Como as Palavras Se Organizam Em Classes

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COMO AS PALAVRAS SE ORGANIZAM EM CLASSES Maria Helena de Moura Neves (Universidade Presbiteriana Mackenzie / UNESP-Araraquara / CNPq) Sempre usamos as palavras, mas nunca lembramos de sua importância. Na lingüística, elas recebem especial atenção. São classificadas, definidas e dividas nas chamadas “classes de palavras”. Índice: 1. Por que se fala sempre em ‘classes de palavras’, quando se estuda uma língua? 2. Por que o estudo da palavra surgiu logo no começo da reflexão linguística? 3. Por que tem sido difícil definir o que é uma palavra? 4. Que critérios são usados para a descrição e classificação das classes de palavras? 5. Que critérios podem atuar na identificação das classes de palavras? 6. Qual é a diferença entre palavras lexicais e palavras gramaticais? 7. Definindo as principais classes de palavras 1. Por que se fala sempre em ‘classes de palavras’, quando se estuda uma língua? Para justificar este texto, comecemos procurando ver por que faz sentido trabalhar com a operação de classificação de palavras quando se estuda uma língua. Ora, em todo campo, qualquer conjunto de entidades que têm uma função apresenta-se organizado em classes. Em primeiro lugar, estabelecer categorias é uma das mais básicas capacidades do ser humano. Não há como achar que algum ser humano não tenha a compreensão racional de que pedra e cachorro são categorias muito diferentes (por exemplo, o cachorro é ser vivo e a pedra não), de que árvore e cachorro são categorias ainda muito diferentes, mas menos do que no caso anterior porque, por outro lado, compartilham uma mesma categoria (por exemplo, o cachorro é animal e a árvore é vegetal, mas ambos são seres vivos), de que pato e cachorro são categorias não tão diferentes

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Estudo gramatical das classes de palavras da língua portuguesa

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  • COMO AS PALAVRAS SE ORGANIZAM EM CLASSES

    Maria Helena de Moura Neves

    (Universidade Presbiteriana Mackenzie / UNESP-Araraquara / CNPq)

    Sempre usamos as palavras, mas nunca lembramos de sua importncia. Na lingstica, elas

    recebem especial ateno. So classificadas, definidas e dividas nas chamadas classes de

    palavras.

    ndice:

    1. Por que se fala sempre em classes de palavras, quando se estuda uma lngua?2. Por que o estudo da palavra surgiu logo no comeo da reflexo lingustica?3. Por que tem sido difcil definir o que uma palavra?4. Que critrios so usados para a descrio e classificao das classes de palavras?5. Que critrios podem atuar na identificao das classes de palavras?6. Qual a diferena entre palavras lexicais e palavras gramaticais?7. Definindo as principais classes de palavras

    1. Por que se fala sempre em classes de palavras, quando se estuda uma lngua?

    Para justificar este texto, comecemos procurando ver por que faz sentido trabalhar com a

    operao de classificao de palavras quando se estuda uma lngua.

    Ora, em todo campo, qualquer conjunto de entidades que tm uma funo apresenta-se

    organizado em classes. Em primeiro lugar, estabelecer categorias uma das mais bsicas

    capacidades do ser humano. No h como achar que algum ser humano no tenha a

    compreenso racional de que pedra e cachorro so categorias muito diferentes (por

    exemplo, o cachorro ser vivo e a pedra no), de que rvore e cachorro so categorias

    ainda muito diferentes, mas menos do que no caso anterior porque, por outro lado,

    compartilham uma mesma categoria (por exemplo, o cachorro animal e a rvore vegetal,

    mas ambos so seres vivos), de que pato e cachorro so categorias no to diferentes

  • assim, e ao mesmo tempo compartilham uma mesma categoria (por exemplo, o cachorro

    mamfero e o pato ave, mas ambos so seres vivos animais), de que homem e cachorro

    so categorias menos diferentes ainda, e ao mesmo tempo tambm compartilham uma

    mesma categoria (por exemplo, o homem racional e o cachorro no, mas ambos so seres

    vivos animais mamferos), e assim por diante.

    Se o homem fala das coisas e racionalmente percebe (no necessariamente de modo

    cientfico) a organizao dessas coisas em classes, ele tambm fala da linguagem afinal,

    uma coisa entre as coisas , ele sente que tambm as entidades lingsticas so diferentes

    entre si, mas tal percepo menos diretamente percebida. Com certeza, falar das coisas,

    existentes ou fantasiadas, parece ser mais fcil do que falar da linguagem, porque as

    propriedades que distinguem os elementos da linguagem precisam ser percebidas fora da

    realidade visvel e sensvel (existente ou fantasiada) e tm de ser encontradas naquele

    complexo que a linguagem: um falar de algo e um dizer algo1. Por isso, necessariamente

    h a sensao racional de que as entidades da lngua se encontram categorizadas em

    classes, sim, mas a percepo de como se sustenta essa categorizao menos evidente do

    que a percepo de como um cachorro e um homem se distribuem em categorias diferentes.

    2. Por que o estudo da palavra surgiu logo no comeo da reflexo lingustica?

    Entretanto, h uma entidade na linguagem que ressalta percepo de qualquer pessoa,

    mesmo que ela nunca tenha estudado em uma escola, mesmo que nunca lhe tenha sido dada

    uma lio sobre linguagem: a entidade palavra. No estranha que, desde quando se tem

    notcia histrica da preocupao do homem com a linguagem, as atividades de reflexo e

    operao sobre a lngua se tenham resolvido com a catalogao dessas entidades, que so as

    mais evidentemente autnomas na anlise dos usurios da lngua2.

    1 Para esse tema, ver Ilari (1992).2 Ver o clssico Mattoso Cmara Jr. (1969: 34-52), para uma lcida apresentao da entidade que ele denomina vocbulo.

  • A surge um primeiro ponto de complicao, pois a entidade palavra no a unidade

    mnima de nenhum dos estratos que a cincia lingstica estabeleceu quando se instituiu. A

    unidade mnima da fonologia o fonema3, a da morfologia o morfema4, e no h nenhum

    nvel para o qual se tenha estabelecido que a unidade mnima seja a palavra. Ocorre que

    unidades como fonema e morfema so imperceptveis sem um estudo particular cientfico,

    porque so abstratas, s detectveis por uma oposio de pares mnimos de formas

    ocorrentes: assim, em portugus, /p/ um fonema e /b/ um fonema porque existe (pelo

    menos) um par de palavras que se distinguem somente por causa dessa oposio, por

    exemplo, o par pala e bala; do mesmo modo, /s/ um morfema (verbal, de segunda

    pessoa) porque existe (pelo menos) um par de palavras que se distinguem somente por

    causa de uma oposio que envolve esse morfema, por exemplo, o par (ele) fala e (tu)

    falas. Essas so, pois, unidades de valor formal, unidades distintivas que se definem

    abstratamente, pela oposio e pelo critrio da pertinncia de traos, operaes que

    requerem uma fundamentao terica e um preparo tcnico.

    J o estatuto terico de palavra, por sua vez, no univocamente definido na teoria

    lingstica5, o que mostra a complexidade dessa entidade, embora ela seja talvez a primeira

    categoria lingstica apreendida pelos falantes em sua vida6. Com efeito, a entidade

    palavra naturalmente evidente ao usurio da lngua: podemos dizer, de um modo bem

    geral, que ela uma entidade percebida como uma coisa entre as outras coisas do mundo,

    como se falar dela fosse uma atividade apenas lingstica (do mesmo modo que falar de

    uma pedra ou de um homem), e no uma atividade metalingstica (do mesmo modo que

    falar de um fonema ou de um morfema).

    3 Para esse tema, consultar: Silva (1999); Souza & Santos (2003).4 Para esse tema, consultar: Rosa (2000); Petter (2003). A gramtica de Cunha (1975) contempla os morfemas, definindo-os como unidades significativas mnimas e referindo-se s suas realizaes fonticas (p. 53).5 Para esse tema, consultar: Baslio (2004); Rosa (2000).6 Isso ocorre apesar de as palavras no constiturem unidades nem mesmo entonacionais ou rtmicas, observando-se que nem sempre a partio grfica que a marca mais evidente da segmentao em palavras reflete a partio sonora: num exemplo bem rudimentar, pode-se apontar que marulho (uma palavra) e mar alto (duas palavras) formam, um e outro, um s vocbulo fontico, constituindo grupos de fora altamente semelhantes.

  • Verifica-se que a preocupao com o estabelecimento, definio e reconhecimento das

    classes de palavras est em toda a histria das reflexes lingsticas. A organizao das

    palavras em classes considerada indispensvel para o conhecimento das funes

    exercidas, e esse conhecimento imprescindvel para o reconhecimento do sentido do que

    se diz, ressalvando-se, obvio, que no necessariamente a cada classe corresponde uma

    determinada funo.

    3. Por que tem sido difcil definir o que uma palavra?

    Entretanto, so evidentes a todos as dificuldades para o estabelecimento da classificao de

    palavras, e por vrias razes. Em primeiro lugar, considerada a tarefa como ligada a todas

    as lnguas naturais, um problema que o que uma lngua expressa por uma classe outra

    lngua pode expressar por outra, e outro problema que classes a que se d igual

    denominao podem ter funes parcialmente diferentes nas diversas lnguas. Em ingls,

    por exemplo, o morfema ing, uma desinncia de particpio, pode atuar em

    correspondncia a um infinitivo (embora com potenciais diferenas semnticas e

    pragmticas), como se v pelos seguintes pares (traduzidos para o portugus com

    infinitivo)7:

    1. He likes to talk. / He likes talking.Port.: Ele gosta de conversar.

    2. John began to write a letter. / John began writing a letter.Port.: Joo comeou a escrever uma carta.

    3. Your shoes need to be cleaned. / Your shoes need cleaning.Port.: Seus sapatos precisam ser limpos.

    O quadro das classes de palavras tradicionalmente estabelecido muito semelhante em todo

    o Ocidente, j que a base de classificao nas lnguas ocidentais praticamente a mesma,

    7 Os exemplos so de Quirk & Greenbaum (1973, p. 361-363). As tradues so minhas.

  • oriunda da gramtica alexandrina, a qual derivou das categorizaes de base lgico-

    filosfica estabelecidas na Grcia clssica, as quais buscavam primordialmente estabelecer

    as partes do lgos8. A traduo tradicional para a expresso grega mre lgou tem sido

    partes do discurso, mas discurso, a, tem de ser entendido como a proposio lgica, a

    expresso do juzo.

    No cabe aqui discutir essa herana, mas cabe lembrar que ela nem sempre tem sido bem

    interpretada, j que, em geral, ignora-se para que tipo de finalidade se estabeleceram, na

    formao da gramtica da poca alexandrina, as classificaes propostas9, finalidade muito

    diferente da que devem ter as gramticas na poca e no contexto de hoje.

    4. Que critrios so usados para a descrio e classificao das classes de palavras?

    A descrio das chamadas classes de palavras est sempre presente nas gramticas

    ocidentais tradicionais, e assim tambm nas gramticas de lngua portuguesa, em maior ou

    menor profundidade. Essa descrio normalmente percorre o caminho que vai de uma

    definio semntica, passa pelas subclassificaes (tanto de base semntica como de base

    morfolgica) e, no caso das classes flexionais, chega descrio da morfologia flexional.

    Por exemplo, a exposio sobre a classe dos verbos abriga o paradigma de sua conjugao.

    A preocupao evidente , pois, definir cada categoria e empreender uma subcategorizao,

    formando-se um quadro paradigmtico que, aparentemente, d abrigo a todas as entidades

    da lngua. A vinculao dessas entidades a seu papel semntico, e, na contraparte, a

    organizao dessas mesmas entidades na estrutura da frase so questes normalmente no

    consideradas no captulo referente a cada classe gramatical, ou consideradas parte, em

    descries paralelas.

    8 Para o tema, consultar Neves (2004).9 J no era a poca do apogeu da Grcia clssica, era a poca helenstica, em que a lngua e a literatura gregas estavam ameaadas de desaparecimento, em conseqncia de um confronto de civilizaes e de culturas desfavorvel manuteno de seus valores.

  • O que se pode dizer, afinal, que, de um modo geral, a organizao das classes de palavras

    um captulo delicado da sistematizao gramatical. Isso comea com a dificuldade de uma

    definio terica da entidade palavra, passa pela dificuldade de tratar essa entidade isolada

    da srie de funes com as quais ela se relaciona sem biunivocidade , e chega ao

    falseamento histrico representado pela tradicional desconsiderao do comportamento

    dessas entidades no fazer do texto. o ponto ao qual chegaremos, ao final.

    So freqentes as crticas que os estudiosos fazem s classificaes apresentadas nas

    gramticas. A principal delas refere-se aos critrios adotados, que so heterogneos, e que,

    por vezes, so considerados falsos. Especialmente se critica a interferncia de critrios

    lgicos, no aceitveis para tratamento de lnguas naturais. Um exemplo so as crticas

    intervenincia da entidade ser nas definies tradicionais de substantivo: Substantivo

    a palavra que d nome aos seres.

    5. Que critrios podem atuar na identificao das classes de palavras?

    A cincia lingstica, por outro lado10, dirigiu seus critrios para reconhecimento das

    classes de palavras no seguinte sentido:

    a) Em primeiro lugar, valem a forma e a distribuio, que, s vezes, so critrios

    suficientes.

    b) Em segundo lugar, vem a funo exercida pala palavra na orao, critrio previsto para

    ser utilizado quando os critrios de forma e distribuio levam a uma ambigidade.

    c) Em ltimo lugar, vem o sentido (que um critrio da gramtica tradicional), que

    constitui, na verdade, um resultado da funo e da classe, e, alm disso, est sujeito a

    generalizaes excessivas, o que o torna inseguro, embora sempre se tenha tido de

    reconhecer que s unidades de forma correspondem unidades de contedo.

    10 Na tradio da Lingstica, nesse campo, cabe meno especial aos clssicos Adrados (1969) e Hjelmslev (1976).

  • Obviamente se acrescem a esses critrios os recursos ao contexto e situao, e se admite

    que o recurso a mais de um critrio pode ser at uma ajuda, porque, quando um deles falha,

    outro pode ser eficiente.

    A forma, isoladamente, muitas vezes insuficiente para a delimitao de classes, o que se

    demonstra, entre outras coisas, com fatos como:

    a) Algumas palavras tm diferena formal mas pertencem mesma classe, como se v

    com limpo neste par de frases:

    4. Ele jogou limpo. [advrbio]

    5. Ele jogou limpamente. [advrbio]

    b) Ao contrrio, algumas palavras tm forma igual para mais de uma classe, como se v

    com claro e duro neste par de frases:

    6. Era um material claro e duro. [adjetivos]

    7. Falava claro e duro. [advrbios]

    H, tambm, elementos idnticos que se usam preenchendo funes sintticas bastante

    diferentes, e ainda pode ocorrer que eles deixem de se usar isolados, e passem a constituir

    parte de palavras. Elementos idnticos podem representar, pois, classes muito diferentes,

    como o caso do elemento pressa nestas trs frases:

    8. Pressa s prejudica.

    9. No tente fazer isso com pressa.

    10. V depressa.

  • No primeiro caso, pressa, substantivo (e morfema) , por si, o sujeito; no segundo, ainda

    substantivo (e morfema), pressa compe, com uma preposio regente, uma expresso

    adverbial; e no terceiro caso, desaparece a palavra pressa na palavra depressa: j no h

    substantivo e j no h preenchimento de funo pelo elemento pressa isolado.

    Visto por outro lado, o critrio da forma altamente pertinente, e em alguns casos

    decisivo. Em muitas lnguas o portugus entre elas a existncia da categoria de nmero

    identifica algumas classes, como, entre outras, o substantivo e o verbo, mas o modo de

    marcao da forma de plural pode responsabilizar-se, por exemplo, pela colocao de uma

    determinada palavra na classe dos verbos ([ele] roda faz o plural [eles] rodam; [eu] pedi faz

    o plural [ns] pedimos; etc.), e no na classe dos substantivos, que faz de outro modo a

    marcao do plural (roda e pequi fazem os plurais rodas e pequis, respectivamente). Por

    outro lado, o substantivo e o verbo duas classes que apresentam flexo se distinguem,

    tambm, em muitas lnguas, pelo fato de o verbo e no o substantivo apresentar flexo

    de tempo (no portugus, andarei, andars, etc. so formas de futuro), e em algumas lnguas

    mas no no portugus pelo fato de o substantivo e no o verbo apresentar flexo de

    caso (no latim, lupus tem o genitivo lupi, o acusativo lupum, etc.).

    forma se acrescenta o critrio de distribuio: assim, por exemplo, a possibilidade de

    anteposio do artigo define a classe substantivo, como se v em

    11. (A) Pressa s prejudica.

    O critrio da distribuio explica que mdico substantivo em frases como

    12. Visitei o mdico.

    13. Mdicos no podem ser assim.

  • porque, nesses casos, mdico tem a mesma distribuio de homem, praa, etc., que so

    substantivos. E tambm explica que mdico adjetivo em frases como

    14. Trata-se de uma ordem mdica.

    15. Procedimentos mdicos vo ser necessrios

    porque, nesses casos, mdico tem a mesma distribuio de judicial, rgido, que so

    adjetivos.

    Pela distribuio se chega ao critrio subsidirio da substituio: a possibilidade de

    substituio por determinados pronomes identifica substantivos, ou sintagmas que tm o

    substantivo como ncleo. Pelo fato de terem a mesma distribuio dos sintagmas nominais

    (com ncleo substantivo), por exemplo, os pronomes pessoais de terceira pessoa podem

    (sintaticamente) ocupar casas de participantes ou argumentos (sujeito, complementos)11,

    como em

    16. A pressa s prejudica. / Ela s prejudica.

    A ordem outro fator que pode ser chamado a intervir no estabelecimento das classes de

    palavras. Em portugus, evidente que a palavra certo adjetivo quando posposta ao

    substantivo, mas pronome indefinido quando anteposta, no se devendo esquecer, porm,

    que essa diferena de ordem pode vir associada com outras diferenas combinatrias, assim

    como pode ser restringida por determinaes do contexto:

    17. Viu (um) certo relgio. Viu um relgio certo.

    18. Viu (um) certo animal. *Viu um animal certo.

    11 No se pode, por a, entender que seja indiferente usar o sintagma nominal (com substantivo como ncleo ) ou usar o pronome pessoal, por exemplo, como sujeito de uma orao. O diferente uso resulta de uma escolha do falante segundo determinaes textual-discursivas.

  • Em seguida cabe apontar o critrio da funo muito associado distribuio , que

    permite, por exemplo, a distino entre claro (adjetivo) e claro (advrbio),

    respectivamente, no par

    19. O dia est claro.

    20. Fale claro.

    muito difcil estabelecer com exatido que critrio(s) tem (tm) primazia sobre outro

    (outros). Uma dificuldade constante vem do prprio significado da unidade lexical e das

    funes que ela desempenha, razo pela qual impossvel estabelecer classes com

    contedos fixos. Tem de ser admitido que h muitos casos de extrema dificuldade, e, para

    estes, significado e funo (critrios mais fluidos do que forma e distribuio) so os que

    tm primazia, o que leva a admitir que as classes de palavras no podem ser pensadas como

    compartimentos de fronteiras absolutamente rgidas, como compartimentos estanques,

    fechados e impermeveis, com contedo univocamente e imutavelmente estabelecido.

    Um exemplo claro o caso em que, em portugus, um substantivo usado direita de outro

    escorrega progressivamente para a categoria de adjetivo, havendo muitas situaes em

    que no se pode garantidamente afirmar se se trata de substantivo ou de adjetivo. Sirvam de

    exemplo inicial estes usos:

    21. Voc acaba de inventar um carro esporte.

    22. Tambm tive uma idia me.

    Nesses casos, os elementos esporte e me, em princpio da classe dos substantivos,

    simplesmente por sua colocao direita de outro substantivo passam a fazer indicao de

    propriedades que se acrescentam s propriedades j enfeixadas nesses substantivos da

    esquerda, carro e idia, respectivamente. E esse um comportamento de adjetivo.

  • Os critrios de categorizao que os usurios ativam partem, em geral, da distribuio e da

    funo, e por si mesmos os usurios vo marcando a forma da palavra com morfemas de

    flexo (por exemplo, de plural), que deixam evidenciada qual a classe que eles sentem

    existir naquele ponto do enunciado.

    No seguinte par de frases, duas categorizaes diferentes so feitas pelo falante, segundo se

    depreende das marcas que ele escolheu:

    23. Outras cartas consulta esto em anlise.

    24. Enviou-se o caso a todos os bispos membros das conferncias episcopais.

    No primeiro caso, a no-concordncia de consulta com o substantivo da esquerda, no

    plural, revela a manuteno da sua categoria de substantivo, enquanto, no segundo caso, a

    concordncia de membro com o substantivo da esquerda, no plural, revela a recategorizao

    desse elemento como adjetivo.

    Nas oraes

    25. Usava a sua faca mais navalha.

    26. Era um ambiente pouco famlia.

    os elementos navalha e famlia, em princpio substantivos, mais ainda do que no caso

    anterior tm o comportamento de adjetivo evidenciado, j que eles vm intensificados por

    mais e por pouco, respectivamente, operao no incidente sobre substantivo.

    Por outro lado, diferentemente, nas frases

    27. So Paulo tenta hoje gol-relmpago.

    28. A bomba-relgio ainda no foi desmontada.

  • o usurio registra graficamente que a categorizao que ele faz mantm para os elementos

    da direita, relmpago e relgio, respectivamente, seu estatuto de substantivos: com o uso

    do hfen formam-se substantivos compostos (substantivo + substantivo).

    Em todos esses casos os limites so fluidos, o que apenas confirma o questionamento da

    considerao das classes de palavras em geral e nos casos at aqui examinados, das

    classes lexicais (verbos, substantivos, adjetivos e alguns advrbios) como compartimentos

    de limites precisos e rgidos, estanques.

    No caso das palavras gramaticais o funcionamento das classes ainda menos simples e

    regular do que no caso das lexicais, quando menos por trs motivos:

    a. porque uma mesma palavra elemento de mais de uma classe funcional, com distino

    de categorias aplicveis a cada uma, como, por exemplo, em portugus, muito e pouco,

    que podem ser:

    a1) pronomes indefinidos (e, portanto, palavras variveis), como em

    29. Comer muito(s) doce(s). [substantivo]

    a2) advrbios de intensidade (e, portanto, palavras invariveis), como em

    30. Come muito. So doces muito bons. [verbo] [adjetivo plural]

    b) porque determinadas classes tradicionalmente estabelecidas abrigam elementos com

    natureza e comportamento muito diversos, por exemplo, os advrbios, classe que no

  • encontrou at agora uma definio que responda pela totalidade dos elementos nela

    abrigados, os quais podem ser, entre muitos outros:

    b1) um intensificador de verbo, de adjetivo ou de advrbio, como, respectivamente, em

    31. Come muito.[verbo]

    32. Come muito bem.

    [advrbio]

    33. Come doces muito bons. [adjetivo]

    b2) um indicador de modo (qualificador) do verbo ou do adjetivo (de ao, processo,

    estado), como, respectivamente, em:

    34. Saiu depressa. [verbo]

    35. Ela era deliciosamente terna. [adjetivo]

    b3) um modalizador12 de termo, de orao, de frase, de discurso, como, respectivamente,

    em:

    36. So coisas realmente importantes.37. Provavelmente ele ir.38. Logicamente, temos diferenas que nos separam.39. Honestamente, no sei o que faria, nesse caso.

    12 As indicaes possveis so muitas: atitudinal, afetiva, asseverativa, etc., e com subclasses.

  • b4) uma palavra interrogativa de lugar, de tempo, de modo, de causa, como,

    respectivamente, em

    40. Onde est ele?41. Quando ele vem?42. Como nascem os bebs?43. Por que voc veio armado?

    c) porque determinadas classes gramaticais tradicionalmente estabelecidas so, sob

    determinado ponto de vista, subclasses, j que propriedades comuns as unem num grande

    grupo funcional: por exemplo, certos pronomes, os artigos, os numerais so, todos,

    determinantes13, no sentido de que produzem para os nomes uma definio no-descritiva

    (uma definio determinativa), isto , discursivizam os elementos nominais, alando-os do

    nvel da lngua (em que eles possuem significado, mas no referentes) para o nvel do

    discurso:

    41. Aqueles livros / meus livros / alguns livros / os livros / dois livros so suficientes.

    O texto pode exercer algum papel no estudo e classificao das palavras?

    E, por fim mas no em ltimo lugar de importncia, pelo contrrio , cabe temperar esse

    conjunto de critrios que tradicionalmente se vm apontando com a necessidade absoluta de

    ver as classes de palavras, j no ponto de partida, como altamente determinveis segundo o

    seu comportamento no enunciado como um todo.

    O que se indica aqui a necessidade de basear a determinao inicial do estatuto das

    classes de palavras da lngua na investigao de seu papel na organizao textual-

    discursiva, o que representa a aceitao de uma dependncia entre o estabelecimento das

    partes do discurso j agora no sentido corrente que essa palavra tem hoje e o prprio

    13 Para o tema, consultar Mateus et alii (2003: 221-222)

  • discurso codificado no texto. Nesse enfoque, finalmente, obtm-se um exame do

    funcionamento das classes de palavras ligado manifestao das diversas funes da

    linguagem.

    Nesse sentido, o modo de operao tem base sinttico-semntica, vista a semntica como

    construo de sentido da frase, bem como do texto, e a sintaxe, por outro lado, como

    responsvel pelo arranjo construtor de sentido, tudo com determinao pragmtica, pois

    toda organizao do enunciado lingstico dependente da situao discursiva em que ele

    se insere e das intenes envolvidas na interao14. propor que, para essa tarefa, se parta

    do texto em sua organizao semntica, bem como em sua organizao interacional,

    depreendendo-se, da, o funcionamento geral das classes de palavras e sua taxonomia15.

    Admitir que as unidades da lngua tm de ser avaliadas com relao ao texto em que

    ocorrem no significa, bvio, desconsiderar as diversas unidades hierarquicamente

    organizadas dentro de um enunciado. evidente que as entidades da lngua tm uma

    definio estrutural, tanto no nvel da frase como no dos sintagmas menores que ela.

    6. Qual a diferena entre palavras lexicais e palavras gramaticais?

    Comecemos com as chamadas classes lexicais16, por exemplo, o verbo e o substantivo, que

    tm seu estatuto bsico definido pelo sistema de transitividade, sempre ativado no nvel

    interior frase, colocando-se num segundo nvel as relaes semnticas textuais, ou no-

    estruturais, obtidas por expedientes como a simples repetio ou a reiterao.

    14 Para esse tema, ver Dik (1997).15 o que busca fazer a Gramtica de usos do portugus (Neves, 2000).16 Numa definio bem simples, classes lexicais so as classes que trazem em si alguma representao do mundo (real ou fantasiado), um valor no apenas gramatical. So o verbo, o substantivo, o adjetivo e os advrbios de modo derivados de adjetivo, como furiosamente, estupidamente.

  • Dizemos que verbo e substantivo se definem no sistema de transitividade (funo

    ideacional, ou representativa, da linguagem)17 porque seu papel mais evidente se estabelece

    na formao das predicaes, nas quais o verbo o predicado oracional18 e os substantivos

    so as palavras que normalmente ocorrem como ncleo dos argumentos, ou participantes,

    os quais entram em relao sinttico-semntica com o predicado para formar a predicao:

    o sujeito e os complementos19.

    Desse modo, o carter substantivo ou o carter verbal de um item pode ser facilmente

    garantido, nas anlises, pelo prprio exame das relaes entre predicados e seus

    argumentos: o verbo capaz de ser ncleo do predicado oracional; o substantivo capaz de

    nuclear o termo que se constri com o predicado.

    Entretanto, recursivamente, pode-se verificar que, operando dentro de um termo da

    predicao, alguns substantivos tm a propriedade de, por sua vez, acionar o sistema de

    transitividade, isto , h substantivos transitivos, com fora de predicado (embora no um

    predicado oracional), que tambm pedem termos que com ele venham construir-se, como

    ocorre em:

    42. Comearam de novo a perfurao do poo.

    PREDICADO ORACIONAL TERMO [verbo]

    COMPLEMENTO VERBAL

    43. Comearam de novo a perfurao do poo. PREDICADO TERMO

    17 Ver Halliday (1985).18 Nem todo verbo ncleo do predicado por exemplo os verbos auxiliares e os modais ( ter, em tenho estado; dever, em devo sair) , mas todo verbo est no predicado.19 Insistir no papel do substantivo como ncleo dos sintagmas nominais, que preenchem as funes de participantes do predicado, no significa desconsiderar que o substantivo pode ser ncleo de sintagmas perifricos /adjuntos, por exemplo um adjunto adnominal, como em dois livros de literatura, ou um adjunto adverbial, como em viajar de trem.

  • [substantivo] COMPLEMENTO NOMINAL

    A compreenso desse complexo que vai formando a rede de relaes sinttico-semnticas

    permite compreender, por exemplo, por que so substantivas as oraes subjetivas,

    objetivas diretas, etc. (ligadas a um predicado que verbo), e tambm as completivas

    nominais (ligadas a um predicado que nome, substantivo).

    Quanto ao papel do verbo e do substantivo nas relaes textuais (relaes j no sintticas,

    mas puramente semnticas), isto , na funo textual20, ele se resume a retomadas e

    recolocaes: por sinnimos, por antnimos, por hipernimos ou hipnimos, por palavras

    do mesmo campo, por palavras mais gerais ou mais especficas, isto , por meio de

    fenmenos semnticos que relacionam a definio bsica de cada palavra ou expresso.

    Fica evidente que essas classes no se definem basicamente por sua funo textual, embora

    nunca se possa desconhecer que, em toda organizao discursiva que opere, o falante, por

    escolha de colocaes lexicais e de outros expedientes (a reiterao ou, mesmo, a simples

    alocao escolhida para os itens lexicais, por exemplo), constri, especialmente com essas

    classes de grande contraparte de contedo, o mapeamento conceptual do texto,

    estabelecendo relaes semnticas textuais. Pelo seu prprio estatuto aqui j assentado, o

    substantivo tem a propriedade de ancorar a rede de referenciaes descritivas e as relaes

    temticas do texto, participando fortemente da configurao semntica textual e da

    conduo das pores informacionais.

    Em contrapartida, as palavras gramaticais, por seu lado:

    a. podem constituir peas da organizao oracional (por exemplo, as

    preposies, que ou introduzem complementos, funcionando no sistema de

    20 Ver Halliday (1985).

  • transitividade, ou encabeam adjuntos, acrescentando informao

    secundria);

    b. podem ser privilegiadamente depreendidas e definidas na viso da

    organizao semntica textual, ou coeso (por exemplo: o artigo definido, os

    pronomes pessoais e possessivos de terceira pessoa e os demonstrativos, que

    atuam na referenciao, e tambm os coordenadores, que atuam na juno);

    c. podem ser privilegiadamente depreendidas e definidas na viso do texto

    visto como organizao interacional, a servio, pois da funo interpessoal21

    (por exemplo, os pronomes de primeira pessoa e de segunda pessoa, que

    remetem sempre aos interlocutores, e os verbos modalizadores, que marcam

    atitude do falante em relao a seu enunciado).

    7. Definindo as principais classes de palavras

    , pois, grande a variedade de nveis em que atuam as palavras gramaticais. Resumindo,

    umas so peas da organizao oracional, outras so peas definidas na semntica textual e

    na organizao interacional. Entre um sem-nmero de indicaes possveis, pode-se trazer

    como exemplos as seguintes indicaes sobre algumas das classes de palavras gramaticais:

    a) Os advrbios alguns quase-lexicais, como os derivados de adjetivos, do

    tipo de estupidamente so, na maior parte de suas variadas subcategorias,

    peas do nvel da predicao, mais especificamente peas de tipo perifrico,

    ou adjunto, mas esse estatuto no esgota a sua gramtica, j que sua atuao

    como adjunto pode ter como mbito todo o enunciado, e, ainda, o discurso.

    b) Os pronomes pessoais de terceira pessoa so, como os substantivos, da

    esfera semntica dos participantes, e, portanto, constituem termos que

    entram no preenchimento de casas nas predicaes (nvel interno orao),

    entretanto tambm s se resolvem, semntica e gramaticalmente, se posto

    21 Ver Halliday (1985).

  • em considerao o seu papel de referenciadores textuais e situacionais (nvel

    que extrapola a orao).

    c) O artigo definido, o demonstrativo e o possessivo, aparentemente, so

    apenas internos ao sintagma nominal (so determinantes, so adjuntos

    adnominais), entretanto s podem ser interpretados, e, portanto, tambm

    eles, s podem ter sua classe estabelecida, a sua gramtica resolvida, se

    considerado o seu papel de referenciao textual, e, portanto, a organizao

    semntica textual.

    d) O mesmo no ocorre com outros elementos estruturalmente internos ao

    sintagma, como os indefinidos e os numerais, j que estes no tm papel

    referenciador na organizao discursivo-textual.

    e) As preposies, da esfera semntica das relaes, constituem genunas

    peas da organizao semntica intrafrasal (nvel da orao e nvel do

    sintagma);

    f) Pelo contrrio, os coordenadores, tambm da esfera das relaes, atuam,

    em geral, em todos os nveis hierrquicos, e, por isso mesmo, apenas tm

    sua classe definida, sua gramtica determinada, se a reflexo englobar o seu

    papel de juno textual.

    A concluso que uma investigao gramatical orientada discursivamente lida com as

    classes de palavras de uma maneira no-estanque, funcional, produtiva: a partir dos

    processos de organizao do enunciado, onde se combinam lxico e gramtica, ela acopla,

    funcionalmente, o significado categorial dos itens, a organizao gramatical das categorias,

    a organizao semntica textual, tudo envolvido nas condies reais de produo, para

    chegar, afinal, verificao do cumprimento das funes da linguagem.