COMO E POR QUE EDUCAR SEM BATER, Orientação Aos Pais Sobre a Educação Dos Filhos (Cristiano Da...

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  • Cristiano da Silveira Longo

    Como e por que educar sem bater:Orientao aos pais sobre a educao dos filhos

    2012

  • Universidade Federal da Grande DouradosCOED:

    Editora UFGDCoordenador Editorial: Edvaldo Cesar MorettiTcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho

    Redatora: Raquel Correia de OliveiraProgramadora Visual: Marise Massen Frainer

    e-mail: [email protected]

    Conselho Editorial - 2011/2012Edvaldo Cesar Moretti | Presidente

    Wedson Desidrio Fernandes | Vice-ReitorClia Regina Delcio Fernandes

    Luiza Mello VasconcelosMarcelo Fossa da Paz

    Paulo Roberto Cim QueirozRozanna Marques Muzzi

    Diagramao: Alcindo Donizeti Boffi

    Ficha catalogrfi ca elaborada pela Biblioteca Central - UFGD

    371.7L856c

    Longo, Cristiano da Silveira.Como e por que educar sem bater : orientao aos

    pais sobre a educao dos filhos / Cristiano da Silveira Longo. Dourados : Ed. UFGD, 2012.

    102 p.

    Possui referncias.ISBN: 978-85-8147-021-4

    1. Educao de menor. 2. Violncia familiar. 3. Pu-nio corporal. I. Ttulo.

  • Dedico este livro s crianas e adolescentes que sofrem cotidianamente violncia em seus lares.

  • Meus sinceros agradecimentos,

    Universidade Federal da Grande Dourados, pela possibilidade de divulgao deste trabalho

    ao grande pblico.

  • s vezes se diz que as crianas no esto aptas para a liberdade do autocontrole at que atinjam a idade da razo, e enquanto isso, devem permanecer em um ambiente seguro ou serem punidas. Se a punio pode ser adiada at que alcancem a idade da razo, pode ser inteiramente dispensada. (Burrhus Frederic Skinner)

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    SUMRIO

    APRESENTAO

    1. ENTENDENDO A VIOLNCIA

    2. BATER NA CRIANA VIOLNCIA?

    3. A TRADIO DE BATER EM CRIANAS NO BRASIL

    4. O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS ?

    5. OS FUNDAMENTOS DA PUNIO CORPORAL, E SUA CRTICA

    6. CONSIDERAES FINAIS

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

  • 7APRESENTAO

    O presente livro, originalmente uma Dissertao de Mestrado apre-sentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo (USP), sob a orientao da Profa. Dra. Maria Amlia Azevedo, investigou o problema da Punio Corporal Domstica em Crianas e Adolescentes no Brasil, a partir de concepes de alguns autores profissionais de diversas reas do conhecimento (Psicologia, Pedagogia, Medicina, Psi-canlise, Jornalismo), que constroem representaes e prticas de educao familiar atravs da publicao de livros de orientao a pais e educadores. Props-se na ocasio realizar uma anlise de contedo sistemtica sobre a literatura veiculada a pais e educadores no Brasil, no perodo de 1981 a 2000, a fim de identificar o tipo de material infor-mativo e formativo sobre as prticas de educao familiar com crian-as e adolescentes, especificamente com o recorte sobre a questo da punio corporal domstica, em suas diversas manifestaes. Buscou--se tambm recuperar parte da Histria da Punio Corporal Doms-tica de Crianas e Adolescentes no Brasil desde o sculo XVI, com a chegada dos colonizadores, educadores jesutas e seus mtodos psico-pedaggicos. No se tratou, entretanto, de uma obra de historiografia, pois apenas alguns fragmentos da nossa histria foram recuperados, conferindo, portanto, um carter introdutrio Histria da Punio Corporal Domstica de Crianas e Adolescentes no Brasil. Observou-se que, baseados em fundamentaes tericas oriundas sobretudo das Ci-ncias Psicolgicas e Pedaggicas, oferecendo argumentos lgicos, mo-rais, psicopedaggicos diferenciados, os autores dos livros pesquisados propem prticas educacionais favorveis ou desfavorveis s punies corporais na educao familiar de crianas e adolescentes, no mbito

  • 8domstico. Os argumentos e as proposies dos autores, suas enun-ciaes discursivas, foram minuciosamente analisados, visando apro-fundar esse debate, contrapondo argumentos e reflexes tericas a fim de oferecer elementos e subsdios psicopedaggicos, seja para fomentar a discusso terico-acadmica, seja para favorecer a formulao de polticas pblicas na rea da Violncia Domstica contra Crianas e Adolescentes no Brasil, seja para alertar sobre o tipo de contedo ain-da veiculado em livros dirigidos a pais e educadores, que muitas vezes manifestam-se de maneira contrria aos Direitos da Criana e do Ado-lescente.

    Nesta publicao, especificamente, buscou-se ressaltar e desen-volver as possveis alternativas educativas s prticas punitivas cor-porais, oferecendo assim ao pblico leitor modos prticos de educao de filhos, apoiados em estudos e teorias psicolgicas e pedaggicas. Algumas partes do trabalho original foram suprimidas, bem como sua linguagem adequada ao grande pblico. Este livro afigura-se como bastante oportuno tendo em vista as discusses todas geradas na so-ciedade a partir da proposio e aprovao da chamada Lei da Palma-da (Projeto de Lei N 2654 /2003).

    O autor

    Dourados, outubro de 2011

  • 91. ENTENDENDO A VIOLNCIA

    Neste captulo introdutrio apresenta-se alguns conceitos e defini-es tericas fundamentais adotados neste trabalho, dialogando com autores cujas concepes contribuem para uma reflexo scio-histri-ca e crtica das diversas problemticas aqui tratadas, conexas ao ma-cro tema Violncia.

    O conceito de violncia, tema geral deste estudo, apresentado pelo socilogo Srgio Adorno, que a entende como uma forma de relao so-cial, como um fenmeno interno vida social: Enquanto fenmeno socialmente construdo incorporada como legtima e mesmo como im-perativo, a violncia prende-se s prprias condies de constituio e de funcionamento de uma sociedade de homens livres (ADORNO, 1988, p.5).

    Nesta leitura a violncia expressa padres de sociabilidade, modus vivendis, modelos de comportamentos vigentes em uma sociedade em um momento determinado do seu processo histrico. Remete-se s es-truturas sociais e aos sujeitos que a fomentam enquanto experincia social. , portanto, um fenmeno determinado scio-historicamente, estando ...inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens pro-duzem e reproduzem suas condies sociais de existncia (ADORNO, 1988, p.7). A violncia torna-se presente e expressa-se nas relaes in-terpessoais, intersubjetivas: ...[a violncia] est presente nas relaes intersubjetivas, aquelas que se verificam entre homens e mulheres, en-tre adultos e crianas, entre profissionais de categorias distintas. Seu resultado mais visvel a converso de sujeitos em objetos, sua coisi-ficao (ADORNO, 1988, p.7). E, enquanto manifestao de sujeio e

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    de coisificao, conclui o socilogo, a violncia s pode atentar contra a possibilidade de construo de uma sociedade de homens livres.

    Para Lalande (1988, p.1210), estudioso da filosofia, a violncia algo que atinge a prpria natureza: Se faz violncia, faz violncia natureza. algo que se impe a um outro contrariamente sua na-tureza. O movimento violento uma fora impetuosa contra algo ou algum que se cr fazer obstculo. Trata-se tambm de um emprego ilegtimo ou ilegal da fora. Conforme Ferreira (1999), a violncia pode estar presente em ato (concretamente) ou qualitativamente (subjetiva-mente) na relao. Nesse sentido, podemos conceber um ato violento ou uma relao violenta, tambm composta de atos, mesmo que os atos no sejam aparentemente violentos. Trata-se, nesse caso, de uma for-ma de violncia mais sutil. Pode ser tambm um constrangimento fsico ou moral, indo de encontro formulao da filsofa Marilena Chaui, na qual a prpria anulao ou impedimento da voz do outro j converte-se em violncia:

    Em lugar de tomarmos a violncia como uma violao e transgresso de normas, regras e leis, preferimos consider-la sob dois outros ngulos. Em primeiro lugar, como converso de uma diferena e de uma assimetria, numa relao hierrquica de desigualdade, com fins de dominao, de explorao e de opresso. Isto , a converso dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relao entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ao que trata um ser humano no como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inrcia, pela passividade e pelo silncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem so impedidas ou anuladas, h violncia (CHAUI, 1985, apud ADORNO, 1988, p.6).

    A violncia fsica, de maneira simplificada, pode ser entendida como aquela que atinge o corpo de algum, causando maior ou menor intensidade de dor fsica. H diversos trabalhos j realizados sobre a questo da violncia fsica contra crianas e adolescentes. Em especial citam-se os seguintes autores, e as principais pginas de referncia: Azevedo e Guerra (1989, p. 36-40); Bueno (1989, p. 105-113); Santoro Jnior (1989, p. 115-121); Azevedo e Guerra (1995, p. 38-53, 71-73, 89-

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    94); Guerra (1998, p. 33-88, 150-158); Azevedo e Guerra (2001, p. 21-31). Nestes trabalhos encontram-se importantes consideraes acerca da identificao e conceituao do fenmeno da violncia fsica contra crianas e adolescentes, toda a recuperao histrica e terica a respei-to, da conduta mdica frente questo, dos sinais de alerta (indicado-res orgnicos e de conduta da criana, da conduta dos pais, do vnculo pais e filhos), da histria da violncia fsica domstica contra crianas e adolescentes, da violncia fsica domstica contra crianas no Brasil, do significado da violncia fsica domstica e de como preveni-la, alm de outras importantes questes relacionadas problemtica. Azevedo e Guerra (1995, p.36) propem importante formulao sobre violncia domstica contra crianas e adolescentes, para depois realizarem uma aproximao scio-histrica ao fenmeno da violncia domstica de na-tureza fsica:

    Todo ato ou omisso praticado por pais, parentes ou responsveis contra crianas e/ou adolescentes que - sendo capaz de causar dano fsico, sexual e/ou psicolgico vtima - implica de um lado, uma transgresso do poder/dever de proteo do adulto e, de outro, numa coisificao da infncia, isto , numa negao do direito que crianas e adolescentes tm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condio peculiar de desenvolvimento.

    A famlia, localizada dentro de uma determinada sociedade, em um determinado momento histrico, , de diferentes formas, o locus da violncia domstica. Constitui-se, muitas vezes, em espao perigoso para as crianas:

    No raro, justifica-se a interveno agressiva dos pais, visando corrigir o comportamento e eliminar condutas consideradas indesejveis. Cr-se que a imposio de limites s crianas deve necessariamente ser acompanhada de reprimendas, aplicadas moderadamente, que incluem agresses fsicas, restries liberdade de locomoo, alm de outras modalidades. Fecha-se os olhos para a intensidade e a regularidade com que tais reprimendas so praticadas (ADORNO, 1988, p.10).

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    Ainda sobre a famlia e a criana na famlia, e o sobre o paradoxo da famlia enquanto instituio que deveria oferecer proteo absolu-ta s necessidade da criana, comentam Adorno e Horkheimer (1982, p.221):

    O menino vivencia ainda, nas primeiras fazes de seu desenvolvimento, as experincias de dio e amor pelo pai que, na era burguesa, davam lugar ao complexo de dipo; porm, mais rapidamente do que antes, ele descobre que o pai no personifica absolutamente a fora, a justia e a bondade e, sobretudo, que no concede a proteo que a criana inicialmente espera dele.

    Posto ento que a famlia paradoxalmente o lugar da violncia domstica contra crianas e adolescentes, cabe agora debruar-se so-bre o fenmeno da violncia domstica de natureza fsica, objeto cen-tral desse estudo.

    H vrios nomes na literatura especializada para designar o fe-nmeno da violncia domstica fsica contra crianas e adolescentes: sndrome da criana espancada, abuso fsico, maltrato fsico, violncia fsica, abuso-vitimizao fsica. Azevedo e Guerra (1989, p.36) introdu-zem este ltimo conceito, assim definindo-o:

    Os castigos corporais tm sido considerados como abuso-vitimizao fsica. bem verdade que a literatura s unnime em considerar como maus tratos duas modalidades de castigos corporais: os castigos cruis e pouco usuais e os castigos que resultam em ferimentos. No primeiro caso esto os castigos extremos e inapropriados idade e compreenso da criana, por exemplo crcere privado, treino prematuro de toilette etc. No segundo caso esto o bater de forma descontrolada e com instrumentos contundentes.

    A literatura cientfica, entretanto, apresenta controvrsias quanto ao que seja um ato disciplinador violento por parte dos pais. Segundo Azevedo e Guerra (1993, p.145) este pode variar:

    ...desde a simples palmada no bumbum at atos praticados com armas brancas e de fogo, com instrumentos (pau, barra de ferro, taco de bilhar, tamancos etc) e imposio de queimaduras, socos e pontaps (...) embora haja ponderaes cientficas mais recentes no sentido de

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    que a violncia deve se relacionar a qualquer ato disciplinador que atinja o corpo de uma criana ou de um adolescente.

    Ainda segundo Azevedo e Guerra (1989, p.35), a Histria Social da Infncia tem se incumbido de mostrar que as relaes interpessoais adulto-criana so de natureza assimtrica:

    So relaes hierrquicas, adultocntricas, porque assentadas no pressuposto do poder do adulto (maior de idade) sobre a criana (menor de idade). A vitimizao - enquanto violncia interpessoal - constitui uma exacerbao desse padro. Pressupe necessariamente o abuso, enquanto ao (ou omisso)de um adulto, capaz de criar dano fsico ou psicolgico criana. Por essa razo costuma-se considerar abuso-vitimizao como as duas faces da mesma moeda da violncia. Enquanto violncia interpessoal, a vitimizao uma forma de aprisionar a vontade e o desejo da criana, de submet-la, portanto, ao poder do adulto, a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas ou as paixes deste.

    Como, porm, a violncia interpessoal constitui uma transgresso do poder disciplinador do adulto, ela exige que a vtima seja cmplice, num pacto de silncio. Portanto, prosseguem estas autoras:

    ... a vtima tem restringida no apenas sua atividade de ao e reao como tambm sua palavra cassada e passa a viver sob o signo do medo: medo da coao, medo da revelao (...) O abuso-vitimizao de crianas consiste, pois, num processo de completa objetalizao destas, isto , de sua reduo condio de objeto de maus-tratos. Tal como no caso da vitimao, h vrias maneiras de maltratar uma criana, de vitimiz-la, de abusar de sua condio, de domestic-la... (AZEVEDO & GUERRA, 1989, p.35).

    Quando se fala em bater nos filhos, ao nvel do senso comum, duas costumam ser as respostas mais frequentes, como apontam Azevedo e Guerra (2001, p. 19): para disciplin-los, isto , para control-los, sub-metendo-os a uma certa ordem que convm ao funcionamento do grupo familiar ou da sociedade em geral; para castig-los, ou seja, puni-los por faltas reais ou supostamente cometidas. O disciplinamento corpo-ral, como explicam as autoras, prende-se tradio de flagelao com disciplinas (correias de aoite) utilizadas seja como penitncia, quase

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    sempre por religiosos, seja como advertncia, por exemplo em relao aos loucos, na Idade Mdia. Por isto disciplinar significa controlar, sub-meter a uma ordem conveniente. A intencionalidade em disciplinar , portanto, de ordem mais preventiva.

    Disciplinar, do latim disciplinare, segundo Ferreira (1999), significa sujeitar ou submeter disciplina; fazer obedecer ou ceder; acomodar, sujeitar; corrigir. Pode significar tambm castigar com disciplinas. Sa-be-se, atravs de inmeros estudos antropolgicos, que entre muitas tribos indgenas e povos primitivos do passado e presente o disciplina-mento corporal fazia e faz parte dos ritos de iniciaes culturais. Aze-vedo e Guerra (2001) apontam que esta inquietante questo a respeito dos ritos de iniciao entre os povos primitivos, se podem ser consi-derados violncia fsica ou no, ainda permanece em aberto. Talvez, uma aproximao psicolgica oferea fundamentao para divergir de algumas interpretaes antropolgicas ou sociolgicas, culturalistas, sustentando que tais prticas culturais so formas de violncia consi-deradas necessrias e, portanto, aceitveis. Entretanto este um longo e cuidadoso debate, que foge ao escopo do presente estudo.

    Por sua vez punir, do latim punire, significa infligir pena a; cas-tigar. A punio corporal um castigo - que atinge o corpo - por faltas reais ou supostamente cometidas. Pressupe, portanto, culpabilidade ou presuno de culpa, tendo uma intencionalidade punitiva. Uma dis-cusso mais aprofundada sobre as teorias da punio ser realizada a partir de Vigiar e Punir (1984) de Michel Foucault, alm das considera-es da Psicologia acerca da punio corporal.

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    2. BATER NA CRIANA VIOLNCIA?

    A questo da punio corporal se insere no mbito da Violncia Fsica contra Crianas e Adolescentes, e esta no campo das relaes desiguais - hierrquicas - de poder. A criana, considerada um ser menor quase sempre, ao longo da histria da humanidade, foi alvo de violncia - psicolgica, fsica, sexual, fatal. A criana numa condio menorizada. aquela que, segundo Adorno (1991a, p.7), sofreu um processo de menorizao e se v desprovida de seus direitos funda-mentais, direitos estes expressos pelo artigo 227 da Constituio bra-sileira de 1988:

    Este artigo afirma ser dever da sociedade, da famlia e do Estado assegurar criana e ao adolescente o direito vida, alimentao, educao, profissionalizao, cultura, dignidade, liberdade, ao lazer e ao respeito. Coloc-lo a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (ADORNO, 1991a, p.7).

    nesse sentido que a violncia deve ser entendida como uma ne-gao dos valores considerados universais: a liberdade, a igualdade e a vida. Assim fica entendido que a punio corporal domstica uma forma de Violncia Domstica Fsica. E tambm um problema do m-bito da Psicologia pois, como ser demonstrado posteriormente, a tem-tica da Punio (castigos e recompensas) foi e continua sendo objeto de estudo terico e experimental dessa cincia.

    As razes desta prtica violenta a punio corporal - comum em nossa cultura, e em muitas outras, remontam Antiguidade. Basta estudar-se com ateno a Histria da Pedagogia, a Histria da Criana

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    ou a Histria da Infncia, para que se comprove tal afirmao. H dois trabalhos que se propuseram a tarefa de recuperao da Histria da Infncia e da Criana no mundo ocidental, e que oferecem importantes contribuies para a compreenso do fenmeno da violncia domsti-ca contra crianas e adolescentes, especialmente a de natureza fsica, objeto deste estudo. So eles: Histria Social da Criana e da Famlia, de Aris (1978) e The History of Childhood, de DeMause (1975). O pri-meiro autor defende a tese de que a sociedade medieval no perce-beu a infncia uma vez que as crianas passavam a conviver com os adultos logo aps um tardio desmame, aproximadamente, aos 7 anos de idade. A partir desse momento ingressavam na grande comunidade dos homens, ajudando-os no fazer dirio. Naquele perodo histrico a socializao da criana no era assegurada nem controlada pela fam-lia, escola ou Estado. No era necessrio uma afetividade maior entre pais e filhos para manter a existncia da famlia. O espao comuni-trio se sobrepunha famlia, ao espao privado. No final do sculo XVII, entretanto, ocorrem modificaes scio-estruturais, alterando o estado de coisas e as formas de relaes sociais: a burguesia nascente desejava uma educao especial aos seus filhos, para que se preparas-sem para as atividades da vida adulta burguesa, em oposio ao poder aristocrtico. Tal necessidade levou ao desenvolvimento de um sistema escolar, e ao conceito moderno de infncia, vinculado ideia de subor-dinao e dependncia. A criana passa a ser institucionalizada, nos colgios, onde as punies corporais eram administrados como parte de uma pedagogia severa. J o segundo autor, DeMause (1975), considera-do um psicohistoriador, parte da tese oposta, ou seja, de que a situao das crianas foi melhorando com o passar dos sculos, e de que quanto mais atrs regressamos na histria, mais reduzido o nvel de cuidado com as crianas e maior a probabilidade de que houvessem sido assas-sinadas, abandonadas, espancadas, aterrorizadas e abusadas sexual-mente. DeMause tenta recuperar, atravs do que chama teoria psicog-nica da histria, como se deram as transformaes no relacionamento adulto-criana no decorrer dos sculos. Wilson (2000) tambm aponta

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    importantes contribuies histricas a respeito das punies corporais contra crianas e adolescentes da Antiguidade at a contemporanei-dade, mas sua nfase recai sobre a anlise das punies corporais no mbito escolar, e no domstico.

    H em diversas sociedades e tambm na sociedade brasileira uma cultura, comum a todas as classes sociais, que reflete a dificuldade de reconhecer o outro como um sujeito de direito, e que permite prti-cas de violncia corporal das mais variadas; trata-se de uma verdadei-ra mania de bater, como bem apontam Azevedo e Guerra (2001), que remonta ao perodo colonial (com a chegada dos colonizadores portu-gueses e dos padres jesutas e seus mtodos pedaggico disciplinares). Essa cultura mantm a ideia de que os pais tm o direito e o dever de punir seus filhos no sentido de melhor educ-los para o convvio em sociedade, corrigindo sua natureza pecaminosa, perversa, e en-quadrando-os no bom caminho. Para isso, os pais podem - e devem - punir corporalmente as crianas da maneira que for necessria, do modo mais justo e adequado. Trata-se de uma forma de intimidao e humilhao social, exercida atravs de uma Pedagogia Desptica. A pedagogia desptica familiar interessa a uma sociedade e a um Estado autoritrios, na medida em que reproduz cidados acrticos e subser-vientes, tutelados:

    A principal caracterstica do dspota encontra-se no fato de ser ele o autor nico e exclusivo das regras que definem a vida familiar, isto , o espao privado. Seu poder, escreve Aristteles, arbitrrio, pois decorre exclusivamente de sua vontade, de seu prazer e de suas necessidades...O dspota (o despots; o pater familias) s domina os dependentes e no os livres (CHAUI, 1992, p.357, Apud AZEVEDO, 1995, p.128).

    Como apontam Azevedo e Guerra (2001, p.39):

    (...) BATER NOS FILHOS foi se constituindo uma verdadeira marca da BOA CRIAO DOS FILHOS e verdadeira MANIA NACIONAL. Evidncias disso podem ser encontradas nos vrios Brasis resgatados por testemunhos e/ou relatos autobiogrficos que nos foram legados

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    por RELIGIOSOS, VIAJANTES, PINTORES, ESCRITORES... Atravs deles, pode-se recuperar as VOZES DA INFNCIA DE OUTRORA e chegar a identificar duas das principais caractersticas do BATER NOS FILHOS, DENTRO DA CULTURA BRASILEIRA: 1 UMA PRTICA PEDAGGICO-FAMILIAR VIOLENTA; 2 UMA PRTICA SOCIAL DEMOCRTICA.

    Assim, Famlia e Democracia nunca foram lugar da no-violncia. Esse conjunto de ideologias herana de uma sociedade patriarcal, adultocntrica e autoritria, onde criana sempre esteve reservado um lugar menor: o lugar do no ser, da punio, do desrespeito, da hu-milhao, da violncia.

    O primeiro estudo cientfico sobre violncia fsica foi realizado por um mdico francs, Dr. Ambroise Tardieu, em 1860: tude mdico-legale sur les sevices et mauvais traitements exerces sur des enfants. Mas esse trabalho no teve grandes repercusses no meio cientfico, ficando a questo da violncia fsica contra crianas e adolescentes muito tempo sem reaparecer no cenrio de pesquisas. Segundo Guerra (1998, p.71):

    O fenmeno da Violncia Fsica Domstica foi descoberto cientificamente em 1962, a partir de um trabalho publicado por F. Silverman e H. Kempe no qual apresentam 749 casos (com 78 mortes) de crianas vtimas do que eles batizam de Sndrome da Criana Espancada (The Battered Child Syndrome).

    Prossegue Guerra (1998, p.74):

    O incio da dcada de 1970, traz-nos um novo modelo de entendimento da problemtica que resgata a contribuio de outras reas do conhecimento (Psicologia, Direito, Servio Social, Antropologia, Sociologia etc.) pondo fim hegemonia do conhecimento mdico sobre a questo, hegemonia esta instaurada na dcada de 1960 com a famosa Sndrome da Criana Espancada (...)

    A partir da, diversos autores trataram, na literatura nacional e internacional, sobre punio corporal domstica, enfocando aspectos psicolgicos, mdicos e sociolgicos, e as consequncias do bater em crianas. Algumas das consequncias orgnicas e psicolgicas desta

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    espcie de cncer social so apontadas por Azevedo e Guerra (1995, p.51): (...) a punio corporal treina a criana para aceitar e tolerar a violncia na medida em que tais atos feitos pelos adultos destinam-se a ensinar obedincia e submisso. Outras consequncias ou efeitos da punio corporal domstica sero elencados posteriormente, a partir das contribuies prprias dos estudos pedaggicos e psicolgicos bem como de outras reas do conhecimento, como a Pediatria e a Sociolo-gia, que tambm apontam tais consequncias.

    No campo sociolgico Adorno (1991b), por exemplo, embora no se refira especificamente aos efeitos da experincia precoce de punio corporal domstica em crianas e adolescentes, e sim analise os conta-tos sistemticos dos menores com as agncias de controle e represso ao crime, e as experincias precoces de punio decorrentes dessa si-tuao, aliada a condio de vida, tece importantes consideraes pas-sveis de apropriao para a anlise da experincia precoce de punio corporal domstica:

    [Essas experincias] no resultam seno de um adestramento onde crianas e jovens delinquentes afirmam sua capacidade de resistir ao medo e violncia, adestramento que os torna to adaptados a um cotidiano de horrores e de humilhaes, ao qual no suportariam cidados comuns. Nas trajetrias dos biografados, destaca-se uma atitude frequente: a de se mostrar mais forte do que a punio sofrida. Da o paradoxo do entrecruzamento entre a biografia dessas crianas e desses jovens e a histria das agncias de controle: estas, em lugar de conter o comportamento violento, acabam por reproduzi-lo. Quanto mais reprimem esses comportamentos, mais tendem a propiciar o desenvolvimento de resistncias, o que, a sua vez, significa aprofundar a territorializao na delinquncia, tornando certos jovens e crianas uma populao conhecida das investidas policiais (ADORNO, 1991b, p. 203-4).

    Embora as anlises acima se refiram s instituies estatais (as agncias de controle da criana e do adolescente), a famlia tambm pode ser pensada como uma instituio de controle da criana, no am-biente domstico e pblico. A interessante anlise sociolgica pode ser transposta para a anlise da punio corporal domstica em famlia,

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    pois a influncia da educao familiar levada pelo sujeito do privado ao pblico, e tambm, inversamente, do pblico ao privado.A punio corporal domstica funciona como instrumento para o adestramento familiar, onde as crianas aprendem a suportar um cotidiano de horro-res e humilhaes: a criana afirma sua capacidade de resistir ao medo e violncia, a conviver com ela, a perceb-la como parte das relaes hierrquicas, desiguais, com os pais. Trata-se de um aprendizado do terror e do medo. E um trao de personalidade comea a estruturar-se nas crianas: mostram-se mais forte

    Do que a punio sofrida. Segundo a teoria da aprendizagem so-cial, esse modelo pedaggico produz comportamentos violentos nas crianas, que os assimila como modelos, ainda mais vindo dos pais. Os pais atuam exercendo, de certo modo, uma ao policialesca sobre a criana, administrando as punies cabveis, e entre elas as punies corporais. Esto imersos em uma cultura da violncia, que valoriza a pedagogia do castigo corporal.

    O bater em crianas e adolescentes uma das prticas da cultura do terror, expresso cunhada por Eduardo Galeano (1997) ao obser-var alguns dos mtodos de penitncia e tortura tradicionais na vida da famlia. A humilhao e o medo fazem parte dessa cultura, que exige a obedincia pronta dos menores no universo familiar : mulheres e crianas. O cascudo, a bofetada, a surra, o aoite, o quarto escuro, a ducha gelada, so algumas das inmeras prticas perpetuadas pela cultura do terror familiar. Terror, do latim terrore, aquilo que possui a qualidade de terrvel, despertando um estado de grande pavor ou apre-enso; etimologicamente, aquilo que causa um tremor, faz tremer, um profundo abalo, causa medo, terror, tremor, grande medo ou susto, pavor. Diversos estudos apontam que a punio corporal domstica pode causar na criana um grande susto, pavor, um estado de verda-deiro terror. Estudos na rea da Psicologia da Dor, do Medo, do Terror e da Tortura contribuem para o aprofundamento dessa interessante discusso, do sentido de informar o quo terrificante para a criana a experincia da punio corporal perpetrada pelos pais.

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    Facilmente a punio corporal domstica assume o carter de ter-ror e mesmo de tortura, causando tormento e grande mgoa criana vtima. O sentido de tortura aqui empregada no o mesmo que origi-nariamente (tortura=quaestio), entre os juristas romanos dos sculos II e III, a palavra significa, que ...o suplcio e o sofrimento do corpo com o objetivo de se descobrir a verdade ou um interrogatrio feito por meio do suplcio do corpo, a respeito de um crime que se sabe que ocorreu, legitimamente ordenado... ou a partir da criao dos estados modernos, inflico de sofrimento fsico ou ameaa de o infligir ime-diatamente, desde que tal inflico ou ameaa tenham por fim obter (...) informaes, provas legais e cujo motivo seja de interesse militar, civil ou eclesistico (PETERS, 1985, p.7-8). O sentido de tortura aqui empregado desloca-se do mbito pblico, da esfera das instituies es-tatais, jurdicas, para o mbito privado, domstico, para a esfera da instituio familiar. Nesse sentido, pode-se conceber a tortura doms-tica como uma estratgia do terror domstico, ou seja, um esforo de-liberado de causar dor, medo, constrangimento e humilhao crian-a, mesmo sem que haja motivos desencadeadores da ao violenta, como supostos erros cometidos, ou com o intuito disciplinador. Ou seja, mesmo sem motivos ou razes determinadas, alguns pais e edu-cadores mantm, no mbito domstico, prticas que causam sofrimen-to fsico e psquico s crianas, como um hbito sdico, extremamente autoritrio: a banalizao extrema da violncia, a gratuidade da violn-cia fsica, como mero hbito cotidiano familiar.

    Para muitos pais a prtica da tortura domstica torna-se um fim em si mesmo, uma verdadeira mania, no sentido empregado por Aze-vedo e Guerra (2001), uma expresso do sadismo pedaggico de muitos pais e educadores. Muitos so os mtodos de tortura domstica em-pregados: espancamento (esmurrar, dar pontaps, bater com bastes, coronhas, cintos, fios, tamancos, chinelos, rguas, palmatria, aoites diversos, varas, couro, chicotes; saltar sobre o estmago, arremessar ao cho ou contra a parede); falaka (vergastar as plantas dos ps com varas, cintos, rguas); telephono (bater no ouvido da criana com a

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    mo aberta imitando um receptor telefnico, podendo inclusive produ-zir a ruptura da membrana do tmpano); choques eltricos; queimadu-ras (com pontas de cigarros, charutos, varas aquecidas eletricamente, leo a ferver, cido, cal viva, etc); submarino (submerso da cabea da criana em gua, banheiras, baldes, ou mesmo no vaso sanitrio sujo, at ao limiar da sufocao ou mesmo sufocao, na violncia fatal); submarino a seco (a cabea da criana envolta num saco de plstico ou cobertor, ou a boca e narinas so amordaadas ou tapadas at que atinja o ponto de sufocao, ou a cabea empurrada contra o traves-seiro, almofada, roupas ou colcho); obrigar a criana a manter-se pro-longadamente de p ou sentada, ou em posies que exija, esforo do corpo; alopcia de trao (violentos puxes de cabelo, arrancando-os); violao e agresses sexuais, insero de corpos estranhos na vagina ou no reto; exposio ao frio (exposio ao ar gelado ou submerso em gua gelada, duchas frias); consumo forado, na marra, de comidas; deixar a criana sentindo dores e no trat-las devidamente. Entre as sequelas somticas da tortura corporal domstica pode-se citar: per-turbaes gastro-intestinais (gastrites, sintomas disppticos do tipo da lcera, dores de regurgitao no epigastro, clon esogstrico irritvel, leses retais, anomalias no esfncter, leses na pele, leses histolgi-cas); perturbaes dermatolgicas (dermatites, urticrias); dificuldade em andar, leses nos tendes, dores nas articulaes; atrofia cerebral e danos orgnicos do crebro; problemas dentrios, dores traumti-cas residuais, inflamao dos rgos sexuais internos; diminuio da capacidade auditiva, leses do tmpano; abaixamento do limiar da dor e stress como sequela indireta.

    Entre as sequelas psicolgicas da tortura corporal domstica, pode--se elencar: ansiedade, depresso, medo; psicose ou estado prximo; instabilidade, irritabilidade, introverso; dificuldades de concentra-o; letargia, cansao; inquietao; controle reduzido da expresso de emoes; dificuldades de comunicao; perda de memria e de con-centrao; perda do sentido de localizao; insnias, pesadelos; me-mria diminuda; dores de cabea; alucinaes, perturbaes visuais;

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    parestesia; vertigens; perturbaes sexuais. Ainda podem ser listadas as consequncias sociais oriundas das sequelas das torturas doms-ticas: diminuio da personalidade social, incapacidade para o traba-lho, incapacidade em participar de atividades recreativas, destruio da autoestima, stress sofrido pela famlia, incapacidade de socializar--se (Adaptado de PETERS, 1985, p.192-8, com acrscimos).

    Assim, pode-se concluir esse captulo considerando que as puni-es corporais so muito comuns na sociedade brasileira e em mui-tas outras -, fazendo parte de um forte hbito familiar, historicamente datado, e de algumas instituies, paradoxalmente destinadas prote-o da infncia e adolescncia. A punio corporal domstica, enquan-to prtica familiar, pode fortalecer-se a partir da aceitao ingnua da seguinte afirmao: uma palmadinha no bumbum no faz mal e at necessria ao bom desenvolvimento da criana. Mas, para melhor compreenso de como tais prticas punitivas vm se estruturando em verdadeiros hbitos familiares, faz-se necessrio antes deter-se, ainda que de maneira incompleta, ao estudo da Histria da Criana e das Prticas Psicopedaggicas no Brasil ao longo do seu processo civili-zatrio a partir do sculo XVI com a chegada dos colonizadores por-tugueses e das primeiras misses jesuticas. Um pouco ainda sobre a Histria da Vida Familiar das populaes nativas que aqui habitavam ser tambm abordado.

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    3. A TRADIO DE BATER EM CRIANAS NO

    BRASIL

    Este captulo privilegiar uma breve recuperao histrica sobre a punio corporal domstica de crianas e adolescentes no Brasil, a partir dos estudos sobre a Histria da Criana e da Infncia no Brasil, com base nos trabalhos de Marclio (1988a), Freyre (1994), Holanda (1995), Caldana e Biasoli Alves (1996), Priore (1996, 1999), Alencastro (1997), Freitas (1997), Chambouleyran (1999), Samara (1999), Massimi (1999), Dourado e Fernandez (1999), Azevedo e Guerra (2001), entre outros autores.

    Situando-se a punio corporal domstica como uma forma de vio-lncia, iniciam-se as consideraes a este respeito citando novamente o socilogo Adorno (1988, p.8), a respeito da histria da sociedade bra-sileira: A histria da sociedade brasileira , sob certo ponto de vista, uma histria social e poltica da violncia. Historicamente tem-se ... as agresses cometidas silenciosa e cotidianamente no mundo doms-tico contra mulheres, velhos e crianas... (ADORNO, 1988, p.9). Aqui interessa conhecer especificamente as diversas formas de violncia do-mstica fsica contra as crianas e os adolescentes seria uma cons-tante, fenmeno endmico, ao longo da Histria das Crianas no Bra-sil? Alguns autores afirmam que sim.

    No Brasil, o castigo fsico em crianas foi introduzido no sculo XVI pelos padres jesutas - A Ratio Studiorum, aprovada em fins do scu-lo XVI, norteava a educao jesutica -, uma vez que os indgenas que aqui habitavam desconheciam o ato de bater em crianas, e mesmo o de gritar com elas. Para os jesutas a correo era vista como uma forma

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    de amor, sendo que a punio corporal inseria-se no mbito da Peda-gogia do Amor Correcional. Comenta Chambouleyran (1999, p.62-63) a respeito de determinadas prticas punitivas institudas no Brasil, no sculo XVI, pela Companhia de Jesus:

    Nas aldeias administradas pelos jesutas, Mem de S mandara fazer tronco e pelourinho, por lhes mostrar que tm tudo o que os cristos tm, como escrevia a Dom Sebastio e, tambm, para o meirinho meter os moos no tronco quando fogem da escola. Embora o castigo fsico fosse normal, os padres tinham o cuidado de no o aplicar pessoalmente, delegando a tarefa, de preferncia, a algum de fora da Companhia.

    A historiadora Mary del Priore afirma que os primeiros modelos ideolgicos sobre a criana no Brasil, de elaborao jesutica, j no sculo XVI, apresentavam duas representaes infantis: a da criana mstica e a da criana que imita Jesus. Exaltando aquelas cuja f as ajudava a suportar a dor e a agonia fsica, os pequenos msticos cha-mavam ateno para as qualidades individuais da criana (PRIORE, 1996, p. 12). O interesse colonizador e catequizador era pelas crianas indgenas, almas virgens:

    Fortemente arraigada na psicologia de fundamento moral e religioso comum desta poca (...) a fala dos jesutas sobre educao e disciplina tinha gosto de sangue: Como um cirurgio que d um boto de fogo ao seu filho ou lhe corta uma mo em que entram herpes, o qual ainda que parea crueldade no , se no misericrdia e amor, pois com aquela ferida lhe sara todo o corpo. Amor pois feito de disciplina, castigos e ameaas importantes para o Brasil Colonial pelos primeiros padres da Companhia de Jesus em 1549 (...) (PRIORE, 1996, p. 13-14).

    Pode-se afirmar que os jesutas foram os primeiros a desenvol-verem uma psicologia infantil, para educar e disciplinar crianas no Brasil: A sntese dessa psicologia significava valorizar a criana para que ela valorizasse o objetivo jesutico da nova terra. O pepino torcido desde pequeno, evitaria os medonhos pecados, e mais do que isso, o trabalho jesutico seria visto como uma benesse (PRIORE, 1996, p.15).

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    Cedo as crianas indgenas e rfos lisboetas, e mestios, apren-diam a arte da flagelao, tradio religiosa medieval, com as chama-das disciplinas, correias de couro para a autoflagelao. Acrescenta Priore (1996, p. 21-22):

    E junto pedagogia do novo saber ocidental cristo, necessrio era tambm impor-lhe uma pedagogia do medo que inspirasse desapreo pela carne e pelas necessidades fsicas. Da a exposio do corpo em sangue, machucado e marcado pela autoflagelao. A disciplina tornou-se uma das cenas recorrentes do grande espetculo que foi a catequese. (...) E o castigo no era s exemplar, mas tambm pedaggico. Aqueles que se negavam a participar do processo doutrinal sofriam corretivos e castigos fsicos. O tronco funcionava como um aide-mmoire para os que quisessem faltar escola e as palmatoadas eram comumente distribudas porque sem castigo no se far vida sentenciava o padre Luiz de Gr em 1553. As punies se faziam presentes a despeito de reao dos ndios que a estas, preferiam ir embora: a nenhuma coisa sentem mais do que bater ou falar alto.

    A pedagogia jesutica pregava claramente, como se v, a necessida-de de punies corporais para bem educar as crianas. Isso era posto em prtica nas primeiras escolas e colgios brasileiros, e tais concep-es pedaggicas estendiam-se ao mbito domstico, conformando um universo cultural de prticas e representaes comuns quele tempo histrico. A partir da segunda metade do sculo XVIII, com o estabele-cimento das chamadas Aulas Rgias, a palmatria era o instrumento de correo por excelncia. Sobre o papel social da criana, enquanto filho, sintetiza Costa (1983, p.155):

    A criana, at o sc. XIX, permaneceu prisioneira do papel social do filho. Sua situao sentimental refletia a posio que este ltimo desfrutava na casa. A imagem da criana frgil, portadora de uma vida delicada merecedora de desvelo absoluto dos pais, uma imagem recente. A famlia colonial ignorava-a ou subestimava-a. Em virtude disto, privou-a do tipo e quota de afeio que, modernamente, reconhecemos como indispensveis a seu desenvolvimento fsico e emocional.

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    O autoritarismo do patriarca no perodo colonial brasileiro abatia--se sobre toda a famlia, e em particular sobre os filhos. O personagem paterno inspirava terror, principalmente aos filhos que, desde peque-nos:

    ...acostumavam-se, por meio de castigos fsicos extremamente brutais, a no duvidarem de sua prepotncia. Os espancamentos com palmatrias, varas de marmelo (s vezes com alfinetes na ponta), cips, galhos de goiabeira e objetos de sevcias do gnero, ensinavam-lhes que a obedincia incontinenti era o nico modo de escapar punio.(...) A justia concedia ao pai o direito de castigar escravos, filhos e mulheres, emendando-lhes das ms manhas, conforme ditavam as Ordenaes do Reino (COSTA, 1983, p.156-57).

    criana era reservado um lugar menor na famlia brasileira. No merecia, o prvulo, a mesma condio do adulto e, do ponto de vista da propriedade, era considerada suprflua. Cabe aqui esclarecer que no se pode conceber a famlia brasileira como uma instituio es-ttica, com caractersticas fixas, ao longo de toda a histria do Brasil. Como aponta Samara (1999, p.8):

    ...a famlia brasileira apresentou diferentes padres quanto estrutura e funcionamento ao longo do tempo, com diferenas marcantes por regies, classes sociais e etnias. Isso significa que o modelo genrico de estrutura familiar, denominado comumente de patriarcal e que serviu de base para caracterizar a famlia brasileira de modo geral, no pode ser considerado, a priori, como o nico existente na nossa sociedade. Por outro lado, estudos e pesquisas mais recentes tm tornado evidente que as famlias extensas do tipo patriarcal no foram as predominantes, sendo mais comuns aquelas com estruturas mais simplificadas e com menor nmero de integrantes. Isso significa que a famlia apresentada por Gilberto Freyre, em Casa-grande e Senzala, e descrita como caracterstica das reas de lavoura canavieira do Nordeste, foi impropriamente utilizada para identificar a famlia brasileira como um todo.

    Contudo, pode-se ainda afirmar que as prticas de punies cor-porais em crianas e adolescentes eram comuns, com exceo das fa-mlias indgenas, em todas as famlias brasileiras, das diferentes regi-

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    es do pas, em virtude do fato de que para os colonizadores europeus (Portugueses, Holandeses, Franceses) tais prticas eram legtimas e culturalmente respaldadas em seus pases de origem. Samara (1999, p.16) aponta ainda que na sociedade colonial brasileira:

    o ncleo familiar congregava parentes distantes de status inferior, filhos ilegtimos, agregados, afilhados, escravos, todos assentados na grande propriedade fundiria, sobre a qual o senhor do engenho exercia poder e autoridade. (...) Com o ideal patriarcal fortemente arraigado, famlia, nesse momento, implicava autoridade e hierarquia.

    A respeito da famlia patriarcal brasileira, em conformidade com a leitura de Freyre (1994), comenta Lopes (1996, p.3): A famlia , de um modo geral, um grupo organizado de forma hierrquica com a domi-nao do branco sobre o negro, do homem sobre a mulher e do adulto sobre a criana. J no sculo XIX, em suas primeiras dcadas, obser-va-se a formao da famlia nuclear, composta de poucos integrantes, contrariando a imagem tpica da famlia patriarcal brasileira, compos-ta de muitos filhos e parentes sob um mesmo teto. A respeito dessa di-versidade familiar brasileira, sintetiza Samara (1999, p.49): Concluin-do, podemos dizer que, ao longo de quatro sculos da nossa histria, diferentes tipos de atividades corresponderam a formas variadas de trabalho e de organizao familiar, sendo impossvel falar de um pa-dro nico de famlia brasileira.

    Conforme Costa (1983,p.157-158), ao pai-propietrio interessava o filho adulto, com capacidade para herdar seus bens, levar adiante seu trabalho e enriquecer a famlia. A criana tinha uma vida paralela economia domstica. Donde o fenmeno da adultizao precoce da infncia. Sobre o fenmeno da adultizao da infncia na sociedade colonial brasileira, informa ainda Samara (1999, p. 20):

    A vida das crianas legtimas, por sua vez, transcorria junto famlia, desde que essa tivesse condies para cri-las. No entanto, a infncia era um perodo curto da sua existncia. Sabemos, por descrio dos viajantes, que por volta dos nove anos, estas crianas perdiam parte de sua vivacidade e espontaneidade, tornando-se

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    verdadeiros adultos em miniatura, com olhares tristes e vestimentas soturnas.

    J no sculo XVIII, segundo Priore (1999), o relacionamento afetivo entre pais e filhos era intenso, repleto de mimos e sem limites, o que era criticado por mdicos e educadores moralistas setecentistas:

    A boa educao, para eles, implicava em castigos fsicos e nas tradicionais palmadas. O castigo fsico no era nenhuma novidade no cotidiano colonial. Introduzido, no sculo XVI, pelos padres jesutas, para horror dos indgenas que desconheciam o ato de bater em crianas, a correo era vista como uma forma de amor. O muito mimo devia ser repudiado. Fazia mal aos filhos. A muita fartura e abastana de riquezas e boa vida que tem com ele causa de se perder, admoestava em sermo Jos de Anchieta. O amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus ensinava que amar castigar e dar trabalhos nesta vida. Vcios e pecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com aoites e castigos. A partir da segunda metade do sculo XVIII, com o estabelecimento das chamadas Aulas Rgias, a palmatria era o instrumento de correo por excelncia: nem a falta de correo os deixe esquecer do respeito que devem conservar a quem os ensina, cita um documento de poca. Mas, ressalvava, endereando-se aos professores: e to somente usarem dos golpes das disciplinas ou palmatrias quando virem que a repreensvel preguia a culpada dos seus erros e no a rudez das crianas, a cmplice de sua ignorncia. As violncias fsicas, muitas vezes dirigidas s mes, atingiam os filhos (...). Um processo crime datado de 1756, movido na vila de So Sebastio, So Paulo, por Catarina Gonalves de Oliveira, revela imagens de outras violncias: a de pais contra filhos. Nos autos, Catarina revela ter defendido seu enteado, uma criana pequena, de chicotadas desferidas pelo pai, ansioso por corrigir o hbito do pequeno de comer terra. As disciplinas, os bolos e belisces revezavam-se com as risadas e mimos, mas tambm com divertimentos e festas (PRIORE,1999, p. 96-98).

    Ainda segundo essa historiadora, a formao social da criana brasileira

    passa mais pela violncia explcita ou implcita do que pelo livro, pelo aprendizado e pela educao. Triste realidade num Brasil onde a formao moral e intelectual, bem como os cdigos de sociabilidade,

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    raramente aproximam as crianas de conceitos como civilidade e cidadania (PRIORE, 1999, p.105).

    Segundo Costa (1983), no sculo XIX que a Medicina Social, atra-vs de sua poltica higinica, submeteu a famlia da elite a uma tutela, reduzindo a famlia oitocentista brasileira a uma estado de dependn-cia dos saberes e orientaes mdico-higinicas. Pode-se dizer que o mesmo fenmeno ocorre em relao dependncia dos saberes psico-lgicos e pedaggicos, cerca de um sculo depois. A famlia passa a ser considerada incapaz de proteger a vida dos adultos e, principalmente, das crianas:

    Valendo-se dos altos ndices de mortalidade infantil e das precrias condies de sade dos adultos, a higiene conseguiu impor famlia uma educao fsica, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitrios da poca. Esta educao, dirigida sobretudo s crianas, deveria revolucionar os costumes familiares. Por seu intermdio, os indivduos aprenderiam a cultivar o gosto pela sade, exterminando, assim, a desordem higinica dos velhos hbitos coloniais... A famlia nuclear e conjugal, higienicamente tratada e regulada, tornou-se no mesmo movimento, sinnimo histrico de famlia burguesa (COSTA, 1983, p.12-13).

    E ainda:

    A apropriao mdica da infncia fez-se revelia dos pais. Toda uma srie de manobras tericas mostrava-os como obstculos sade, quando no prpria vida dos filhos, para em seguida ensinar-lhes a maneira adequada de proteger as crianas. A ideia de nocividade do seio familiar pode ser tomada como o grande trunfo mdico na luta pela hegemonia educativa das crianas (COSTA, 1983, p. 171).

    A criana era concebida como uma entidade fsico-moral amorfa e cabia educao higinica a instalao de bons hbitos, como um homem que cultiva plantas adequadamente. A criana deveria ser cul-tivada desde cedo atravs dos preceitos mdico-higinicos da poca, tanto nos colgios quanto no mbito domstico. A educao infantil consistia na criao de hbitos, tornando-se sinnimo de disciplina e domesticao, como aponta Costa (1983). Nesse sentido vale a pena

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    recuperar a citao que faz de Joo Gomes dos Reis, mdico autor que escrevia na primeira metade do sculo XIX:

    Desde a primeira infncia devem os pais disciplinar com todo o esmero o esprito de seus filhos, quando sua alma ainda dcil se presta a todas sortes de impresses; nesta idade que convm reprimir e domar suas inclinaes, quando estas se mostrarem com pendor para aquilo que ultrapassa as raias do justo e do honesto; e defeitos depois tambm no podem ser sufocados, nem com maiores esforos da razo (REIS, 1845, p.5, apud COSTA, 1983, p. 174-175).

    A educao higinico-moral do sculo XIX:

    ...extinguiu das casas e colgios a violncia punitiva dos castigos fsicos coloniais. Criou a figura do indivduo contido, polido, bem educado, cuja norma ideal o comportamento reprimido e disciplinado do gentleman, do petit-bourgeois europeu. Mas, s custas de uma crescente tendncia autoculpabilizao, que se tornou a marca registrada do sujeito civilizado e aburguesado (COSTA, 1983, p.14).

    O castigo fsico passa a ser considerado um recurso degradante, do mau educador:

    A moral higinica via nas qualidades firmes, retas, justas e equilibradas do educador o antdoto eficaz contra a punio fsica. Toda a moralidade dos colgios deveria ir contra a prtica de castigos corporais. A punio degradava as crianas sem obter nenhum resultado positivo. O medo aos castigos fsicos tornava-as mentirosas, hipcritas, pusilnimes e temerosas (COSTA, 1983, p.198).

    E ainda:

    As ms inclinaes, prevenidas pela inculcao dos bons hbitos, dispensavam o uso de castigos recorrentes e os agentes externos. Seus efeitos eram duradouros, praticamente invisveis. Implantavam-se gradualmente na alma dcil, no corpo tenro e flexvel sem deixar marcas perceptveis (COSTA, 1983, p.175).

    A punio moral, segundo a poltica pedaggica higinico-moral daquele perodo, tinha melhores efeitos sobre as crianas do que as punies corporais. Essas observaes vo de encontro tendncia

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    ao abrandamento ou humanizao das penas descritos por Foucault (1984), a partir de fins do sculo XVIII e incio do XIX no continente eu-ropeu. Embora este movimento pedaggico-higinico tenha como ponto de aplicao os colgios burgueses, seus preceitos, aos poucos, aden-tram o espao privado do ambiente domstico. Porm, concretamente, as crianas continuaram e continuam - a sofrer variadas formas de punio corporal domstica. Na verdade, a despeito de diferentes ide-rios psicopedaggicos, contrrios punio corporal de crianas, estas continuaram a apanhar nos lares brasileiros. Isto verdade tanto nas famlias burguesas, aristocratas-rurais e industriais-urbanas, quanto nas famlias das classes pobres, excetuando-se as famlias indgenas do territrio brasileiro.

    Carvalho (1997) tambm discorre sobre as prticas discursivas e institucionais que constituram a infncia, em um processo histrico de longa durao, objeto de interveno higinica e disciplinar. A his-tria da educao pensada, nesse contexto, como histria da discipli-narizao das pessoas, sendo portanto a higienizao entendida como um modo de disciplina:

    A hiptese que quero construir (...) prope a metfora da disciplina como ortopedia para dar conta das prticas discursivas e institucionais que, no Brasil do final do sculo XIX at, pelo menos, a dcada de 1920, buscaram sua legitimao enquanto pedagogia moderna, cientfica ou experimental. (p.270)

    A pedagogia cientfica se fazia ortopedia, arte da preveno ou da correo da deformao. Nela a criana passa a ser o objeto maior de estudos, operando uma transformao no discurso pedaggico a partir de 1920, com uma viso otimista da natureza infantil e da educabi-lidade da criana. Trata-se da chamada pedagogia da escola nova, redefinindo a natureza infantil e o lugar do conhecimento sobre ela produzido, nas teorias e nas prticas educativas. O objetivo era ajustar a criana o Homem s novas condies e valores de vida, inds-tria, tecnificao, ao pensamento eficiente. Ter disciplina significava ser eficiente. Observar, medir, classificar, prevenir, corrigir: operaes

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    da pedagogia cientfica. Esse otimismo pedaggico de ento apoiava-se em determinada concepo de natureza humana:

    Nas representaes que o articulam, a natureza infantil matria plstica e plasmvel, desde que respeitvel em seu vir a ser natural. Disciplinar no mais prevenir ou corrigir. moldar. contar com a plasticidade da natureza infantil, com sua adaptabilidade, com sua capacidade natural de ajustamento a fins postos pela sociedade (CARVALHO, 1997, p. 286).

    As prticas de punio corporal sempre estiveram presentes na famlia patriarcal brasileira, desde o perodo colonial, imperial e repu-blicano, existindo at os dias de hoje. As crianas sempre foram seu alvo: crianas de faces negras, os filhos de escravos ou bastardos, e as crianas adotadas, criadas no seio da famlia. A historiadora Maria Luiza Marcilio informa que, no Brasil, a prtica de criar filhos alheios sempre, em todos os tempos, foi amplamente difundida e aceita no Brasil. So inclusive raras as famlias brasileiras que, mesmo antes de existir o estatuto da adoo, no possuam um filho de criao em seu seio (MARCILIO, 1997, p.68).

    Atualmente sabe-se que muitos casos de violncia domstica so cometidos pelo padrasto e madrasta contra as crianas adotadas ou de outros casamentos, que, por no serem absolutamente aceitos como sangue do prprio sangue, h uma espcie de rejeio implcita ou mesmo explcita, que se materializa sob a forma de inmeras violncias (fsica, sexual, psicolgica). A questo da no-consanguinidade, evi-dentemente, no esgota a discusso sobre as causalidades da punio corporal domstica, pois seno os filhos de mesmo sangue no sofre-riam tanta violncia domstica.

    A partir de tais consideraes, neste pequeno esboo de recupe-rao da Histria da Punio Corporal de Crianas no Brasil, passar--se- agora a investigar quando e em que contexto surgiram no Bra-sil os manuais de orientao a pais e educadores sobre como educar os filhos, e como aparece a problemtica das punies corporais de crianas e adolescentes na educao domstica familiar. At onde foi

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    possvel rastrear neste esforo investigativo, os primeiros manuais de orientao a educadores foram escritos no Brasil no sculo XVII por educadores jesutas e voltavam-se s prticas escolares, estendendo-se posteriormente esfera familiar, domstica. Isso no quer dizer, entre-tanto, que as referncias encontradas sejam as melhores ou as mais antigas; trata-se apenas de uma apresentao introdutria histria desses manuais, uma vez que o interesse maior desse estudo centrou--se sobre os livros de orientao a pais e educadores produzidos nas duas ltimas dcadas do sculo XX. Nesse sentido informa Massimi (1999, p.111) a respeito dos conhecimentos psicopedaggicos na cultura luso brasileira do sculo XVI ao sculo XVIII, recuperando trechos em portugus arcaico:

    O trabalho de sistematizao dos conhecimentos e prticas pedaggicas e psicolgicas desenvolvidos nessas instituies [colgios jesutas] evidente em alguns tratados dirigidos a mestres e pais de famlia, em cujas pginas encontram-se ideias psicolgicas... Entre outras, destaca-se a contribuio de padre Alexandre de Gusmo (1629-1725), pedagogo e literato, fundador do Colgio de Belm, em Salvador da Bahia, e autor de vrias obras pedaggicas, tais como A Arte de crear bem os filhos na idade da puercia (1685) e a Histria de Predestinado Peregrino e de seu irmo Precito (1685). Construdo segundo o modelo dos tratados humanistas e renascentistas, A Arte de crear bem os filhos abarca as vrias dimenses da Pedagogia. Tendo definido a puercia (=infncia), como o perodo da existncia humana em que a creana, (...) de sy nam tem acam racional e, para viver, necessita do alheio socorro1 (1685, p.170), Gusmo, retomando Aristteles, Toms e os humanistas, apresenta uma viso da criana como tbula rasa, disposta para se formarem nella quaesquer imagens2 (1685, p.4). Encara assim a educao como um recurso fundamental para o desenvolvimento infantil e para a formao do homem enquanto tal: conforme for a primeira doutrina, conforme a primeira educam, que deres a vossos filhos, podereis conhecer, o que ham de vir a ser3 (1685, p.2). De modo que Gusmo exorta os educadores a no desanimar ante a incapacidade de lavrar o menino: no se deve atribuir as causas da ineficcia

    1 A criana (...) de si no tem ao racional e, para viver, necessita do socorro alheio.

    2 Disposta para se formarem nela quaisquer imagens.

    3 Conforme for a primeira doutrina, conforme a primeira educao, que deres a vossos filhos, podereis conhecer, o que ho de vir a ser.

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    personalidade deste, mas ocorre recorrer aos polticos previstos nesta matria. Com efeito: Nenhum minino h de tam ruim condiam, que nam possa ser corregivel e domesticavel (...), porque nenhum pode ser de tam mao natural, que doutrinado, e domado, nam possa ser de proveito, por meio da boa creaam4 (1685:138-139). A responsabilidade do processo de aprendizagem da criana depende ento dos pais e dos educadores, comparados a agricultores que lanam as primeiras sementes da doutrina na terra que so os nimos infantis ou a pintores que pintam o painel em branco, ou a escultores que do forma pedra.

    Francisco de Mello Franco, mdico mineiro do sculo XVIII, em seu Tratado para a educao fsica dos meninos para uso da nao por-tuguesa (1790), mostrava-se a favor do uso de punies corporais em crianas para bem educ-las, desde cedo, afirmando ser o uso da fora e da violncia muito proveitosa na educao infantil. Outro livro, vol-tado educao dos filhos da elite pernambucana do novo Imprio do Brasil data dos princpios do sculo XIX. Publicado em Pernambuco, em 1828, e intitulado Tratado de Educao Phisico-Moral dos Meninos5, tem como autor Joaquim Jernimo Serpa. A respeito deste livro comen-ta Gilberto Freyre:

    ...condena severamente o uso de se aoitarem os meninos nas ndegas, prtica perniciosa, prpria para fomentar costumes funestos: a irritao que se ocasionar sobre esta parte, comunicar-se- s partes da gerao, logo que a impresso de dr principiar a enfraquecer-se. De modo que talvez fossem melhores os suplcios de que nos fala o padre Sequeira: o menino ajoelhado em caroo de milho durante duas, trs, quatro horas; os bolos das vrias palmatrias pedaggicas e domsticas a pele de cao, a de jacarand e a maior, para os valentes, de gramari.(...) A pedagogia como a disciplina patriarcal no Brasil apoiou-se sobre base distintamente sadista. (...) um estudo a fazer-se, o das vrias formas e instrumentos de suplcios a que esteve sujeito o menino no Brasil em casa e no colgio: as vrias espcies de palmatrias, a vara de marmelo, s vezes com alfinete na ponta, o cip, o galho de goiabeira, o muxico,

    4 Nenhum menino h de to ruim condio, que no possa ser corrigvel e domesticvel (...), porque nenhum pode ser de to mau natural, que doutrinado, e domado, no possa ser de proveito, por meio da boa criao.

    5 Joaquim Jernimo Cerpa, Tratado de Educao Phisico-Moral dos Meninos. Pernambuco, s.d. So Paulo, Coleo Jos Mindlin.

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    o cachao, o puxavante de orelha, o belisco simples, o belisco de frade, o cascudo, o cocorote, a palmada. O menino foi vtima, quase tanto como o escravo do sadismo patriarcal (FREYRE, 1994, p. 466).

    Pode-se inferir, por este trecho de Gilberto Freyre, que havia certo paralelismo entre as formas punitivas adotadas na escola e em casa. Isto perfeitamente compreensvel se considerar-se que as prticas pu-nitivas educacionais elaboradas pelos mestres jesutas certamente in-fluenciavam pais e educadores fora do mbito estritamente escolar, e estendiam-se ao mbito domstico. Mas, de forma sistemtica e massi-va, somente a partir do sculo XX que vo ser publicados e editados, no Brasil, livros de orientao a pais e educadores, tradues de edi-es inglesas e norte americanas, principalmente.

    H tambm, nas primeiras dcadas do sculo XX, a publicao de revistas de orientao a pais sobre a educao de filhos, como a revis-ta Famlia Crist, fundada em 1935 e publicada no Brasil pelas irms e padres paulinos. Posteriormente outras revistas importantes nesta rea foram editadas, como a conhecida Pais e Filhos, da editora Blo-ch. Caldana e Biasoli Alves (1996) debruam-se sobre a anlise desse material, buscando apreender o conjunto de concepes sobre educa-o de filhos veiculado pela revista ao longo de um perodo de 53 anos (1935 a 1988). Com este estudo contribuem para o conhecimento de concepes sobre educao de filhos que tm feito parte do iderio de pais brasileiros ao longo do sculo XX. O enfoque no era diretamente a questo das punies corporais, mas a tangencia. Como as revistas no so objetos do presente estudo no sero aqui analisadas. Diversos outros livros e revistas de orientao a pais e educadores foram pu-blicados, traduzidos ou escritos no Brasil, principalmente, a partir da segunda metade do sculo XX. Uma anlise desses livros revela que, ainda hoje, a despeito de toda luta pela abolio das punies corpo-rais em crianas e adolescentes, h autores que ainda defendem tais prticas.

    Para um aprofundamento a respeito da discusso sobre as lutas pela abolio das punies corporais em crianas e adolescentes no

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    Brasil e no mundo consultar Azevedo e Guerra (2001). Cabe aqui as-sinalar que pases como Sucia (1979), Finlndia (1983), Dinamarca (1985), Noruega (1987), ustria (1989), Chipre (1994), Letnia (1998), Crocia (1999), Israel (2000) e Alemanha (2000), proibiram em forma de lei a punio corporal domstica, considerada um crime contra a crian-a e o adolescente. Como bem observa Marclio (1998b:47): O sculo XX o sculo da descoberta, valorizao, defesa e proteo da criana. No sculo XX formulam-se os seus direitos bsicos, reconhecendo-se, com eles, que a criana um ser humano especial, com caractersticas especficas, e que tem direitos prprios. E, a respeito da situao da infncia brasileira, aponta: No se pode dizer que a situao da in-fncia brasileira no tenha melhorado ao longo do sculo XX.(...) Mas a situao da criana (...) apresenta tristes ndices e uma constrangedora e evidente situao de violao dos seus direitos. (MARCLIO, 1998a, p.51) E adiante: No Brasil, a violao dos direitos humanos e dos diretos da criana um fato dirio. (MARCLIO, 1998a, p.55) Ora, a punio corporal domstica, enquanto forma de violncia fsica, no , como querem alguns autores, pais e educadores, uma forma de edu-car crianas, mas sim uma violao dos direitos da criana, e nesse sentido que a afirmao de que a luta pelos direitos humanos deveria comear em casa faz sentido.

    Azevedo e Guerra (2001), ao emitirem comentrios sobre obras de orientao aos pais e aos educadores publicadas no Brasil que defen-dem a punio corporal domstica, apontam as dificuldades com as quais, por exemplo, uma Campanha por uma pedagogia no violenta enfrenta6:

    6 Trata-se da Campanha Nacional por uma Pedagogia No Violenta A Palmada Deseduca. A Campanha A PALMADA DESEDUCA vem sendo conduzida pelo Laboratrio de Estudos da Criana (LACRI) desde 1994, em todo o Brasil, e a partir de 2000 tambm no exterior. Conta com a colaborao de telealunos de vrios estados brasileiros e do Exterior, que realizam ou realizaram o Telecurso de Especializao na rea de Violncia Domstica contra crianas e adolescentes. Esta Campanha partiu do pressuposto de que toda e qualquer punio corporal domstica de crianas e adolescentes considerada uma forma de violncia.

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    Muitos excertos esto contidos em livros de grande circulao nacional, com inmeras edies e que correspondem a palavra de chamados campees de vendagem. Ora, este tipo de profissional que apoia o uso da punio corporal tem grande ascendncia sobre seu pblico e um profissional requisitado, no s apenas em termos de publicao de obras, como tambm de participao em conferncias, palestras, etc. Portanto preciso estar alerta e identificar os nveis de resistncia que uma Campanha vai enfrentar, principalmente por parte daqueles que apoiam a punio corporal domstica e que tm a seu favor um poderoso instrumento tal qual o livro ou a revista de grande circulao nacional (AZEVEDO & GUERRA, 2001, p. 377).

    Campanhas desse tipo, aliadas a outras aes polticas e pedaggi-cas, justamente o que prope Marclio (1998a, p.57) para superar este estado de violao dos direitos da criana e do adolescente: preciso a mobilizao da sociedade para a promoo e garantia dos direitos da infncia brasileira.

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    4. O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS?

    A coleta de dados no estudo que originou o presente livro foi reali-zada por meio de pesquisa em livros de orientao de pais e educadores existentes em algumas das principais livrarias da cidade de So Paulo (ver LONGO, 2001). Tratou-se de um levantamento com anlise docu-mental.

    Segundo Ldke e Andr (1986) a anlise documental pode se cons-tituir em uma tcnica valiosa de abordagem de dados qualitativos. Es-tes autores consideram documentos quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de informao. A anlise documental busca identificar informaes factuais nos documentos a partir de questes de interesse; o presente estudo pretendeu identificar as infor-maes nos livros de orientao a pais e educadores sobre como educar os filhos, com interesse centrado na problemtica da punio corporal domstica. Em termos de um levantamento com anlise documental inicialmente cumpria-se definir o tipo de documento pesquisado.

    Os documentos pesquisados foram livros cujos temas gerais eram educao de filhos, relao pai-filho, orientao de pais e educado-res, em circulao nas seguintes livrarias: Livraria Cultura, Livraria Azteca, Livraria Cortez, Livraria Siciliano, Livraria Belas Artes, Livraria 5a. Avenida, Shopping tica (atualmente FNAC). Alm dessas livrarias citadas, muitas outras poderiam ter sido investigadas. Optou-se, con-tudo, por essas, pois renem livros de um grande nmero de editoras, representando uma amostra considervel dos ttulos disponveis em orientao a pais e educadores no mercado brasileiro, embora longe de esgotar as obras.

    O critrio escolhido para a coleta dos dados foi o de natureza temtica - punies corporais em crianas e adolescentes em livros

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    de orientao de pais e educadores - o que permitiu que a pesquisa circulasse por diversas reas do conhecimento: Psicologia, Educao, Sade, Pediatria e Psicanlise.

    As consultas s livrarias deram-se em dias e horrios variados, mapeando-se as obras que se encaixavam no assunto estudado, para posterior aquisio ou consulta e anlise. Este perodo teve a durao de novembro de 1999 a novembro de 2000, totalizando, portanto, cer-ca de um ano de levantamento em campo. As idas s livrarias ocor-reram em dias diversos, e em horrios variados. Procurou-se verificar as obras que se encontravam ao alcance do leitor nas prateleiras ou estoques prprios. O pressuposto deste tipo de abordagem o de que quando algum deseja instruir-se sobre este assunto, deseja ter um filho ou simplesmente quer presentear algum(a) amigo(a) ou familiar com um livro sobre educao de crianas, dirige-se a uma livraria, procura a sesso que trata do assunto (Famlia, Psicologia, Pedagogia, Sade, Pediatria etc.); ou seja, este procedimento reproduz o caminho que pessoas interessadas neste tipo de orientao atravs de livros im-pressos realizam. Uma crtica metodolgica vlida seria a de que os ttulos todos disponveis s editoras nem sempre esto nas prateleiras das livrarias, devendo ser encomendados, quando no se encontram esgotados. Este detalhamento e rigor demandaria maiores recursos e tempo de pesquisa. Contudo, o estudo emprico e analtico aqui reali-zado sobre uma amostra disponvel num perodo determinado de tem-po, revela importantes e significativas consideraes a respeito deste tipo de material de informao e formao de pais e educadores.

    A coleta da documentao realizou-se em duas fases: coleta das fontes bibliogrficas e coleta das informaes. Aps o levantamento dos livros existentes nas livrarias citadas fez-se ento o levantamento dos dados e informaes contidas nas obras. A pesquisa bibliogrfica carac-terizou-se pela reunio sistemtica e ordenada (metdica) das obras e dados. A coleta e o tratamento inicial dos dados foram realizados atra-vs de levantamento, identificao e catalogao dos vrios livros encon-trados de orientao a pais e educadores sobre como educar os filhos.

    Por meio da leitura dos livros encontrados foram identificadas e selecionadas as partes ou captulos que versam sobre Disciplina, Auto-

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    ridade, Castigos, Punies, Limites, Palmadas, com o interesse espec-fico na argumentao dos autores (favorveis ou contrrios) ao uso de punies corporais em crianas e adolescentes. Do conjunto de livros encontrados foram separadas todas as obras relativas a educao in-fantil que se encontravam nas livrarias, ou seja, disponveis ao pbli-co variado, e que faziam meno, favorvel ou desfavorvel, ao uso de punies corporais. Era necessrio, portanto, que o livro tratasse da questo do uso de punies corporais para educar crianas e ado-lescentes. Os livros que no trataram especificamente desta questo, mas destinados a orientao de pais e educadores, foram desconside-rados. Os livros foram analisados inicialmente a partir de processos de leitura cientfica e de sistematizao crtica do que dizem, enquanto publicaes em circulao no mercado de livros sobre como educar os filhos livros de orientao de pais e educadores. Os processos de leitura tcnica ou cientfica de impressos bibliogrficos permitem a co-leta adequada de informaes pertinentes ao assunto de interesse da pesquisa: a aceitao ou no das punies corporais na educao de crianas e adolescentes e qual ou quais as argumentaes tericas que fundamentam seus discursos em relao s punies corporais.

    O estudo valeu-se da anlise de contedo, procedimento de anli-se documental, que permitiu-nos estudar e analisar as comunicaes de forma sistemtica, quantitativa e qualitativamente. Foram analisa-dos 36 livros sobre o tema geral educao de filhos ou relao pais--filhos, e em especial as partes que versam sobre a problemtica das punies corporais na educao de crianas e adolescentes. O objeti-vo fundamental da anlise realizada foi compreender quais as razes (psicolgicas, pedaggicas, teolgicas, filosficas, morais, cientficas ou no) oferecidas por um conjunto de autores que trazem uma argumen-tao contrria ou favorvel ao uso da punio corporal domstica na educao de crianas e adolescentes, e em que medida as teorias psi-colgicas influenciaram as concepes destes autores sobre o assun-to. Para atingir esse objetivo, aps a realizao dos procedimentos de leituras descritos anteriormente, foi empregada a tcnica de Anlise de Contedo (BARDIN, 1988) conhecida como tcnica de anlise temtica quanto unidade de registro. Em cada livro buscou-se os enunciados

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    ou sintagmas sobre o assunto tratado. Estes enunciados, favorveis ou desfavorveis ao uso de punies corporais na educao infantil, extra-dos dos livros encontrados nas livrarias, constituem o corpus inicial desta pesquisa.

    A partir do tratamento das mensagens deduziu-se de maneira l-gica conhecimentos sobre a problemtica tratada. O percurso vai da descrio interpretao, passando pela inferncia possvel graas anlise criteriosa efetuada. As dedues lgicas possveis respondem a dois tipos de problemas: - o que conduziu a um determinado enuncia-do? (causas ou antecedentes da mensagem) no caso as fundamenta-es psicopedaggicas que influenciaram os autores de livros a pais e educadores sobre educao de crianas; - quais as consequncias que um determinado enunciado vai provavelmente provocar? ou seja, as consequncias em se advogar a punio corporal domstica na educa-o de crianas.

    A sistematizao e explicitao do contedo das mensagens e da expresso deste contedo permitiu uma interpretao final fundamen-tada a respeito do estado da arte do que dizem estes verdadeiros manuais de orientao aos pais e educadores nas duas ltimas d-cadas do sculo XX. Inicialmente, o procedimento utilizado foi a siste-matizao do conjunto dos tipos de comunicaes, segundo a natureza temtica e o parecer favorvel ou contrrio ao uso de punio corporal domstica em crianas e adolescentes. Ou seja, a sistematizao inicial foi segundo o critrio temtico e segundo o posicionamento terico de cada autor perante a problemtica. Em um segundo momento empre-gou-se a anlise categorial temtica, enquanto tcnica de anlise de contedo, que tem como objetivo a classificao destas mensagens em categorias amplas. Assim, este trabalho debruou-se sobre a anlise de Comunicaes de Massa (livros sobre como educar os filhos, voltados a pais e educadores).

    A seguir so apresentados os dados coletados e organizados a partir dos procedimentos de Anlise de Contedo. Uma discusso pormenorizada de cada Tabela ser feita aps a apresentao das mes-mas. Neste momento os enunciados so apresentados j em sua forma

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    categorizada, sem referncia a quem os enunciou. A argumentao dos autores dos livros pesquisados sobre educao familiar divergem quanto ao posicionamento em relao ao uso da punio corporal na educao de crianas. Embora os dados refiram-se ao nmero de livros e no ao de autores, uma vez que os autores se repetem, ou um livro escrito por dois autores, totalizando 36 autores de 36 livros, cerca de 72% dos autores posicionam-se contrrios ao uso de prticas de puni-o corporal domstica em crianas e adolescentes. Observou-se que para cada trs livros que apresentam argumentao contrria ao uso de punies corporais, h um que defende tais prticas. Ou seja, do ponto de vista probabilstico, h uma grande chance (28%) de um leitor adquirir um livro sobre como educar os filhos que recomende prti-cas de punio corporal domstica.

    A partir da anlise dos excertos dos livros que se referem ques-to da punio corporal foi possvel quantificar a qualidade dos argu-mentos. Os argumentos em relao punio corporal assentam-se em pressupostos lgicos, morais, psicopedaggicos. Uma discusso de-talhada dos argumentos e dos fundamentos ser realizada conforme sejam apresentados nas Tabelas que se seguem.

    Do ponto de vista de uma anlise de contedo qualitativa, os auto-res dos livros encontrados nos oferecem uma variedade de argumentos, valendo-se de fundamentaes prticas, psicolgicas, religiosas, edu-cacionais, morais, filosficas, contrrias ou favorveis ao uso de puni-es corporais para educar crianas e adolescentes. Nos documen-tos analisados, constata-se que os argumentos favorveis ao uso de punies corporais para educar crianas so posies minoritrias, porm com grande expressividade e aceitao na populao brasileira. Em pesquisa com 1600 sujeitos entrevistados, em dez capitais brasilei-ras, comprovando esta tendncia de bater, Cardia (1999, p.37) constata que ...em mdia 80% deles apanhou quando criana sendo que 14% sofreu punio quase todos os dias.

    Considerando as enunciaes discursivas dos especialistas em educao familiar, foi possvel sistematizar seus argumentos na Tabela abaixo.

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    TABELA 1. Razes ou princpios (lgicos, morais, psicopedaggi-cos) que fundamentam a punio corporal domstica segundo es-pecialistas em educao infantil favorveis ao bater como forma de educar os filhos:

    ARGUMENTOS n. %1. Para impor respeito autoridade, ensinar a obedincia 9 14

    2. Porque de compreenso e resultado imediato 8 12

    3. A me e o pai tm o direito de bater, so provedores 6 9

    4. Para educar positivamente o carter do fi lho 5 8

    5. Controlar o egocentrismo dos fi lhos, dominar suas vontades 4 6

    6. Mostrar criana que os pais a querem bem, preocupam-se 4 6

    7. um instrumento didtico, pedaggico, adequado 4 6

    8. correo, educa, para moldar o comportamento 4 6

    9. Aps o castigo a criana sente-se absolvida, expia sua culpa 3 5

    10. Os fi lhos no gostam s de lidar com coisas macias e amenas, tambm gostam de pedras, paus e chos duros 3 5

    11. punio leve, no agresso, no machuca 3 5

    12. Arranca a criana da imaturidade 2 3

    13. Faz parte da vida normal, adapta realidade 2 3

    14. Porque o fi lho merece 2 3

    15. Os pais devem ter coerncia 1 2

    16. Os pais sentem maior segurana 1 2

    17. Devido o pai ser mais forte 1 2

    18. Porque os pais tm experincia 1 2

    19. P de galinha no machuca os pintinhos 1 220. Se no di, no se aproveita 1 2

    21. Evita que as crianas se tornem autoritrias e desagradveis 1 2

    22. Para diminuir a autoestima da criana 1 2

    23. As crianas no tm maturidade para escutar e entender 1 2

    TOTAL GERAL 66 100

    Nota: Extrado e adaptado de LONGO, C. S. A punio corporal domstica em livros sobre educao familiar no Brasil: 1981-2000. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, USP, So Paulo, Brasil, 2001.Legenda: N.= nmero de enunciados.

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    Alguns dos enunciados (1, 3, 17) contidos na Tabela 1, favorveis ao uso das punies corporais domsticas, assentam-se no pressupos-to tcito do direito da autoridade de punir corporalmente quem a ela est submetido. O enunciado 2, assenta-se em pressupostos filosficos pragmticos; os enunciados 4, 7, 8 e 23 assentam-se em determina-dos pressupostos pedaggicos oriundos de uma concepo tradicional e autoritria de educao. Outros (6, 9, 10, 11,13, 14,19 e 20) assentam--se em pressupostos relativos ao senso comum, embora o prprio senso comum tenha sido fomentado a partir de concepes psico-pedaggi-cas ao longo dos anos. Os enunciados 5, 12, 21 e 22 assentam-se em apropriaes de formulaes da Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade. Os enunciados 15,16 e 18 remetem-se condio de pais, enquanto autoridades experientes, que devem ter coerncia e se-gurana no trato com os filhos.

    TABELA 2. Formas aceitveis de punio corporal domstica se-gundo especialistas em educao infantil favorveis ao bater como forma de educar os filhos:

    ARGUMENTOS n. %1. Palmadas 11 28

    2. Com moderao, com discrio, levemente 8 21

    3. Com instrumentos, objetos neutros, objetos leves, rguas 5 13

    4. Seguido por explicaes de amor, gestos de amor, abraos 3 8

    5. Tapas com as mos 2 5

    6. Antecedida de explicaes, de avisos 2 5

    7. Com calma, sem raiva 2 5

    8. Proporcional ao erro cometido e ao entendimento da criana 2 5

    9. Com o pai e a me presentes sempre que possvel 1 3

    10. Com sufi ciente energia e convico 1 3

    11. Belisces 1 3

    12. Empurro 1 3

    TOTAL GERAL 39 100

    Nota: Extrado e adaptado de LONGO, C. S. A punio corporal domstica em livros sobre educao familiar no Brasil: 1981-2000. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, USP, So Paulo, Brasil, 2001.

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    Os enunciados 1, 3, 5, 11 e 12 da Tabela 2 apresentam os principais meios e modos de punio aplicados aos filhos pelos pais, aceitveis e recomendados pelos autores favorveis a punio corporal. Os meios so variados: palmadas, belisces, empurres, com objetos diversos, como a rgua. Estas formas de punio corporal recomendadas pelos autores vo de encontro s prticas sofridas e relatadas por crianas e adoles-centes em pesquisas recentes realizadas: palmada, empurro/pontap, puxo de orelha/cabelo, surra (de escova, cinto, pente, etc.), soco e mur-ro. Estiveram presentes na vida de quase todos os sujeitos. (AZEVEDO & GUERRA, 2001, p.180). Tambm em Cardia (1999, p.39) h uma re-lao dos meios punitivos de crianas: com uma vara ou com um cinto, com o chinelo, com a mo, com um pau ou outro objeto duro.

    Em relao aos modos ou formas de se bater, os enunciados 2, 4, 6, 7, 8, 9 e 10 apresentam sugestes que compe todo um setting no qual desenrola-se a punio corporal: bater com moderao, com explica-es, com calma, porm com suficiente energia e convico.

    TABELA 3. Em que situaes os pais podem utilizar-se da punio corporal domstica segundo especialistas em educao infantil favorveis ao bater como forma de educar os filhos:

    ARGUMENTOS n. %1. Quando a criana caprichosamente desobediente 5 21

    2. Quando a criana abusa, ultrapassa o limite do suportvel 4 17

    3. Quando necessrio 3 13

    4. Como ltimo recurso, quando esgotadas as outras alternativas 3 13

    5. Quando a fala dos pais no ouvida, por descaso aos apelos 2 8

    6. Quando no fazem uso da razo, no compreendem advertncias 2 8

    7. Quando a criana est correndo risco eminente 2 8

    8. At os trs, quatro anos de idade 2 8

    9. Quando o acordo no for possvel 1 4

    TOTAL GERAL 24 100

    Nota: Extrado e adaptado de LONGO, C. S. A punio corporal domstica em livros sobre educao familiar no Brasil: 1981-2000. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, USP, So Paulo, Brasil, 2001.

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    Na Tabela 3 renem-se os enunciados nos quais os autores iden-tificam situaes problemticas, que requerem o uso de punies cor-porais. Algumas remetem-se exclusivamente ao comportamento da criana, como nos enunciados 1, 2 e 5; outras situaes passveis de punio remetem-se relao pai-filho, tendendo avaliao subjeti-va, portanto idiossincrtica, dos pais. o caso dos enunciados 3, 4 e 9. Os enunciados 6 e 8 apelam para uma argumentao em termos de supostas condies cognitivas da criana, o que impossibilitaria qual-quer outra forma de comunicao seno atravs da violncia fsica; e por fim, o enunciado 7 justifica o uso da punio corporal para se evitar um mal maior, o que tambm pode ser questionado. A seguir esto categorizados os enunciados relativos aos argumentos contrrios ao uso da punio corporal domstica em crianas e adolescentes.

    A seguir esto categorizados os enunciados relativos aos argumen-tos contrrios ao uso da punio corporal domstica em crianas e adolescentes.

    TABELA 4. Razes ou princpios (lgicos, morais, psicopedaggi-cos) para no fazer uso da punio corporal domstica segundo especialistas em educao infantil contrrios ao bater como for-ma de educar os filhos:

    ARGUMENTOS n. %1. agresso, agresso fsica, violncia, abuso, maus-tratos 27 21

    2. No efi caz, no funciona, no disciplina, no educa 21 17

    3. impotncia dos pais, perda de controle, ato de desespero 9 7

    4. humilhante, degradante, ofende a dignidade, desrespeito 9 7

    5. Ensina a bater e subjulgar algum menor e mais fraco 7 6

    6. um erro, um equvoco perverso, pssimo exemplo 5 4

    7. dominao, opresso, represso 5 4

    8. esquecido com rapidez, no perdura no tempo, perde o efeito 5 4

    9. Cria um ciclo vicioso, gera violncia 4 3

    10. a porta de entrada para violncias maiores 3 2

    11. autoritarismo, uso arbitrrio do poder 3 2

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    12. anti educativo, antipedaggico 3 2

    13. Infringe leis morais, covardia 3 2

    14. desagradvel, causa sofrimento 2 2

    15. intimidao, aterroriza a criana 2 2

    16. prejudicial criana, faz mal 2 2

    17. negao da criana, tira-lhe a vontade 2 2

    18. Relaciona poder, violncia e sexualidade, violncia e prazer 2 2

    19. uma experincia sexual invasiva 1 1

    20. um ato de desprezo 1 1

    21. um ato de raiva 1 1

    22. um ato de intolerncia 1 1

    23. negligncia 1 1

    24. um fantasma educativo 1 125. Permanece na lembrana 1 1

    26. Pode afastar severamente pais e fi lhos 1 1

    27. No apaga os erros cometidos 1 1

    28. Apanhar para aprender condio prpria dos irracionais 1 1

    29. Ensina que quando com raiva deve-se bater 1 1

    30. Prepara cidados mutilados, reprimidos, servis 1 1

    TOTAL GERAL 126 100

    Nota: Extrado e adaptado de LONGO, C. S. A punio corporal domstica em livros sobre educao familiar no Brasil: 1981-2000. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, USP, So Paulo, Brasil, 2001.

    Alguns enunciados (1,10,11 e 13) da Tabela 4 mostram-se contrrios tais prticas pois consideram a punio corporal como um ato violento e arbitrrio; trata-se de uma rejeio por princpios ticos. Outros enun-ciados (5, 9 e 29) assentam-se em conhecimentos relativos s teorias da aprendizagem social. A esse respeito comenta Cardia (1999, p.37):

    A literatura sobre punio corporal revela que pais que foram punidos fisicamente tendem a punir fisicamente seus filhos. A esse processo se d o nome de ciclo de abusos. A existncia desse ciclo foi identificada atravs de pesquisas intergeraes. Essas pesquisas demonstram que h uma relao entre ser vtima de punio corporal na infncia e agressividade futuro. O modelo explicativo desse processo seria o da aprendizagem social. Ao sofrerem castigos fsicos as crianas aprenderiam um repertrio de aes agressivas.

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    (...) Assim as crianas imitavam o comportamento dos pais. O que era comportamento aceitvel pelos adultos passava a fazer parte do repertrio de comportamento das crianas. Se na famlia a agresso verbal e agresso fsica fossem padres de comportamento aceitveis a criana adotaria os mesmos padres.

    Outros enunciados (2, 8 e 27) contrrios a punio corporal sus-tentam-se a partir da anlise dos resultados, ou seja, do ponto de vista funcional-pragmtico. Outros apontam que trata-se de um ato de de-sespero e despreparo dos pais. o caso dos enunciados 3, 6, 20, 21, 22 e 23. Os enunciados 4, 14, 16 e 17 argumentam em termos de tratar--se de um ato humilhante e degradante, negao mesma da criana e de seus direitos fundamentais. Os enunciados 7, 15 e 30 sustentam-se a partir da considerao de que trata-se de uma relao perversa de dominao-submisso, aterrorizante, que tem consequncias nefastas para o desenvolvimento da personalidade da criana, tornando-a sub-missa, dcil, servil, mutilada . Os enunciados 12 e 24 argumentam contra a punio corporal por razes pedaggicas strictu. Os enun-ciados 18 e 19 situam a punio corporal como uma experincia de cunho sexual danosa criana. Os enunciados 25 e 26 relacionam-se s consequncias da punio corporal na relao familiar, pois trata--se de algo que nunca se esquece, podendo afastar severamente pais e filhos. E o curioso enunciado 28 restringe o uso da punio corporal aos seres irracionais.

    TABELA 5. Possveis conseqncias adversas da punio corporal domstica segundo especialistas em educao infantil contr-rios ao bater como forma de educar os filhos:

    ARGUMENTOS n. %1. Ocasiona machucados, ferimentos, maus-tratos fsicos 5 10

    2. Fantasias sadomasoquistas, sadomasoquismo quando adulto 4 8

    3. Distrbios sexuais-afetivos, distoro da personalidade 3 6

    4. Traumas, danos psicolgicos, neuroses 3 6

    5. Impede o desenvolvimento da personalidade, das potencialidades 3 6

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    6. Perda da autoestima, faz a criana sentir-se menor e mais fraca 3 6

    7. Torna-se retrada, tmida, perde a espontaneidade 3 6

    8. Sente-se dominada, submissa 3 6

    9. Descrena nos pais, perda de segurana 3 6

    10. Dor 3 6

    11. Desenvolve comportamentos agressivos, agressividade 3 6

    12. Gera rebeldia 2 4

    13. A criana acostuma-se a apanhar, passa a no temer apanhar 2 4

    14. Tornam-se dissimuladas, deixam de ser honestas 2 4

    15. Faz a criana sentir que m pessoa 2 4

    16. Quando adulto ir tratar seus fi lhos e subordinados com brutalidade e hostilidade 2 4

    17. A criana s obedece se apanhar 1 2

    18. Torna a criana amedrontada 1 2

    19. Erotiza a coao 1 2

    20. Gera perdas 1 2

    TOTAL GERAL 50 100

    Nota: Extrado e adaptado de LONGO, C. S. A punio corporal domstica em livros sobre educao familiar no Brasil: 1981-2000. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, USP, So Paulo, Brasil, 2001.

    A Tabela 5 foi categorizada em termos das possveis consequncias adversas para crianas e adolescentes vtimas da punio corporal. Os enunciados 1 e 10 referem-se s consequncias diretamente rela-cionadas ao corpo da vtima, ou seja, aos efeitos imediatos da punio corporal. A maior parte dos enunciados (2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19 e 20) referem-se s consequncias para o desenvolvi-mento psquico-afetivo e da personalidade da criana. O enunciado 9 remete-se a dinmica da relao pais-filhos, que torna-se prejudicada. O enunciado 16 aponta uma consequncia tambm relacionada teoria da aprendizagem social, com a reproduo dos modelos aprendidos atravs da incorporao do padro de comportamento dos pais.

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    TABELA 6. Possveis conseqncias adversas pa