”.

Estaria, assim, caracterizada a evolução linear mencionada no início. A alteração de entendimento,

como dito, poderia ser relacionada ao progresso das ciências médicas e farmacêuticas18 e, de fato, esta

inclinação demonstrada pelo STF e também pelo STJ nos últimos anos parece ter sido, já há algum tempo –

mesmo antes das decisões das Cortes Superiores –, incorporada por Tribunais de Justiça estaduais19. Todavia,

ainda que em menor número, podem ser encontradas decisões recentes que optam pela tipificação da tentativa

de homicídio20, baseadas, em sua generalidade, na forma como o elemento subjetivo do tipo se apresenta no

14Em sentido próximo é o posicionamento de Guilherme de Souza NUCCI (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal

Comentado. 10. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. p. 658) para quem o tipo penal do art. 131 se afigura insuficiente, uma vez que a AIDS “ainda é considerada uma doença letal”.

15STJ, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, HC n. 160.982/DF, j. 17/05/2012. 16Do voto da relatora é possível extrair que a conduta do paciente atendeu ao padrão já descrito: prática de relações

sexuais, durante um determinado intervalo temporal, sem uso de preservativos, com vítima desconhecedora de sua condição de portador do HIV, o que possibilitou a conclusão das instâncias ordinárias pela verificação do dolo eventual.

17Neste capítulo, inserem-se os seguintes crimes: perigo de contágio venéreo, perigo de contágio de moléstia grave, perigo para a vida ou saúde de outrem, abandono de incapaz, exposição ou abandono de recém-nascido, omissão de socorro, condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial e, por fim, o delito de maus-tratos.

18Nos debates havidos durante a primeira sessão de julgamento do indigitado habeas corpus, os Ministros Ayres Britto e Ricardo Lewandowski mencionaram expressamente os avanços alcançados pelo Brasil no tratamento da AIDS, sobretudo em razão do emprego do “coquetel de medicamentos específicos para esse tipo de moléstia”.

19A esse respeito, podem ser citados dois julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo em que foram mantidas as condenações de primeira instância pela prática de lesão corporal grave da qual resultou enfermidade incurável para as vítimas (art. 129, § 2º, inciso II, do CP): TJSP, 1ª Câmara Criminal, Rel. Des. Mário Devienne Ferraz, Apelação n. 01.100.481.3/6-0000-000, j. 15/01/2008 e TJSP, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Teodomiro Mendez, Apelação n. 993.07.056216-1, j. 23/08/2010. Neste último julgado, da leitura do corpo do acórdão é possível inferir que, de início, o membro do Parquet a quem foram distribuídos os autos requereu sua remessa ao Promotor de Justiça oficiante perante a Vara do Júri da comarca. Suscitado o conflito de atribuição, o Procurador-Geral de Justiça entendeu não estar configurada a prática, em tese, de crime doloso contra a vida, de modo que a atribuição para o feito não seria, de fato, do Promotor atuante junto ao Tribunal do Júri. Entendendo, da mesma forma, tratar-se de crime de lesão corporal gravíssima: TJSC, 1ª Câmara Criminal, Rel. Des. Marli Mosimann Vargas, Apelação n. 2011.030246-5, 13/12/2011; TJRS, 3ª Câmara Criminal, Rel. Des. Elba Aparecida Nicolli Bastos, Apelação n. 70028856680, j. 30/04/2009; e, por fim, TJMG, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. José Antonino Baía Borges, Apelação n. 1.0000.00.342300-1/000, j. 30/10/2003. Interessante destacar que este último acórdão, a despeito de haver sido julgado há quase dez anos, já se posicionava no sentido de que a correta qualificação jurídica da conduta daquele que pratica relações sexuais desprotegidas com parceira desconhecedora de sua condição de soropositivo pratica é o delito previsto no art. 129, § 2º, II, do CP, em razão de a AIDS ser doença incurável.

20V. g., TJDF, 2ª Turma Criminal, Rel. Des. Alfeu Machado, Recurso em Sentido Estrito n. 20100310176367, j. 11/11/2010. Neste caso, o modus operandi utilizado pelo agente em nada se assemelha à transmissão por via sexual. Da leitura do

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caso concreto. Nestes casos, não se têm verificado maiores questionamentos acerca da possibilidade de o

agente, a despeito de suas intenções, poder ou não controlar o curso causal encetado por sua atuação.

Desse modo, em síntese, pode-se afirmar que a abordagem jurisprudencial da proteção penal da saúde

de terceiros em razão da prática de atos capazes de transmitir o HIV revela evolução, com tendência a

predominar, em tempo atual, a tipificação com base no delito de lesão corporal grave, em função do resultado

“enfermidade incurável” (art. 129, § 2º, II, do Código Penal). Não se pode descartar, contudo, o fato de que as

análises da jurisprudência têm se mostrado, frequentemente, casuísticas: se, em alguns casos, como no

julgamento do HC n. 160.982/DF pelo STJ, vislumbra-se a busca de uma tipicidade objetiva mais precisa – em

especial através de considerações como a atribuição do qualificativo “enfermidade incurável” à AIDS, em

oposição a “moléstia grave” –, em outros, a solução da questão é relegada, fundamentalmente, para momento

posterior à prova do dolo21. Assim, as respostas dadas a perguntas como: “houve animus necandi?”22 ou “o

agente assumiu o risco de transmitir doença incurável” assumem destacada importância e, em última análise,

determinam a qualificação do injusto.

4.3. O crime de lesões corporais segundo a doutrina penal brasileira: inaplicabilidade ao caso concreto

No campo da doutrina, a conduta descrita no caso estudado também não encontra fácil solução sob o

ponto de vista jurídico-criminal. Tomando-se como ponto de partida a evolução jurisprudencial acerca da

transmissão da AIDS, caberia aqui uma análise sobre a pertinência em se considerar a conduta praticada pela

gestante soropositiva como crime de lesão corporal contra o próprio filho (nascituro).

Em síntese, cabe questionar se o sujeito passivo do crime descrito no art. 129 do Código Penal

brasileiro pode ser um ser humano que ainda não nasceu, ou seja, o feto. Este parece ser, portanto, o

pressuposto para uma possível adequação típica da conduta descrita inicialmente.

relatório, pode-se extrair que O. M. P. fora denunciado pela prática, em tese, de tentativa de homicídio qualificado pelo uso de meio cruel (art. 121, § 2º, inciso III, c/c art. 14, inciso II, ambos do CP), pois, sabendo-se portador do HIV, extraiu o próprio sangue por meio de uma seringa e, logo após, injetou parte deste em uma funcionária do nosocômio que tentou contê-lo. O. M. P. foi pronunciado e interpôs o recurso em sentido estrito em face desta decisão. No julgamento, a fim de manter a pronúncia por tentativa de homicídio, argumentou o relator que “[e]mbora a Defesa levante a questão do crime se amoldar ao descrito no art. 131 do CP, na medida em que o Recorrente pretendeu contaminar as vítimas com moléstia grave, é certo que a AIDS não se configura como moléstia grave e sim como doença letal, até o momento, e que inexoravelmente leva à morte”.

21Esse casuísmo na interpretação jurisprudencial, essencialmente pautado na prova do dolo, ficou mitigado em caso julgado pelo TJSP no ano de 2008 (1ª Câmara Criminal, Rel. p/ o Acórdão Des. Péricles Piza, Apelação n. 993.05.070796-2, j. 01/12/2008). Neste julgado, figurou como apelante J. L. C. M., réu condenado pelo Tribunal do Júri pela prática de tentativa de homicídio qualificado pelo uso de meio insidioso (art. 121, § 2º, III, c/c art. 14, II, ambos do CP), por ter mantido relações sexuais sem preservativos com vítima que não sabia ser ele portador do HIV. O relator designado, em seu voto, além de conferir destaque para o progresso das ciências médicas, afirma que “embora a transmissão da doença seja controlável pelo agente, a ocorrência do resultado morte escapa ao seu domínio e vontade”. Nesse sentido, entendeu o julgador que a conduta praticada pelo réu, objetivamente, não poderia causar a morte da vítima. Em sua fundamentação, tratando do elemento subjetivo, o relator designado também destacou que a prova do dolo eventual não se sustentaria, uma vez que não se coadunaria com o animus necandi o fato de a vítima, voluntariamente, manter relacionamento amoroso com o réu até pouco tempo antes da sessão do júri. Tratando-se de apelação interposta em face de decisão do júri, não caberia ao Tribunal a atribuição de nova qualificação jurídica aos fatos, mas, de qualquer modo, por maioria de votos, a Câmara julgadora determinou a realização de nova sessão de julgamento, entendendo que a anterior sentença mostrou-se manifestamente contrária à prova dos autos.

22Como exemplo de acórdão em que foi dado grande destaque à necessidade de conclusão pela não verificação do animus necandi – o que, de acordo com os julgadores, só poderia ser decidido pelo Tribunal do Júri – para que se afastasse a qualificação de tentativa de homicídio: TJSP, 6ª Câmara Criminal, Rel. Des. José Raul Gavião de Almeida, Recurso em Sentido Estrito n. 990.09.147142-9, j. 24/06/2010.

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A esse respeito, observa-se que significativa parte dos autores faz referência apenas à pessoa viva

como possível sujeito passivo da infração. Parece evidente, nesses casos, a intenção de diferenciar a lesão

corporal perpetrada contra pessoa com vida em relação a eventuais lesões dirigidas à pessoa morta, ou seja, um

cadáver. Resta claro que somente na primeira hipótese é possível falar no crime contra a integridade física ou

psíquica da pessoa. Ilustrativas, nesse sentido, são as afirmações de Magalhães Noronha e Cézar Roberto

Bitencourt. Para o primeiro, o sujeito passivo é o homem vivo23, ao passo que, para o segundo, “sujeito passivo

também pode ser qualquer pessoa humana viva, com exceção das figuras qualificadas (§§ 1º, IV, e 2º, V).

Nessas figuras qualificadas, somente a mulher grávida pode figurar na condição de sujeito passivo do crime de

lesões corporais. Eventuais danos produzidos em cadáver, à evidência, não vêm a se adequar à conduta

descrita no art. 129. As restrições à autoria são aquelas próprias limitadas pela própria dogmática penal, que

afastam a imputabilidade. Qualquer ser humano vivo pode ser sujeito passivo do crime de lesões corporais”24.

Há outros autores, ainda, que são mais específicos quanto ao momento a partir do qual é possível falar

na proteção penal da integridade física e psíquica da pessoa. Para eles, somente após o nascimento é que

incide essa específica tutela penal sobre a pessoa. Assim, por exemplo, manifestam-se Paulo José da Costa

Júnior, José Henrique Pierangeli e Luiz Régis Prado. O primeiro afirma que “sujeito passivo é qualquer pessoa

humana, a contar do parto”25; para o segundo, “o tipo refere-se a outrem, que significa qualquer pessoa viva, ou

seja, a qualquer pessoa se já iniciado trabalho de parto, com ressalvas de hipóteses de outro delito (v. g., aborto

e infanticídio)”26; por fim, o terceiro estabelece que “sujeito passivo é qualquer ser humano vivo, a partir do

momento em que se tem por iniciado o parto”27.

No sentido de excluir expressamente a possibilidade do feto ser sujeito passivo do crime de lesões

corporais, manifestaram-se Fernando Galvão e André Estefam. O primeiro afirma que “o feto, por ainda não

constituir uma pessoa autônoma em relação ao corpo da gestante, não pode ser sujeito passivo do crime de

lesão corporal”28, enquanto o segundo pondera no sentido de que “só pode figurar como sujeito passivo do crime

o ser humano nascido. Não há qualquer outro requisito para ser vítima do delito. (...) Deve-se ter em mente que

a proteção penal do nascituro se dá por meio dos arts. 124 a 127 do CP (aborto)”29.

Em posição claramente isolada, Ney Moura Teles entende de maneira diversa dos autores acima

citados, chegando a afirmar que “o preceito constitucional fundamental protege a vida humana, ainda quando em

desenvolvimento no útero materno. É certo que também quer conferir proteção à integridade corporal e à saúde

do ser em formação. (...) Evidente, pois, que também o ser em formação possui uma integridade corporal que

sustenta sua vida”. Em continuidade ao seu raciocínio, conclui ainda que, “quando a ofensa recair sobre o ser

humano em formação, sujeito passivo é a coletividade, a sociedade, o Estado, o interesse estatal na

23NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal: dos crimes contra a pessoa – Dos Crimes Contra o Patrimônio. São Paulo:

Saraiva, 1963. v. 2, p. 83. 24BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit., v. 2, p. 187. No mesmo sentido, posiciona-se Euclides Custódio da Silveira Luna,

para quem “o sujeito passivo também pode ser qualquer pessoa, desde que viva, independentemente das suas condições pessoais, sociais, jurídicas etc.”. LUNA, Euclides Custódio da Silveira. Direito penal: Crimes contra a pessoa. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1973. p. 135.

25COSTA JR., Paulo José da. Código Penal comentado. 9. ed. São Paulo: DPJ, 2007. p. 389. 26PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial (arts. 121 a 234). São Paulo: Ed. Revista

dos Tribunais, 2005. p. 126. 27PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial – Arts. 121 a 249. 11. ed. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 2013. v. 2, p. 164. 28GALVÃO, Fernando. Direito penal: Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 136. 29ESTEFAM, André. Direito penal: parte especial (arts. 121 a 183). São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2, p. 166-167.

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preservação da integridade corporal ou da saúde do ser humano em formação”30.

Diante dos posicionamentos expostos, e considerando que o entendimento de que o feto pode ser

sujeito passivo no crime de lesões corporais é voz solteira na doutrina brasileira, parece ter razão Gisele Mendes

de Carvalho, quando demonstrou a existência de lacunas na proteção jurídico-penal do nascituro, entre as quais

a ausência de criminalização de condutas resultantes em lesão corporal do feto. Embora a autora tenha

enfatizado a exposição da vida e da integridade física e psíquica do ser humano em formação decorrentes das

diversas terapias e pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no âmbito das ciências – e não propriamente

consequentes à conduta deliberada da mãe, como no caso analisado –, não se pode negar que “tais lesões,

geralmente efetuadas através do corpo materno, podem dar lugar a graves malformações no corpo do concebido

que serão determinantes para o desenvolvimento anômalo do mesmo durante a gestação e para que este,

quando nasça, padeça diversas anomalias em sua integridade física e psíquica, podendo inclusive vir a falecer

em virtude delas”31.

Decorrência lógica dessa constatação, referida autora sustenta que, “com o fim de garantir a proteção

desse importante bem jurídico não só à pessoa já nascida, mas também ao concebido, suprindo assim uma

grave lacuna legislativa em nosso ordenamento, estima-se adequada a criação do tipo de lesões ao concebido,

tanto doloso como culposo”32.

4.4. A questão enfrentada no direito comparado: o crime de lesões ao feto no direito espanhol

Na Espanha, a reforma no ordenamento jurídico-penal ocorrida em 1995 representou uma quebra de

paradigma na proteção ao nascituro. Até então, a proteção à saúde do ser humano em formação se dava,

exclusivamente, por meio do delito de aborto, enquanto o tipo penal de lesões corporais visava a proteger

somente a integridade física e psíquica de pessoas já nascidas com vida – tal como se dá no Brasil, atualmente.

Apesar de haver decisão do Tribunal Supremo daquele país no sentido de que os delitos de lesão

protegeriam a saúde e integridade das pessoas, tanto frente a ações dirigidas a elas como frente a agressões de

natureza pré-natal, isto é, que incidem sobre o feto e causando nele seus efeitos, atingindo posteriormente a

pessoa nascida, não era esse o entendimento majoritário da doutrina. Ao contrário, esta se posicionava no

sentido de que o crime de lesões não se aplicava aos fetos, pois a referência à lesão causada “em outrem”, ou

seja, em outra pessoa, impedia sua extensão às condutas dirigidas a um ser que ainda não teria nascido33.

30TELES, Ney Moura. Direito penal. São Paulo: Atlas, 2004. v. 2, p. 193-194. 31CARVALHO, Gisele Mendes de. Lacunas na proteção jurídico-penal do nascituro: os delitos de aborto culposo e de lesões

ao concebido. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 18., São Paulo-SP, 04-07 de nov. 2009. Anais... São Paulo, 2009. p. 1325. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2749.pdf>.

32A autora pondera, ainda, que na prática deverá ser mais frequente a ocorrência do crime na modalidade culposa, uma vez que tais lesões deverão ser causadas, em geral, por profissionais sanitários durante exames pré-natais e afins, mediante a execução de manobras imperitas. Id. Ibid., p. 1325.

33De acordo com Eduardo Ramón Ribas, “em efecto, pese a que el Tribunal Supremo estimó [...] que los delitos de lesiones protegían la salud e integridad de las personas, tanto frente acciones que actuara on directamente sobre ellas cuando ante agresiones de natureleza prenatal [grifo do autor], esto es, que incidieron en primer lugar sobre el feto, actuando em él sus específicos efectos, y alcanzaron posteriormente a la persona nacida, la doctrina coincidíama yoritariamente en la ausencia de tipos aplicables a estos últimos supuestos, pues la referencia de aquellos delitos a lalesíon causada a otro [grifo do autor], es decir, a una persona, impedía su extensión a las que se hubieren ocasionado a un feto [grifo do autor]. Las limitaciones apunta das muestran la necesidad de crear una figura delictiva que sancione las intervenciones prenatales lesivas delnasciturus [grifo do autor], necesidad que tendrá su traducción legislativa em los arts. 157 y 158 del CP de 1995.” (RAMÓN RIBAS, Eduardo. El delito de lesiones al feto, incidência em el sistema de tutela penal de la vida y la salud. Granada: Comares, 2002. p. 45-48. (Estudios de derecho penal Dirigidos por Carlos Maria Romeo Casabona, 40).

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Se a criança morresse após o nascimento em consequência da realização de práticas abortivas,

deveria restar caracterizado o crime de aborto e não um crime contra a vida humana independente. Por outro

lado, as lesões produzidas no feto e manifestadas depois do nascimento não deveriam corresponder ao tipo de

lesões, e por não haver naquele ordenamento um tipo penal que punisse as lesões ao feto, estas restariam

impunes porque atípicas. Em outras palavras, uma interpretação extensiva que incluísse os fetos como sujeito

passivo no crime de lesões corporais vulneraria o princípio da legalidade34.

A fim de solucionar esse impasse, a reforma de 1995 do Código Penal espanhol introduziu os artigos

157 e 158, no Título referente às lesões ao feto (Titulo IV “De las Lesiones al Feto”).

Segundo o art. 157, “el que, por cualquiermedio o procedimiento, causareenun feto una lesión o

enfermedad que perjudique gravemente su normal desarrollo, o provoque enelmismo una grave tara física o

psíquica, será castigado con pena de prisión de uno a cuatroaños e inhabilitación especial para

ejercercualquierprofesiónsanitaria, o para prestar servicios de toda índole en clínicas, establecimientos o

consultorios ginecológicos, públicos o privados, por tiempo de dos a ochoaños.” Já o art. 158, por sua vez,

estabelece que “el que, por imprudencia grave, cometiereloshechos descritos enel artículo anterior, será

castigado conla pena de prisión de tres a cinco meses o multa de seis a 10 meses. Cuandoloshechos descritos

enel artículo anterior fueren cometidos por imprudenciaprofesional se impondráasimismola pena de inhabilitación

especial para elejercicio de laprofesión, oficio o cargo por un período de seis meses a dos años. La embarazada

no será penada a tenor de este precepto”.

Como se pode observar, o art. 157 incrimina a conduta de causar, por qualquer meio ou procedimento,

lesão ou enfermidade que prejudique o normal desenvolvimento do feto; o art. 158, por seu turno, estabelece

uma modalidade culposa (imprudência grave) para as condutas descritas no artigo 157, pune o profissional que

comete o crime em exercício da profissão, e exclui a punição da gestante na hipótese do artigo 158.

Como pontua Francisco Muñoz Conde, os delitos de lesões ao feto abarcam todas as demais situações

nas quais há um dano a integridade física do nascituro sem, contudo, causar-lhe o aborto. Segundo o autor, os

perigos aos quais está exposto o nascituro durante a gravidez, e não apenas quando há conflito com os direitos

da mãe, mas pela própria fisiopatologia da reprodução e a intervenção de terceiros nesse processo, podem

repercutir não só causando-lhe a morte no ventre materno ou sua expulsão prematura para o exterior sem

condições de viabilidade (aborto), mas provocando-lhe alterações em sua saúde e em sua integridade física.

Apesar da importância da proteção ao feto nessas circunstâncias, havia uma lacuna legal no direito penal

espanhol, não preenchida por nenhuma das reformas legislativas anteriores e que deixava impunes tais lesões35.

34Conforme José Rodriguez Mesa, “si el niño muere después del nacimento como consecuencia de larealización de

practicas abortivas, hubrá que castigar por delito de aborto y no por un delito contra la vida humana independiente. Del mesmo modo las lesiones producidas em el feto y manifestadas despuésdelnacimento no se corresponderian com el tipo de lesiones, y como no existia em nuestro ordenamiento penal un tipo que castigara las lesiones al feto, éstas seriam impunes por atípicas.” Importa registrar, aqui, a outra corrente também presente na doutrina espanhola, ainda que minoritária: “si como resultado de La intervención sobre el feto se produce la muerte Del niño nacido vivo, se castigará como homicidio, y si em lo que se afecta al niño es em su salud o integridad, serán de aplicación los tipos de lesiones correspondientes”. (RODRÍGUEZ MESA, José. Algunas consideraciones acerca del bien juridico protegido em el delito de lesiones al feto. Revista de Derecho Penal y Criminologia, n. 6, p. 1069-1081, 1996).

35MUÑOZ CONDE, Francisco; Derecho penal: parte especial. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1996. p. 120.

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5. Conclusões

Casos como o descrito neste trabalho trazem para os estudiosos do direito penal importante

constatação quanto aos novos desafios que são impostos a esse ramo do ordenamento jurídico diante dos

problemas concretos que lhe são apresentados. Embora a busca por uma solução única nunca tenha sido o

objetivo desse estudo, não se pode negar a tentativa de alcançar uma resposta satisfatória a partir daquilo já

construído anteriormente pela doutrina e pela jurisprudência.

Numa primeira aproximação ao problema, copiar a solução proposta pelo ordenamento jurídico

espanhol poderia solucionar a insuficiência da proteção penal à integridade física do feto nos casos em que a

própria mãe se omite no tratamento da AIDS e seu filho acaba nascendo com a presença do vírus em seu

organismo. Contudo, analisando a situação com mais profundidade, logo se constata que a questão pode não

ser tão simples como aparenta.

Conforme descrito no início, é grande a probabilidade de não haver transmissão do vírus HIV quando a

mãe se submete aos tratamentos adequados; isso não significa, contudo, que a aderência aos protocolos

estabelecidos garanta, em 100% dos casos, a não infecção. Com essa premissa, portanto, não seria

dogmaticamente correto, no caso aqui narrado, concluir pela certeza absoluta de que a não submissão ao

tratamento foi conditio sinequa non para a transmissão vertical do vírus – embora não se discuta a grande

probabilidade disso ter acontecido. Nesse sentido, é de se questionar a utilidade de um tipo penal que proíba a

lesão corporal do feto, tal como se dá no direito espanhol, para casos como este. A dúvida quanto à existência

de nexo de causalidade entre conduta e resultado tornaria inviável o enquadramento típico do comportamento e,

portanto, a criminalização em nada aumentaria o nível de proteção dada pelo ordenamento jurídico à integridade

física do feto.

Da mesma forma, intrinsecamente relacionada a essa questão é a dificuldade que surgiria na esfera

processual, especialmente quanto à produção probatória. Em outras palavras, como demonstrar que houve a

transmissão do vírus da mãe para o feto em razão, exclusivamente, da não adesão ao tratamento?

Diante de tais dificuldades, a solução talvez esteja na construção de um tipo penal de perigo para

abarcar o caso em tela, já que, dessa forma, evitar-se-ia o problema do nexo de causalidade e,

consequentemente, de sua prova. É de se questionar, então, acerca da adequação de tal construção típica,

tendo em vista que a antecipação da tutela penal abrangeria, inevitavelmente, inúmeras outras situações além

daquelas inicialmente imaginadas pelo legislador (e que talvez pudessem ser satisfeitas com menos ameaça à

liberdade individual de seu autor).

Como se vê, são muitos os novos questionamentos e desafios que se impõem para o direito penal

frente a novos problemas concretos criados pela realidade. O caso analisado neste trabalho traz à baila apenas

um pequeno exemplo entre tantos outros que se tornaram visíveis a partir do avanço da medicina e dos

conhecimentos técnicos e científicos que agora é possível alcançar.

Antes de assumir qualquer posição definitiva quanto à necessidade e adequação da criação de tipo

penal igual ou semelhante àqueles inseridos na Espanha, impõe-se a reflexão acerca das limitações próprias do

direito penal e da medida em que, por meio da sua modernização, é possível (e desejável) proporcionar maior

proteção a antigos e consagrados bens jurídicos, como é o caso da integridade física do ser humano.

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

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Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 30, 2014

HISTÓRIA DO DIREITO: LEGISLAÇÃO E CONSTITUIÇÃO.

PORTUGAL/BRASIL

Gonçalo Sampaio e Mello∗

Sumário: 1. Introdução; 2. Constituição Histórica portuguesa e seu conteúdo; 3. Legislação reinícola respeitante ao Brasil – alguns aspectos; 4. Transição da Monarquia Tradicional para a Monarquia Liberal.

Constitui para mim um privilégio tomar a palavra na sessão de encerramento do presente colóquio,

epígono do encontro que em Fevereiro deste ano trouxe a Portugal juristas da Universidade de Pernambuco.

Não é comum reunir entre nós colegas das duas Faculdades de Direito mais antigas do Brasil, fundadas vai para

dois séculos graças à iniciativa de um monarca que juntou na sua pessoa os títulos de Rei de Portugal e de

Imperador do Brasil.

Permita-se-me que manifeste desde já o meu apreço pela grande nação-irmã. Nascido e criado em

Lisboa e antigo aluno desta Casa, interrompi o meu curso a meio do 2.º ano lectivo e parti rumo ao Brasil onde

passei alguns dos melhores momentos da minha vida e obtive o grau de bacharel em Ciências Jurídicas.

Brasileira épois a minha Licenciatura, brasileira é a minha matrícula na Ordem dos Advogados e luso-brasileiro

ficou para sempre o meu coração. Nunca consegui esquecer, com efeito, a estima, a sophia, a sympatheia que

me rodearam naquele grande Império, a ponto de haver tomado para mim a divisa de Alexandre de Albuquerque

segundo a qual a nós, portugueses, incumbem tão somente dois deveres: amar Portugal sobre todas as coisas;

amar o Brasil como a nós próprios. Creio ser o único docente desta Faculdade em exercício de funções com

carta de bacharel lavrada em terras de Santa Cruz.

Quando, nos idos de 1827, D. Pedro IV de Portugal, I do Brasil, instituiu cursos jurídicos nas cidades de

São Paulo e de Olinda, preterindo outros locais de relevo como eram São João d’El-Rei, São Luiz do Maranhão,

Cachoeira da Bahia, Salvador, Paraíba e Rio de Janeiro, estava longe de prever, suponho eu, o impacto que os

mesmos cursos haveriam de ter na formação das elites do Império e no desbravar da cultura filosófico-jurídica

dos séculos XIX e XX.

Basta referir, a este propósito, que por Olinda, pelo Recife, por Pernambuco, passaram nomes como

Tobias Barreto, Sílvio Romero, ClovisBevilaqua, Martins Júnior, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Artur Orlando,

Gilberto Freyre. Tobias Barreto, poeta, prosador, poliglota, germanista, darwinista, a quem se deve a maior

revolução cultural do tempo em que lhe foi dado viver. Sílvio Romero, também poeta, prosador, historiador,

filósofo, lente do Colégio D. Pedro II, discípulo e amigo de Tobias. Martins Júnior, homem de Letras, catedrático,

tribuno, orador – orador imbatível, senhor de capacidade retórica e dialéctica que ninguém ousou então enfrentar

– mão aberta/punho fechado, mulher insinuante para cativar/mulher armada para ferir – e apóstolo grande da

libertação dos escravos do Brasil. ClovisBevilaqua, de igual modo catedrático, jurisconsulto, privatista, autor do

projecto de Código Civil pelo qual regeu o país-irmão os seus destinos durante quase um século. Castro Alves,

aluno em Pernambuco e depois em São Paulo, morto prematuramente aos 24 anos de idade e que foi o mais

alto representante do lirismo romântico do Brasil, aquele que mais perto andou da alma poética nacional.

∗Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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Joaquim Nabuco, político, historiador, publicista, diplomata, espírito profundo, talento multiforme, embaixador do

seu país nos Estados Unidos da América. Artur Orlando, amigo de Romero, também ele jurista, filósofo,

germanista, autor de obras sem as quais não é possível ainda hoje compreender a cultura da época em que

viveu – Brasil: o Homem e a Terra, Filocrítica, Novos Ensaios, v.g.. Enfim Gilberto Freyre, sociólogo maior,

pintor, poeta, estudioso das raízes luso-tropicais, a quem esta Casa teve o privilégio de conceder em 1985 o

grau de doutor honoris causa.

Mas que dizer também da Faculdade de Direito de São Paulo? Que dizer do convento do Largo de São

Francisco, que abriu pela primeira vez as suas portas ao público jurídico a 1 de Março de 1828 pela mão de

Avelar Brotero, bacharel formado em Leis na Universidade de Coimbra? Sic etsimpliciter: a escola das Arcadas

deu à sua pátria treze chefes do Estado, incluindo Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves, Afonso

Pena, Nilo Peçanha. Deu à sua pátria Ruy Barbosa, Pimenta Bueno, Barão do Rio Branco, Miguel Reale – o

maior jurisconsulto, o maior senador, o maior diplomata, o maior filósofo do Direito. Deu-lhe figuras como

Teixeira de Freitas, José de Alencar, Monteiro Lobato, Olavo Bilac. Teixeira de Freitas, também transferido para

Olinda, autor do Esboço e da Consolidação das Leis Civis que o imortalizaram. José de Alencar, dramaturgo e

romancista cuja obra adquiriu renome além-fronteiras. Monteiro Lobato, o genial criador de Contos Leves,

Contos Pesados, Urupês, Negrinha, O Macaco que se fez Homem e tantos outros títulos de literatura infanto-

juvenil. Olavo Bilac, cronista, novelista, jornalista mas poeta sobretudo, poeta parnasiano, príncipe dos líricos do

seu tempo. Se apreço intelectual tenho desde há muito pela Escola de Pernambuco, admiração não menor sinto

pela Escola de São Paulo, que de resto há anos atrás pessoalmente visitei.

Dito isto, Senhoras e Senhores, gostaria de parar por aqui, de por aqui ficar. Mais ainda: gostaria de

partir de novo rumo ao Brasil, onde os homens me parecem ser hoje mais livres e realizados do que em Lisboa.

Com bilhete de ida sem volta? Porventura. Ilusão minha? Talvez. Ocorre entretanto que o Doutor Fernando

Araújo, Presidente do Instituto do Direito Brasileiro, me dirigiu convite para usar da palavra no âmbito do

presente colóquio e, sendo este meu distinto colega «therightman in therightplaceattherightmoment», não se me

afigurou legítimo recusar a elegância da oferta. Fá-lo-ei, por conseguinte, não para proveito alheio mas para

benefício próprio, singular paradoxo em que é comum caírem quantos procuram elevar-se.

2. O tema que pretendo versar situa-se no campo da História do Direito e tem como título “Legislação e

Constituição: Portugal-Brasil”

Desde que se fundou como reino independente, em meados do século XII, Portugal foi regido por uma

Constituição a que poderíamos chamar Histórica, conjunto de “Leis Fundamentais” que orientaram os destinos

colectivos até ao século XIX. Após o triunfo do Liberalismo passou a ter uma Constituição Escrita (1822, 1826) e

o mesmo sucedeu com o Brasil na época do I Império (1824).

Pergunta-se: qual o conteúdo da Constituição Histórica portuguesa? Segundo o entender dos

especialistas, a referida Constituição Histórica continha normas escritas e normas consuetudinárias, sendo estas

últimas mais relevantes do que as primeiras. Fruto do costume – tacitusconsensuspopuli longa

consuetudineinveteratus, na velha definição de Paulus -, configuravam uma formação espontânea do Direito que

o povo lidimamente sancionava. Povo não na acepção de terceiro Estado, como depois se perfilou, mas na

acepção de comunidade nacional compreendendo no seu seio as três ordens os braços do reino, quais eram o

clero, a nobreza e o povo strictosensu. “Os que rezam, os que lutam e os que trabalham”, a cruz, a espada e o

arado, alegoricamente falando. Ao clero competia a direcção espiritual da comunidade, à nobreza a direcção

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administrativa e militar, ao povo o esforço produtivo do país. E compreendendo também, naturalmente, o

monarca, como cabeça do corpus dessa mesma comunidade. O rei era, na Monarquia Tradicional, soberano por

direito próprio e dispunha de toda a simbologia inerente a tal condição: ceptro ou vara da justiça, trono ou

cadeira majestática, coroa ou sinal da realeza, espada ou signo da força. Rei esse cujo poder não era ilimitado,

todavia, mas estava submetido à vontade justiceira de Deus. Nunca entre nós se discutiu, com efeito, a origem

divina do poder. Sendo Deus o autor, governador e conservador de todas as coisas, seria também,

naturalmente, o criador do poder em abstracto (non estpotestasnisi a Deo). Aquilo que entre nós se discutiu, e

fez mesmo correr rios de tinta, foi o problema da transmissão do poder em concreto, ou seja, o problema de

saber para as mãos de quem transferia Deus o legítimo direito de governar. Para o papa como representante de

Cristo na terra? Para o rei como governante temporal por excelência? Para a comunidade que, mandatada por

Deus, o detinha in habitu e poderia até exercer in actu? Eis o debate que verdadeiramente se levantou. Todas

estas teses tiveram aliás aplicação no nosso País. Assim, a doutrina hierocrática do direito pontifício triunfou na

Idade Média, nomeadamente através da bula ManifestisProbatumque em 1179 reconheceu a realeza de D. Afonso

Henriques e da bula Grandi non Immeritoque em 1245 afastou D. Sancho II do governo do reino. A doutrina do

“direito divino dos reis” triunfou ao longo do século XVIII, época do absolutismo e do despotismo esclarecido. A

doutrina do poder popular ou comunitário permitiu ao País enfrentar as grandes crises políticas de 1385 (génese da

dinastia de Aviz) e de 1640 (génese da dinastia de Bragança). Seja como for, nunca se colocou em causa a origem

divina do poder e talvez por isso a religião católica, apostólica, romana tenha continuado a ser a crença oficial do

Estado português até 1910, ano da proclamação da República. E talvez também por isso a Constituição brasileira

em vigor, datada de 1988, continue a apelar para o nome de Deus no preâmbulo do seu articulado.

Mas regressemos ainda um pouco atrás. Qual o conteúdo da antiga Constituição Histórica, daquele

conjunto de “Leis Fundamentais” que orientaram os destinos colectivos entre o século XII e o século XIX?

Si vera est fama, a Constituição Histórica portuguesa continha normas escritas, de um lado e normas

consuetudinárias, de outro. As normas escritas eram três, não mais, a saber: a Lei de 1674 sobre tutela, curatela

e regência do reino em caso de menoridade ou incapacidade do monarca; a Lei de 1698, que permitiu ao filho do

rei que sucedesse a seu irmão governar sem prévio consentimento das cortes; e a Lei de Lamego, do século XII,

coeva da fundação da Monarquia mas só posta em vigor em 1641. Simplesmente, esta última norma era

apócrifa. Forjada durante o domínio filipino com o objectivo de legitimar o afastamento dos monarcas espanhóis,

não havia existido no plano dos factos em termos de veracidade ou autenticidade, sendo porém colocada em

vigor pelos nossos Restauradores e adquirindo depois a dimensão de mito. Fenómeno singular? Seguramente.

Repreensível? Porventura. Não ignoremos, todavia, o poder dos mitos. Povos que os não têm estão condenados

a morrer de frio, dizia La Tour du Pin, porque “o mito é o nada que é tudo”. O seu valor não está na realidade

que ele não é, mas na realidade que ele cria. Que seria de nós, Portugueses e Brasileiros, sem a aura mítica de

Inês de Castro, símbolo do amor e da morte, melhor dizendo, do amor que vence a morte? Que seria de nós

sem o mito de D. Sebastião, esse rei de fantástica memória ainda hoje tão vivo que continuam alguns na

angústia da sua procura? Que seria de nós sem Joaquim José da Silva Xavier, o «Tiradentes», vulto grande da

Inconfidência Mineira? Têm os mitos a capacidade de intervir da história e transformar a realidade e foi quanto

sucedeu com a citada Lei de Lamego.

Temos assim na antiga Constituição Histórica três normas escritas: Lamego, 1674, 1698.

Pelo que respeita às normas consuetudinárias, eram em maior número e revestiam mais larga

projecção. Entendidas como "costumes gerais e notorios”, “introduzidos de tempo immemorial por consentimento

tacito dos príncipes e dos estados do Reino e confirmados por uso constante e prática de acções publicas e

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reiteradas”, correspondiam a verdadeiros princípios fundamentais de direito público. António Ribeiro dos Santos,

Lente da Universidade de Coimbra e Desembargador da Casa da Suplicação, na polémica doutrinal que em

finais do século XVIII travou com o não menos erudito Pascoal de Melo Freire, arrola uma dezena delas, de

entre as quais, por motivo de brevidade, respigaremos apenas cinco.

São as seguintes:

1.ª Sucessão histórico-dinástica da coroa. A Monarquia portuguesa é hereditária e não electiva,

transmite-se por herança de sangue que não por carisma ou escolha dos governados e, no âmbito de tal

moldura institucional, obedece às regras da primogenitura, proximidade do grau, representação, masculinidade,

naturalidade e legitimidade. Significa isto que o parentesco em linha recta prevalece sobre o colateral, o grau

mais próximo sobre o mais afastado, o varão sobre a fêmea, o mais velho sobre os restantes, o herdeiro é fruto

de casamento canónico e a partir de 1641 é natural ou nascido no reino. Conforme dirão depois a Constituição

brasileira de 1824 (Artigo 117.º) e a Carta Constitucional portuguesa de 1826 (Artigo 87.º), a “descendencia

legitima succederá no Throno, segundo a ordem regular de primogenitura, e representação, preferindo sempre a

linha anterior ás posteriores; na mesma linha, o gráo mais proximo ao mais remoto; no mesmo gráo, o sexo

masculino ao feminino; no mesmo sexo, a pessoa mais velha á mais moça.”

2.ª Juramento do rei no momento da sua ascensão ao trono ou, para ser mais rigoroso, juramento

recíproco – do rei e da comunidade. O monarca jurava sobre a Bíblia respeitar os foros e bons costumes do

reino, governar rectamente e administrar justiça; a comunidade, nos três segmentos que a constituíam, jurava

lealdade e obediência à pessoa do monarca.

3.ª Religião cristã – católica, apostólica, romana – como religião oficial da Monarquia, preceito que a

Constituição brasileira (Artigo 5.º) e a Carta Constitucional portuguesa (Artigo 6.º) de igual modo preconizam.

4.ª Indivisibilidade do território do reino. Não sendo o território do reino património pessoal do monarca,

não lhe era lícito dispor do mesmo, desmembrá-lo ou reparti-lo entre os seus filhos. Afastou-se Portugal neste

ponto dos exemplos de D. Sancho de Navarra (1035) e de D. Fernando de Leão e Castela (1065), ambos

ocorridos nas vésperas do Condado Portucalense. Prevaleceu entre nós o princípio da unidade nacional.

5.ª Dever que o monarca tinha de tomar conselho, de ouvir a comunidade, seja em Cortes, que entre

nós surgem pela primeira vez em 1254 na cidade de Leiria, seja fora de Cortes, junto dos seus vassalos ou

validos. De um modo ou de outro não devia o príncipe decidir sozinho; antes, impunha-se-lhe auscultar as

pessoas mais gradas do reino, existindo mesmo na doutrina portuguesa quem atribua às Cortes papel de relevo

em matérias como lançamento de impostos, quebra do valor da moeda, juramento do herdeiro do trono,

casamento régio, declaração de paz e de guerra.

Ora, entendia-se que estas e outras normas de índole consuetudinária, sendo “Leis Fundamentais”, não

deveriam ser alteradas unilateralmente, quer pelo príncipe, quer pelos braços da nação. Forjadas lentamente em

luta de adaptação às realidades político-sociais e religiosas, eram fruto de um consenso, de um pacto, ainda que

não escrito, que só ambas as partes em conjunto poderiam licitamente modificar.

3. Para além do direito fundamental, contido na Constituição Histórica, existiu entre nós amplíssima

legislação ordinária. Portugal foi mesmo o primeiro país da Europa a organizar colectâneas de leis. Fê-lo através

das chamadas Ordenações Afonsinas ou de D. Afonso V (1447), a que se seguiram as Ordenações Manuelinas

ou de D. Manuel I (1521) e as Ordenações Filipinas ou de D. Filipe II (1603). Esta legislação ordinária era já da

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autoria ou responsabilidade do monarca, que não dos braços do reino. Sendo titular do poder legislativo, o rei

mandava elaborar a lei e podia até dispensar quem lhe aprouvesse do respectivo cumprimento. Sabemos que as

Ordenações Manuelinas tiveram aplicação no Brasil e o mesmo ocorreu com as Filipinas, que aliás vigoraram

mais tempo na antiga colónia do que na metrópole. Assim, entre nós até 1867, data do Código Civil do Visconde

de Seabra e no Brasil até 1916, data do Código Civil de ClovisBevilaqua, perfazendo um arco temporal de mais

de três séculos de vigência.

Perguntar-se-á: que assuntos ou matérias levaram a coroa portuguesa a legislar tendo como objecto o

território brasileiro, descoberto oficialmente em 1500 mas já conhecido dos nossos navegadores no reinado de

D. João II, algures entre 1492 e 1494? São inúmeras as normas reinícolas respeitantes ao Brasil-Colónia. Impor-

se-ia mesmo reuni-las em volume, dado o interesse que algumas delas revestem para a história do nosso direito

comum.

Refiro desde logo, à cabeça, as normas concernentes aos índios ou gentios, que a Companhia de

Jesus tenazmente defendeu, suscitando um debate teológico-político-jurídico que marcou a fogo a gravura de

toda uma época. Providências de 1570, 1587, 1595, 1605, 1609 e 1611 procuraram disciplinar a matéria,

acabando os índios por vir a ser declarados livres nas suas pessoas e bens e sendo proibida a escravatura e

mesmo o trabalho compulsivo. Só poderiam ser objecto de captura em caso de guerra com os colonos ou com

os outros silvícolas, guerraesta que, não raro, degenerava na antropofagia, prática entre eles habitual e

persistente. Recorde-se a tal respeito que em meados do século XVI chegaram a devorar Francisco Pereira

Coutinho, capitão-mor da Bahia, circunstância que motivou o envio de Tomé de Sousa como Governador-Geral

da colónia, corria o ano de 1549. Mas não só: ainda em 1808, já D. João VI se encontrava na América do Sul, foi

este monarca forçado a reprimir os nativos de Minas Gerais porque os mesmos devastavam quantos brancos,

mulatos, negros e pardos mansos encontravam pela frente. Isto não obstante a legislação pombalina de 1755-58

ter autorizado o casamento entre índios e mulheres portuguesas e entre portugueses e mulheres índias sem

perda de quaisquer direitos ou privilégios e haver facultado a uns e a outros a prática de actos de comércio com

inteira liberdade jurídica.

Outro assunto que levou a coroa a intervir foi o da ocupação de um território que desde a Carta de Pero

Vaz de Caminha maravilhou os portugueses e se ia revelando cada vez mais extenso, rico e heterogéneo. Uma

vez descoberto, impunha-se povoá-lo, operando um esforço sistemático de colonização interna. Sabemos que

logo em 1502 o rei D. Manuel I firmou com Fernão de Noronha um contrato de arrendamento das terras de Vera

Cruz que facultou ao arrendatário o direito de as explorar sob tríplice condição: enviar ao Brasil seis navios por

ano; fazer o reconhecimento de trezentas léguas de costa; aí fundar e manter fortaleza. Dois alvarás do mesmo

rei, datados de 1516, ordenaram ao feitor da Casa da Índia o fornecimento de machados, enxadas e toda mais

ferramenta às pessoas que fossem povoar a colónia, bem como a escolha de um homem prático, capaz de ir ao

Brasil dar início a um engenho de açucar, ao qual seriam pagas ajudas de custo e facultado o cobre e o ferro

que fossem necessários.

Outras providências de relevo foram a outorga de terras a capitães-donatários, que por sua vez as

poderiam entregar em regime de sesmaria a quantos quisessem explorá-las – misto de doação e enfiteuse – e,

sobretudo, o alargamento à América do Sul da aplicação da pena de degredo. Neste ponto revelou-se pródiga a

legislação régia, contida dentro e fora das Ordenações. Ceará, Pará, Maranhão, Mato Grosso, Santa Catarina,

Rio Grande, receberam muitos daqueles que, tendo saúde, robustez física e podendo ser úteis ao Estado, viviam

contudo à margem das convenções sociais: eram ociosos, vadios, jogadores de ofício, pessoas de maus

costumes, perturbadoras da ordem pública. Estes, sendo homens, não deveriam perder-se: antes deveriam

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cooperar na ingente tarefa de colonização do território ultramarino, onde o afastamento do cenário de origem, a

novidade das circunstâncias, a mudança de vida e as oportunidades de trabalho poderiam conduzir à respectiva

regeneração. O Brasil foi assim local de desterro temporário – por dois, cinco, oito, dez anos -, ou mesmo

definitivo – para toda a vida -, que a muitos permitiu socialmente recuperar. Refira-se, aliás, que tal providência

serviu também às mulheres, pois estas, sendo mais frágeis e sensíveis do que os homens e gozando por isso de

um tratamento jurídico privilegiadopropterreverentiamsexus, muita falta faziam na América do século XVI até

para obviar situações de concubinagem. “Deveria Vossa Alteza provearáquelesconcubinarios com as penas que

fossem precisas; e isto se faria com mais razão mandando cá mulheres, para se não dar tão mau exemplo aos

gentios, que veem tais cousas”, escrevia para Lisboaem 1550 o Padre Manuel da Nóbrega. O monarca assim

fez ou procurou fazer. Mas fez também o inverso, embora também movido pela peculiaridade do género

feminino. Dispunham as Ordenações Filipinas, com efeito, que caso a mulher portuguesa casada cometesse

adultério, poderia ser perdoada pelo marido na condição de o amante ir sofrer degredo no Brasil. Não recebia

assim pena alguma e, em favor da defesa do matrimónio, enviava-se um amante apaixonado para terras de Vera

Cruz, onde permanecia, auxiliando deste modo o respectivo processo de colonização. Talvez por isso seja o

Brasil ainda hoje pátria de tantos amores, enganados e desenganados, ilícitos e lícitos. Literatura, arte, música,

dança, cinema, teatro, entre outras manifestações de uma cultura pujante, aí estão para o documentar.

* * *

Para além da questão dos silvícolas e do problema do povoamento do território, muitas foram as

matérias respeitantes ao Brasil que levaram os monarcas portugueses a intervir.

Remontando ainda ao século XVI temos normas de 1530 e de 1548. De 1530 é a investidura de Martim

Afonso de Sousa como capitão-mor da colónia, dispondo para o efeito de amplíssimos poderes: colocar padrões

nas terras que descobrisse, proferir sentenças cíveis e criminais, incluindo pena de morte, nomear tabeliães,

designar oficiais de justiça. De 1548 é a instituição do primeiro Governo-Geral da colónia, com regimento próprio,

norma tão ampla do ponto de vista político, administrativo e fazendário que Pedro Calmon não hesitou em

qualificá-la de primeira Constituição do Brasil.

Passando ao século XVII aparecem-nos o regimento do Tribunal da Relação da Bahia (1609) e os

estatutos da Companhia de Comércio para o Brasil (1628). Aquele, já criado em 1587 mas inoperante, extinto

em 1626, restaurado em 1652, era constituído por oito desembargadores, cada qual com esfera de competência

própria. Estes deram depois lugar à emergência de outras pessoas colectivas, nomeadamente a Companhia

Geral para o Estado do Brasil (1649) e a Companhia do Maranhão e Pará (1682), que Rui de Figueiredo Marcos

afirma estarem ainda longe do apuro societário pombalino, todavia.

Pelo que toca ao século XVIII, citarei apenas duas normas, embora ambas de carácter fundamental. A

primeira, datada de 1751, criou o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, cidade de sucedeu a Salvador da Bahia

como capital do reino e do império do Brasil. A segunda, datada de 1757, implantou o uso da língua portuguesa

em toda a extensão do território da colónia. Superando e disciplinando os dialectos falados por tupis, gês,

caraíbas, nuaruaques, goitacás, panos, miranhas, gaicurús e outras tribos nativas, o idioma nacional começa

então a impor-se definitivamente nas escolas que ensinam a ler, escrever e contar. À distância de dois séculos e

meio, sabemos que foi este diploma de D. José I que conferiu ao Brasil unidade linguística, génese e matriz da

sua futura unidade política.

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Enfim, chegamos ao século XIX. Trata-se de um período difícil, dilemático, da história nacional. O rei sai

de Lisboa, cruza o Atlântico e muda a capital da Monarquia para a colónia. Em termos práticos, abandona a

Europa e parte rumo à América do Sul, nova sede do governo português. O que representou este período em

termos políticos, económicos, sociais e financeiros, os historiadores de arquivo têm-no referido e continuam a

fazê-lo. De minha parte, observarei apenas que não se torna possível compreender o Brasil actual sem analisar

a legislação mariana e joanina que medeia entre 1808 e 1821. Citarei seis actos normativos editados em nome

de D. Maria I/D. João VI, a saber: elevação do Brasil à categoria de reino; criação de mais dois tribunais

superiores – Pernambuco e São Luiz do Maranhão; nascimento da Imprensa Régia brasileira; fundação do

Banco do Brasil; criação da Academia das Belas-Artes e da Academia Militar; nascimento da Escola Médico-

Cirúrgica e da Biblioteca Real do Rio de Janeiro.

4. Escoados que estão os minutos regulamentares que os organizadores do presente Colóquio me

concederam para usar da palavra, importa indagar: o que é que mudou, afinal, na transição na Monarquia

Tradicional para a Monarquia Liberal? Que novos rumos trouxe o século XIX à organização político-jurídica dos

Estados?

Muito sumariamente, pois o tempo mais não permite, refiro cinco aspectos ilustrativos de tal mudança.

1.º Chega ao fim o princípio da unidade do poder, característico das monarquias tradicionais, segundo o

qual o rei concentrava na sua pessoa funções governativas, administrativas, legislativas e judiciais. A unidade do

poder cede lugar à separação ou repartição desse mesmo poder por órgãos distintos, moda política que a

França e diversos países da Europa e da América acabam por adoptar. Entre nós fala-se na existência de um

Poder Executivo, que compete ao Governo e ao Rei, de um Poder Legislativo, que compete ao Parlamento, de

um Poder Judicial, que compete aos Tribunais e de um Poder Moderador, que o monarca continua a reservar

para si. Sendo embora este último o mais relevante dos quatro, entende-se que não deve restringir a amplitude

dos outros nem subrogar-se aos mesmos nas tarefas que lhes incumbe desempenhar.

2.º Triunfa o princípio da soberania nacional. Esta continua a residir no monarca, naturalmente, mas

reside agora também na comunidade como corpo político. Para trás ficam, por conseguinte, quer a doutrina

hierocrática do poder pontifício, que entre nós teve aplicação da Idade Média, quer a doutrina anti-hierocrática do

“direito divino dos reis”, que entre nós triunfou no século XVIII.

3.º Mercê das revoluções atlânticas da França e dos Estados Unidos da América, emergem os

chamados direitos fundamentais do Homem e do Cidadão. Tais direitos passam a estar escritos, a revestir forma

documental. Ora, sendo assim, nasce aqui um obstáculo efectivo à latitude do poder do rei, obstáculoeste que

não é apenas ético-religioso mas é verdadeiramente político-jurídico. Sendo naturais, inalienáveis e

imprescritíveis, acompanhando o homem do berço ao túmulo, não devem tais direitos ser ignorados ou

menosprezados pelo monarca. O Liberalismo constitui pois o verso da medalha do Absolutismo, a antítese de

uma tese cuja síntese triunfa no século XIX.

4.º O rei representa a nação, conforme ficou dito já, mas a comunidade também o faz. Dispõe assim a

comunidade do poder de fazer ouvir a sua voz no Parlamento, órgão de soberania que reúne por direito próprio e

cujas atribuições são consultivas mas também deliberativas. Para trás ficou o tempo em que o monarca

convocava Cortes se, quando e onde quisesse fazê-lo, e assim também as dissolvia. Sabido é, de resto, que em

Portugal não existiu uma única reunião parlamentar entre 1698 e 1821, lapso de mais de cento e vinte anos.

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5.º A antiga Constituição Histórica é substituída por uma Constituição Escrita, formal e materialmente

falando, diploma este que se revela quase idêntico em Portugal e no Brasil. Eis outra singularidade da História

do Direito. O Brasil antecipa-se em 1824 – não aludo agora à Constituição portuguesa de 1822, que

praticamente não vigorou – e Portugal acompanha-lhe o passo em 1826. Pergunta-se: de que modo tal ocorreu,

que vicissitudes marcaram este sucesso?

Sabemos que a Constituição brasileira foi elaborada pelo Conselheiro Francisco Gomes da Silva, vulgo

«Chalaça», com inspiração no projecto de Antonio Carlos de Andrada e contendo glosas e aditamentos do

Imperador D. Pedro I do Brasil, também Rei D. Pedro IV de Portugal. Quanto à Carta Constitucional portuguesa,

reza a história que, encontrando-se D. Pedro no Brasil já Independente, lhe chegou de Lisboa a notícia da morte

de D. João VI, seu pai. Era o dia 24 de Abril de 1826. Reuniu então com o «Chalaça» e entre 24 e 29 de Abril,

durante cinco ou seis dias úteis, não mais, ele e o seu conselheiro adaptaram o texto da Constituição brasileira à

realidade política portuguesa. O modo como o monarca procedeu neste lance configura um paradoxo, pois

sendo liberal de convicções actuou despoticamente, como se de um rei absoluto se tratasse. Tal consta do

próprio preâmbulo do diploma, que assim reza: “Dom Pedro por Graça de Deos, Rei de Portugal, dos Algarves,

etc. Faço Saber a todos os Meus SubditosPortuguezes, que Sou Servido Decretar, Dar, e Mandar jurar

immediatamente pelas Tres Ordens do Estado a Carta Constitucional abaixo transcripta, a qual d’ora em diante

regerá esses meus Reinos, e Dominios, e que he do theor seguinte.” E adiante, no epílogo do diploma: “Pelo que

Mando a todas as Authoridades, a quem o conhecimento, e execução d’esta Carta Constitucional pertencer, que

a jurem, e fação jurar, a cumprão, e fação cumprir, e guardar tão inteiramente, como nella se contém, e valerá

como Carta passada pela Chancellaria, posto que por ella não ha de passar; sem embargo da Ordenação em

contrario, que somente para este effeitoHei por bem Derogar, ficando aliàs em seu vigor; e não obstante a falta

de referenda, e mais formalidades de estilo, que igualmente Sou Servido Dispensar.” “Dada no Palacio do Rio de

Janeiro aos vinte e nove dias do mez de Abril do Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil

oitocentos e vinte seis.”

Exprimindo-me agora como português e não como brasileiro – afasto-me de D. Pedro I do Brasil para

me aproximar de D. Pedro IV de Portugal -, diria que o príncipe reinante obliterou neste lance grande parte da

tradição histórico-política portuguesa. Fossem quais tenham sido as suas intenções, assim ocorreu, com efeito.

Senão vejamos:

a) Derrogou o princípio do consenso entre os povos e os monarcas, oriundo da Constituição Histórica,

segundo o qual não era lícito ao rei modificar as “Leis Fundamentais” sem antes ouvir os representantes da

comunidade.

b) Derrogou o princípio da indivisibilidade do território, também oriundo da Constituição Histórica,

segundo o qual, não sendo o mesmo território património pessoal do monarca, lhe não era lícito desmembrá-lo

ou reparti-lo entre os seus filhos. Tal ocorreu na Idade Média, já o dissemos, nomeadamente em Leão, Castela e

Navarra, mas não em Portugal. A primeira vez que entre nós acontece é com D. Pedro IV, que entrega Portugal

a sua filha D. Maria da Glória, futura D. Maria II, e deixa depois o Brasil a seu filho D. Pedro de Alcântara, futuro

D. Pedro II.

c) Derrogou, enfim, a regra da masculinidade na sucessão do trono. Quem deveria ter herdado a coroa

portuguesa era este mesmo D. Pedro de Alcântara, nascido em 1825, e não a referida D. Maria da Glória.

Monarca culto, inteligente, ilustrado, poliglota, internacionalista, estimado por amigos e adversários, D. Pedro de

Alcântara teria dado um magnífico Rei de Portugal. Guardo entre os meus papéis uma cédula bancária contendo

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a efígie deste príncipe e uma outra contendo a efígie de seu pai, maravilhas fiduciárias a que tive acesso quando

residi no Brasil. Comigo as trouxe e coloco à disposição dos colegas, colaboradores deste colóquio.

“Amar Portugal sobre todas as coisas e amar o Brasil como a nós próprios”, eis a divisa de Alexandre de Albuquerque. Eis também, quero crer, a nossa bússola, o caminho do nosso futuro.

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CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO

Normas para Apresentação

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ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO

Normas para Apresentação

A apresentação do artigo para publicação nos Cadernos de Pós-Graduação em Direito deverá obedecer as

normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)

● Titulo: Centralizado, em caixa alta. Deverá ser elaborado de maneira clara, juntamente com a versão em

inglês. Se tratar de trabalho apresentado em evento, indicar o local e data de realização.

● Identificação dos Autores: Indicar o nome completo do(s) autor(res) alinhado a direita. A titulação

acadêmica, Instituição a que pertence deverá ser colocado no rodapé.

● Resumo e Abstract: Elemento obrigatório, constituído de uma seqüência de frases concisas e objetivas e

não de uma simples enumeração de tópicos, não ultrapassando 250 palavras. Deve ser apresentado em

português e em inglês. Para redação dos resumos devem ser observadas as recomendações da ABNT -

NBR 6028/maio 1990.

● Palavras-chave: Devem ser apresentados logo abaixo do resumo, sendo no máximo 5 (cinco), no idioma

do artigo apresentado e em inglês. As palavras-chave devem ser constituídas de palavras representativas

do conteúdo do trabalho. (ABNT - NBR 6022/maio 2003).

As palavras-chave e key words, enviados pelos autores deverão ser redigidos em linguagem natural, tendo

posteriormente sua terminologia adaptada para a linguagem estruturada de um thesaurus, sem, contudo, sofrer

alterações no conteúdo dos artigos.

● Texto: a estrutura formal deverá obedecer a uma seqüência: Introdução, Desenvolvimento e Conclusão.

● Referências Bibliográficas - ABNT – NBR 6023/ago. 2000.

Todas as obras citadas no texto devem obrigatoriamente figurar nas referências bibliográficas.

São considerados elementos essenciais à identificação de um documento: autor, título, local, editora e data

de publicação. Indicar a paginação inicial e final, quando se tratar de artigo de periódicos, capítulos de livros ou partes

de um documento. Deverão ser apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor.

● Citações: devem ser indicadas no texto por sistema numérico, obedecendo a ABNT - NBR 10520/ago.

2002.

As citações diretas, no texto, de até 3 linhas, devem estar contidas entre aspas duplas.

As citações diretas, no texto, com mais de três linhas devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem

esquerda, com letra menor que a do texto utilizado e sem aspas.