COMBATE CONSTITUCIONAL À CORRUPÇÃO: ANÁLISE DOS … · no intuito de situar as condições...
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XIV Encontro Estadual de História
24 a 27 de Julho de 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
ST 18. História e Direito: aproximações metodológicas e conceituais
Código do trabalho: 1418440
COMBATE CONSTITUCIONAL À CORRUPÇÃO: ANÁLISE DOS
DISCURSOS DOS CONSTITUINTES E CONDIÇÕES DE APROPRIAÇÃO DA
DOUTRINA ANTI-CORRUPÇÃO ENTRE POLÍTICOS E JURISTAS NO
BRASIL DOS ANOS 1980
Juliane Sant’Ana Bento
Professora na Faculdade de Direito da UFRGS
Resumo: Trata-se de propor breve revisão da literatura sobre o poder social dos juristas
para a definição das versões autorizadas da política e sobre sua constituição como
empresa de moralização da política. No intuito de fazer uma história intelectual das
ideiais e das elites jurídicas, pretende-se ilustrar como os constituintes atribuíram
sentido à percepção de que os poderes políticos falham no que se propõem a cumprir.
Para tanto, valer-se-á da coleta de argumentos veiculados nos discursos constantes no
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988). Os resultados apontam para a
vinculação da corrupção à política autoritária, bem como para a defesa da renovação
política como meio de modernizar as práticas políticas tradicionais, que revelam a
crença de que a técnica jurídica pode aperfeiçoar a dinâmica social.
Palavras-chave: direito; política; corrupção; constituinte; discursos parlamentares.
Introdução
Este trabalho tem por objeto as discussões entre parlamentares constituintes
quanto ao desenho político e administrativo a ser adotado no contexto de promulgação
da mais recente Carta Constitucional. No ensejo da comemoração dos 30 anos da
Constituição da República Federativa do Brasil, convém problematizarmos quais foram
as condições de apropriação da doutrina anti-corrupção e como ela apareceu, tendo em
consideração os movimentos críticos do Direito que já viam-se surgir no debate jurídico
nacional. Inicialmente, convém estabelecer-se o marco teórico que fundamenta esta
reflexão, bem como situar este problema de investigação no contexto de uma agenda de
pesquisa que mobiliza tanto os saberes da história, quanto do direito e da ciência
política para empreender uma história intelectual das elites. Em seguida, valer-se-á
como técnica de pesquisa do estudo do Diário da Assembleia Nacional Constituinte,
publicado regularmente entre 2 de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988, cujo
inteiro teor encontra-se disponível no endereço eletrônico http://imagem.camara.gov.br/
constituinte_principal.asp da Câmara dos Deputados, de fácil verificabilidade e
replicabilidade para outras pesquisas igualmente na fronteira dos estudos entre a história
e o direito. Por meio de análise de discurso, serão consideradas determinados casos que
foram julgados mais exemplificativos a fim de realizar uma verdadeira sócio-história,
no intuito de situar as condições sociais dos agentes envolvidos com suas trajetórias
públicas e o modo como representavam a corrupção no contexto da Constituinte.
Dentre as hipóteses que o artigo levanta, cumpre destacar o relevante papel dos
juristas como moralizadores da política, dita corrupta, conforme praticada pelo regime
militar, que teria exacerbado a tendência histórica nacional de ceder ao clientelismo em
detrimento do espírito republicano, nunca apropriadamente cultivado entre nós
brasileiros. A técnica do Direito é exaltada como uma forma neutra e imparcial, assim
como registra Pierre Bourdieu (1986) para o caso francês, de fornecer legitimidade a
uma série de inovações políticas. A identificação da corrupção com o atraso que definia
a política nacional até então, e as promessas de renovação orientadas pelo Direito
promovidas na Constituinte, são um instrumento de pesquisa útil para se refletir sobre a
proximidade do Direito com a Política e os usos feitos do primeiro sobre a segunda.
A agenda de pesquisa sobre bacharelismo e legitimação do Direito no Brasil
Parte-se nesse esforço de pesquisa de literatura que consagra atenção ao papel
das elites formadas em Direito na construção do Estado nacional, para discutir, em
perspectiva mais ampla, as conexões da formação jurídica com a definição da política
legitimada. Uma série de estudos já canônicos na área (especialmente CARVALHO,
2003; ADORNO, 2005; VENÂNCIO FILHO, 1977) têm há décadas procurado
demonstrar que a forte homogeneidade ideológica da elite brasileira, responsável pela
manutenção do poder centralizado e do próprio Estado nacional, é resultado de uma
política educacional de severa concentração da formação superior em pouquíssimas
escolas, inicialmente em Coimbra, posteriormente apenas em São Paulo e Olinda. Com
isso, controlou-se a circulação de ideias, protegeu-se esses atores, bastante semelhantes
quanto às origens sociais de onde provinham, do ingresso de novas correntes de
pensamento potencialmente perturbadoras desse projeto político, por exemplo àquelas
mais afeitas aos movimentos revolucionários franceses já em voga no restante da
Europa ao tempo do intercâmbio de brasileiros que iam estudar em Portugal.
Segundo Venâncio Filho (1977), o Direito apresentava-se como o núcleo
homogêneo que conferia habilidades mínimas suficientes para instrumentalizar estes
atores sociais nos assuntos de Estado, a fim de que ocupassem os cargos de governos e
o aparelho institucional estatal. Os cursos jurídicos eram “celeiro de patriotas”, “a
pepineira da elite política”, onde ensinava-se a “liturgia do civismo”, despertava-se
vocações aos cargos públicos e formava-se para governar o país. Entretanto, tal
monopólio dos assuntos estatais pelos bacharéis em Direito começa a ser objeto de
contundente crítica pela oposição dos militares: para estes, os homens mais úteis ao país
não eram os mais instruídos; havia usurpação de poder pelos legistas, acusados de
diletantes, educados à abstrata, importadores de ideias estrangeiras e, por isso,
desconectados das necessidades da realidade nacional, por exemplo, agrícola e
industrial.
Além disso, conforme bem desenvolvido por Adorno (2005), ao ensino
jurídico é reputado a forja desse modelo pitoresco e tipicamente brasileiro, em que o
Estado é consolidado a partir da conjugação e sobreposição, ao mesmo tempo, de
princípios liberais e patrimoniais. Esta convivência conferiria, de acordo com Adorno, o
caráter da dupla face do Estado brasileiro, responsável pela institucionalização das
desigualdades e pelo impedimento da democratização no país. O que o sociológio
chama de “estranha coexistência” entre o liberalismo e o patrimonialismo seria fruto do
culto à lei e da defesa da autonomização política, ainda que paralelamente à manutenção
da dominação tradicional que permitiu, inclusive, a reprodução da escravidão. Desse
modo, para o autor, o Estado brasileiro pôde ser autoritário, muito embora seus
construtores fossem liberais: a duradoura aliança entre liberais moderados e tradicionais
proprietários rurais teria sido, então, bem sucedida na manutenção da ordem política,
controlando as iniciativas por ampliação da participação política e maior
democratização.
O processo de ocaso do bacharelismo e a “crítica da razão pomposa” será mais
ricamente ilustrado por Dominichi Miranda de Sá (2006), quando se preocupa em
explicar o contexto de hegemonização do “espírito científico” no país. A criação das
primeiras Universidades, na década de 1930, fez emergir no imaginário nacional a
perspectiva cientificista como a mais legitimada socialmente, porque condizente com a
crença no progresso vigente à época, pela qual os métodos e experimentos
possibilitados pela ciência eram símbolo do triunfo da modernidade e da civilização.
Coerente à essa nova agenda, de especialização dos saberes como meio para o
progresso, a ruptura com o ensaísmo tradicionalmente ligado às práticas jurídicas seria
consequência inevitável.
A afirmação e valorização profissional da figura do cientista, pautada pela
construção de uma imagem cuja respeitabilidade derivava dos méritos e das distinções
como critérios de reconhecimento, promove uma não desprezível tensão com o
humanismo: foi levada a cabo uma verdadeira campanha difamatória contra o Brasil
oitocentista, contra as tradições retóricas de matriz ibérica, contra o “enciclopedismo
inútil de frívola pompa”. A perda de prestígio dos bacharéis era produto da
desconfiança, sugerida pela reforma positivista, com a ambição de totalidade do
conhecimento, e envolvia também o que era tido como características da atuação desses
juristas: por exemplo, o domínio das humanidades, da literatura, da erudição, da
memória, do generalismo, costumeiramente exibidos publicamente por mera vaidade,
segundo seus detratores.
Não obstante esse retrato das disputas por poder social e autoridade
profissional na década de 1930 entre cientistas e bacharéis, não é correto pensar que o
Direito resignou-se ao lugar de saber atrasado e vencido pelas soluções modernas: o
trabalho de Silveira (2016) é profícuo para compreender como, no mesmo período, os
juristas esforçaram-se para apresentar o Direito como instrumento hábil para
efetivamente servir ao país. No que a autora trata por “história intelectual do Direito”,
resta demonstrado que a capacidade de transformar as práticas num sentido
modernizador foi o que permitiu aos juristas descolarem-se das críticas ao bacharelismo
e da responsabilidade pelo atraso e arcaísmo social brasileiro.
Para tanto, foi importante a reforma do ensino empreendida no governo
Vargas, que serviu para dotar o Direito de técnica e modernidade, possibilitadas por
uma compreensão do conhecimento jurídico enquanto ciência moderna e positiva.
Nesse sentido, a bem-sucedida articulação entre o governo e os juristas para fazer do
Direito uma ciência do social, cuja relevância de seu saber passaria a residir na
“técnica”, possibilitou aos últimos uma miríade de novos rumos e inserções na vida
pública. O Direito, como ciência experimental, foi oferecido como solução à falência do
Poder Legislativo, através da difusão da visão idealizada de que o sistema jurídico é
técnico, neutro e virtuoso, e o Legislativo é naturalmente falho, porque espaço de
conflito.
Tal desenho que opõe a justiça e a política, conforme descrito por Silveira
(2016), encontra ressonância no modelo desenvolvido por Commaille (2000), segundo o
qual, para o espaço jurídico, a verdadeira “ciência do político” está sob sua esfera de
atuação, eis que o direito serve a sua causa e estabelece seus valores, seus bons fins
sociais e a sua razão política. Imposto como meta-razão da sociedade, que transcende o
grupo e se manifesta por regras universais que celebram o “tempo longo” do direito, o
argumento é mobilizado pelos juristas para desqualificar a política, oposta a ele por ser
manifestação de interesses pequenos, porque particulares, na qualidade de ciência do
efêmero e do conjuntural (COMMAILLE, 2000, p. 30).
Esta qualidade do Direito de manifestar-se por meio de normas gerais e valer-
se como razão da sociedade revela o senso de apriorização de que trata Bourdieu (1986)
quando analisa a força do Direito. Segundo o autor, ainda, o aumento da autoridade
social do direito é produto da neutralização e da universalização empreendidos pelos
juristas, os quais trabalham continuamente pela racionalização, de modo a apresentar
independência das relações de força que os consagram. A autoridade que lhes permite
atribuir sentido às regras que conformam a visão legítima do mundo social seria, assim,
ao mesmo tempo, razão da autonomia relativa do direito e ilusão de autonomia absoluta
às pressões externas.
No que tange à cultura jurídica brasileira, entretanto, a partir das preocupações
levantadas por Hespanha (2012), pelo menos desde os movimentos críticos dos anos
1970 que pautaram na agenda do Direito nacional o compromisso social e o
militantismo com os direitos humanos e a emancipação, a neutralidade, além de não ser
paradigma de orientação, não é sequer suportada pelo “espírito de missão” que domina
os estudos jurídicos, os quais percebem tão fortemente as desigualdades. Em verdadeiro
compromisso dos juristas brasileiros com a política, eles criticam o formalismo e
defendem que a dogmática jurídica deve estar comprometida com objetivos de política
social, respondendo eficazmente aos problemas da sociedade.
Assim, conforme Hespanha (2012) uma série de instrumentos dogmáticos
fomentam a irradiação do núcleo ideológico dos princípios jurídicos
constitucionalizados numa interpretação evolutiva dos direitos sociais, incorporando
novos temas como cidadania, defesa democrática e progressista da Constituição,
proteção dos mais fracos, erradicação das discriminações sociais, etc. Ilustra de fato a
constatação do jurista português, por exemplo, o trabalho de Barroso (2001) destinado a
comentar os fundamentos pós-positivistas do “novo direito constitucional brasileiro”, no
qual é mencionado que o constitucionalismo foi o projeto político vitorioso no final do
milênio e compatível com as conquistas do processo civilizatório. Afirma que o ideal
democrático realiza-se não apenas pelo princípio majoritário, mas também pelo
compromisso na efetivação dos direitos fundamentais, e que a dogmática jurídica
tradicional erigiu-se sobre o mito da objetividade do Direito e da neutralidade do
intérprete, legando à teoria crítica “desfazer muitas das ilusões positivistas do Direito,
enfatizando seu caráter ideológico e o papel que desempenha como instrumento de
dominação [...] disfarçada por uma linguagem que a faz parecer natural e justa”
(BARROSO, 2001, p. 36).
Além disso, Barroso conclui que o pós-positivismo trata de “conjunto de ideias
difusas que ultrapassam o legalismo estrito” e tem por marca “a ascensão dos valores, o
reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos
fundamentais”, com o retorno da discussão da ética ao Direito. Tal pluralismo permite a
“redemocratização e reconstitucionalização do país”, e favorece à transformação do
paradigma no novo constitucionalismo brasileiro: pela busca de efetividade das normas
constitucionais e pela interpretação das normas constitucionais por novos métodos
hermenêuticos, levando, assim, ao resgate de valores éticos no país.
A discussão que a seção seguinte pretende propor é a de que os constituintes
envolvidos na deliberação da Constituição Federal valiam-se da posição e da
legitimidade de atores habilitados pelo processo em que estavam inseridos para
mobilizarem representações sociais acerca da necessidade de moralização da política
por meio do Direito. São perceptíveis os discursos que identificavam a corrupção à
política autoritária, bem como aqueles que reforçam a importância da renovação política
para modernizar os vínculos tradicionais das práticas políticas nacionais, que revelam a
crença de que a técnica jurídica pode aperfeiçoar a dinâmica social.
Discursos constituintes: o combate à corrupção e a moralização da política
Uma das formas eficazes de legitimação no espaço público é a “cruzada pela
moralização da política” que protagonizam políticos e juristas, tanto no Brasil quanto
em outros países (MUSELLA, 2001; BRIQUET, 2001, 2007; ROUSSEL, 2001, 2002;
VAUCHEZ, 2004). Por aqui, esse conjunto de atores enfrenta as “patologias” da
política brasileira, instaurando-se em postos de poder e consolidando-se como
definidores da “boa política”. A adesão à lógica da “moralização política” permite a
elaboração de definições “técnicas” em doutrinas sobre o Estado, e autoriza juristas e
políticos a mobilizarem o “senso comum erudito”, que considera a política tradicional
desqualificada e atrasada. Esse processo de esvaziamento da política tradicional, porque
viciada por interesses de grupos posicionados “contra o interesse público”, conduz tais
agentes a manter ativa a lógica da construção dos problemas públicos, aos quais são
cabidas suas soluções “técnicas”.
As empresas contestatórias da política estabelecida contribuiram para difundir
o diagnóstico da degradação e a impô-lo como princípio explicativo da crise. Em
virtude da exigência de mudança como um “necessário combate moral” em defesa da
democracia e do Estado de direito, a fim de atender às reivindicações de regeneração da
vida pública, os profissionais do Direito foram dotados de capacidade de intervenção
inabitual no espaço político. Após breve discussão bibliográfica sobre o poder social
dos juristas para a definição das versões autorizadas da política e sobre sua constituição
como empresa de moralização da política, pretende-se ilustrar como os constituintes
atribuíram sentido à percepção de que os poderes políticos falham no que se propõem a
cumprir. Para tanto, serão apresentados alguns argumentos constantes nos discursos
registrados no Diário da Assembleia Nacional Constituinte, mantido pela Câmara dos
Deputados, e coletados de maneira exploratória nesta primeira inicial da investigação.
É relevante o discurso proferido pelo deputado Ulysses Guimarães por ocasião
da aprovação e promulgação do texto da nova Constituição, em outubro de 1988,
quando afirma ser a moral “o cerne da pátria” e a corrupção “o cupim da República”.
Segundo o constituinte, a “República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de
demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr
na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”. Ainda conforme
Guimarães (1988), “tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o
exercício da democracia, em participativa além de representativa”: esta nova
“Constituição coragem”, estatuto do homem, da liberdade, da democracia, seria “o
clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o
avanço no campo das necessidades sociais”.
Especificamente sobre práticas de corrupção no seio da própria Assembleia
Constituinte, o deputado sustentava que o projeto “rompeu contra o establishment,
investiu contra a inércia, desafiou tabus”. Além disso, teria suportado “a ira e perigosa
campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em
guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações”.
Ademais, teria instrumentalizado o próprio cidadão para o controle e incrementado o
aparato institucional de fiscalização:
Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da
fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber
informações dos órgãos públicos, da prerrogativa de petição aos poderes
públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da
obtenção de certidões para defesa de direitos; da obtenção de certidões para
defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer
cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos
Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar,
representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso
Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são
partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o
Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade
facilita a efetividade dessa fiscalização.
Embora concluindo que a Constituição não seria perfeita, Guimarães (1988)
defendia que seria “útil, pioneira, desbravadora”: seu compromisso de mudança “será
luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os
caminhos. [...] Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, e ignorados da
miséria”. Se regressarmos à época do começo dos trabalhos da constituinte, igualmente
perceberemos que a mobilização de discursos objetivando a transformação da realidade
social por meio do diploma constitucional vindouro, somada à crítica contra a
corrupção, permeiam todos os trabalhos do período, merecendo menção na tribuna pelos
mais diversos espectros ideológicos. Exemplo disso é a fala de Chagas Duarte
(PFL/RR):
Espero que a nova Carta Magna inclua um artigo dizendo que o trabalhador
não será mais explorado; que os direitos de todo cidadão são inalienáveis e
universais; à alimentação, à moradia condigna, à educação e à saúde, que a
terra dos índios é sagrada e tem que ser demarcada e que seus costumes e
tradições têm que ser respeitados. Espero ainda que esta nova Constituição
assegure à família os direitos e as garantias para a sua estabilidade e
condições para que ela possa desempenhar as suas funções e desenvolver
seus valores morais; que a corrupção, que tanto assola este País e tanto mal
faz a ele, seja motivo de demissão e punição imediata. E outras tantas coisas,
Srs. Constituintes, que são importantes para que se construa uma sociedade
mais justa, mais humana, mais fraterna e mais cristã (CHAGAS DUARTE,
1987, p. 178).
Outro exemplo da mesma sessão é o discurso de Costa Ferreira (PFL/MA),
para quem o processo constituinte
fez florescer nos brasileiros a grande esperança de termos dias melhores pela
elaboração de uma Constituição onde haveremos de lutar para que os pobres
sejam mais lembrados na distribuição da renda nacional, hoje despojados
pela ganância dos mais ricos que não tem tido compaixão dos mais
necessitados, ajudando-os em suas dificuldades. Haveremos ainda de lutar
para que nela sejam inseridos preceitos que por certo eliminarão o
subdesenvolvimento, o analfabetismo, o êxodo rural, o desemprego, a
mortalidade infantil, a fome, a desigualdade social, a corrupção, as fraudes, a
imoralidade, a violência e possa, desta feita, fluir deste contexto a paz e a
tranqüilidade que o povo espera haver no campo e na cidade (COSTA
FERREIRA, 1987, p. 181).
A proximidade da corrupção com o regime autoritário que aquela Assembleia
pretendia extinguir era denunciada frequentemente pelos constituintes, como no
discurso de João Cunha (PMDB/SP), segundo o qual lutou-se durante 21 anos contra
uma ditadura fascista, corrupta e entreguista, ou ainda na fala de Denisar Armeiro
(PMDB/RJ). Para o constituinte, a Nova República teria recebido “caótica herança do
regime tecnocrático-militar que desgovernou o País durante 21 anos, período marcado
pelo brutal endividamento irresponsável, pela corrupção impune e pela transferência das
riquezas nacionais para as mãos de grupos transnacionais” (ARMEIRO, 1987). Ilustra
igualmente a ideia a fala de Paulo Ramos (PMDB/RJ):
Sr. Presidente, Srs. Constituintes, Juscelino Kubitscheck de Oliveira, ao
inaugurar Brasília, cunhou a expressão "alvorada", pretendendo que daqui
partissem as grandes decisões voltadas para os interesses nacionais. Juscelino
Kubitscheck, um grande democrata, não poderia imaginar que, quatro anos
depois, o manto negro de um regime autoritário recaísse sobre o Brasil de
forma tão inclemente. O período autoritário caracterizou-se não só pela
supressão de todos os direitos e garantias individuais, mas também por ter
mergulhado o País na mais deslavada corrupção e na perda completa da sua
soberania. Desvinculado e desinteressado de conhecer os reclamos da
população, o regime autoritário levou o Brasil ao endividamento interno e
externo e o povo à mais aguda miséria. Tudo era feito observado o sigilo. A
Nação foi sendo espoliada, sem acesso às informações, silenciado o povo,
porque reprimido. Na luta contra o regime autoritário, a principal bandeira
erguida pela resistência democrática consistia na convocação de uma
Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana. Hoje, aqui estamos em
Assembléia Nacional Constituinte e temos o dever de corresponder às
expectativas libertárias da população brasileira. Não temos direito a dúvidas:
temos o dever da certeza. Nada podemos ocultar do povo. O povo deve
conhecer tudo o que se passa nesta Casa (RAMOS, 1987, p. 429).
Pronunciamentos referentes à corrupção, no entanto, também destinavam-se a
comentar os próprios trabalhos da Assembleia. Diante da denúncia pela mídia de troca
de cargos no governo por apoio nas votações, Doreto Campanari (PMDB/SP) faz defesa
de seu partido, do governo, e da lisura do processo constituinte:
Ocorre, Srs. Deputados e Senadores Constituintes que, ao meio das
discussões acaloradas do Regimento Interno, já nos meandros da elaboração
da Constituição, preparando-a, e na busca do melhor caminho, surgem
percalços, com base em notícia ofensiva à moral de cada um de nós
Constituintes e até constrangedora e impeditiva a que tomemos certas
posições nesta Casa. O fato, Sr. Presidente, é anunciado pelo Jornal de
Brasília no dia 18 passado, que colocou o Líder do Governo, Deputado
Carlos Santana, como quem estaria incumbido de aliciar Constituintes e levá-
los para determinadas direções, em troca de empregos no Governo. Fala o
jornal em trem de alegria e 10.000 empregos no Brasil. Sr. Presidente, Srs.
Constituintes, o Governo de que faço parte fica mal colocado como corruptor
e o seu Líder com assento nesta Casa, por isso só está obrigado a falar,
desmentindo, acredito, a não ser assim, confirmará a grave denúncia. O
Regimento será votado e não deverá prevalescer nenhuma dúvida sobre o
comportamento dos Parlamentares (CAMPANARI, 1987, P. 490).
Muito embora este trabalho tenha-se proposto a fazer uma investigação
meramente exploratória a respeito das representações sobre a corrupção nos discursos
constituintes entre 1987 e 1988, crê-se ter podido demonstrar com certa clareza que o
processo da Assembleia Nacional Constituinte serviu para legitimar certos atores
habilitados pela tarefa da renovação do desenho político-institucional e fazerem valer
sua posição para mobilizarem discursos acerca da necessidade de moralização da
política por meio do Direito. Como acima explicitado, são recorrentes os discursos que
identificavam a corrupção à política autoritária, bem como aqueles que reforçam a
importância da renovação política para modernizar os vínculos tradicionais das práticas
políticas nacionais, que revelam a crença de que a técnica jurídica pode aperfeiçoar a
dinâmica social.
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