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Setembro,2017
DissertaçãodeMestradoemHistóriaContemporânea
ComooAvante!tratouosseus
entre1941e1974
Aconstruçãodeumaidentidadecomunista
AnaPaulaMarquesCorreia
Dissertaçãoapresentadaparacumprimentodosrequisitosnecessáriosàobtenção
dograudeMestreemHistóriaContemporânea,realizadasobaorientação
científicadoProfessorDoutorJoséManuelViegasNeves
Aosqueresistiram
AGRADECIMENTOS
OacompanhamentodoprofessorJoséNevesfoideterminanteparaquetenha
sido possível transformar um projeto vago numa dissertação, num processo de
avanços e recuos e muitas hesitações só possíveis de ultrapassar graças às suas
observaçõeseindicaçõesdeleituras.
Para o enriquecimento do trabalho contribuíram decisivamente os três
militantescomunistasqueaceitaramfalardassuasexperiênciasemanifestarassuas
opiniões. Aqui fica, pois, o agradecimento a Margarida Tengarrinha, Domingos
AbranteseJoséPedroSoares.
Noplanopessoal,estetrabalhoteriasidoapenasumaideiasemoincentivoda
LeonoresemoapoioeaconfiançaincondicionaisdaIsabel.
ComooAvante!tratouosseus
entre1941e1974
Aconstruçãodeumaidentidadecomunista
Resumo
Palavras-chave:Avante!,clandestinidade,militância,leitores,identidade
“ComooAvante!tratouosseus?”,apartirdeumaanálisedeconteúdodaVIsériedo jornalprocura-seumarespostaaestapergunta,contribuindoparaoestudoda militância comunista e da forma como ela foi construída e exposta na maisrelevantepublicaçãoperiódicadoPartidoComunistaPortuguês.
Entrea“reorganização”dopartido, iniciadaem1941,eo fimdaditadura,em25deAbrilde1974,forampublicadas,comregularidade,464ediçõesquedeterminaramaidentidadecomunista,falandodeeparaosmilitantes.Deediçãoemedição,aolongodoperíodoclandestino,arededeinfluênciadoAvante!vai,noentanto,extravasandoopartido,alargando-seaumacomunidadeimaginadadeleitoresidentificadacomouniversodosopositoresaoregime.
Abstract
Keywords:Avante!,clandestinity,militancy,readers,identity
“HowdidAvante!treattheirones?”fromacontentanalysisofthenewspaper'sVI series, an answer is sought to this question, in a contribution to the study ofcommunistmilitancyandthewayitwasconstructedandexposedinthemostrelevantperiodicalpublicationofthePortugueseCommunistParty.
Between 1941 and 1974, since the "reorganization" of the party, begun in1941,andtheendofthedictatorshiponApril25,1974,464editionswerepublishedregularlythatdeterminedthecreationofcommunistidentity,speakingofandforthemilitants. Gradually, from editing in edition, throughout the clandestine period,Avante's network of influence! however, goes beyond the party to an imaginedcommunityofreadersidentifiedwiththeuniverseofopponentsoftheregime.
Índice
Introdução.....................................................................................................1
ParteI—OAvante!criaasuacomunidade....................................................6
1.Aautoidentificação.....................................................................................................................61.1A“polissemia”Avante!........................................................................................................61.2Internacionalistaenacional.............................................................................................71.3“...detodososhomensquenãosejamcobardes”......................................................9
2.Cumplicidadeeresponsabilidade.......................................................................................132.1“Deverdetodoocomunista”........................................................................................132.2“NuncainutilizesoAvante!”...........................................................................................152.3“Indestrutível”......................................................................................................................17
3.Obrigaçõesediretivas.............................................................................................................193.1Esforçoesacrifício............................................................................................................193.2Dedicaçãoexemplar..........................................................................................................213.3Exemplarvendidoduasvezes......................................................................................21
4.Leitor/correspondente...........................................................................................................244.1”Manda-nosnoticias”.........................................................................................................244.2”EsteAvante!éprecioso”.................................................................................................25
5.Críticasecorreções...................................................................................................................275.1”Desleixo”................................................................................................................................275.2Autocrítica............................................................................................................................28
PARTEII—Ajustesdecontas.......................................................................31
1.AreorganizaçãoeosdoisAvante!......................................................................................311.1Críticaaos“confucionistas”............................................................................................311.2“Irradiação”dos“provocadores”................................................................................361.3Contra“ogrupelhoprovocatório”...............................................................................381.4Oesquerdismo,oscorvoseasmoscas.....................................................................44
2.Emtempodeguerra.................................................................................................................492.1Os“quinta-colunistas”´.....................................................................................................49
3.”Seforespreso,camarada”.....................................................................................................513.1“NaPolícianãosefala”....................................................................................................513.2“Máconduta”........................................................................................................................543.3“Indignidade,cobardiaetraição”................................................................................55
3.4“Cuidadocomeles”............................................................................................................603.5“Provocadoresetraidores”.............................................................................................623.6“Miseráveis”..........................................................................................................................67
4.Heróis..............................................................................................................................................734.1”Liberdadeparaospresos!”.............................................................................................734.2“Inclinamosasnossasbandeiras”.................................................................................814.3”Umhomementreasestrelas”.......................................................................................84
PARTEIII—Asuperioridade(banal)doscomunistas....................................88
1.Alinguagembanal.....................................................................................................................881.1Oexemplomoral................................................................................................................881.2Ódiopeloinimigo...............................................................................................................921.3Avingançaserve-sefria..................................................................................................93
2.Obanaldeliberado....................................................................................................................952.1Sentimentoeemoção.......................................................................................................952.2.Aheroicidade......................................................................................................................972.3.Sercomunistaé...............................................................................................................1002.4A“superioridadecomunista”......................................................................................103
Conclusão...................................................................................................113
Bibliografia.................................................................................................118
1
Introdução
“AresistênciafoiadignidadedePortugal”.AfraseédeJorgeSampaio1epode
sintetizar o significado político-histórico que teve a atividade de quem resistiu
ativamenteàditaduradeSalazareCaetano.Semumfortesentidodemilitânciaede
empenhamento numa causa superior ao acomodamento pessoal não teria sido
possívelresistiràrepressãodapolíciapolíticaeàslimitaçõesàliberdadedeexpressão
edeassociaçãoimpostaspeloregime.
Este trabalho versa um aspeto particular dessa resistência, a dos militantes
comunistas, vista através dos textos publicados nas edições clandestinas do jornal
Avante! e procurando a resposta à seguinte pergunta: “Como o Avante! tratou os
seus?”. Entre 1941 e 1974, o órgão central do PCP publicou, regularmente, 464
edições,produzidasemcondiçõesmuitodifíceiscomrecursoatipografiasclandestinas
edistribuídoatravésdeumacomplexarede,paraqueojornalchegassenãosóacada
umdosmilitantes,mastambématodososqueseopunhamàditadura.Operiódico
assumiu grande protagonismo como veículo de criação da identidade comunista,
sendo ummeio de comunicação entre osmilitantes, falando deles e para eles,mas
integrando-os sempre numa comunidademais alargada de opositores ao regime. O
objectodeestudodestetrabalhoéoconteúdodoAvante!clandestinonaformacomo
o jornal “falou” de e comessa comunidade de leitores, desde a “reorganização” do
partido, iniciadaem1941,eofimdaditadura,em25deAbrilde1974.Emborao1º
númerodoórgão central doPCP tenha sidoeditadoa 15e Fevereirode1931, só a
partirdeAgostode1941,comapublicaçãodonº1daVISérie,queviriaamanter-se
atéAbrilde1974,équeaediçãodojornalsetornouregular,publicando-sequinzenal
oumensalmente. Por esta razão, tornou-se óbvio que teria de ser toda a VI série a
fonteprincipaldestetrabalho.
1Proferidaa19deJaneirode2017,noMuseudoAljube,naapresentaçãodolivro“CadeiadoFortedePeniche,comofoivivida”,deCarlosBrito.
2
O Avante! clandestino, tanto quanto foi possível perceber, tem sido estudado não
comoobjetoprimário,mas,tãosó,integradocomofontecomplementaremtrabalhos
emtornodahistóriadoPartidoComunistaPortuguêsedosseusprotagonistas.Nestas
investigações,entreasquaissedestacamasobrasdoshistoriadoresJoãoMadeira2e
JoséPachecoPereira3ouaindadeDawnLindaRaby4edaantropólogaPaulaGodinho5,
oAvante!surgeemdoisplanos:comoumdoselementosimportantesnavidadoPCP
duranteaclandestinidade;oucomofonteauxiliarnadefiniçãodatrajetóriapolíticae
estratégica do partido e dos seus dirigentes. A verificação de que o conteúdo do
Avante! não estará estudado como objecto principal constitui, assim, uma das
motivaçõesparaaescolhadotema.
A opção metodológica seguida foi a de eleger as edições do Avante!
clandestinocomofontesprimáriasparadesenvolverumacríticadeconteúdopolítico,
enquadradoemcadamomentodocontextohistórico.Ostextosnãosãoanalisadosdo
ponto de vista linguístico, e, embora não se ignore, como alerta a linguistaMarina
Yaguello,que“apalavranãoéapenasuminstrumento,étambémumexutório,uma
formadeagir,ummeiodeafirmaçãocomosersocial,umlugardeprazeroudedor”6,
o estudo enquadra-se conceptualmente nas propostas de autores como Quentin
Skinner, no que este historiador reflete sobre o significado de um texto, tendo em
contaocontextopolíticoparadescortinara intençãooumotivaçãodoautoraousar
determinada linguagem. Em Skinner, que parte de O Príncipe, de Maquiavel, e da
citação“énecessárioqueopríncipeaprendaanãoserbom”,essencialéaleiturapara
alémdotexto.“(...)nãoépossívelchegaràconclusãodequeoPríncipe foiemparte
concebido como um ataque à natureza moralista dos manuais humanistas para
príncipesapenasatravésdoestudodotextodeMaquiavel,jáqueessefactonãoestá
2JoãoManuelMartinsMadeira,‘OPartidoComunistaPortuguêsEaGuerraFria:“sectarismo”,“desvio
de Direita”, “Rumo À Vitória” (1949-1965)’, 2011; JoãoMadeira,História Do PCP (Tinta da China,2013).
3JoséPachecoPereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica(TemaseDebates),4vols.4Dawn Linda Raby, Portugal, A Resistência Antifascista Em Comunistas, Democratas E Militares EmOposiçãooaSalazar,1941-1974(EdiçõesSalamandra,1988).
5PaulaCristinaAntunesGodinho,‘MemóriasDaResistênciaRuralNoSul’,1998.6MarinaYaguello,AliceNoPaísDaLinguagem(EditorialEstampa,1991),p.21.
3
contempladono texto. (…)assim,parece-me indispensável paraa sua compreensão
umaoutra forma de análise que vá para alémde ler os textos «uma e outra vez».
Parece-se-metambémqueessaanálisedeveráconterumestudodasconvençõesedas
pressuposiçõesestabelecidasparaogénero,apartirdoqualas intençõesequalquer
autor em concreto possam — por uma combinação de dedução e conhecimento
académico”—serdescodificados.”7
TambémnaanálisedasediçõesdoAvante!clandestinoassume-seointeresse
poruma interpretaçãoparticulardo texto, focadanoqueele remeteparaa relação
comoleitor/militante,contextualizadacomoconhecimentoadquiridosobreoPCPeo
movimento comunista, em geral, tentando descodificar a intenção dos autores, que
nãoestãoidentificados.Essadescodificaçãoéumpassopararesponderàtalpergunta
inicial:comooAvante!tratouosseus?
Dividindo o trabalho em três partes, a metodologia seguida passou por
identificarosdiversospapéis assumidospeloAvante! duranteoperíodoemestudo.
Na I Parte — O Avante! cria a sua comunidade — identificam-se os sinais da
construção da comunidade de leitores a par da criação da sua própria identidade,
como sujeitonuma relaçãobiunívoca comosmilitantes, tendocomosustentáculoo
conceito de “comunidades imaginadas”, de Benedict Anderson, transpondo o que o
autoraplicaàidentidadenacionalparaopartido.Aocriarcumplicidades,afinidadesou
contrapontos,oAvante!,comosinónimodoPartido,criaumsentimentodepertençaa
umuniverso,ondecabemosmilitantes,ostrabalhadoreshomensouosdemocratas,
alémdospatriotas,extravasando,noentanto,asfronteirasfísicasdopaís.Podefazer-
seumaanalogiacomoexemplodadoporAnderson:“Umamericanonuncaconhecerá
ou saberá sequeronomedemaisdeumamão-cheiadentreos seus240milhõesde
concidadãosamericanoscomoele.Nãofazideiadoqueosocupanumdadomomento.
Mas confia plenamente na sua actividade continuada, anónima, simultânea” 8 .
TambémoleitordoAvante!nãoconhecetodososoutrosleitores,masé-lheincutida,
7Skinner,p.199.8BenedictAnderson,ComunidadesImaginadas(edições70,2017),pp.47-48.
4
atravésdeumalinguagemsempreconstante,acertezadequesãomuitos,nopaíse
nomundo,quepensam,sentemeagemcomoele,naquelemomento.
ComaParteII—Ajustesdecontas—identificam-senasediçõesdoAvante!em
estudo os textos que fulanizam a relação com o leitor, partindo de uma ideia
conceptual não longe da reflexão deMichel Foucault9sobre a investigação histórica
paraatingirumcampoque,julgamos,aindapoucoestudado:odopesodalinguagem
na definição do desenrolar acontecimentos históricos relacionados com um
determinadoobjectodeestudo.Aqui,nadistânciaentre“ascoisaseaspalavras”de
Foucault, está o cerne da procura do real no simbolismo das palavras escritas no
Avante! clandestino. É o jornal que se transformanuma entidade agregadora da tal
comunidadeimaginadae,paraisso,usaapalavrasimbólicacomoarma,aoexaltarou
adenegrirosseusmembros.
Seasduasprimeiraspartesdo trabalhodãoênfaseaumaanálisedos textos
publicados noAvante!, à luz da representação do real da vida interna do PCP e da
relaçãodestecomoexterior,quersejainterno,nacional,ouexterno,internacional,a
Parte III— A superioridade dos comunistas—desemboca na interpretação do uso
exaustivo do discurso corrente ou banal. É a partir de Michael Billig, e do seu
Nacionalismo Banal, que abrimos portas à proposta especulativa de que nos textos
analisadosperpassaoconceitodesuperioridadedoscomunistas,sedimentadoatravés
deumalinguagemcorrentequemaisnãoédoquea“banalização”–porantecipação
–dateorizaçãoexplanada,posteriormente,porÁlvaroCunhal.
Nesta abordagem da criação da identidade comunista através da linguagem
corrente no discurso político publicado no Avante! torna-se relevante convocar o
pensamentodeBilligeAnderson.Osdoisestudiososdonacionalismoquerementem
9 “A História vem situar-se nessa distância que agora se entreabre entre as coisas e as palavras –
distância silenciosa, isenta de toda a sedimentação verbal e, no entanto, articulada segundo os
elementos da representação, precisamente aqueles que poderão de pleno direito ser nomeados.”,
MichelFoucault,AOrdemDoDiscurso(Relógiod’Agua,1997),p.179
5
paraaconsolidaçãoverbal deumapertença identitária,permitindoumexercíciode
analogiaentreacriaçãodaidentidadenacionaledaidentidadecomunista.
Noconjuntodas trêspartes,a fontecentraldadissertaçãosãoasediçõesdo
Avante!clandestino,consultadasnapáginaelectrónicadoPCP,complementadascom
arealizaçãodeentrevistasatrêsmilitantesdoPCP,MargaridaTengarrinha,Domingos
AbranteseJoséPedroSoares,cujasexperiênciasdevida,emdiferentesépocaseem
contextos pessoais diversos, permitem uma leitura do jornal na primeira pessoa.
Transmitem visões do lado de dentro do aparelho partidário, de quem redigiu e
paginou muitos dos textos publicados no Avante!, como é o caso de Margarida
Tengarrinha,dequemfoiredator,responsávelportipografiasclandestinasetemade
notíciacomopresopolíticoaolongodemuitosanos,comoDomingosAbrantes,oude
quemfoileitoreapenasnotíciaportersidoumdospresosdaúltimafasedaditadura,
omarcelismo.Astrêsentrevistas,aquesejuntamoutrostestemunhosjápublicados
noutras fontes, permitem chegarmais próximo do papel que oAvante! clandestino
teve na construção damilitância e identidade comunistas e na percepção da forma
comoopartidotratouosseusatravésdoórgãocentral.
6
ParteI—OAvante!criaasuacomunidade
1.Aautoidentificação
1.1A“polissemia”Avante!
Avante!=títulodoórgãocentraldoPCP
Avante=Adiante,paraafrente(advérbio);exprimeincitamentoparaquesevá
adianteparaqueseprossiga(interjeição)10.
Entre o cabeçalho do órgão central do PCP, onde Avante! com ponto de
exclamaçãotemaforçadainterjeição,eoadvérbio,ficaesbatidaaténuepolissemia
da palavra quando, nas páginas do jornal, em títulos de notícias de lutas laborais e
políticas,oincitamentoaoprosseguimentodalutaéfeitocomessemesmovocábulo,
avante.UmexemplodessaduplautilizaçãosurgenaediçãodeFevereirode195211em
dois títulos, o primeiro de incitação e o segundo de apelo à contribuição financeira
paraopartido:“Avantecorticeiros!”e“Avanteparaos500contos!”.
Semque tivesse sidopossível encontrar qualquer outra fontepara explicar a
escolha do título para o jornal, é o próprioAvante! que nos dá a sua explicação na
ediçãonº200,deJunhode1955:
10In Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia de Portugal,
200111AsediçõesdojornalAvante!citadasnestetrabalhoforamconsultadasemhttp://www.pcp.pt/avante-
clandestino
7
“O aparecimento do jornal Avante! como órgão central do Partido
ComunistaPortuguêsestáligadaàreorganizaçãooperadanopartidosob
adirecçãodosaudosodirigentedoproletariadorevolucionárioportuguês,
Bento Gonçalves. Após a suspensão da publicação legal do jornal do
partido,OProletário, em1931, adirecçãodopartido resolveu lançarum
outro jornal e esse jornal, emhomenagemao jornal fundadopor Lenine,
chamou-seAvante!”.
Intencional ou não a escolha do título, o certo é que o cabeçalho do órgão
centraldoPCPtemaforçadeumapalavradeordem.Eseráusadacomotalaolongo
detodaavidaclandestinadoAvante!.
1.2Internacionalistaenacional
Com conselhos, ameaças, exemplos, denúncias ou apelos e pedidos, a
linguagem usada nas páginas do Avante! clandestino procura consubstanciar uma
relação de proximidade com o leitor, indiciando o desígnio da construção de uma
comunidade,que,sendoessencialmentenacional,extravasaoslimitesgeográficosdo
paíseestáondeestiveralutadostrabalhadores.Comoselênaediçãoespecialnº200,
deJunhode1955:
“Nestes 14 anos de publicação regular, o Avante! tem procurado
esclarecer o nosso povo sobre a vida e a política de Paz na grande União
Soviética,baluartedoSocialismo,vanguardada lutadosPovospelaPaz,pela
independênciaeporumavidamelhor. (...)Os interessesdos trabalhadoresdo
mundointeirosãocomuns,comunssãoosseusinimigos,comumdeveserasua
lutaeneladevemajudar-seunsaosoutros.”
Mas é também nessa edição e namesma página que se escreve, num texto
ilustrado com uma fotografia de Álvaro Cunhal, preso na Penitenciária de Lisboa,
intitulado“OPartidoeaNação”:
O Avante! é o órgão do Partido da classe operária, classe cujos
interesses se identificam cada vezmais com os interesses nacionais (...) Só o
8
povo,fielaoseuamoràliberdadeeàindependêncianacional,selevantaeluta
emdefesadosinteressesnacionais”.
Icónicadessasimbioseentreonacionalismoeointernacionalismocomunistaé
a ilustração impressa no alto da primeira página, ao lado esquerdo do cabeçalho,
representando um homem, com um martelo, e uma mulher, com uma foice,
empunhado o Avante! nº200 e tendo como fundo as bandeiras comunista e
portuguesa.Éumaediçãograficamentecuidada,revelandoacircunstânciadosartistas
plásticos José Dias Coelho e Margarida Tengarrinha estarem a exercer cargos de
responsabilidade na produção do jornal, o que aconteceu até 1962. Mas, como
acentuaohistoriadorJoãoMadeira,“amelhoriagráficaqueissorepresentavaparece
titubeanteatémeadosde1960,alturaemqueojornalcomeçaaincluirgravurascom
maiorfrequência, ilustrandoartigos,oqueaconteceatéJaneirode1962,coincidindo
com o assassinato de José Dias Coelho, ocorrido no mês anterior. São gravuras
representando manifestações, acções de protesto, ilustrando efemérides e
acontecimentosrelevantesdoPCPoudomovimentocomunistainternacional”12.
Numaapreciaçãodaforma,decorrentedaleituradoconteúdodetodaasérie
VIqueestevenabasedestetrabalho,nasduasprimeirasdécadasdeediçõesregulares
doAvante!, nem sempreaqualidadegráficaeraumelemento relevantenum jornal
queégenericamentebemescritoecompoucasgralhas,tendoemcontaascondições
precáriasemqueeraproduzido.
É Margarida Tengarrinha13, que trabalhou no Avante! clandestino em duas
fases,emLisboa,desdeofinaldosanos50eatéàmortedocompanheiro,JoséDias
Coelho, em Dezembro de 1961, e em 1968, no Porto, quem conta como estava
organizada a redação do periódico: “Na comissão de redação do Avante! havia um
responsável, que era membro do secretariado do partido, e mais três camaradas.
Fazíamos reuniões numa das casas clandestinas. Na primeira fase em que estive na
redação,éramosoFranciscoMartinsRodrigues,oJaimeSerra,oBlanquiTeixeiraeeu.
Nósescrevíamososartigos,àsvezescom informaçõesquevinhamde foraenotícias
12JoãoManuelMartinsMadeira,‘OPartidoComunistaPortuguêsEaGuerraFria:“sectarismo”,“desvio
deDireita”,“RumoÀVitória”(1949-1965)’,2011p.679.13EntrevistaaMargaridaTengarrinhaa9deMarçode2017,emCarnaxide.Salvooutraanotação,todas
ascitaçõesatribuídasaMargaridaTengarrinharesultamdestaentrevista
9
quevinhamdabase.Nessareuniãodiscutíamosoqueentravanaediçãoqueseestava
a preparar.O editorial e a primeira página era da responsabilidade do elemento de
ligaçãoaosecretariado”.
De volta à análise de conteúdo do jornal, sublinhe-se que a utilização da
simbologianacionalnãoconstituiumacaracterísticadoPCP,massimumatendência
generalizada. Podemos citar Eric Hobsbawm ao afirmar que “os movimentos e os
estadosmarxistas têmmostradoa tendênciapara se tornaremnacionais, não sóna
forma,mastambémnoconteúdo”14.Podeestaformulaçãoremeter-nosparaoqueo
historiador José Neves classifica como “nacionalização do comunismo”15, que em
Portugal começou por ter expressão teórica com Bento Gonçalves, em 1936,
reforçando-senoanoseguintecomPavel,paraquem“oscomunistasdomundointeiro
sãoosmelhoresrepresentantesdasváriasculturasnacionais”.Essecaminho,centrado
numconceitodeanti-imperialismo,temsidopercorridoatéàatualidade.Commaisou
menosintensidadeeadaptandoodiscursoàscircunstânciashistóricas,oscomunistas
portugueses combatem a semi-colonização do país pelo que consideram ser as
potênciasimperialistas.
1.3“...detodososhomensquenãosejamcobardes”
Uma publicação periódica, ao usar uma linguagem determinada, seguir uma
linhaeditorialespecíficaouguiar-seporregrasdeumlivrodeestilopré-definido,vai
criandoumsentimentodepertençaedecumplicidadeentreosleitores,susceptívelde
poder enquadrar-se no conceito de comunidade imaginada definido por Benedict
Anderson. Se este autor forjou tal fórmula conceptual para pensar o fenómeno
nacional, usamo-la aqui para compreender uma comunidade política partidária ou
simpatizante do partido. Por maioria de razão, ao jornal partidário aplica-se a
finalidadede criaçãode um corpo, uma comunidade emqueos limites, alémde se
localizarem num determinado espaço geográfico, são, acima de tudo ideológicos e
simbólicos. Essa comunidade é imaginada porque se sedimenta através duma
14EricHobsbawm, “Some reflections on “The Break-up of Britain”,New Left Review, nº105, Set/Out.
1977,p.13.15JoséNeves,ComunismoeNacionalismoEmPortugal(TintadaChina,2010),p.185.
10
representaçãocultural alimentadapela comunicação,quepermiteuma identificação
decadaumcomogruponoqualseimaginainserido.Essegruponãoéquantificável,
mascadaumdosseusmembros imagina-onasuadimensãoe importânciasocialde
acordocomasuapercepçãodarealidadetransmitida,porexemplo,pelaimprensa.
NocasodasediçõesclandestinasdojornalAvante!,essapercepçãoéreforçada
pelascondiçõesemqueoperiódicoéescrito, impresso,distribuído, lidoedivulgado.
Todaessacadeia,quecomeçanosdirigentesdopartidoeacabanossimpatizantesou
nos“trabalhadoreshonestos”,cimentaumacomunidadepolítica,àqualcadaumdos
militantes, individualmente, se orgulha de pertencer. A adjetivação de “honestos” é
recorrentementeusadanas páginas doAvante! para designar os nãomilitantes que
não eram hostis ao partido. Como analisa o historiador José Pacheco Pereira, “o
adjectivo ‘honesto’ tinhauma funçãoclassificadoracentral,que correspondiaà ideia
rousseaunianadequeos‘homenshonestos’nãopoderiamserinimigosdopartido.Por
isso o “legionário honesto’ e o democrata ‘honesto’ eram tidos como ‘honestos’
porque,nãosendocomunistas,nãoeramanti-comunistas”16.
É com a VI série, iniciada em Agosto de 1941 pelos obreiros da chamada
“reorganização”dopartido,queoórgãocentraldoPCPpassaaserverdadeiramente
periódico, com edições regulares, embora a edição clandestina não tenha sido uma
experiêncianovaparaos“reorganizadores”,umavezqueoAvante!,enquantoórgão
centraldoPCP,jáexistiadesde1931comapublicação,emduassériesde93números.
Como acentua JoãoMadeira17, segue-se um período da vida do jornal que reflete,
comonãopoderiadeixardeser,aconvulsãointernadopartido:“Entre1941e1945,a
existênciadedoisPartidosComunistasemPortugal, faz comqueumdeles,oque se
representavaacontinuidadeorganizativa,masqueviriaaserdesignadode“grupelho
provocatório”pelogrupodosreorganizadores,editasseduasnovassériescomumtotal
de20números.Nesteperíodoeditaram-sedoisjornaiscomomesmotítulo–Avante!–
aindaquecomnovanumeraçãodesérie,cabeçalhos,tipodepapelesuportesgráficos
relativamentediferentes,poispelomenos,em1944-45,jánumafasededefinhamento
e desagregação do “grupelho provocatório”, o seu Avante! era copiografado,
16JoséPachecoPereira,ASombra.EstudoSobreaClandestinidadeComunista(Gradiva,1993),p.91.17JoãoManuelMartinsMadeira.p.665.
11
enquantoqueodosreorganizadoresseriainvariavelmenteimpressoemprelo”.
A formação dessa comunidade como objectivo está patente nas páginas do
própriojornal.Logonoprimeironº1daVIsérie,deAgostode1941,lê-se,numlongo
textoquepreencheaquasetotalidadedasquatropáginasdojornal,intitulado“OQUE
QUEREMOS!”:“OAvante faza suaapariçãocomoavozdopovoportuguês, comoa
vozdePortugal”.
No mesmo nº1, na página 4, num outro texto intitulado “PREVENÇÃO”,
caracteriza-se o aparecimento do Avante! como: “O toque a unir de todos os anti-
fascistasedetodososhomensquenãosejamcobardes”.
O reconhecimento da relevância do jornal para a consolidação de um
sentimentodepertençacúmpliceaumgruporevela-senaformacomooAvante! se
identifica e se assume, referindo-se a si próprio como um corpo vivo, quase
humanizado e integrante dessa comunidade imaginada, cujo universo não se
circunscreveaoscomunistasmilitantesdopartido,masalarga-seatodos“oshomens
quenãosejamcobardes”.Ojornalfaladesi,comomembrodogrupo,eparacadaum
dosoutroselementosdessamesmacomunidade.
AopiniãodeDomingosAbrantes18,que,naqualidadededirigentedopartido,
exerceu funções na redação do Avante!, é condicente com a ideia da comunidade
alargadadojornaleconfirmacomoesseobjetivoeraassumidopelaprópriadireçãodo
PCP:“OAvante!eraoelodeligaçãoentreosmembrosdopartido.Eraumorganizador,
mascriouumacomunidademuitomaiordoqueadopartido”.Enessacomunidade,os
militantes comunistas têm orgulho, o orgulho pelo facto de o jornal do seu partido
chegar mais longe do que a estrutura partidária, mas, sobretudo, por ter resistido,
como enfatiza Domingos Abrantes: “Foi um grande feito termosmantido editado o
Avante! durante tanto tempo, entre 1941 e 1974, ininterruptamente naquelas
condições.Nãohámuitoscasosdestesnomundo,apesardequasetodosospartidos
comunistas terem a sua imprensa clandestina, e há um diferença, o nosso sempre,
sempre impresso no país. Não há um único exemplar que tivesse sido feito no
estrangeiro.Éobra,porqueeradeumagrandecomplexidade.Umdostipógrafosmais
18EntrevistaaDomingosAbrantesrealizadaa21deMarçode2017,nasedenacionaldoPCP,emLisboa.
Salvooutraanotação,todasascitaçõesatribuídasaDomingosAbrantesresultamdestaentrevista.
12
extraordinários que conheci, o mais rápido, era um miúdo de seis anos. Foi numa
tipografiaemLinda-a-Pastora.EletinhavindocomospaisdeFafe,nãosabialer,mas
conheciaas letrase compunhacomumadestrezae rapidezextraordinária.Depoiso
paifoipreso,eufuipresoenãoseioquefoifeitodele”.
Amesmaconsciênciada importânciadoAvante!, inspiradanosensinamentos
leninistas sobre a organização do partido e da sua ligação aos exterior aplicados ao
contexto político português, em que não existia Imprensa livre, é expressa por
MargaridaTengarrinha:“OAvante!teveumaimportânciaenormepeloconhecimento
queproporcionavasobreoqueseestavaapassarnopaísenomundo.Enquadrava-se,
eenquadra-se,nosmoldesexatosdoqueLenineestabeleceudoquedeveriaoórgão
central informativodoPartido.Tinhaqueser, simultaneamente,umorganizador,um
informadoreummobilizador.Nessesentido,comoorganizador,oAvante!éumelode
ligaçãoentreosmilitantes.Eratambémoúnicoórgãodeinformaçãoquediziatodaa
verdade,proibidapelacensuranosoutrosjornais”.
Estes testemunhos são reveladores do que significa para os comunistas a
continuidade regular do Avante! durante a ditadura, tendo em conta todas as
dificuldades que envolviam a sua produção, desde a redação dos textos que, em
muitos casos chegavam de vários pontos do país, até à impressão em tipografias
clandestinas, que a todo o momento podiam cair nas mãos da polícia política,
passandopeladistribuição,camufladae,emgeral,debicicleta,omeiodetransporte
por excelência dos militantes clandestinos. Aliás, a bicicleta tornou-se também um
símbolodaresistência,àsemelhançadoqueaconteceuduranteaocupaçãonazi,em
França, durante a II GuerraMundial. Como lembra a antropóloga PaulaGodinho na
sua tese sobre a resistência rural, a bicicleta foi transformada em ícone na obra de
ficçãodeÁlvaroCunhal,assinadacomopseudónimodeManuelTiago,numelogioao
esforçoeàcapacidadedeentregadosmilitantes.“ApersonagemVaz,doromanceAté
amanhã,camaradas,deManuelTiago-obraestruturantedaculturaderesistência-
um militante generoso até ao limite do humano, faz-se sempre transportar numa
13
bicicleta, que se torna uma materialização da pobreza e do esforço contínuo do
trabalhoclandestino.”19
2.Cumplicidadeeresponsabilidade
2.1“Deverdetodoocomunista”
Acriaçãodecumplicidadeedecorresponsabilidadedosleitoresemrelaçãoao
jornalestásemprepresenteemapelosconstantesparaumacolaboraçãomaisestreita
eemorientaçõesarespeitarnãoapenaspelosmilitantes.Se“LeredifundiroAvante!
é o dever de todo o comunista”, umadiretiva, publicada emDezembrode 1941, na
qual fica patente a importância do periódico no quadro da militância comunista,
também “Auxiliar a publicação do Avante! é a obrigação de todos os militantes
revolucionários”,comoselênaediçãoseguinte,deOutubrodomesmoano.Jáantes,
emSetembro,nonº2,oapeloeraoseguinte:“Camaradas!NãobastaleroAvante!é
precisoquenelecolaboremtambém”.
Háexemplosdetextosquesedirigemdiretamenteaumgrupomaisalargado
doqueodosmilitantes.ÉocasodoapelopublicadoemSetembrode1955:
”Trabalhadores! Democratas! Lendo e dando a ler o Avante! a todas as
pessoas honradas vossas conhecidas levarás (...) a voz da verdade a um
númerocadavezmaiordeportugueses”.
Estesapelos,oudiretivas,vãorepetir-seaolongodasediçõesdetodaaVIsérie
doAvante,oqueacentuaacontribuiçãodo jornalparaacriaçãodeumaespíritode
grupo.Nofundo,oAvante!éumpatrimóniovivodalutaantifascista,quecabeatodos
os comunistas e “homens honestos” salvaguardar. Daí que na 1ª quinzena de
Dezembrode1942,seleia:
“Difunde o nosso jornal, camarada. Depois de leres o Avante! não o
inutilizes.Dá-oaumamigode confiança,envia-opelo correioaumanti-
fascistaousimpatizante,mete-opordebaixodaportadumacasaoperária,
19PaulaCristinaAntunesGodinho,‘MemóriasDaResistênciaRuralNoSul’,1998,pp.210-1211.
14
deixa-onumlugarondepossaserapanhadoporumtrabalhador.Depoisde
leresoAvante!,contribuiparaadifusãodoAvante!”.
Oapeloàdifusão,noentanto,eradealcance limitadoporquepassaro jornal
para mãos inimigas constituía um perigo e poderia significar a prisão. Francisco
MartinsRodrigueslembraotempo,noiníciodosanos50,emqueeradifícilconquistar
a confiança dos camaradas. “Nesse tempo, para ler um Avante! era o cabo dos
trabalhos.Euaindanãoderaprovassuficientes (duaspequenasprisões, semestátua
nemnada,erapouco)etodossefaziamdesentendidos: ‘Nãotenho,hámuitotempo
quenãorecebo’.OprimeiroquemelembrodemeemprestarumfoioViegas,barbeiro,
deCastroVerde,quejápassarapelacadeia”20.
Talcontradiçãoentreosapelosàdifusão,quesequeriaomaisamplapossível,
eanecessáriacautelaparagarantirasegurançadamáquinapartidáriaeraassumidae
tinhade ser resolvida recorrendoaumapercepção instintiva. Essemétodonãoera
isento de perigo, como testemunha Domingos Abrantes: “Havia um risco, que era
assumido,maserapossívelalguma intuição.Adistribuiçãoeracomplexa, funcionava
em rede. Ia um pacote para determinado local, onde era repartido para ser levado
paraoutroslocais.Eraumelomuitolongoeintrincado,deformaaqueapolíciapodia
chegaraumdistribuidormasnãoconseguiaquebraracadeia”.
Merecer ter direito a que lhe seja passado o Avante! era uma conquista
inesquecível para militantes comunistas. Carlos Brito 21 conta como se sentiu
“orgulhosocomaprovadeconfiança”quandoteveacessoaojornalprimeiravez,no
início dos anos 50. “’Toma lá,mas não fumes aqui’, foi assimo aviso brincalhão de
umacompanheirodeestudos,maisvelho,aopassar-seumlivrodemortalhasZig-Zag,
umatarde,emplenoCafédoChiado.Tinha-meprevenidoque ládentro,dissimulado
entreas finíssimas folhasdepapelde fumar,estavaumAvante!,o jornaldoPartido
Comunista,tambémempapelmuitofino.EraomeuprimeiroAvante!,aindanãotinha
dezoitoanos.”
20FranciscoMartinsRodrigues,OsAnosDoSilêncio(Dinossauro/AbrenteEditora,2008)pp28-29.21CarlosBrito,TempodeSubversãoPáginasVividasDaResistência(NelsondeMatos,2011),p.131.
15
ReceberpelaprimeiravezumexemplardoAvante!significavatambémumdos
meios da iniciação, de entrada para as fileiras do partido, ou melhor, para uma
comunidade conspirativa e clandestina. Para José Pacheco Pereira, que estudou os
mecanismosderecrutamentodoPCP,“recrutarnãoerasomenteperigosoparaquem
erarecrutado,era-oigualmenteparaorecrutador.(...)Porisso,adecisãoderecrutar
circulavaverticalmentenahierarquiadopartido,porrazõesdeconfiançapolíticaede
segurança, e era sempre controlada de cima”22.A repressão da polícia política, que
usavaoincentivoàdelaçãocomoarmaparainstalaremanterumasociedadeomais
possível acobardada pelo medo, tornava heroica a resistência. “Entrar no PCP,
principalmente nas décadas de 40 e 50, era entrar para um mundo de referências
afectivas,culturaisepolíticasqueconstituíamumacontrassociedade,incrustadanum
paísque,deummodogeral,desconheciaouignorava.”23
Passar a porta para esse mundo de contra-sociedade implicava o acesso à
imprensaclandestina,cujaleituraconstituíaumsinaldistintivodequemtinhapassado
de simpatizante a militante. “A partir da fase de simpatizante, com a recepção do
Avante! (ainda que eventualmente não saiba ler) e a contribuição com fundos
destinadosàmanutençãodoaparelhoclandestinoeaoauxílioaospresospolíticose
suas famílias,oenquadramentocomomilitantepoderiaocorrer.(...)ArecepçãodeO
Militante,conjuntamentecomoAvante!eoCamponêsdavacontadessamudançade
estatuto:orecrutadoacedia,peloritodeentrada,ainformaçãoacrescida,epenetrava
numdomínioaque,naanteriorcondição,nãoconseguiriaaceder.Nosinterrogatórios
após a prisão, a polícia política estava particularmente atenta a estas leituras,
indiciadorasdemaioroumenorenvolvimento.”24
2.2“NuncainutilizesoAvante!”
22Pereira,p.88.23Pereira,p.8924Godinho,p.193.
16
A preservação doAvante! como património da casa comum da resistência à
ditadura é permanente e insistentemente realçada nas páginas do jornal. Na 2ª
quinzenadeJulhode1942,apreocupaçãoésublinhadanosseguintestermos:
“Leitor. Nunca inutilizes o Avante! porque a sua publicação custa uma
imensidadedesacrifícios”.(...)Éoporta-vozdosanti-fascistaseoprimidos
dePortugal,porissodeveserlidoportodoseles”.
A “imensidade de sacrifícios” é bem caracterizada pelo historiador João
Madeira, ao relatar as condições em que era redigido e impresso o Avante!
clandestino. “O sistema utilizado na impressão do órgão central do PCP fora
implementadoem1933porJosédeSousaeporBentoGonçalves.Opreloeascaixas
com as letras em chumbo para a composição constituíam a oficina de impressão e
cabiam perfeitamente dentro duma casa comum. As pequenas dimensões do prelo
adaptavam-sejustamenteaespaçosrelativamentelimitados.Eracolocadasobreuma
mesa sólida, cujos pés dispunham de calços de borracha, necessitando apenas de
espaçosuficienteparaque,deumlado,secolocasseopapele,dooutro,atinta.Com
recurso às letras de chumbo num tabuleiro ou ramamontado, nivelado e apertado
entrecalhas,formandoumquadrosobreabasedoprelo,compunha-semanualmente,
letraa letrae linhaa linha,apáginaa imprimir.Atintaeraaplicadasobreoquadro
porintermédiodeumpequenorolo.Opapeleraentãocolocado,folhaafolhaporcima
fazendo finalmente correr entre duas guias um rolo de ferro, relativamente pesado,
com duas pegas e revestido a borracha, cuja pressão sobre o papel permitia a
impressão.”25
Ascondiçõesdeproduçãodojornalinerentesàclandestinidade,comrepressão
policial por meio de assaltos a tipografias, são ingredientes para “personificar” o
próprioAvante!,exaltadocomoumheróidopartido,nasprópriaspáginas.Aediçãonº
300,emaiode1961,éexemplardessacriaçãoheroicadoórgãocentraldopartidoe
dequemoproduz.Sobotítulo“OAvante!aoserviçodalutapopular”,lê-se:
“OAvante!temconseguidovencersemprearepressãoferozqueogoverno
deSalazarlhemove;mesmodepoisdosassaltosàstipografiasdoAvante!,
25JoãoManuelMartinsMadeira.,p.265
17
em 1945 e em 1949, o fascismo não conseguiu calar a sua voz, pois,
passado um mês, o Avante! reaparece nas fábricas, campos, escolas e
ruas”.
Numoutro título (“DoisobreirosdoAvante!”)deauto-comemoraçãodos300
númerosdaVIsérie,oAvante!glorificaosmártiresquecaíramemsuadefesa,“dois
camaradasqueridos(...)cujoexemplodehonestidade,delealdadeedecoragemserá
sempreactual.SãoelesJoséMoreira,que,“presoemJaneirode1950,preferiudara
vida nasmãos dos carrascos da PIDE do que denunciar a tipografia do Avante!”, e
MariaMachado,que,“presanuma tipografiadeAvante!enfrentou corajosamentea
PIDEeaGNRqueacercavamefalouaopovoquepresenciavaasuaprisão,sobreo
Avante!ealutadoPartido”.
Num relato na primeira pessoa, Domingos Abrantes fala da proliferação de
tipografias, o que permitiumanter a edição do jornal, apesar da repressão policial:
”Nosanos30,sóhaviaumatipografia,masdepoisinstalámosumarede,quepermitiu
que a publicação não voltasse a ser interrompida. Numa determinada fase, só na
margem sul, tínhamos três, para o Avante! e para todo o resto de material. Essa
descentralizaçãopermitia também facilitaradistribuiçãoeo fornecimentodepapel,
aliás,repara-sequeemdeterminadasediçõesopapelnãoeratodoigual.Alémdisso,
sóosmembrosdosecretariadoéquesabiamalocalizaçãodetodasastipografias,por
isso, sealguém fosseapanhadopelapolícianumadas tipografias,nãopodia revelar
ondeestavamasoutrasporquenãosabia”.
JáMargaridaTengarrinha recordaque,quandovoltoua trabalharna redação
doAvante!,noPorto,jánofinaldosanos60,eraprecisoduplicarotrabalhoparaque
ojornalfosseimpressoemduastipografiasemsimultâneo.“Poressaaltura,eporque
erapontodehonradadireçãodopartidoqueoAvante!nãopodiaparar, passoua
haver duas tipografias uma Lisboa e outra no Porto para o caso de uma ser
desmanteladapelaPIDE.Eraeuquemlevavaostextoseasmaquetes(duasmaquetes
exatamente iguais que eu fazia) às tipografias. Faziam-se três cópias de cada texto,
umaficavanaredação,paracontroloeparaserarquivado,easoutrasduasseguiam
paracadaumadastipografias”.
2.3“Indestrutível”
18
OengrandecimentodosexemplosdeJoséMoreiraeMariaMachadotemainda
maior expressão na primeira quinzena de Agosto de 1961, que assinala o 30º
aniversáriodoAvante!,classificadocomo“indestrutível”eo“únicojornallivreeoguia
do povo português”, num texto ilustrado com gravuras das fotos dos dois
militantes/heróis.Numaediçãoemqueépublicadanaprimeirapáginaumagravura
querepresentaumatipografiaclandestina,estáescrito:
“O nosso jornal é o resultado da vontade heroica de milhares de
comunistas e trabalhadores que nele colaboram, que o imprimem, que o
distribuemdefábricaemfábrica,dealdeiaemaldeia,portodoopaís,que
recolhemdinheiro para o sustentar.OAvante! é a voz ardente da classe
operáriaportuguesaeporissoeleéindestrutível”.
Já nos anos 60, o Avante!, ao celebrar 34 anos, volta a classificar-se como
“invencíveljornaldostrabalhadores”eainda,sempre,oaviso:
“Estejornalrepresentamuitosesforçoseperigos.Nãoodestruas!Passa-o
a umapessoada tua confiançaou larga-oondepossa ser apanhadopor
algumtrabalhador”.Porque,comoestáimpressononº358,deAgostode
1965,“oqueaImprensaamordaçadapelacensuranãodizencontraopovo
noAvante!”.
Ao ser um símbolo invencível da pertença a uma comunidade, o Avante!
clandestinovalecomoumobjectoderesistênciaenãoapenaspeloconteúdodosseus
textos, doutrinários ou informativos. Numa sociedade com uma elevada taxa de
analfabetismo (na década de 50, de 50% nasmulheres e de 30% nos homens26), a
leituradoAvante!eraprivilégiodealguns,emparticularnosmeiosrurais,ondemuitos
ouviamepoucosliamoqueestavaescritonaspáginasdojornal.
“Osecretismodapassagemdostextos,queabrangiamesmoosiletrados,bem
comoaassociaçãodaadesãoaum ideário coma solidariedade em relaçãoàqueles
queestavama sofrerna cadeia, calava fundono recrutamento: “Umhomenzitoque
andavaaí,andávamosemVerdugosatirarcortiça;ohomemaparecia-me lácomos
26SegundodadosdoINE(InstitutoNacionaldeEstatística)consultadosemwww.ine.pt
19
Avante!’spequeninos.Eunãosabia ler.Ele tambémnão tinhaandadoàescola,mas
depoiscomeçou-meadizer:«Ehpá,tunãotensdisto?Elescáaparecem,tunãotens
precisãodesaberqueméqueos traz.Todosos15diasvemeagentedá5escudos
paraajudadospresosqueestãonascadeias,paraotabaco,paraaalimentação».Eu
disse logo:«Quero,pois,quero». (JoãoPedroMarrafa)”27.NatesedePaulaGodinho
sobrearesistênciacomunista,noCouço,jáaquicitada,JoãoPedroMarrafaéumdos
militantescomunistasentrevistados,quedáoseutestemunhodastarefasquotidianas
damilitânciaclandestina.
3.Obrigaçõesediretivas
3.1Esforçoesacrifício
As dificuldades e o sacrifício de produzir quinzenalmente o Avante! são
tambémdeordemmonetáriaeissomesmoérealçadocominsistêncianaspáginasdo
jornal.Oleitorévistonãoapenascomoleitormascomopartedacomunidade,paraa
qualéchamadoacontribuiremtodosossentidos,nosplanosideológico,disciplinare
material.
Logo a partir do nº2, de Setembro de 1942, a VI série doAvante! começa a
publicação regular de apelos ao apoio material à Imprensa do Partido, que se
estenderia ao próprio partido. Frases como “o Partido só poderá viver mediante o
auxílio constante de todos os trabalhadores” passam a ser publicadas regularmente
em paralelo com diretivas concretas sobre a forma como devem ser angariados e
canalizados,comapelosàcriaçãode“gruposdeauxílioaopartido”.Maisumavez,é
estimulado o conceito de pertença, mais do que a um grupo territorialmente
delimitado,aumuniversosemfronteirasfísicas,mascomumaidentidadeforjadana
resistênciaàditadura.Quemcontribuivêoseuesforçoagradecidopublicamente.Sob
o título “Quantias recebidas dos amigos do partido”, o Avante! passa a publicar
regularmente listascomosnomescodificados (individuaisoudegruposconstituídos
paraoefeito)dequemcontribuiecomquanto.
27Godinho,p.187.
20
Umdostestemunhosquedãocontadaimportânciadapublicaçãodaslistase
contribuições é dado por Zita Seabra, para quem o Avante! era o “símbolo da
resistência,omaiorelodeligaçãoentreoscomunistaslegaisouclandestinos”.“Todos
os números tinham ainda uma outra secção que era muito importante para os
militantes e que se chamava ‘Quantias recebidas dos Amigos do Partido’. Era uma
experiência gratificante, amostrar comoo Partido funcionava, enviar um contributo
extra com uma das senhas, género ‘Estrela da Manhã-25$00’, e no mês seguinte
encontraranossacontribuiçãoimpressaediscriminadanoAvante!.”28
Domingos Abrantes corrobora tal convicção e vai mais além na análise,
considerando que o Avante! não só era lido por uma comunidade de leitores que
extravasavaonúcleodemilitantes,comoerafinanciadotambémporelementosnão
comunistasquelutavamcontraaditadura. “Apublicaçãodaslistasdecontribuintes
eramuitoimportante.HaviaquempegassenoAvante!sóparaverareferênciaàsua
contribuição.Eessascontribuiçõesnãoerasódemilitantesdopartido.Nósfazíamos
recolhadefundosjuntodealgunsdemocratas,tentávamosfazerpassaramensageme
algunserambastantegenerososnasuacontribuição”.
Essa abertura a quem não era membro do partido é visível nos apelos à
contribuiçãomonetáriaparaopartidoeparaa Imprensaclandestina, carregadosde
umalinguagemsimbólicamobilizadoradavontadedepertenceraogrupo,noqualse
incluem não apenas os militantes, mas também os “simpatizantes” e “amigos” do
partido. Na edição da 1ªquinzena de Dezembro de 1942, um texto apela aos
simpatizantes e aos amigos, usando expressões distintas e convocando o frentismo
unitárioantifascista:
“Simpatizantes: Fazei um esforço e um sacrifício para ajudar o Partido
Comunista,únicopartidoanti-fascistaemPortugal,pioneirodomovimento
deUnidadeNacionalquehádederrubarofascismo.(..)AmigosdoPartido:
Pensem os amigos, que vivem desafogadamente, que podem ajudar a
resolver muitas das nossas dificuldades, desde que decidam fazer esse
sacrifício”.
28ZitaSeabra,FoiAssim(AletheiaEditores,2007),pp.23-24.
21
3.2Dedicaçãoexemplar
O“exemplo”,querecheiaoimagináriocomunista,estábempatentenoregisto
linguísticousadonasediçõesclandestinasdoAvante!tambémparaservircomoapelo
àcontribuiçãoparaasfinançasdopartido.Oseguintetexto,publicadona2ªquinzena
deMarço de 1943, com o título “DEDICAÇAO”, é ainda revelador também de uma
certamiscigenaçãodogénerosjornalísticoeficcionalmelodramático:
(...) Encontrando-se moribundo e sabendo que não se podia salvar, esse
amigo, manda chamar algumas horas antes de morrer, um camarada
nosso a quem entregou a quantia de 2$50 (porque de mais não podia
dispor),dizendo-lhequenãoqueriamorrersemseremqualquercoisaútil
ao partido. Eis uma atitude digna de um verdadeiro revolucionário, dum
trabalhador consciente que teve a anima-lo até àmorte a chamade um
idealeaconfiançaecarinhopelopartidodosexploradosedosoprimidos”.
Num tempo de racionamento de produtos alimentares, na lista de
contribuições recebidas, surge, na edição da 1ª quinzena de Julho de 1943, a
referênciaàrecepçãode“1litrodeazeite,1quilodeaçúcare1quilodetoucinho”.Na
ediçãoseguinte,comonº36,surgeumanota,incluídanalistadequantiasrecebidas,
que refere “várias encomendas que não especificamos por motivos conspirativos”.
Aliás,sãomotivosconspirativosaestaremnaorigemdaformaçãodemuitos“grupos
de amigos” que subscrevem contribuições para o partido.Num apelo publicado em
Setembrode1949éexplicado:
“Uma formadeauxiliaroPartidoé formargruposdeAmigosdoPartido.
Cada grupo deve comprometer-se a auxiliarmensalmente o Partido com
determinadaquantia”.
3.3Exemplarvendidoduasvezes
Mas porque a contribuições regulares não são suficientes são lançadas
periodicamentecampanhasderecolhaextraordináriadefundos.Naprimeiraquinzena
deNovembrode1943éanunciadoo lançamentoda“1ªsubscriçãoextraordináriade
22
50contos”comajustificaçãodeque“oPartidonecessitadecentenasdecontospara
realizarasgigantescastarefasqueselheapresentam”.
Estas sucessivas campanhas não são apenas dirigidas aosmilitantes, como é
escrito sem rodeios na edição da primeira quinzena de Outubro de 1961: “(...) o
Partido necessita do auxílio financeiro não só dos comunistas mas de todos os
democrataseanti-salazaristas”.
Seguir-se-ão numerosas subscrições extraordinárias que se prolongam por
váriosmesesesão lançadassobdiversospretextos,quevãodesdeosprejuízoscom
quedas de tipografias às mãos da polícia até à libertação de camaradas presos,
passandoatépelosdanoscausadospelaaçãodetraidores.Em1951,surgeumanova
campanha por “500 contos de subscrição extraordinária”, que é justificada com as
consequências de falhas graves do dever dos militantes em condições de
clandestinidade:
(...)”aignóbiltraiçãodeMárioMesquitaagravouasituaçãoconspirativae
financeira do Partido. A PIDE procura aproveitar-se desta traição para
atingir os quadros mais qualificados do Partido e particularmente o seu
ComitéCentral(...)Asituaçãoexigequecadamilitanteecadasimpatizante
tenhaumainiciativaparaacampanhade500contos(...)
Simultaneamente,decorriaaangariaçãodefundos“ParaalibertaçãodeÁlvaro
Cunhal”,queemSetembrode1951,comodavacontaoAvante!,somava42.900$00.
Quase uma década mais tarde, em 1960, seria lançada nova campanha, na edição
nº286, de Fevereiro, “da conquista da liberdade emhomenagemaos 10 camaradas
fugidos da prisão”, numa referência à fuga do forte de Peniche de Álvaro Cunhal e
maisnoveoutrospresos,a3deJaneirodesseano.
Estesdoisexemplosdefundamentosparaapelaraoreforçodascontribuições
revelam as duas faces da mesma moeda com que são tratados publicamente os
militantes,ostraidoreseosheróis,questãoasequevoltaráadiante.
A preocupação com o financiamento, tanto do partido como da Imprensa
clandestina,levouàutilizaçãodemeiosengenhososparaangariarmaisreceitascoma
vendadoAvante!,quenaépocatinhaumpreçodecapafixadoem1$00.EmJulhode
23
1953, na habitual rubrica/apelo “O Avante! não deve ser destruído”, é explicado o
processoquedeveserutilizadopelosleitoresdojornal:
“Umavezlidoeestudadodeveserpassadoaumtrabalhadorhonesto,de
formadirectaouindirecta.Sefordeformadirecta,apesardejápagopelo
primeiroleitor,deveserpedidodenovooseupagamento.Odinheiroassim
arranjadodeveserenviadoparaserpublicadonumarubricade‘Amigosdo
Avante!’(...)AvozdoPartidodevechegaratodoolado(...)”.
Nova campanha extraordinária de angariação de fundos surge no início de
1958,destavezoobjectivoéjáfixadoem1000contos,mas,emSetembro,oAvante!
admitiaquea“subscriçãoteveumarealizaçãomuitoreduzida”, razãopelaqualteria
que prosseguir. Neste período, no final dos anos 50, os apelos à contribuição
monetáriaparaopartidoéintensa,comoAvante!apublicarapelossucessivos,apar
dadivulgação,emseparatas,daslistasdetodasascontribuições:“AjudandooPartido,
ajudaisaconstruirofuturoluminosodaPátria”.
Jáem1963,emplenanovacampanhapelaangariaçãodemilcontos,osapelos
àparticipaçãopassaramaterumtomimperativocomafrase:“Campanhados1000
contos,umatarefaacumprir”.
As campanhas foram intensificadas no final da década de 60, com apelos
diretos a umamaior iniciativa dosmilitantes, comoé expresso em Janeiro de 1968,
comadiretiva: ”Reforcemosa iniciativadosmilitantes” enaedição seguinte, ao ser
publicada uma nota da comissão executiva do PCP que “exorta os militantes a
desenvolveroseuespíritodeiniciativa”paraarecolhadefundos.
A venda da Imprensa clandestina era uma das fontes de receita do partido,
mas, como refere João Madeira29, “Na estrutura das receitas do PCP, a venda da
imprensaconstituíaumcapítulocomumpesoquantitativorelativamentesecundário,
emborarevestidodedimensãosimbólicaimportante,poisapenasumapequenaparte
dos exemplares distribuídos era efectivamente paga. Em 1956, por exemplo, apenas
teria sido paga 39%da imprensa distribuída”. Decorre deste facto o lançamento de
29Madeira,pp.705-707.
24
campanhassucessivasderecolhasdefundos,comoreforçaoautor:“Éjuntodasorlas
desimpatizanteseamigos,emreceitasextraordináriasprovenientesdelegadosoude
donativos,comodasmúltiplas iniciativastomadasnabasedopartidoqueradicavao
essencialdasreceitas,fontesaquesepoderiarecorrer,mesmoemsituaçõesdemaior
dificuldade orgânica. No período entre 1949 e 1965, o PCP recorreu ainda, por três
vezes,acampanhascentraisderecolhadefundos.”
Jánofinaldosanos60eprincípiodadécadaseguinte,opartidofoiobrigadoa
reconfigurar-senumquadrodecisõesinternas,emparticularaquefoiprotagonizada
por FranciscoMartins Rodrigues como reflexo do cisma sino-soviético, a afinar uma
estratégiaemrelaçãoàguerracolonial,ouacontrolarosdanosdeumacontestação
social e estudantil ao regime, cuja organização lhe escapou. Alémdisso, neste novo
quadro, as ações armadas não estavam excluídas e a A.R.A (Acção Revolucionária
Armada)foiconstituída,embora“autónomadopontodevistaorgânicoetantoquanto
possível estanque da organização do partido, para evitar que as prisões neste
atingissemaquela”30.Eparanovosdesafios,maismeiosfinanceiroseramnecessários
paramanteroleadaamáquinaclandestina.Maisumavez,esempre,oAvante!abria
as suas páginas a apelos a novas subscrições demilitantes e simpatizantes. Logona
ediçãodeOutubro/Novembrode1968lê-se:
(...)”para poder realizar as grandes tarefas politicas, orgânicas e de
propagandaeagitaçãoquelhe incumbem,oPartidoprecisadeaumentar
assuasreceitasdemaneirasubstancialeregular”.
Dois anos mais tarde, em Dezembro de 1970, é lançada uma campanha de
fundosparao50ºaniversáriodopartidoeemAgostodoanoseguinteopretextopara
novacampanhaéacelebraçãodos40anosdoAvante!
4.Leitor/correspondente
4.1”Manda-nosnoticias”
30RaimundoNarciso,A.R.A.AcçãoRevolucionáriaArmada-aHistóriaSecretaDoBraçoArmadoDoPCP
(DomQuixote,2000)p.19.
25
A ligação direta entre leitor/jornal, que corresponde a anti-fascista-
militante/partido, expressa-se também em apelos recorrentes à participação dos
leitores no conteúdodoAvante!. Ainda antes de ter sido criada, no anode 1954, a
“Tribuna do Leitor”, já se publicavam textos como o que vimos na 2ª quinzena de
Junhode1942,intitulado“Leitor!colaboranoAvante!”:
“Manda-nos notícias da situação dos trabalhadores, de casos de
exploração e violência fascistas, de manejos quinta-colunistas, de
exportações para o Eixo.Manda-nos notícias de todos os casos de lutas
popularesqueconheças,demovimentosreivindicativoseprogressistas”.
AoanunciaraTribunadoLeitor,emJunhode1954,explicava:
(...)“paraseligarcadavezmaisaopovo,oAvante!precisadacolaboração
dosseus leitores.OAvante!éum jornaldetodososportugueseseaeles
estáabertaestasecção”.
A Tribuna do Leitor torna-se regular, surgindo com ela mais sinais do
alargamento do espectro de leitores. Os casos, genericamente de denúncia demás
condições de trabalho ou de perseguição policial, são subscritos por “umoperário”,
“umestudante”, “umaoperária”, “umprofessor”, “umalentejano”, “um ferroviário”,
“uma mãe”, revelando diferentes condições e origens sociais por parte de quem
colaboracomojornaleaquemsedirigeamensagem.
4.2”EsteAvante!éprecioso”
AexaltaçãodaimportânciadoAvante!comoumelementocentraldaaçãodo
PCPestápatenteaolongodetodaavidaclandestinadojornaledopartido.Comose
realçana1ªquinzenadeAgostode1942,noqualseassinalaosegundoaniversárioda
publicaçãoregulardojornal.
(...)”Se outra prova não houvesse da vitalidade do Partido após a sua
reorganização, a publicação regular do Avante! durante dois anos, dos
quais doze meses quinzenal, o seu papel orientador e guia de massas,
bastavaparaprová-lo.(...)OAvante!éoúnicoórgãolivredaImprensade
Portugal.Éoúnicojornal ilegaldonossopaís(...)OAvante!éconhecidoe
26
amadopelasmassas trabalhadorasepelopovoemgeral, porqueeleéo
seuguia,porqueeleéasuaprópriavoz.(...)
Numregistoquevoltaaresvalarparaaliteratura,aediçãonº121,deAgostode
1948,quandoseassinalamosseteanosdepublicaçãocontínuadoAvante!,oexemplo
voltaaserusadoparaexaltaroórgãocentraldopartido,notextointitulado,“QUEM
VIVEESENTECONSEGUE”:
“Umcasaldevelhinhos.Ele,com80anos,vêmal.Acompanheira,com70
anos, copia à mão o Avante! Para o companheiro poder ler. Mas como
tambémjánãovêmuitobem,pedeaumcamaradaquelheexpliquecertas
passagensdosartigos,paraelapoderfazeracópia.Semcomentários.”
Senas páginas do jornal a exaltaçãoda importância doAvante! é frequente,
sobdiversas formas,na literaturaesteve tambémpresente,nomeadamentenaobra
de Soeiro Pereira Gomes, como ilustra a passagem conto “Refúgio Perdido”31de
Novembrode1948)dedicado“AocamaradaJoão(pseudónimodeDiasLourenço)que
inspirouesteconto”:“Jáosuor lheescorriapelasfaces;ossapatosapertavam-lheos
pés,comotenazes;eumadoragudafixara-se-lhenosquadris:mascerravaosdentes,
numadeterminaçãodetodooseuser.‘Nãolargareiamala!Hei-deentregarosjornais
queoscompanheirosmeconfiaram!’”(...)“Aconchegouaopescoçoagoladocasaco;a
malaserviu-lhedetravesseiro. ‘Ora,que lhe importavaafome?Entregariaos jornais
na hora do recurso; levava ao fim a sua tarefa. E um dia...uma certamanhã de sol
radioso...sim,desol...Ah!”
Além de correspondente e colaborador, o leitor do Avante! tem também a
responsabilidade de divulgar, não apenas o objecto jornal, mas o seu conteúdo, a
mensagemcomunista.NasegundaquinzenadeJaneirode1944,estábemexplicitaa
intençãodoAvante!depromoveraagitaçãodemassas:
“Camarada: Este Avante! que te foi parar àsmãos é precioso. Não o
destruas. Fá-lo chegar pelo processomelhor a outro trabalhador honesto ou
manda-lhepelocorreio.Oteudeveréfazerestudoparaajudaresamissãodo
31SoeiroPereiraGomes,ContosVermelhosEOutrosEscritos(EdiçõesAvante!,1979).
27
nossoAvante!queéoúnicojornallivreeoguiadopovoportuguêsnasualuta
pelo Pão, pela Liberdade e pela Independência. Camarada: O Avante! não é
para lerumasóvez.Procura fixarosseusensinamentose faladelesaos teus
amigos e conhecidos, embora sem dizer onde os foste encontrar. Procura,
assim,tornar-teumintermediárioactivoentreoAvante!easmassas,entreo
Avante!EoPovo.Nãopoderás tu,no teusectordo trabalhoounatuaterra,
levarasmassasamovimentosdereivindicação?”
5.Críticasecorreções
5.1”Desleixo”
Ao falardiretamentecomos leitores,oAvante! torna-se tambémumveículo
deadvertênciaedecríticaaosmilitantes.Apardeumacampanhaparaaperiocidade
dapublicaçãopassar demensal paraquinzenal, a que correspondeumaumentodo
preçodecapa,bemcomoalteraçõesgráficasnosentidodareduçãodocabeçalho,o
que permite uma valorização do espaço útil no corpo do jornal para notícias, é
publicada,naediçãodeAbrilde1942,umaresoluçãodadireçãodopartidocriticando
“odesleixodosencarregadosdadifusão”doAvante!.
Posteriormente, as críticas passaram a ser mais políticas e integraram-se na
reorientaçãodo rumodopartido. Falamosdo iniciodos anos60, quandoCunhal, já
depois da fuga do forte de Peniche, se torna formalmente secretário-geral e
empreendealutacontra“odesviodedireita”,afastandoosdirigentese“corrigindo”a
linhapolíticaprotagonizadaporJúlioFogaça,baseadanateoriada“transiçãopacífica”.
Logono inícioda investidadeCunhal,oAvante!foiprotagonista,aotersidoalvode
ataque por não ter noticiado com o devido destaque a aparatosa fuga de Peniche.
ComorelataJoséPachecoPereira,aediçãodatadadeDezembro1959noticiavaafuga
de3deJaneironaprimeirapáginacomotítulo“Trezepresospolíticosreconquistama
liberdade”,semdestacaraimportânciadessespresosnoaparelhodopartido.Aedição
foi suspensa e acabaria por sair uma outra já datada de janeiro de 1960, na qual,
citandoumcomunicadodoSecretariadodeComitéCentral,seindividualiza,emtítulo,
28
o nome de cada um dos treze fugitivos32. Esse número, do Avante!, datado de
dezembro de 1959, não existe digitalizado na página electrónica do PCP, onde está
disponívelacoleçãocompletadoAvante!clandestino.
5.2Autocrítica
AcorreçãodalinhaeditorialdoAvante!acompanhouocaminhopercorridona
orientaçãodopartido.Masnotava-sealgumaresistênciaaosnovostempos.Sinaldisso
estánaediçãodeJulhode1961,comapublicaçãonaprimeirapáginadeumanotada
ComissãoPolíticasobreasopçõeseditoraisexpressasno jornal:“AComissãoPolítica
do Comité Central Verifica que o Avante! não tem traduzido com suficiente rigor as
decisõesdosórgãoscentraisdoPartido(...)”.
A crítica incidia sobre a forma como haviam sido noticiadas as duas últimas
reuniõesdoCC,deDezembrode1960eMarçode1961,nasquaisforacontestadaa
tendência interna reputada de “anarco-liberal” e lançada a estratégia do
“levantamentonacional”comvistaaoderrubedofascismo.Anotaconclui:
“Estas e outras deficiências do Avante! resultam em certa medida da
desatenção de camaradas do corpo redactorial pelas directrizes e
recomendações do próprio Comité Central, da Comissão Política e do
Secretariado.ParaqueoAvante!possacumprirasuamissãoénecessário
que seja assegurada a direcção política do Avante! de forma a que
corresponde às directrizes do CC, da sua Comissão Política e do seu
Secretariado.Oestímuloaumamaior iniciativadocorporedactorialdeve
ser acompanhado de umamaior centralização da direcção política. Para
assegurar que isso seja feito, a Comissão Política e o Secretariado do CC
tomaráasnecessáriasmedidaspraticasdeorganizaçãoedequadros”.
Jáem1964,oAvante!voltaapublicarcríticasaosseustextos.Sobotítulo“Um
errodeorientação”,épublicadonaediçãoespecial sobreo1ºdeMaio,umtextono
32JoséPachecoPereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica,OSecretário-Geral(1960-1968)(Temase
Debates/CirculodeLeitores,2015)pp30-33.
29
qualseassumeteremsidocometidos“algunserrosdeorientaçãoesquerdistas”,que
tiveram “expressão mais saliente nalguns documentos publicados, manifestos e
tarjetas”.O texto, que se reporta ao uso de explosivos nasmanifestações do 1º de
Maio,terminacomaauto-críticadojornal:”Estedesvioapareceumesmoreflectidono
Avante!,noartigodeMarçosobreo1ºdeMaio”.
Oepisódiorevelaaexistênciadadiscussãointernasobreaopçãodaviolência
como auto-defesa perante as cargas policiais. Citando o nº127 da III série d’ O
Militante,noqualseescreveque,“nafaseactualdaRevolução,asmanifestaçõesde
massas continuarão a caracterizar-se como manifestações essencialmente pacíficas,
tirando daí toda sua força face ao regime salazarista”, João Madeira interpreta a
autocrítica incluída nas páginas do Avante! como uma tentativa dos dirigentes do
partidode“reporaquestãodaviolêncianoseudevidolugar”.
Mas,emMaiode1965,ojornalvoltaaserobrigadoapublicarumtexto,desta
vezmuitocríticoaoseuprópriotrabalho:
“O Avante desde há muito não corresponde à responsabilidade do seu
papel. O Avante não traduz com correcção a linha política e táctica do
Partido, acusa frequentes vacilações políticas e desvios dessa linha, não
abordamuitosdosmais importantesproblemaspolíticosnacionais, falta-
lhecontinuidadedumpensamentopolítico,deixaescaparounãodestaca
muitosacontecimentosdamaiorimportância,nãovalorizadevidamenteas
lutasdemassas,nãoas integranaperspectivarevolucionárianemtiraas
suas experiências fundamentais. Esta constatação feita em Janeiro de
1965, na reunião do Comité Central, no seguimento de outras feitas nas
anteriores reuniõesdoCC, levamoComitéCentraladeclarar serurgente
fazerumarectificaçãoque,apesarealgunspassossignificativosjádados,
estálongedeseralcançada.(...)”.
AcríticasurgenasequênciadapreparaçãodoVICongresso,quese realizaria
emSetembronaUniãoSoviética,queaprovao“RumoàVitória”,orelatóriodeÁlvaro
Cunhal, no qual se aprofunda e consolida a estratégia de combate ao “desvio de
direita”.
30
Com os exemplos acima citados, fica claro que o órgão oficial do PCP está
obrigado à sua autocrítica, à semelhança do que é exigido aos militantes. Afinal, o
Avante!vê-seasiprópriocomomembrodeumcolectivo,queédopartido.
Da análise da forma como olha para a sua função no quadro da militância
antifascista e como fala de si próprio e das condições em que é produzido, pode
sintetizar-se, como já foi referido anteriormente, que o Avante! se identifica e se
assumecomoumcorpovivo,quasehumanizado, fazendoparte integrantedessa tal
comunidade imaginada e sendo, simultaneamente, o elemento aglutinador que
transmiteaideiadepertençaaogrupoetornapossívelaprópriacomunidade.
31
PARTEII—Ajustesdecontas
1.AreorganizaçãoeosdoisAvante!
1.1Críticaaos“confucionistas”
OAvante!estánocernedagrandemudançaorganizativadaestruturadoPCP,
comachamadareorganizaçãode1941,queseriaabasedopartidoqueviriaatornar-
sehegemóniconoconjuntodosmovimentosderesistênciaedeoposiçãoàditadura.
O órgão oficial do partido passa a ter publicação regular e é, como veremos neste
capítulo,simultaneamente,uminstrumentoestratégicodeconsolidaçãodanovafase
da vidadopartidoeumapeçaessencial nasdepurações ideológicasque irão sendo
executadasatéaofinaldaditadura,em1974.Aolongodesses33anos,sãováriose
diversamentedirecionadososajustesdecontas,internoseexternos,identificadosnos
textosanalisados.
Comareorganização,comoDawnLindaRabyacentua,amudançanopartidoé
profundaeevidenciaapreocupaçãoemcriarumaverdadeiraredeclandestina:“Nos
anos30ascélulasdoPartidoeramfrequentementeorganizadasporruasoubairrose
as reuniões realizavam-se igualmente em ruas ou praças; a partir de 1941
constituíram-se células de fábrica ou de empresa as reuniões eram limitadas ao
mínimo, preferindo-se os contactos individuais, que despertavam menos suspeitas.
Generalizou-seousodepseudónimoseosmembrosdascélulasnãopodiamsabero
verdadeiros nome, profissão ou morada do seu 'controleiro'. Os novos contactos
faziam-sesempreatravésdesanto-e-senhaeafaltadequalquercontactoprevistoera
imediatamente comunicada às hierarquias partidárias. A maioria dos documentos
eramemcódigoeosficheiros,comexcepçãodoComitéCentral,reduzidosomínimo;
aos funcionários era expressamente proibido frequentar cinemas, restaurante ou
outros locaisdediversão emuitasvezesviviamemcondiçõesdegrande isolamento,
exceptonosmomentosemqueseencontravamenvolvidosemaçõesdemassas”.33
33Dawn Linda Raby,A Resistência Antifascista Em Portugal: Comunistas, Democratas EMilitares EmOposiçãoaSalazar,1941-1974(Salamandra,1990),p.60.
32
Anovaestruturaviriaadarfrutosrapidamenteequatroanosdepoisopartido
era já uma força incontornável naOposição. “Por volta de1945, o PCP surgia como
uma autêntica alternativa revolucionária, dominando o movimento de massas e
constituindoumasériaameaçaàsobrevivênciadofascismo:gozavaderespeitoentre
largoscírculos intelectuaisedasclassesmédias, sendoaomesmotempoclaramente
dominante nomovimento operário. Conservou a sua hegemonia até à revolução de
Abrilde1974,muitoemborativessepassadoporváriascrisesorgânicasem1949-51,
1958-60e1962-65,easuaposiçãocomolíderdoprocessorevolucionáriotivessesido
postaemcausasobretudoapartirde1958.”34
Houve, no entanto, resistência à mudança e a consequente luta pela
hegemoniaporpartedosnovosdirigentes.Nosprimeirosanosdapublicaçãoregular
doAvante!,osefeitosdareorganizaçãoestãobempatentesnaspáginasdojornal,com
ogrupovitoriosoacriticaro“grupelho”emviasdeservencido.
É,assim,numclimadeajustedecontasqueélançadaaVIsériedoAvante!,em
Agostode1941.Logonoprimeironúmero,épublicadoumcomunicadodoComité
Centralapôrospontosnosiis:
“Prevenção.AoteremconhecimentosdasaídadoAvante!,umgrupelhode
intelectuais corrompidos que foram escorraçados da direcção do P. por
seremosprincipaisresponsáveisdodescalabroaquetinhachegadoantes
da sua reorganização, resolveram enveredar pela provocação aberta e
clara fazendo sair alguns dias antes do órgão central do nosso Partido,
umasfolhascopiografadasaquederamotítulode‘Avante!’Quantomais
nãofosse,bastavaestaatitudeparaosdenunciarperanteostrabalhadores
portugueses como elementos confucionistas e saboteadores do trabalho
partidário. Por saberem que ‘Em Frente’ já nãomerecia a confiança dos
trabalhadores, e que o Avante! era ansiosamente esperado por todos os
anti-fascistas, este grupelho de provocadores resolveu estabelecer a
confusão nomeio revolucionário para assimmais facilmente ‘pescar nas
águas turvas’. (...) Aindanãonos chegouàsmãos esse falsoAvantemas
34Raby,p.51.
33
consta-nos que nele se fazem afirmações destituídas de todo e qualquer
fundamento.Porexemplo:diz-sequeosactuaisdirigentesdoPartidonão
foramaceitespelopseudopartidodos provocadores. ÉABSOLUTAMENTE
FALSO!OS ACTUAIS DIRIGENTES E REORGANIZADORES DO P. NUNCA
QUISERAMNADACOMESSESELEMENTOS!SÓLHEFIZERAMSABERQUEOS
CONSIDERAVAM AFASTADOS DO P. E QUE OS TORNAVAM
INDIVIDULAMENTE RESPONSÁVEIS POR TODA E QUALQUER ACTIVIDADE
PROVOCATÓRIA DENTRO DO PARTIDO. Tiveram a ousadia de invocar o
nomededoisdosmaisprestigiososelementosdoPartido,BentoGonçalves
eJosédeSousa,paraseinculcaremcomomerecedoresdaconfiançadestes
elementos, que, estando presos, não podem publicamente denuncia-los
como provocadores e marcar-lhes o correctivo merecido. No próximo
número do Avante! desmascararemos mais detalhadamente a acção
provocatóriadesteselementoseas suas ligações comagentesao serviço
dapolícia.Poragoraqueremossomentepreveniraclasseoperáriaetodos
os revolucionários conscientes , contra os manejos confucionistas deste
grupelho, e dos perigos que poderão trazer para a liberdade dos que o
seguirem.”
Éreconhecidocomoessencialparaaafirmaçãodosreorganizadoresdopartido
aseparaçãodaságuasparalimitarosdanosnamilitânciacomunistadosdoisAvante!.
Comoselênonº2,deSetembrode1941:
“Do confuncionismo à provocação clara. (...)Um grupelho de pseudo-
intelectuaisescorraçadosdaorganização,pretendefazer-sepassarpeloP.
e publica umas folhas copiografadas a que deu o título do nosso órgão
central”.
ComoenquadraohistoriadorJoãoMadeira,“entre1941e1945,aexistênciade
doisPartidosComunistasemPortugal,fazcomqueumdeles,oqueserepresentavaa
continuidadeorganizativa,masqueviriaaserdesignadode“grupelhoprovocatório”
pelo grupo dos reorganizadores, editasse duas novas séries com um total de 20
34
números.”35
É ainda Madeira quem cita António Dias Lourenço, para contar que “os
reorganizadores sabiam que os do velho partido ‘tinham escondido a aparelhagem
técnica numa casa e o partido organizou o assalto a essa casa e levou-se a
aparelhagem toda. Levou-se os tipos e os prelos, num táxi do Pires Jorge’. O que
permitiria assegurar a partir de Agosto de 1941 a publicação de uma VI série do
Avante!”36.
TambémohistoriadorJoséPachecoPereirasublinhaautilizaçãodotítulocomo
armadeambososladosdacontendainternanopartido,aolembrarque“aretomada
dapublicaçãopelaDirecçãodoAvante!emAgostode1941 formalizouadivisão.Os
‘reorganizadores’ tinham usado a questão do jornal do partido como instrumentos
paraisolar(Vascode)Carvalho,associando-ocomoEmFrente!.OAvante!,duramente
atingidopelasquedasdastipografiasde1938-39,nãosepublicavajáhámaisdeum
ano,eoseusubstitutoEmFrente!nuncaseimplantounoimagináriocomunista,pelo
carácter precário da sua redacção e periocidade irregular. Os ‘reorganizadores’
tomavamoabandonodotítuloAvante!comoumsintomademissionáriodaDirecção.
(...)ADirecção, conscientedequeo jornal era fontede controvérsia e sabendopelo
anúnciodoMilitantequeos ‘reorganizadores’ sepreparavampara editar oAvante!,
resolveantecipar-seepublicardenovoumjornalcomessetítulo.Assim,em1941,são
publicadosdoisAvante!distintoseumórgãoteóricodos‘reorganizadores’comonome
de Militante. A decisão de publicar ou republicar o Avante! não teve outro motivo
próximo que não fosse o combate pela legitimidade partidária. Não havia
inclusivamente,porpartedaDirecçãoumadecisãodeterminaroemFrente!edofazer
substituirpeloAvante!”.
Entre as críticas ao abandono do título Avante!, houve um assunto nunca
abordadonanovasérie,quefoiocomprometimentodeÁlvaroCunhalnolançamento
do“EmFrente”.OtemaétratadopeloshistoriadoresFernandoRosas,JoãoMadeira
e JoséPachecoPereira, ao salientaremaadesão tardiadeCunhalà linhavencedora
35JoãoManuelMartinsMadeira.,p.664.36Madeira,p.665.
35
que,naprática, iria liderar.Rosassustentaque“Cunhalé inicialmentemarginalizado
nesteprocesso(atépelas ligaçõesquetiveraàdirecçãosobataque)eéchamadoao
Secretariado do PCP em 1942, altura em que Fogaça volta a ser preso e é preciso
encontraraalguémcomarcaboiçointelectualeteóricoparaosubstituirnastarefasde
direcção ideológica que desempenhava”. Essa chegada extemporânea não invalida,
comoacentuaRosas,queCunhalsetorne“rapidamenteoindiscutíveldirigentefáctico
doPCP”37.
Numa primeira fase, como refereMadeira, Cunhal, ao aderir só em 1941 ao
“novopartido”, terágerado“algumadesconfiançaemrelaçãoasi,dapartedosque
saíamdasprisões,poisCunhalpertenceraaumdosúltimossecretariadosdopartidoe
foraumdosmentoreseprincipaisredactoresdoEmFrente!.”38
JáPachecoPereiraaprofundaaligaçãodeCunhalàdireçãodoantigopartidoe
aonovojornaleescreverqueumadasprimeirasdecisõesdoSecretariadodoPCP”foi
asubstituiçãoprovisóriadoAvante!porumnovojornal,oEmFrente!.Foiemgrande
parte por iniciativa de sugestão de Álvaro Cunhal que este foi fundado. Cunhal
entendiaque,nãohavendocondiçõesparamontarumatipografia‘digna’paratiraro
Avante!, o órgãodopartidodeveria ter outronome.Havia, aliás, umprecedenteno
ano anterior, quando as dificuldades de fazer sair o Avante! levaram à edição do
NotíciasVermelhas.”39
EstacitaçãodePachecoPereirarevela,nãosóoenvolvimentodeCunhalna
publicaçãoquesubstituiuoAvante!,mas,acimadetudo,aconsciênciadodirigenteda
importânciadotítulo,quedeveriamanter-sesemamáculadasdivisõesinternasedas
fragilidadesorganizativaspelasquaisopartidopassava.Maisdoqueumórgãocentral
dopartido,oAvante!carregaumacargasimbólica,queviriaareforçar-seaolongode
todooperíododaclandestinidade.
Com a consolidação da linha da reorganização é reforçada a consciência da
37JoséNeves(coord.),ÁlvaroCunhal-Política,HistóriaEEstética(TintadaChina),p.45.38JoãoManuelMartinsMadeira,p.89.39JoséPachecoPereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica,«Daniel»,OJovemRevolucionário(1913-1941)(CírculodosLeitores,1999),p.435.
36
necessidade de manter forte o órgão central do partido. Consequentemente, nas
investidas da ditadura contra o PCP, a importância doAvante! é reconhecida pelas
políciasaopontodetersidocriadoumjornaldestinadoacombate-lo.Umareferência
a esse periódico é feita por José Pacheco Pereira: “O Contra-Avante (1942) é uma
publicaçãodestinadaacontrariaracrescente influênciadoPCPedoAvante!através
deumsimulacrodeum jornalemtudosemelhanteaooriginal clandestino.Nosseus
primeirosnúmerosoaspectoeraaindadistinto,peloquenãosepodefalardeumfalso
Avante!, comoacontececomosexemplaresposterioresaonúmero3 (ou incluindoo
número 3, que não possuo na colecção). Os números 4 e 5 podem por isso ser
considerados falsosAvante!,comooutrosnúmerosquevieramaserpublicadosmais
tardeoupelaPIDEoupelaLegiãoPortuguesa.OcabeçalhodoContra-Avanteéuma
imitação do usado pelo Avante! da “reorganização” e é distinto do usado pelo
chamado“grupelho”que,namesmaaltura,reivindicavaalegitimidadededirecçãodo
PCP.O facto da cópia ser feita do cabeçalho da “reorganização” pode revelar o seu
maiorimpactonosmeiosoperários.Ojornaleraassinadoinicialmentepor“umgrupo
de operários” e mais tarde apresentava-se como “Órgão Central do Operariado
NacionalistaPortuguês”.Emborasedesconheçaquemoproduziu,épossívelqueasua
origemestejanaLegiãoPortuguesa.Nãoconheçonúmerosposterioresa1942.”40
1.2“Irradiação”dos“provocadores”
Logoem1941,surgemnotíciasdasexpulsões,designadaspor“irradiações”,um
termo cujo significado (irradiar=difundir) está nos antípodas de ser um sinónimodo
atodeexpulsar.Maisapropriadoseriaousodosubstantivo“erradicações”,masoerro
persistee,tantonoAvante!comonojornalOMilitante41,sãopublicadostextosque,
tendo“irradiações”notítulo,remetemparaasexpulsões.
Énonº3,deOutubrode1941queoAvante!nomeiaosmilitantesafastados
por“actividadedesagregadoraeprovocatória”:
“Irradiações. O Partido publica as irradiações dos seguintes indivíduos:
VascodeCarvalho(engenheirosauxiliar)sancionadoem1939porfaltade
40InEPHEMERA(BibliotecaearquivodeJoséPachecoPereira),10deJunhode2009.41OMilitante,nº11,sérieIII,consultadoemwww.pcp.pt/o-militante-clandestino.
37
actividades revolucionárias; irradiado por actividade desagregadora e
provocatória. Cansado Gonçalves (eis estudante universitário sancionado
como desagregador em 1953; afastado e 1939 (?)por gastos indevidos e
faltadeconfiança:irradiadoporactividadedesagregadoraeprovocatória.
Sacavém (empregadobancário) irradiadoporactividadedesagregadorae
provocatória. Carlos (?) Portugal (arsenalista) afastado desde 1935;
irradiado por actividade desagregadora e provocatória. Fernando Correia
(engenheiroauxiliar) sancionadopelo seumaucomportamentonapolícia
em 1937; irradiado por actividade desagregadora e provocatória.
Prevenimos que alguns outros indivíduos que foram irradiados ou
afastadosdoP.emépocasdiversas,seencontrammaisoumenosligadosà
actividade destes indivíduos, cuja identidade em tempo oportuno
tornaremospública.”42
ComosublinhaJoãoMadeira,osmilitantesexpulsossão“nemmaisnemmenos
do que a direcção do velho partido”43, excluindo obviamente Álvaro Cunhal, cuja
participação num dos últimos secretariados anteriores à reorganização nunca é
mencionada.
Apurga, que se vai prolongarno tempo, criadimensões consideráveis e tem
amplaexpressãopública,comosepodelernonº5deDezembrode1941,sobotítulo
“AvisoImportante”:
“(...)Todo o camarada que depois de esclarecido sobre a verdadeira
situação do Partido continue a manter relações com esses indivíduos e
difundaofalsoAvante,fazconscientementeumatrabalhodesagregadore
provocatório e será considerado como tal. Comunicamos que se juntou
recentemente a este grupo o médico Vitor Hugo Velez Grilo que foi
irradiadodoPartidoem1935peloS.C.,comotrotskistaedesagregadore
que se pretende agora apresentar junto dos operários do Barreiro, como
reorganizador do P.(do seu partido) para assim dar largas à sua
42Ospontosdeinterrogaçãosãoparteintegrantedotextoimpresso.43JoãoManuelMartinsMadeira,p.90.
38
incomensurávelvaidadeeespíritodechicana.(...)Porisso,todoocamarada
deveestaremguardacontraaacçãodessesmiseráveisdesmascarando-os
publicamenteondeactuem”.
Na mesma edição há ainda um outro pequeno, intitulado “À Organização”
reveladordoambientedesuspeita,boatoseperseguiçãoquesevivenopartido,com
estruturasaindanão“reorganizadas”.
“Tendo sido levantada, infundadamente, por um camarada do Local do
PortoasuspeitasobreoB.doD.,quantoàsuaactuação,temosainformar
que estes camaradas merecem a nossa íntima confiança e todos os
assuntosdaRegiãodevemsertratadoscomeles.”
OstextospublicadosnoAvante!,aousaremtermosidentificadoresconcretos,
revelam uma orientação política que visa apontar pessoalmente cada um dos
membroscomprometidoscomalinhaderrotada.Essanotadefulanizaçãodasnotícias
nãosurgeapenasnestafasedepurga.ElaéumaconstanteemtodaVIsérieanalisada
neste trabalho e é através dela que são denegridos os atos dos “provocadores” e
“traidores”eexaltadasasaçõesheroicaseexemplaresdos“filhosdopovo”.
1.3Contra“ogrupelhoprovocatório”
Ao longodo segundo semestrede 1942, tempodeuma intensa atividadeda
polícia política contra o PCP, é alimentada uma campanha, simultaneamente, de
defesadaorganizaçãoclandestinaedeataqueinternoaosvencidosdareorganização.
Na2ªquinzenadeSetembro,épublicadooseguinte“Avisoatodaaorganização”:
“Depois de uma inacção dalgunsmesses, chegou ao nosso conhecimento
queogrupoprovocatóriorecruscedeuasuaactividadenesteúltimosdias,
pois têm andado a abordar alguns elementos, seus antigos conhecidos,
para fazer parte da reorganização do ‘seu partido’.(...)O recrudescimento
dogrupelhoprovocatórioé,pois,umanovatentativaparaatingiroPartido
nos seus quadros. Para isso ele está mobilizando todos os elementos
corruptosquepassarampeloPartidoouquegravitaramàsuavoltaeque
lhepodemforneceralgunselementosparaasuaacção.Contraestanova
39
investidadapolíciaatravésdogrupoprovocatório,deveestaremguarda
todooPartido,eparaimpõe-seasseguintesmedidas:
1º-Todaaacçãodoselementosprovocadoresedaspessoasligadasaeles
deveserimediatamentecomunicadaaosorganismoscentraisdoPartido.
2º - Nenhum elemento deve discutir fora da organização a que pertence
assuntosqueserelacionemcomavidadoPartido;todoaquelequeofizer
deveserimediatamenteirradiadodassuasfileiras;
3º - Todo o elemento que viva na legalidade e de que os elementos do
grupo provocatório tenham conhecimento da sua actividade, deve ser
afastadodessaactividade;
4º - A todos os elementos honestos nós devemos fazer chegar ao seu
conhecimento (tomandoasprecauçõesnecessárias)oqueaqui relatamos
paraseuinteiroesclarecimento,poiselespodem,devidoásuaignorância,
prestarserviçoaogrupo;
5º-Todooelementoquenãocumpraestasdisposiçõesdeveserafastado
doPartido.
Com uma vigilância e uma disciplina bolcheviques, nós conseguiremos
limparasfileirasdoPartido,detodososelementosvacilantesecorruptos,
couraçando-ocontraasnovasinvestidasdapolícia”.
Arelaçãodiretaentreaatividadedo“grupelho”eavagadeprisõesqueocorre
nesses meses é enfatizada bastas vezes pelos “reorganizadores” nas páginas do
Avante!.Naediçãodatadada2ªquinzenadeOutubro,pode ler-sena3ªpágina,um
textocomotítulo“Novaofensivapolicial”:
“A política lançou uma nova e violenta ofensiva contra o Partido,
procurando atingi-lo nos seus quadros militantes. O que tornou possível
estaofensiva?Quemdeuaconheceràpolíciaosnomesdalgunsmilitantes
doPartido?Essa foiuma tarefaque coubeaogrupelhodeprovocadores.
Emtodaapartefalavamnosnomesdoscamaradasdesimpatizantesque
eles julgavamestaremactividade.Ogrupelhofoiparaapolíciaumfonte
de informação acerca de camaradas do Partido. Dos camaradas agora
40
presos,algunsforamperseguidospelapolíciaemresultadodasdenuncias
dogrupelho.
As prisões a que se refere o texto são as de Júlio Fogaça, Pires Jorge, Pedro
SoareseDalilaFonseca.
Jána2ªquinzenadeNovembro,édenunciadacomtodasasletrasaligação
àpolíciadeumdoselementosdo“grupelho”:
“SabinodaSilvaéumdoselementosactivosdodesintegradogrupelhode
provocadores (...) é um dos que mais intensamente espalha as calúnias
lançadas pelo grupelho contra o Partido e contra os camaradas do
Partido.(...)segundo informaçãoeboafonte,Sabino,em1932e1933,na
qualidadedepolíciaauxiliarnoRiodeJaneiro,fezpartedaBrigadaAuxiliar
da4ªDelegaciaderepressãoaocomunismo”.
Nocontextoda consolidaçãoda reorganização,na2ªquinzenadeNovembro
de 1943, o Avante! dá relevo aos trabalhos do III Congresso do PCP, o I ilegal e o
primeirodepoisdareorganização,quedecorreunessemês,noMontedoEstorileno
qual Álvaro Cunhal apresentou um informe, proclamando a vitória dos
reorganizadoressobreogrupelho.Nessaedição,podeler-seumrelatodaintervenção
do“camaradaDuarte”:
“(...)falou da forma como a reorganização foi feita, do afastamento doa
elementossuspeitosedaformaçãodogrupelhoanti-partidáriodeVascode
Carvalho no qual participaram elementos há muito escorraçados do
Partido,comoVelezGrilo,ArmandoMagalhães(Amaral)eoutrostraidores
eprovocadores.”
Comestecongressochegavatambémomomentoúltimodaclarificação.Como
expressaJoãoMadeira,“oIIICongressoaoproclamaravitóriadonovoPCPsobreodo
Grupelho,reforçava,tambémporessemeioedaformacomoofazia,alegitimaçãoda
novadirecçãoedonovopartido”44
A sanha persecutória sobre quem ficou rotulado de denunciante continua a
44Madeira,p.110.
41
manifestar-seemcadaediçãodojornal.Sobotítulo“TRAIDORESEPROVOCADORES”,
nonº45,deDezembrode1943,oAvante!denunciapublicamentetrêselementosque
teriamprestadoinformaçõesàpolicia,masentreelesédestacadoVictorHugoVelez
Grilo,quepertenceuà“velha”direcçãodoPCP.Nanotícia/denúnciasãosublinhados
“algunsdosfactosmaisestacadosdasuabiografia”:
“Em1941,quandodaformaçãodogrupelhopolicialdeVascodeCarvalho
& C.ª, Velez Grilo participou na actividade provocatória do grupelho,
fazendo-se passar por “Secretário-Geral do Partido” e tendo um papel
activo na divulgação de calúnias contra os militantes da Direcção do
Partido, na luta contra a reorganização, na denúncia de camaradas
responsáveisquetiveramdepassaràilegalidadeeemtodososaspectosda
actividadeprovocatóriaepolicialdogrupelho”.
ApesardoIIICongressoterconsagradoosreorganizadorescomovitoriosos,a
perseguiçãopúblicaaosmembrosdo“grupelho”prosseguenaspáginasdoAvante!ao
longodetodaadécadade40eperdurapelosanos50.Apurgaédeterminanteparaos
novosdirigentesseafirmaremecriaremumaparelhoorganizativopartidárioeficazna
resistência. Como está impresso na 1ª quinzena de Julho de 1944: “Organizar é a
decisivatarefadomomentopresente”.
Naediçãoseguinte,anº58,umtextointitulado“Defendamosdospolíciasedos
provocadoresasmassaseopartido”voltaarelacionaraatividadedo“grupelho”com
aaçãodapolíciapolítica:
“A polícia de informações, impotente para impedir os movimentos
populares;impotentedesdehádoisanos,paraatingirosquadroscentraise
os serviços técnicos do partido, esforçando-se raivosamente para o
conseguir continuando , para isso a servir-se dos elementos doGrupelho
Provocatório, e a adoptar novos métodos de acção.(..)os elementos
provocadoresdestacam-senoauxílioàpolíciaena luta contraoPartido,
criando e desenvolvendo junto de alguns trabalhadores e anti-fascistas a
desconfiança no Partido, caluniando o Partido e os seusmilitantes, tudo
fazendo no sentido no sentido de que os trabalhadores e anti-fascistas
42
tomem uma atitude de passividade em relação à luta contra o fascismo
(...)”
Na 2ª quinzena de Fevereiro de 1945, sob o mesmo título, “Polícias e
provocadores”, são denunciados agentes e informadores da PIDE, a par de antigos
militantes:
“Mário,barbeiro,forte,deóculos.Temduasbarbearias,umadasquaisna
RochadeCondedeÓbidos,nº102.Éumexploradordosseusempregados,
despedindoosmeios-oficiaisquando teriaqueos subirde categoria. Este
indivíduodizaosoperáriosdosEstaleirosquenãodevemfazergreves,que
estassóservemparafazeradesgraçadostrabalhadoreseincita-oscontra
‘aquelesquequeremrevolucionaropessoaldaempresa’.Esteprovocador
temíntimasligaçõescomomédicoVelezGrilo,doGrupelhoProvocatório”.
Outrodosalvosdos‘reorganizadores’foiJosédeSousa,antigodirigente,que,
preso no Tarrafal entrou em rota de divergência com Bento Gonçalves, também
encarceradonocampo.Sousa,queviriaaresistirà“reorganização”,aoladodeVelez
Grilo, acabaria por ser expulso do partido em 1942, tendo sido a crítica ao pacto
germano-soviético a causa próxima para o seu afastamento. João Madeira, cita a
circular do Secretariado do PCP, de Novembro de 1942, na qual é comunicada a
expulsão com o argumento de que José de Sousa, “fora do Partido, acusou os
dirigentes soviéticos de traição à classe operária por conduzirem uma política
fascista”45.
Quatroanosmaistarde,JosédeSousaadereaoPartidoSocialistaPortuguês,e
oAvante!, na 2ª quinzenadeAbril de 1946, aproveita a ocasião para lançar críticas
públicasaoex-militantecomunista:
“Chegaaonossoconhecimentoqueosr.JosédeSousa,queháumanosfoi
da direcção do nosso Partido, acaba de pedir a sua admissão ao Partido
Socialista Português. (...) O sr. J.S. foi expulso do Partido Comunista
Português em1942,quando se encontravanoCampodoTarrafal, poeaí
45Madeira,p.123.
43
levaracaboumalutadesagregadoraedivisionistaeterformadoumgrupo
dissidentecontraoPartido”.
O texto termina com uma frase irónica: “Aos nossos amigos socialistas, (...),
desejamosqueconquistemumcompanheirofiel”.
O mês de Agosto de 1947 é o momento escolhido para o Avante! voltar a
criticaro “grupelho”.Fá-lo sobo título, “Agostode41-Agostode47”, celebrandoa
entradanosétimoanodepublicaçãoregulardojornal.
(...)“6anospassaramsobreareorganização,aomesmotempoquevemos
ocaminhoandandopelonossopartidoepeloseujornal,interessatambém
ver o caminho andado por aqueles que, enquanto no partido, foram uns
sabotadores e comodistas, que em 1940-41 tanto se opuseram à
reorganizaçãoeque,depois,nãosecansaramdecaluniarparajustificarem
a sua expulsão das fileiras do partido. Que é feito desses escorraçados?
José de Sousa, Grilo, Vasco de Carvalho, Ariosto Mesquita, Cansado
Gonçalves, etc, agindo sob a proteção da PIDE e aligados a agentes do
imperialismo estrangeiro na formação de uma ‘Partido Socialista legal’
(ondeinfelizmenteseencontramalgunsanti-fascistashonradoseiludidos)
que outra coisa não é senão a oposição inofensiva que o Governo de
Salazarseesforçaporcriar,comopassoparaadivisãodosdemocratase
aniquilamentoviolentodetodaaoposição.Hoje,comohá6anos,háque
continuar a dar combate aos derrotistas e divisionistas, agentes do
fascismonocampoanti-fascista”.
Embora já tivesse sido referenciado na edição de Abril-Maio de 1954, num
texto centradoemFernandoPiteira Santos46, já expulsodopartidona sequênciada
46“Adepuraçãoocorridaem1950-1951abrangianãosóaquelesquetinhamsidoacusadosdetraição,
como Manuel Domingues, mas também vários intelectuais que se dizia terem manifestadotendências“sociais-democratas”ou“titistas”.EnteestesestavamincluídosMárioSoareseFernandoPiteiraSantos.(…)ocasodePiteiraSantosémaisinteressante.ColegadeestudodeÁlvaroCunhal,entrouparaoPCPnoprincipiodadécadade40eem1943passouafazerpartedoComitéCentral.Entreoutrasfunçõesfoiencarregadodaorganizaçãodopartidonosmeiosmilitares(juntamentecomJoséMagro).(...) quando foi preso em Julho de 1945, Piteira Santos terá aparentemente fornecidoabundantes informações à PIDE. Em todo o caso já tinha sido demitido do CC por indisciplina ,embora se tivesse mantido no partido até 1950, ano em que foi expulso por novos actos deindisciplinanãoespecificados(...)”Raby,p.129.
44
depuração dos anos 1950-51, “o provocador Dário Bastos” volta a ser alvo de um
“Alerta”,comomembrodo“grupelho”,emJaneirode1955:
“Todos os comunistas, simpatizantes e demais democratas e patriotas
devem estar em guarda contra a acção provocadora de Dário Bastos,
viajante de artigos de ferragens do Porto. (...) A verdade é que este
indivíduo foi escorraçado do Partido Comunista há longos anos como
provocador. Em 1940 esteve ligado ao grupelho provocatório do
Norte.(...)devemos estar alerta com este provocador escorraçando-o ali
ondeeleaparecer”.
1.4Oesquerdismo,oscorvoseasmoscas
Com os anos 60, o início da guerra colonial, os movimentos estudantis
autónomosdoPCPeoconflitosino-soviético,ascisõessãomarcadamenteideológicas
eirãodarorigemaumadivisãoprofundaàEsquerda.Porumlado,ogrupodeArgel,
noqual surgiráoembriãodoPartidoSocialista, fundadoem1973,poroutro lado,a
correntedeextrema-esquerdaque irádesaguaremdiversospartidosemovimentos
que se manterão ativos após o fim da ditadura. Internamente, no PCP, essas duas
linhassãotambémoquemarcaráoconflitocomoqualadireçãodeCunhaliráterde
seconfrontar,à luzdorumodomovimentocomunista internacional,repartidoentre
Moscovo e Pequim. Como sublinha o historiador José Pacheco Pereira, “o PCP foi
apanhadopeloconflitosino-soviéticonumamomentocríticodasuahistória:quando,
após a fuja de Peniche Álvaro Cunhal, este está a conduzir um processo ”de
rectificaçãopolíticacontraadirecçãodeJúlioFogaça.Nodebate internonoPCP,em
plenarevisãoda linhado ‘desviodedireita’,querepresentavasobmuitosaspectosa
linha de Krutchev após o XX Congresso aplicada a Portugal, a substância essa
rectificaçãocolocava,emteoria,oPCPeCunhalmaispróximosdasteseschinesasdo
quedasoviéticas.Cunhaltinhaassimque,aomesmotempoquecombatiaessalinha
emPortugalcomo‘desviodedireita’,aprová-lacomolinhadomovimentocomunista
45
internacional”47. Ou seja, o novo rumo do partido passa por estabelecer uma linha
central de combate à direita e à esquerda. Como defende Miguel Cardina “Álvaro
Cunhal preocupou-senão só emoperara chamada«correcçãododesviodedireita»
como em neutralizar os «desvios de esquerda», que propunham acções armadas
contraoregime”48.Essealinhamentoaocentroédebatidonoâmbitodapreparação
doVCongresso,aolongodaqual,segundoJoãoMadeira,“hánalgumasintervenções
comoqueumapreocupação centrista, que se revelarádominante, segundoaqual o
desvio de direita identificado devia ser combatido,mas também qualquer desvio de
esquerda que se quisesse instalar no seu lugar, pois o sectarismo continuava vivo
dentrodopartido.”49
Nofinaldosanos60,anovaclarificação internanoPCPestáconcluída,como
está também consumada a expulsão do principal rosto do “esquerdismo”, Francisco
Martins Rodrigues, que, curiosamente, tinha contribuído de forma determinante na
aniquilaçãodo“desviodedireita”,protagonizadoporJúlioFogaça,
Comosíntese,Cardinaescreveque“FranciscoMartinsRodriguesfoiocondutor
fundamental dessa demarcação, centrada no papel da violência na transformação
social, nos contornos de uma política de alianças para o derrube do regime e no
alinhamentocomaChinanoconflitoqueentãoaopunhaàURSS.”50
OcasodeMartinsRodrigueséexemplardoheróiquepassaavilão.Nanotícia
da fuga de Peniche, é publicado, na primeira quinzena Janeiro de 1960, um
comunicado do Secretariado do Comité Central, na qual é exaltada “a coragem e a
abnegação” dos “valorosos combatentes de vanguarda”. Entre eles está Francisco
MartinsRodrigues.Naedição seguinte, que “rectifica”o tomdanotícia, destacando
ÁlvaroCunhalnotítulo,“OnossopovosaúdaalibertaçãodeÁlvaroCunhaledosseus
companheiros”,sãorelegadosparasegundoplanoosrestantesfugitivos,nãodeixando
margemparadúvidassobrequeméoheróimaior.
47JoséPachecoPereira,OUmDividiu-SeEmDois,ed.byAletheia,2008pp.127-128.48MiguelCardina, ‘MargemdeCertaManeira-OMaoísmoEmPortugal:1964-1974’ (Universidadede
Coimbra,2010)p.48.49Madeirap.284.50Cardina,p.6.
46
Maistarde,onomedeFranciscoMartinsRodriguesseria“apagado”ouincluído
no grupo dos provocadores. Domingos Abrantes assume que os dissidentes “eram
provocadores” e que “alguns deles, tinhamumaproblemaacrescido, é que como se
tinham portadomal na PIDE, arranjavam justificações, em vez de assumirem o seu
mau comportamento. A pessoa que está a ser interrogada, falo por experiência
própria,nuncaperdeanoçãodeondeestá,podeestarmais cansado,mas sabeque
estáemfrenteàpolícia.”
A opinião manifestada por Domingos Abrantes direciona-se para Martins
Rodrigues,queem1966,vítimadatorturadosono,cedeunosinterrogatóriospoliciais.
(A questão de ‘falar na policia’ será desenvolvida no capítulo 3 da II parte deste
trabalho). “Não me lembro de pensar que estava a trair nem de esboçar qualquer
resistência.Respondiaàmedidaqueelemeperguntavaeadormeciacadainstante(...)
Nosquatrodiasseguintes,dormi16horaspordia;acordavaparacomer,passeavaum
poucopelogabineteevoltavaaadormecer.Estavaestupidificado,nãomelembrode
pensar nada, tinha só reacções animais; comer e dormir. Pelo quinto dia comecei a
tomarconsciênciadoquefizeraedorompimentototalcomaminhavidaanterior,mas
não o sentia como uma acto cometido por minha vontade, mas como uma coisa
horrorosaquemeacontecera.”51
Em concreto sobre FranciscoMartins Rodrigues,DominguesAbrantes fala de
um homem emilitante que conheceumuito bem, que “tinha uma inteligência rara
com um grau de cultura acima da média pra a origem dele, uma capacidade de
trabalhoexcepcional,mastinhaalgunsdesequilíbriospsíquicos.Ele,aliás,foivítimado
seuprópriocaminho,foipresoporquetinhadeitadoamãoaumprovocadore,depois,
tornou-se ele próprio um provocador. Foi seduzido pelo maoismo e pela ideia da
revoluçãojá.”
A depuração ideológica passava pelas páginas doAvante!, não só através da
publicaçãode textosqueemanavamdosórgãosdirigentesdopartido,mas também
atravésdecurtoscomentáriosdirigidostantoàdireitacomoàesquerda,decríticaa
posiçõesdeoutrasforçaspolíticasdaOposição.Exemplodessaexpressãoeditorialera
51FranciscoMartinsRodrigues,OsAnosDoSilêncio(Dinossauro/AbrenteEditora,2008)pp.72-73.
47
uma coluna intitulada “Pontos Cardeais”, na qual surgiam críticas e comentários a
determinadasatitudesetomadasdeposiçãorelacionadascomooPCP.Eratambémo
tempo das “acções especiais”, às quais o PCP se tinha ”rendido” após anos de
discussãointernaedepoisdejáestaremematividadegruposradicaisqueapelavamà
lutaarmada.“Orecursoàlutaarmada,mesmocomamplitudeeformasrestritas,era
nosanossessentaumaquestãomuitopolémicanoPCP.”52.AafirmaçãodeRaimundo
Narciso, antigo militante comunista e um dos elementos da A.R.A. (Acção
RevolucionáriaArmada)fundamentaessedebatenocontextodaguerrafria,noqual
Moscovodesaconselhavaoenvolvimentodospartidoscomunistaseuropeusemlutas
armadas. Daí que Narciso considere que Cunhal “tratava a matéria de modo
cauteloso”e,emboraadecisãodasuacriaçãotenhasidotomadaem1964,aA.R.A.
inicia a sua fase operacional em 1970, “controlada politicamente pelo PCP”, mas
“autónomadopontoevistaorgânicoetantoquantopossívelestanquedaorganização
dopartido,paraevitarqueasprisõesnesteatingissemaquela”.53
Nessecontextoa rubrica“PontosCardeais” funcionacomoumbarómetrodo
debatesobreasdistintastácticasdelutacontraaditaduraentreasdiversasforçasda
Oposição. Na edição de Maio de 1972, pode ler-se um texto, intitulado “Um
comentário”,decríticaaoscríticosdeumaaçãodaA.R.A.
“A acção da ARA contra o quartel general da Iberland teve importante
significado político e grande repercussão internacional.(...) Houve porém
quemcomentasseofactodemaneiradiferente.’Osestragosinsignificantes
(diz esse comentário) foram imediatamente reparados (...) De quem é o
comentário? Da ‘Época fascista, dirão os leitores. Não acertaram. O
comentáriofoifeitonumboletimdosgolpistasdeArgel.(...)”
Otomusadonestecomentárioédecríticadiretaaosqueapoucaramaaçãoda
A.R.A.,masnamesmarubricadessaediçãoépublicadoumtextocujosdestinatários
são,tudoindica‘inimigosinternos’,“OsCorvos”:
52Narciso.p.18.53Narciso,p.19.
48
“O corvo é um animal cobarde. Foge dos vivos e procura apossar-se dos
mortos.Sãomuitososcorvos.Corvosdemilitantesdesaparecidos,quenão
podem levantar-se das campas para os castigar! Corvos dos trabalhos e
sacrifíciosdaquelesqueodeiam!Éumanimalcobarde,ocorvo.”
Aindaem1972,masemJulho,alémdenovacríticaaquemcontestouaARA,
neste caso a RPAC (Resistência Popular Anti-Colonial), apelidada de (Rapazes
PortuguesesAnti-Comunistas),oalvoéo‘esquerdismo’.
“ALógica.Oaventureirismoesquerdistaestámostrandonomundoaoque
conduza sua lógica,quandopassadoverbalismoàacção.Nuns casos (e
são osmelhores), atentados terroristas que conduzem os seus autores à
rápidaderrotae liquidação física.Noutros casos,ousode refénsea sua
execução provocam a condenação e a repulsa das mais amplas massas.
Noutros ainda, confundindo-se combanditismo e loucura, execuções sem
sentido,comonorecentecasoregistadonoJapão.Aquelesqueassimagem
declararamser ‘revolucionários’.Desacreditam,nofimdecontas,acausa
porquedizembater-se.EmPortugal,atéagora,oesquerdismopoucovai
além de palavras exaltadas e campanhas de calúnias contras as forças
revolucionarias. Mas as concepções contêm o gérmen dessas tristes
históriasquecorremmundo.Combatemosoverbalismo.E,sealógicalevar
umdiasàpráticadeactosterroristas,queapenaspodemservirofascismo,
édesaberdeantemãoquetambémoscondenaremos”.
AsbateriasverbaisdoAvante!apontamtambémparaosopositoresdedireita,
para os que dentro do regime ditatorial defendem uma transição pacífica para a
democracia. Na edição de Setembro de 1973, lê-se um ataque à ala liberal do
marcelismo.
“Por quem? Os liberalizantes vêm do ventre fascista. Seria louvável que,
rompendo com o regime, contassem o que lá se passa. Afinal preferem
chamara à colaboração maoístas e desagregadores para que deem em
público versões caluniosas e pidescas do que se passa... na Oposição.
Afinal,senhores,porquemsoisecontraquemsois?”
49
Mas sempre a condenação à linhamaoísta do comunismo está presente nas
páginas do jornal, com alertas para a profusão de siglas que podem confundir os
cidadãos com fraca formação política. Em Novembro de 1973, o seguinte texto é
ilustrativodessapreocupação,queviriaaaumentarnosprimeirosanosdademocracia.
OPCPdeixavadeseraúnicareferênciadocomunismointernacional:
“Siglas.Osgruposcomunistassãocomoasmoscas.Numerosasquandohá
lixo, deque se alimentam.De vida tão efémeraqueumdia compridode
verão chega para que nasçamemorrem”. (segue enumeração das siglas
porordemalfabética)(...)Felizmenteoalfabeto temletrasbastantespara
satisfazeraimaginaçãocriadoradesiglasdosrevolucionáriosdeopereta.”
2.Emtempodeguerra
2.1Os“quinta-colunistas”´
Em plena II Guerra Mundial, nas páginas do Avante! há uma denúncia
sistemática dos “inimigos do povo” (designação que, como veremos, é utilizada em
todos os casos de dissidência, de delação, de traição e de informadores da polícia)
com a publicação em quase todas as edições de uma rubrica intitulada “Quinta-
colunistas”. Emparalelo,háexposiçãopúblicadoscolaboracionistas.Na2ªquinzena
deJaneirode1943,lê-seumapeloconcretoàdenúncia:
“É necessário desmascarar todos os quinta-colunistas que produzem
paraoEixoeexportamparaoEixo.EnviaiosseusnomesaoAvante!,órgãode
combate pela liberdade independência. Envia notícias da actividade dos 5ª
colunistas”.
Em1944,na2ªquinzenade Janeiro, surge, sobumtítuloa todaa largurada
pág.2:”OAvante!desmascaraOSINIMIGOSDOPOVO”,umtextoquealargaouniverso
doepíteto:
“Quinta-colunistasque roubamosgénerosaopovoparaosenviaremaos
bandidosfascistasalemães;fascistasqueperseguemossimpatizantescom
a causa das Nações Unidas; espiões ao serviço da Alemanha hitleriana;
denunciantes dos trabalhadores nas fábricas e empresas; — estes são
50
INIMIGOS DO POVO que o povo deve conhecer. É necessário em toda a
partedesmascará-los,dificultarosseusmanejos, tornar-lhespor todosos
meiosavidainsuportável.OAvante!continuaecontinuaráadesmascarar
peranteasmassaspopularestodososseusinimigos.Osseusnomesdevem
serfixadosparaahoradoajustedecontas”.
Na1ªquinzenadejunhode1944,emrodapé,lê-se:“Aproximam-seashorasos
combates decisivos. Neste momento, todo o alheamento é crime, toda a inércia é
cobardia.Todoocompromissocomofascismoétraição”.
Nestescasos,nosquaisadenúncianãose reportaaosmilitantescomunistas,
massimaoscolaboracionistascomaAlemanhanazi,oAvante!revela-senasuamissão
de órgão de informação mais amplo e não apenas de órgão central do PCP, ao
desmascarar, também, a política de “neutralidade” de Salazar, expondo os graves
problemaseconómicoseinstigandoouapoiandoaçõesderevoltacontraacarênciade
génerosalimentares.ComoescreveohistoriadorFernandoRosasparacaracterizaro
ambientesocialquesevivenosanosdeguerra:“Ossintomasdedescontentamentoe
reacção contra a falta de géneros, o desemprego e os salários baixos nas zonas de
predomínio dos assalariados rurais começam a verificar-se desde inícios de 1941,
crescendo de intensidade ao longo do ano. O mesmo se poderá dizer quanto aos
motins e aos ‘tumultos’ que, no Norte e no centro, se levantam para impedir a
requisiçãodegénerosouasapreensõesdeminério”.54
Embora seja impossível aplicar ao Avante! clandestino os parâmetros de
mediçãodeaudiênciasquehoje sãousados, o tipodenotícias relacionadas comas
guerras,tantoadeEspanhacomoaIIGuerraMundial,transmitemapercepçãodeque
ainfluênciadojornalextravasavaouniversodosmilitantes.Naanálisedastiragensda
imprensaclandestinadopartido,bemcomodaregularidadedasediçõeséprecisoter
emcontaascondiçõesdaorganizaçãoclandestinaemcadamomento.Comoenfatiza
JoãoMadeira55, a periocidade quinzenal é um dos sinais, não só de consciência da
54JoséMattoso(Dir.),HistóriadePortugal,7oVolume,OEstadoNovo(1926-1974)(CírculodeLeitores,
1994)p.363.55JoãoManuelMartinsMadeira,p.675.
51
potencialinfluênciadojornal,mastambémdaconjunturapolíticainternaeexterna.
A funçãodo jornalnomomentohistóricoda IIGuerraMundiale tambémda
Guerra Civil de Espanha é realçada por Domingos Abrantes, quando defende que,
devidoàcensurapréviaqueaditaduraimpunhaàimprensa,“háumapartedanossa
história que só se encontra no Avante! O tempo da guerra é um período muito
importante”. Tal como o do período da guerra de Espanha, quando “houve um
processo no Porto, no qual forampresas 400 e tal pessoas, emgrande parte era só
porqueliamoAvante!eaexplicaçãoeraporquequeriamlernotíciassobreaguerra”.
Ascríticasaoscolaboracionistaseadenúnciadaatividadedeaçambarcadores
são“ferramentas”queopartidousa,atravésdoseuórgãocentral,paramuniciaros
militanteseatodososquetêmacessoaoAvante!paraalutacontraaosquenãoestão
doladocertodaguerra.
3.”Seforespreso,camarada”
3.1“NaPolícianãosefala”
Num estudo sobre as organizações clandestinas comunistas, José Pacheco
Pereira cita Erving Goffman e o seu conceito dos manicómios como “instituições
totais” para identificar no partido clandestino “muitos traços” dessa organização,
como“ocontroloadministrativosobreosseusmembros”56.
Em ambiente de clandestinidade, se o ideal ou a fé do militante tem de
permanecer fortepara resistir aosataques repressivosdopoder instituído,não será
menosnecessáriaaconsciênciadequesócomasobrevivênciadaestruturapartidária
serápossível lutarevencer.Paradigmáticodesteduploconceitoéo textodeÁlvaro
Cunhal,nasuaprimeiraversãode1947,“Seforespreso,camarada”,cairásobretiuma
granderesponsabilidadededefenderoteuPartido,osteuscamaradas,oteuideal”57.
Como ummanual de comportamento dosmilitantes nos interrogatórios policiais, o
opúsculo de Cunhal, que pormenoriza algumas das torturas a que os presos são
56JoséPachecoPereira,ASombra.EstudoSobreaClandestinidadeComunista(Gradiva,1993)p.66.57ÁlvaroCunhal,SeForesPresoCamarada(EditorialAvante,1947).
52
sujeitos,terásidoinspiradopelocomportamentodeFranciscoMiguel,que,em1939,
foi “o primeiro militante que se recusou de todo não só fazer declarações, como
inclusive, numa fase inicial a assinar qualquer documento na polícia”58.Cunhal terá
ficado impressionadocomaatitudedeMiguel, comquemviriaapartilhara célebre
fugadacadeiado fortedePeniche,em1961.OnomedeFranciscoMiguelouChico
Miguel,umdoshistóricosmilitantesdoPCPquepassou21anosnascadeiasdoAljube,
CaxiasePeniche,alémdeterestadonocampodoTarrafal,mereceudoAvante!um
tratamentoespecial, como“abnegado filhodopovo”,ou“grandepatriota”ouainda
“herói do nosso povo”. Em linha com essa admiração de Cunhal e com o teor das
notíciasnoAvante!,amilitantedoPCPMargaridaTengarrinhaconsidera-o“oherói”.
“FranciscoMiguel,foiquemsuportouaestátuadurantemaistempo(31dias)efugiu
daprisãoquatrovezes.Quandofoiparaanossacasa[casaondeviviacomJoséDias
Coelho na clandestinidade] e viu a minha filha Guida, a mais nova, dentro de um
parqueparanóspodermos trabalhar, tirou-ade lá,dizendoquenãoconseguiavera
meninapresa.Eradeumagrandesensibilidade,comosepodevernosseuspoemas,o
que contrasta com o homem firme e duro que ele foi. Era extraordinário. Deu o
exemplo”.
AssumindocomoexemplarocomportamentodeFranciscoMiguel,otexto“Se
forespreso,camarada”,escritonasequênciadaanálisedosprocessospolíticosquelhe
foramfacultadospeloadvogadoManuelJoãodaPalmaCarlos,“foitalvezodocumento
quemaisafectouavidademuitosmilitantes,eodestino individualdosquadros,eo
quemaismoldou amentalidade da ética da clandestinidade e do radicalismos anti-
salazarista.Aenormeinfluênciadestetextoemtodaaoposiçãopermaneceuatéao25
de Abril. Foi um dos poucos textos de Cunhal que condicionou mesmo a extrema-
esquerda,queoutilizounumaediçãorevista,onde,noessencial,copiouaatitudedo
PCPfaceaoportenaprisão”.59
Eram tempos,osdosanosdaditadura, emque, comoosdescreveoescritor
MáriodeCarvalho, “omedo impregnava todoo relacionamento social.Medode ser
58JoséPachecoPereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica-«Duarte»,ODirigenteClandestino(1941-1949)(CírculodeLeitores,2001)p.686.
59Pereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica-«Duarte»,ODirigenteClandestino(1941-1949),p.684.
53
preso,medodeperderoemprego,medodoostracismosocial,medodaperseguiçãoe
do isolamento,medodacalúnia,medododesfavorecimentooudapreterição.Medo
do superior, medo da polícia, medo do burocrata, medo do vizinho. O medo
engendravamaismedo.Eraumsufocoirrespirável.”60
EssemedoestavatambémpresentenointeriordoPCPeoespectrodaprisão,
como refere JoãoMadeira61, “pairava no quotidiano dosmilitantes e dos quadros”.
Era, por isso, essencial para a manutenção da máquina clandestina não ceder aos
torturadores,nãofalarnacadeia,nãopôremperigoarededaresistência,nãotrairos
camaradas,não feriropartido.Ouseja, terbomcomportamento, serumcomunista
exemplar.AindacitandoMadeira,asregrasparaobomcomportamentonacadeiasão
“um dos veios centrais da educação dosmilitantes comunistas, que precedemuitos
outrosaspectosdenaturezapolíticaou ideológica”.Daí a importânciado folhetoda
autoria de Cunhal, que teve diversas edições comalgumas atualizações nos termos,
quefaziarecairsobreosmilitantesaobrigaçãodobomportenaprisão.
MesmoparaquemnãotinhalidootextodeCunhal,osensinamentossobreo
bomportenacadeiachegavamsempreaosmilitantes.TestemunhadissoéJoséPedro
Soares62, um dos resistentes comunistas que só foi libertado com o 25 de Abril,
quandoseabriramasportasdofortedePeniche.JoséPedroSoares,presoem1971,
com 21 anos, foi sujeito a 33 dias e 33 noites de tortura do sono, embora com
interrupções e fala da sua firmezanos interrogatórios comoalgo resultantedeuma
“forçainteriorquenasceudoexemplotransmitidoporvelhoslutadores”.“Nuncatinha
60AnaAranhaeCarlosAdemar,NoLimiteDaDor(Ediçõesparsifal,2014),Posfácio,p.281.61Madeira,pp.746-747. 62JoséPedroSoares,nascidoem1950,operário,tipógrafoefoipresonoquartelnocampodetiroda
Carregueira,emJulhode1971.Antesdetersidolevadoatribunalmilitar,emMaiode1972edetersido condenado a três anos e meio de prisão e nove de perda de direitos políticos, foi sujeito aviolentas torturas durante os interrogatórios em Caxias. O seu caso e de um punhado de jovenspresosnamesmaalturafoiamplamentedivulgadonopaísenoexterior,chegandoaservisitadanacadeia pelos deputados da Ala Liberal, Sá Carneiro e Pinto Balsemão, que levaram à AssembleiaNacional,exigindouminquéritoàscondiçõesdedetenção,oqualnuncachegouarealizar-se.Numafase de fim de regime, isolado internacionalmente, o casomereceu posições públicas da AmnistiaInternacionalgraçasà intervençãodaComissãonacionaleSocorrosaosPresosPolíticosedevidoàestratégia de defesa do seu advogado, Manuel Correia Neves, que conseguiu reunir tomadas deposiçãopúblicasdeinúmerosjuristasestrangeirosdecondenaçãodastorturasaquefoisujeitoJoséPedroSoares.
54
lido o texto de Cunhal ‘Se fores preso camarada’, mas sabia pelos camaradasmais
velhos da importância de resistir, de nunca guardar papéis, de não denunciar os
amigos,denãopôremcausaaorganizaçãoeopartido”.63
3.2“Máconduta”
AindaantesdeCunhalescrever“Seforespresocamarada”,noanode1946,a
“má conduta” é já a base argumentativa para mais um lote de expulsões. Como é
noticiadonoAvante!nº96,numtextoquedácontadeumaresoluçãodosecretariado
doPartidoquecolocaemparaleloasexpulsõesde“elementosque,peranteoinimigo,
semostraramindignosdepertenceremaoPartido”eas“condutasexemplares”,pode
ler-se:
“FranciscoInáciodaCosta(RaioX)foiexpulsocomotraidordoPartido,por
ter denunciado casas ilegais e camaradas, ter prestado inúmeras
declarações sobreo trabalhodoP. E caluniado torpementeoPeos seus
quadros.AlbanoAlves Simão (CarlosAlberto).AgostinhoMourão (Abílio),
Joaquim Roque (Ramos) foram igualmente expulsos por terem prestado
declaraçõessobremilitantesdoMovimentodeUnidadeNacional.”
Noanoseguinte,em1947,“assiste-seaumaimplacávelvagarepressivasobre
oPCP”64comdezenasdeprisões,entreosquaisadeFranciscoMiguel,membrodo
ComitéCentraleresponsávelpelaorganizaçãoaSul.Énasequênciadesterombona
direção do partido que, entre outros, é cooptado para suplente do Comité Central,
Mário Mesquita, “quadro experiente que já desempenhara funções dirigentes nas
JuventudesComunistasnosanos30”65.
Mas quatro anos depois, o partido sofre novo rombo, desta vez devido a
informaçõespassadasàpolíciaporMesquita.ÉassimqueoAvante!noticiaemAbril
de 1951, a sua expulsão do partido, citando um comunicado do Comité Central na
63EntrevistaaJoséPedroSoaresrealizadaa23deMaiode2017,emLisboa.Salvooutraanotação,todas
ascitaçõesatribuídasaJoséPedroSoaresresultamdestaentrevista64Madeira,p.165.65Madeira,p.575.
55
sequênciadasua“repelenteemiseráveltraição”:“MárioMesquitatraidoraoserviço
dapolícia!” .Deacordocomo texto,emDezembrode1950,apósa suamulher ter
sidopresa,Mesquitafoivisitá-la,“entregando-seassimnasmãosdaPIDE”.
3.3“Indignidade,cobardiaetraição”
Ocontrapontoaoelogioaocumprimentodasregrasdebomcomportamento
era “o castigo e desprezo para os traidores”. Ou seja, pode ler-se na 4ª edição do
referido texto “Se fores preso camarada! que “aqueles que, esquecendo os seus
deveres de militantes, o seu nome e a sua honra de comunistas, prestam à polícia
declaraçõesqueservemo inimigoeprejudicamoPartidoeacausada libertaçãodo
nosso povo, não podem ser mais considerados como revolucionários sinceros e são
expulsosdasfileirasdoPartido.Aconsideração,amizadeecarinhoqueosrodeavaem
virtude da sua actuação política desaparecem, dando lugar ao desprezo dos seus
anteriores camaradas de luta, dos seus companheiros de trabalho e das próprias
pessoasque lhes sãoqueridas.O seunomepassaa serapontadocomosinónimode
indignidade,decobardia,detraição”.
Onãocumprimentodosdeveresfulcraisdeummilitantedeumaorganização
clandestinacomooPCP,duranteosanosdaditaduradeSalazareCaetano,constituiu
assim uma sombra a pairar sobre os comunistas e causou danos pessoais e nas
convicçõespolíticasdequemfalounos interrogatóriospoliciaisequefoidenunciado
publicamente.
O historiador Miguel Cardina na sua tese de doutoramento sobre os
movimentosmaoístasemPortugal,refere-seaosdanospsíquicoscausadospelaprisão
aos presos políticos a quem interessava vergar ideologicamente através da tortura
quer física quer emocional. “Numa investigação sobre as consequências clínicas dos
interrogatóriosdaPIDE/DGSlevadaacabologoaseguira1974,opsiquiatraAfonsode
Albuquerquetambémnotaraque,maisdoquefazerfalar,interessavaàpolíciapolítica
desapossaropresodasuaidentidadeesilenciá-lopormeiodatortura.Estainduziaao
silêncio na justa medida em que incitava à palavra: «falar» na PIDE, para além de
conceder provas passíveis de condenação em tribunal e de facilitar a perseguição e
56
detençãodecompanheiros,significavacalarosujeitoqueseera”66.
Esse “calar o sujeito que se era” está presente na palavras de Joaquim
MonteiroMatias, advogadodemuitospresospolíticosque viria a ser presoquando
eramembrodaFAP(FrentedeAcçãoPopular):”(...)eu,oadvogadoquenadatemia,
era agora o recluso só e indefeso, impotente frente à fúria vingativa dos
torcionários(...) Já não era herói, temia o regresso inevitável e impiedoso à sala de
torturasdo3ºandardaPIDE”.67
Como o objectivo de prevenir fraquezas perante as polícias, durante os
interrogatórios, surgem no Avante! textos “didácticos” dirigidos os militantes para
quemaameaçadeprisãoéreal.Comoselêna1ªquinzenadeAbrilde1959,como
título“Napolícianãosefala”,háregistodealgumasdastorturas:
“’A polícia sabe tudo’, ‘não é possível resistir aosmétodos da polícia’, ‘a
políciajásabia’,eiscomoalgunspresospretendemjustificarasuafaltade
firmezaecoragemfaceaoinimigo.Algunsvãoaopontodefalaremdrogas
paraobrigara falar, etc. Sim,apolíciausa torturasdasmais refinadase
variadas, físicas (espancamentos, estátua, choques eléctricos, ruídos
estranhos com o propósito de enlouquecer, arrancar de unhas, etc) e
morais (isolamento, insultos, etc) mas não há drogas como não há
espancamentos, estátuaouqualqueroutra torturaquepossaobrigarum
homem ou uma mulher a falar, a fazer declarações à polícia, ou a
confirmar declarações desta, desde que esse homem ou mulher esteja
disposto a não fazê-lo, a defender a sua honra de patriota e a sua
honestidadeepessoaséria(...)”.
A questão do “falar na prisão” foi abordada pela jornalista, investigadora e
tambémantigapresapolítica,DianaAndringa,quepartiuparaarespostaàpergunta
inicialde JorgeSemprun68“porque razãoumapessoaseaguentaepor razãosenão
66Cardina,p.327.67JoaquimMonteiroMatias,MemóriadeTorturaEResistência (TemaseDebates/Circulode Leitores,
2013)p.127.68JorgeSemprun,ALongaViagem(Ambar,2002)pp174-179.
57
aguentadiantedapolícia,duranteatortura”.Naconclusãodoseutrabalho,Andringa
acentua: “Tentarcompreenderoque levaunsatraíremeoutrosaresistiremfaz-nos
pensarqueestãoemjogoforçasmuitomaispoderosasdoquesimplesmentequererou
nãoresistir.E,compreendendoembora,nocontexto,osquecondenavamsemreservas
aquelesquecediamem interrogatórios–amaioriadasvezessemqueessacedência
fossemaisdoquemomentâneaesetransformasseem“colaboração”–parece-meque
valeapenapensarsenãohouve,doladoantifascista,algumaresponsabilidadenessas
cedências.(...)Etenhoacertezadequenãobastadizer‘Nãoprestesdeclarações’para
que não se fale, comoa tenho de que os que falamnão são, namaioria dos casos,
verdadeirostraidores”.69
Reveladordessa complexidadede casosedeestadospsíquicosdequemnão
resistiuéodepoimentodoantigopresopolíticoLuísMoita,dogrupodoschamados
católicos progressistas e sem quaisquer ligações ao PCP. “(...) incriminei terceiras
pessoas. Incluindo irmãos meus, o que foi particularmente penoso para mim. Mas,
digamos, numa situaçãodemuito pouco controlo psíquico. (...) aquilo [os efeitos da
tortura do sono] fez-me descer um degrau da consciência. Quer dizer, havia uma
despersonalização gradual (...) Digo muitas vezes que não sou herói nem traidor.
Agora,fraco,fui,seguramenteeissoéumacoisaque...bom,estánanossacondiçãoe,
provavelmente, nós não tínhamos suficiente preparação para encarar uma situação
daquelegénero”70.AindaMonteiroMatiastambémaindarefletesobreassequelasda
vivêncianaprisão:“Ospresos têmumatendênciaparase fechar,paranão falarmos
unscomosoutrossobreoquesepassou(...)Tenhoaimpressãodequenuncafaleicom
ninguém, com nenhum ex preso sobre o que se tinha passado, o que tinha dito ou
deixadodedizer(...)”71
Do outro lado da equação, do lado de quem foi vítima de traição, há um
sentimento ainda bem vivo de mágoa e de incompreensão em relação a quem
colaboroucomapolíciapolítica.
69DianaAndringa,‘“Falar”NaPolícia’,CaminhosDaMemória,2009.70AranhaandAdemar,p.252.71AranhaeAdemar,p.173.
58
JoséPedroSoares,presocommaiscercadeumacentenadecamaradasdevido
à traiçãodeAugusto Lindolfo, que terá fornecido informaçãopormenorizada à PIDE
emtrocadaliberdade,realça,noentanto,adiferençaentresertraidorefraquejarnos
interrogatórios.“Umacoisaéfraquejareoutraétrair.Seidepessoasquefraquejaram
equeficarammarcadasparaorestodavida.Masaessesopartidonãotratoucomo
traidores.Os traidores colaboraram comaPIDEde forma continuada e em trocade
favores,entregandopartesimportantesdaorganização,destruindoligações.Segundo
julgo saber, o Lindolfo, depois de ser libertado voltou a dar novas informações à
polícia”.
AugustoLindolfoviriaaseralvodeumatentadoaquesobreviveu,emJaneiro
de1973.Aaçãonãofoireivindicada,masdeacordocomohistoriadorJoãoMadeira
“foiatribuídoàARA”72.JoséPedroSoaresadmitequepossatersidoobradealguém
vítimadatraição,mas,pessoalmente,dizquenadasabesobreoassuntonemsobreo
percursoposteriordotraidor.“Nãofiznadaparaoprocurar,ouvidizerquetinhaido
paraAngola.Admitoqueseo tivesseencontrado logoa seguira ter saídodaprisão
tinha-lhe batido...muito. A traição é imperdoável. Já a fraqueza é compreensível e
muitos camaradas sofrem ainda hoje por não terem resistido às torturas e
involuntariamente terem confirmado nomes ou revelado um ou outro pormenor da
organizaçãoemqueestavaminseridos,semnuncaseterembandeadoparaoladoda
polícia.Istonadatemavercomtraição.”
NaspáginasdoAvante!,noentanto,tudoeramaissimples:quemse“portava
mal”naprisão,mesmoqueosdanosnopartidonãofossemdemonta,nãoescapava
desertratadocomo“traidor”,“provocador”ou“bufo”e,alémdaexpulsão,eracertaa
denúnciapública.
Mas nem sempre essa linearidade era observada.Na análise em curso neste
trabalhoénotórioquenosanos70ejánofinaldadécadaanterior,aspreocupações
reveladas nos textos publicados no Avante! centram-se menos na denúncia de
traidoresoudaexaltaçãodeheróisdoqueacontecianos anos40e50.No final do
regime, dado o contexto internacional hostil à ditadura em particular devido à
72JoãoMadeira,HistóriaDoPCP(TintadaChina,2013)p.578.
59
manutençãodaguerracolonialenarecusadeSalazar/Caetanoemabrirmãodoque
restava do império, o Avante! volta-se mais para fora, noticiando os ecos do
isolamento internacional do regime, as atrocidades cometidas pelas tropas
portuguesas nas colónias, bem como os avanços dos movimentos de libertação. O
noticiáriosobreavidainternadopaísedepartidorefletiaaestratégiadedenunciaro
logrodachamada“primaveramarcelista”queremtermoseconómicosquerpolíticos,
revelando exemplos dos problemas financeiros nacionais, do endurecimento da
censurasobreaImprensaeavagarepressivasobreosoposicionistas.Nessaestratégia
é tambémclaroocrescenteempenhoempublicar sinaisdacontestação internanas
Forças Armadas à guerra nas colónias. Exemplar dessa linha político-editorial é a
edição nº449 doAvante!, que exibe a toda a largura da primeira página o seguinte
título:“Urgepôrfimàguerracolonial”.Nabasedapágina,atodaalargura,vêem-se
duasfotografiasdesoldadosportuguesesenvolvidosnummassacreaumangolano.
Énestequadroqueo casoda traiçãodeAugusto Lindolfo nãoédenunciado
publicamentedoAvante!,depoisdetersidonoticiadocomdestaquena1ªpáginada
ediçãodeJulhode1971,asuaprisãonosseguintestermos,citandoumacomunicado
dacomissãoexecutivodoComitéCentral:
“A PIDE-DGS prendeu em fins de Maio o destacado militante comunista
AugustoLindolfo.Libertadoem1968,depoisdemaisdeseisanosdeduro
cativeiro nas cadeias fascistas, Augusto Lindolfo, tendo embora a saúde
bastante debilitada, retomou o seu posto de combate nas fileiras do
partidoda classe operária e no seuquadro clandestino.Augusto Lindolfo
estásertorturado.APIDE-DGSestáadescarregarsobreeleoseuódioao
partido Comunista, à classe operária, ao povo português. Ódio acrescido
pelosrecentesemagníficossucessosdalutapopular.OPartidoComunista
tem fortes razões para recear pela vida de Augusto Lindolfo. O Partido
Comunista Português chama a classe operária a agir prontamente em
defesadavidadeAugustoLindolfoeapelaparaasolidariedadeactivade
todososdemocrataseantifascistas”.
Nonúmeroseguinte,aindaLindolfoeraumherói.
60
“SalvemosAugustoLindolfo!OcamaradaAugustoLindolfocontinuaaser
torturado nos antros da PIDE-DGS. Sua mulher foi também presa, nos
princípiosdeJunho,comumafilhinha,decercadedoisanos,queàdatada
nossaúltimainformaçãopermanecianacadeiadeCaxiasjuntamentecom
amãe.UrgeredobraraacçãoemdefesadocamaradaAugustoLindolfoe
dasuamulherefilha”.
A seguir, o seu nome desapareceu das edições do órgão central do PCP. A
campanha, nacional e internacional, pela denúncia dos métodos da polícia e pela
amnistiadospresospolíticos, aparda contestaçãoàguerra colonial edoapoioaos
movimentosdelibertaçãodascolónias,passou,comojáreferimos,aocuparapartede
leãodasediçõesdosúltimosanosdoAvante!clandestino.
3.4“Cuidadocomeles”
A denúncia pública de quem é suspeito de se ter portado mal nos
interrogatórios policiais oude ter passado a ser informador dapolícia política surge
publicadanoAvante!emtomdeaviso.Érecorrenteaexistênciadetítulosgenéricos
como“Cuidadocomeles”paradenunciarquemsefazpassarpeloquenãoé.
EmAgostode1948épublicadaumadenúnciaque ilustrabemanecessidade
deexporumcomportamentomoralmentecondenáveldeumantigomilitante.
“António Baptista, ex-prisioneiro do Tarrafal, não gostando muito de
trabalhar, arvorando-se de mártir, dizendo-se comunista, a extorquir
dinheiroaosdemocrataspor várias terrasdopaís,principalmente Lisboa,
PortoeBarreiro”.
Oexemploseguinte,datadeJulhode1949e,emboraotipodelinguagemseja
idêntico e o título continue a ser “Cuidado com eles”, configura uma situaçãomais
gravequesereveloudanosaparaaestruturaclandestinadopartido:
“Os democratas portugueses não devem esquecer o nome do
administradordeÁgueda, JoséSoaresFeio,queassaltouacasadonosso
camaradaMilitãoeaíprendeuLuísaRodriguesedenunciouàPIDEacasa
61
doLuso,oquemotivouaprisãodosnossos camaradasCunhal,Militãoe
SofiaFerreira”.
Noano seguinte, em Julhode1950, é reveladaaindaoutro tipode situação,
envolvendodestavezumagenteinfiltrado,masotítulovoltaser“Cuidadocomele”:
“Há alguns anos veio de LourençoMarques para o Continente o agente
provocador CarlosAlberto Pais, que se havia introduzido noMUD Juvenil
onde provocou a prisão de dezenas de democratas. Como este individuo
tentapassar-seporboapessoadizendoquefoiexpulsodacolóniapelasua
actividadeanti-fascistaeassimiludirosdemocratas(...).”
Os avisos/denúncia surgem com uma ambivalência que permite revelar ao
conjunto dos leitores do Avante! os diversos tipos e mau comportamento dos
militantes e, simultaneamente, alertar para o perigo que determinados indivíduos
representamparaamanutençãodoaparelhopartidário.EmOutubrode1950,podem
ler-se dois textos elucidativos desta diversidade de objectivos. Um emana de um
“esclarecimento” do secretariado do Comité Central do partido e está redigidos nos
seguintestermos:
“Tendo chegado ao conhecimento da Direcção do Partido que algumas
pessoasaindaolhavamossenhoresMiguelRussel,SebastiãoViola,Silvino
Leitão e Edmundo Pedro como membros do Partido Comunista, vem
esclarecerquenadatêmdecomumcomopartidodoProletariado.”
O outro texto da mesma edição, intitulado “Desmascaremos um traidor”, é
maispormenorizadoeconstituiumbomexemplodaconfluênciadeobjetivosquese
pretendeatingir-explicarqualfoiocrimeesuaconsequênciaemostrarajustezado
castigoaplicado:
“OPartidoComunistaPortuguêsexpulsoudassuasfileirasJoaquimdaSilva
Couceiro, ex-operário vidreiro, e ainda hoje presidente do Sindicato dos
Vidreiros daMarinha Grande, pelas seguintes razões: Em primeiro lugar,
tendosidopreso,JoaquimdaSilvaCouceirodenunciouàpolíciaoutrosanti-
fascistas,entreosquaisAntónioLopesdeAlmeida,assassinadopelaPIDE
em1949.Emsegundolugar,Couceirosaiuemliberdadedevido:a)tersido
62
napolíciaumdenunciante;b)àinterferênciadofascistaCastroFernandes,
à data subsecretário das Corporações; e c)depois de ter assumido
compromissoscomaPIDE.Este indivíduoque traiuoPartidoeaclassea
que pertenceu e que nele confiou nãomerece, portanto, a confiança dos
trabalhadoresedosportugueseshonrados.Umadastarefasfundamentais
dostrabalhadoresvidreirosdaMarinhaGrandeéexpulsarJoaquimdaSilva
Couceirodadirecçãodoseusindicato,comodevemserexpulsosdoseioda
classeoperária,todosostraidoreseagentesdoinimigo”.
Ocuidadoeratambémnecessáriocomosexemplosquevinhamdefora,atéde
Hollywood.CuriosaéanotíciadetectadanaediçãodeAgostode1948sobreoactor
norte-americanoGaryCooper,cujonomepassaráconstardo“índex”doAvante!.
“Há tempos apareceu em Portugal uma reprodução de um discurso
pretensamente comunista deste artista de cinema. Avisamos os nossos
leitores que esse pretenso discurso foi fabricado pelos fomentadores de
guerraamericanosparadesorientaremasmassasecriaremsimpatiaspelo
fascistaactivoqueéGaryCooper.Depondoultimamenteperanteacélebre
Comissão de Actividades Anti-Americanas, revelou-se um bufo da pior
espécie, denunciandomiseravelmente como comunistas os seus rivais no
ecran.MaisavisamosquenãoserãopublicadasnoAvante!rubricascomo
nomedessefascistaebufo.”
3.5“Provocadoresetraidores”
Amiúde no mesmo texto são denunciados militantes que traem os
companheiroseoutrospessoassobreasquaishásuspeitasdesereminformadoresou
mesmomembrosdaspolícias.Éumaamálgamapropiciadoradeumaconfusãoentre
quemfalavanaprisão,osinformadoresdapolíciaeosagentesdaPIDE.Aoabranger
sobomesmotítulocasosdiferentes,estasrubricasregularesnoAvante!colocamao
mesmo nível a polícia, quem colabora com ela e os que fraquejaram nos
interrogatórios sem que, no entanto, se tenhampassado para o outro lado ou cuja
fraquezanãosignificouumatraição.
63
A questão da diferença entre trair e fraquejar, à qual já nos referimos ao
citarmos José Pedro Soares, atravessa todo o debate em torno do mau
comportamentonaprisão.Numdepoimentoprestadonaqualidadede antigopreso
político,ohistoriadorFernandoRosasestabelececlaramenteadistinçãoentrequem
traiuequemfraquejou.“Honraparaosqueresistiramegranderespeitoparaosque
nãoresistiram.Sãopessoasque,apesardetudo,nãodesistiramdassuasconvicções,
nãodesistiramdassuasescolhasearriscaram.Equemerecemonossorespeito.Sónão
merecerespeitoquemsebandeouparaoladodelá,quemtraiu,noverdadeirosentido
dotermo,quemsebandeouparaoinimigo,sedispôsvoluntariamenteapassarparao
outro ladopara trairasuagente.Essesnãomerecemrespeitonenhum.Aquelesque
lutaram e não se aguentaram, que lutaram e não conseguiram, merecem todo o
respeito”73.
Essa diferença existia ao nível interno, mas publicamente, nas páginas do
Avante!,comojásublinhámos,elanãoeraclaraeéreconhecidohojequehouvecasos
de injustiça na denúncia pública. Domingos Abrantes assume: “Houve casos de
injustiça,masonúmerodebufoseraenorme.Chegavaainformaçãodedeterminada
fábrica em que o porteiro era bufo, era dado como certo e emmuitos casos eram
mesmo(...)o perigo de pôr em causa a organização do partido era enorme. Por isso,
valiamaisagenteassumirqueé[bufo]doquepensarquenãoé,porqueasegurança
eratudo(...)Acimadetudoestavaasegurança.Épreferívelcometerumainjustiçado
que se pôr a segurança em perigo. É verdade que se pode arriscar pôr em causa a
honestidadeeobomnomedeumapessoa,mas,noutroscasos,pode-sepôremriscoa
própriavida,aorganização,tudo”.
AdenúncianoAvante!caracteriza-seporumalinguagemparticularmentedura
queMargaridaTengarrinhajustifica:”Algunscamaradasforammiseráveiseofactode
sedenunciarqueeratraidoreraimportanteecontinuoaacharisso.Numavidacomoa
quenós tínhamos,naclandestinidade,eravitalqueas traições fossempublicamente
denunciadas”. A militante comunista reconhece que houve casos em que a polícia
políticaengrandeciaasuaatuaçãopropagandeandoterconseguidovergarprisioneiros
73AranhaandAdemar,p.120.
64
nosinterrogatórios,masassume:“MaisdoqueapropagandadaPIDE,osfactoséque
demonstraram as traições. Porque se um traidor conhece determinadas células e se
essascélulascaemnamãodaPIDE,nãoéaPIDEqueestáadisfarçar,foiotraidorque
denunciou. O traidor é descoberto pela sua própria traição.(...) E se não for
denunciado, o traidor pode continuar a fazer um péssimo trabalho junto dos
camaradasquenãosabemqueeleumtraidor.Quandootraidorpassaaserconhecido,
háumcorte,aPIDEdeixadeandaratrásdeleediminuioriscodeoutroscamaradas
serempresos.(...)quemassumiu,porseuhonra,aresponsabilidadedenãotrair,essa
pessoadevesofrercomotraidoroquejásabiaqueiriasofrerporisso”.
Umexemplodeexposiçãopúblicadeelementosdapolíciapolítica infiltrados
pode ler-se na primeira quinzena deDezembro de 1942, num texto que adverte os
leitoresparaos“PoliciaseProvocadores”:
“Participamos a todos os anti-fascistas e especialmente aos das
Construções Navais de que Carlos Paiva Mendes, serralheiro civil, que
trabalha nessa empresa, é uma agente policial e de distingue
particularmente na denuncia de operários, quando dos últimos
acontecimentos. Previnem-se igualmente os operários da Fábrica de
Cimentos Tejo que, segundo nos informam, o engenheiro Sousa Lobo é
polícia da P.V.D.E. O nº da sua ficha é o 81. Em Coruche, existe um
indivíduo, negociante de cortiça conhecido por sr. Silva, que é de Lamas
(Feira) e fazmuitas viagensa Lisboa. Esse ‘cavalheiro’ estáao serviçoda
políciadeinformações”.
Deoutrotipodetexto,comomesmopropósitodedenunciaragentespoliciais
ou informadores, é exemplo o publicado na segunda quinzena de Julho de 1942,
intitulado,“Aviso”:
“Prevenimos todos os anti-fascistas que o automóvel da marca Willis,
preto, com friso vermelho, que tem amatrícula LB-10-12, tripulado pelo
motoristaCasimiroRoqueeque fazpraçaemS. SebastiãodaPedreira,é
suspeito,poisomotoristaéumpolíciaeandaarmado”.
Sãousadosalgunselementosidentificadoresacessóriosdapessoaadenunciar,
65
bemcomohábitosouproximidadesdeamizadeefamiliares.Éoquesepodelerna1ª
quinzenadeJulho,naqualháumtextodedenúnciadedois“esbirrosdofascismo”e
depessoasquelhessãopróximas:
“Francisco RebeloMesquita, director do ‘Notícias de Famalicão” e sócio-
gerente da Tipografia Aliança, também de Famalicão, é da polícia de
Informações.Suamulher,queé telefonista,namesmavila, fazserviçode
denúncias. João Arnaldo Rodrigues da FonsecaMaia, que vive no Porto,
desenvolve uma imensa actividade policial. Está para casar com uma
raparigachamadaHelenaGonçalves,quehápoucoeraaindaempregada
dacasaBial,comquemtambéménecessárioterprudência.”
Namesmaedição,umtextointitulado“Traidoresàclasseoperária”,érevelada
aatitudedeumantigoanarquista:
Quando das greves operárias de outubro-novembro (...) o antigo
anarquista Domingos Miguel, aproveitando a influência que exercia em
Almada,sabotouomovimentodasuafábrica,aconselhandoporinstigação
dopatronato,osseuscompanheirosdefábricaaretomaremotrabalho.(...)
Aoreferirmosestefactonãoofazemosparaferirosanarquistassinceros,
que lutam com as massas como dignos filhos da classe operária.
Desmascaramos este traidor este traidor à classe operária como temos
sempredesmascaradoostraidoresquepertencemaonossopartido.(...)”.
Maisdois“provocadores”sãoreveladospublicamentenaediçãoseguinte:
“Manuel Tavares, de 18 anos, baixo, de cabelo louro, encaracolado, é
políciadeinformaçõesefaztodososdiasopercursoPinheirodaBemposta-
Porto.AlfredoDiasdeCarvalho,chefedabrigadadebalanceiros,Alhandra,
entregoudoisoperáriosàpolícia”.
Adescriçãofísicadossuspeitosdeseremagentesouinformadoresdaspolícias
é recorrente nos avisos publicados no Avante!. Numa notícia inserta no nº42, da
segunda quinzena de Outubro de 1943, são enumerados os “sinais” de alguns dos
“políciaseprovocadores”.
Umoutro aviso curioso é o que se pode ler na 1ª quinzena e Novembro de
66
1943:
“JoséGonçalvesdaLeonor,queemtemposfoimilitanteoperário,dedica-se
afazerviagenspelaprovíncia,dirigindo-seaanti-fascistas,burlando-osem
quantiamais oumenos elevadas, o que consegueumas vezes dizendo-se
perseguido político, outras vezes pedindo dinheiro para fins
revolucionários, outras vezes, ainda, afirmando sermembro do P.C., etc.
etc.”
NaprimeiraquinzenadeJulhode1944,vemosmaisumexemplodopormenor
aquechegaàdiscriçãofísicadeumindivíduoedasuavestimenta,chamadoGabriel
Gonçalves,acusadodeseragentedaP.V.D.E.:
(...)“Ébaixo,magro,aparentando20a25anos.Pelobranca,cabelo louro
muito claro, colarinhos engomados, com fato cinzento às riscas algumas
vezes, outras vezes de fato preto, sempre bem vestido. Fala muito bem
inglês. Faz serviço principalmente entre Espinho e Porto, e no Porto,
sobretudo no Café Imperial e na zona compreendida entre a Praça da
Liberdade e a do Marquês de Pombal. Mora na Pensão Minho, rua
FernandesTomaz.”
O mesmo tipo de linguagem é usado para expor publicamente os que
fraquejaramnaprisão.Eessadenúnciatantovaliaparaquemtinharesponsabilidades
no aparelho clandestino e, por consequência, as suas revelações à polícia política
representavam realmente um perigo para a segurança do partido e dos militantes,
comoparaquemselimitaaconfirmarnomesqueapolíciaatiravaparainterrogatório
enadasabiasobreonívelsuperiordaorganização.
Nonúmeroseguinte,deOutubrode1952,é reveladoraanotíciadoAvante!,
intitulada “Alerta contra os traidores e provocadores” na qual, em termos quase
idênticossedenunciatraidoresedissidentes.
“Joaquim Ventura, de Monchique e o dr. António de Sousa, ambos
residentes actualmente em Lisboa, são dois traidores da pior espécie.
JoaquimVentura,quedesertouda lutaepassoua terumavidasuspeita,
facilitou a sua prisão pela PIDE e entrou abertamente no caminho da
67
traição.PostorapidamenteemliberdadepelaPIDE,passouaservi-lacomo
agente provocador. António de Sousa, que muita gente julga ser um
intelectual progressivo, é um reles burlão que se apoderou de bastante
dinheiro que se destinava à luta democrática. (...) Gabriel Pedro, Carlos
CarvalhoeAialasãotrêscaluniadoreseintriguistasdapiorespécie.Aialae
Gabriel Pedro acobertaram e defenderam até ao fim o miserável Mário
MesquitaeentraramnocaminhodaintrigaecalúniacontraaDirecçãodo
Partido e o saudoso secretário-geral Bento Gonçalves, não obstante este
ter sidoassassinadohá já10anos.CarlosCarvalhoparaacobertara sua
cobardia ante o agudizar da luta, escolheu o caminho da intriga e da
calúniaàDirecçãodoPartidoedeoutroscamaradas.
Toda esta gente acobertada por uma pseudo discordância com a
orientação do Partido, fazem um trabalho de desagregação e de
provocação, usando para tal da arma torpe da intriga e da calúnia. Esta
acção provocadora prejudica fundamentalmente a unidade dos
democratas,patriotaseamigosdapaznasua lutapelaDemocracia,pela
IndependênciaNacionale pelaPaz.TodososmembrosdoPartidodevem
escorraçar estes provocadores do seu convívio e desmascará-los
implacavelmente.AconselhamososdemocratassemPartidoaseguiresta
mesmaorientação.
Osquesentiremreceiodetomarumaposiçãofirmedevemrepararqueé
justamentenocontactocomespiõeseprovocadoresqueseenxovalhame
searriscamaoperigodeseveremenvolvidosemprovocaçõespreparadas
poreles.
Escorraçar do nosso convívio e desmascarar sem vacilações os traidores,
provocadoreseespiões,esteéocaminhojustoaseguir.”
3.6“Miseráveis”
Já sublinhámos que o substantivo “miserável” é uma das designações mais
usadas pelo Avante! para se referir a traidores, que nalguns casos são também
68
dissidentes, incluídos todos também na categoria de “inimigos do povo”, como
tambémjáfizemosreferência.
Esses militantes caídos em desgraça e denunciados publicamente só podem
esperardesprezoporpartedopartidoedacomunidadeemqueestão inseridospor
viadascumplicidadescriadaspelaresistênciaàditadura.Exemplaréotextopublicado
emJunhode1959,intitulada“TrêsinimigosdoPovo”:
“OAvantedenunciahojetrêsmiseráveisque,bandeando-secomoinimigo
fascista, prestam serviço activo aos opressores do nosso povo. São eles,
José ouManuelMarinho, ex-empregadoda CUFdoBarreiro,Manuel de
DeusAmador,ex-empregadodaHeuser&Fernandes,doPoçodoBispo,e
Joaquim Malaquias, ex-operário corticeiro, de Santiago do Cacém. Estes
trêsmiseráveisdevemserexpelidosdoconvíviodetodaagentehonestae
votadosaodesprezoeaoisolamento.Entreeleseonossopovonadapode
haverdecomum”.
Aqui, o conceito de comunidade é alargado para “gente honesta”, encarado
como sinónimode “povo”.Ou seja, em relaçãoaos suspeitosde traição,nãobasta
bani-los da família comunista, é sugerido que sejam excluídos de todo o convívio
social. Dois números depois, em Setembro de 1959, um desses “inimigos do povo”
voltaa sernotícianoAvante!paraque fique claraeprovadaaeficáciadadenúncia
anterior.
“Asmassaspopulares repelemos traidores.O traidorManuelAmador foi
colocado pela PIDE como apontador na fábrica SIAM de Alhandra. Ao
terem conhecimento de quem era o novo apontador, quase todos os
operários da fábrica se dirigiram à gerência pedindo que o tal indivíduo
fosseexpulso.(...)eisumexemploquedeveserseguido”.
Oepítetode“miserável”surgeparaapodarmilitantesdopartido,cujatraição
acabaria por causar danos graves no aparelho clandestino. É o caso de JoséMiguel
(‘Lambanas’),queàépocadasuaprisão(presoa28deFevereirode1961elibertado
dois meses depois), era membro suplente do Comité Central, e que foi notícia na
primeiraquinzenadeJulhode1961:
69
“(...) o miserável José Miguel, cuja permanência no partido era ainda
produto dos restos da tendência anarco-liberal denunciada e combatida
pelo Comité Central, traiu criminosamente o nosso Partido. Para melhor
atingirosseusfins,esteviltraidorprocurouinicialmenteenganaroPartido.
Porém,umavezpostoemliberdade,desmascarou-seaoactuaremaberta
econfessadacolaboraçãocomaPIDE.Atraiçãodestecanalhaéumcrime
contraonossopovoquelutaparaderrubarofascismo.OComitéCentral,
aoexpulsardas fileirasdoPartidoeste infametraidor,aponta-oa todoo
povo como um inimigo ao qual deve ser manifestado o maior desprezo
ondequerqueseencontre.”
AlémdestanotíciadoAvante!,umavezqueJoséMigueleraoperárioagrícola
deVilaNovadeSãoBento,noconcelhodeSerpa,ojornalOCamponês,nasuaedição
nº86, de Maio-Junho de 1961, denuncia a traição e apela ao “ódio sagrado dos
trabalhadores”. A 17 de Julho, José Miguel foi encontrado morto com três tiros à
queima-roupa. A execução de José Miguel, como, aliás, qualquer outra, não foi
assumidapeloPCP,mas.deacordocomumdocumentoapreendidoaBlanquiTeixeira,
citado por José Pacheco Pereira74, “a sua traição encontrou pela frente três balas
justiceirasdenãosabemosdequerevólvereaignomíniadesceuàcovacomele”.
A linguagem usada na denúncia pública dos traidores revela, como temos
notado, um apelo à condenação ao desprezo, ostracismo e até à vingança, mas a
questãodocastigoaaplicaraostraidoresnuncafoiclarificada.
A propósito de um outro dirigente, Rolando Verdial, cuja traição teve
consequênciasmais graves do que a de JoséMiguel, há relato75de uma reunião da
Frente Patriótica de Libertação Nacional, na qual Cunhal, mantendo-se contra a
eliminaçãofísicadetraidores,teráadmitindo:“emborasejambemmetidastrêsbalas
nocorpodos traidores”.OcasodeVerdialé interessante isolarporser reveladorde
diversosníveisdeprotagonismopúblico.
74Pereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica,OSecretário-Geral(1960-1968),p.54..75Pereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica,OSecretário-Geral(1960-1968)p.249.
70
Em Novembro de 1960, Verdial começa por ser notícia através damorte da
mãe,queérelatadanoAvante!,emfunçãodasituaçãoemqueseencontravaofilho,
preso em Caxias. Os termos do texto são interessantes numa análise de conteúdo,
umavezqueapelamàemoção,numquadrodedicotomiaentreverdugoseherói:
“D. Emília Verdial, morte em consequência das perseguições às famílias
dos presos.D. Emília Verdial,mãe do democrataRolandoVerdial que há
longosanosaguardajulgamentonasprisõessalazaristas,veionodia6de
Outubro a Lisboa visitar o seu filho ao Forte de Caxias. Nessa Bastilha
salazarista não lhe foi permitida a visita por ter chegado algunsminutos
depoisdahora.Oscarcereirosnãoatenderamàsuaavançadaidade,não
tiveram em conta a dispendiosa e fatigante viagem que fizera nem se
sensibilizaram com a dor de umamãe que tem um filho encarcerado há
longos anos. No dia seguinte concederam a visita mas preparavam um
suplíciomaior:nãoconsentiramqueospaisseaproximassemdofilhonem
o beijasse e abraçassem. E assimmais umatentado contra a perseguida
família Verdial: passadas algumas horas e já no regresso ao Porto, D.
Emília Verdial não resistiu ao sofrimento que lhe infligiram chegando já
semvidaàsuaresidência.OscriminososdaPIDEnãoficaram,porém,por
aqui. Não autorizaram que Rolando Verdial, mesmo sob prisão, se
deslocasseaoPortoparafazerasderradeirasdespedidasasuamãe(...)”
RolandoVerdialseriaposteriormentepostoem liberdadeeé jáemFevereiro
de1963queoAvante!noticiaumanovadetenção,numa‘orelha’da1ªpágina,aolado
docabeçalho:
“Nanoite de 3 de Fevereiro umabrigadada PIDE prendeunuma rua de
LisboaRolandoVerdial,funcionáriodonossoPartido.Emdiasanterioresa
PIDEprenderaoutrosmilitantes comunistas do sector de Lisboa. Rolando
Verdial,queagoraépresopelaquartavez, jápassou8anosnas cadeias
salazaristasdeondeseevadiuporduasvezesem1957eem1961.Neste
momento, Rolando Verdial e os seus companheiros estão sofrendo as
torturas da PIDE. Defendamos a vida destes lutadores, prestando-lhes a
71
nossasolidariedademoralematerialedirigindoprotestosàsededaPIDEe
aogoverno”.
Na edição seguinte, surge uma nova notícia, também na primeira página do
jornal. Desta feita, além de serem revelados novos pormenores sobre o aparato
público que levou à sua detenção, é avançado o nome do “traidor” que o terá
denunciadoàpolícia.
“No dia 3 de Fevereiro, foi preso numa rua de Lisboa Rolando Verdial,
entreguemiseravelmenteàPIDEpelotraidorPedroManuelSantos(...).As
vidas de Rolando Verdial e dos outros membros do Partido presos na
mesma altura, devem ser salvas. Que sejam enviados postais e feitos
centenas de telefonemas para a PIDE e M. do Interior, exigindo a
comunicabilidadeelibertaçãodeRolandoVerdialeseuscompanheiros.”
Mas três edições depois, na 2ª quinzena de Maio de 1963, nas páginas do
Avante!,RolandoVerdialdeixadeseroheróitraídoparapassaratraidor,numtexto
quetemcomotítulo“SalvemosFernandoBlanquieosseuscompanheiros”:
“OPartidoComunista,quenãopoupaesforçosnalutapeloderrubamento
daditaduraterroristadeSalazar,foiatingidopornovogolpepolicial.Num
ofensiva simultânea, as brigadas da PIDE, apoiadas pela PSP, assaltaram
numerosas casas na região de Lisboa e em Coimbra, fazendo diversas
prisões.(...listadepresos) OcomunicadodaPIDEmente!APIDEgaba-se
de,graçasàssuas‘investigações’terlocalizadoFernandoBlanquieosseus
companheiros, mas a verdade é que este golpe da PIDE se deve
inteiramenteàmiserável traiçãodeRolandoVerdial,queforapresoem3
deFevereiropassadoequeseaproveitoudaconfiançaqueganharanoseio
do Partido e do movimento anti-fascista para denunciar à PIDE os seus
antigos companheiros de luta.A traiçãodeRolandoVerdial confunde-se
inteiramentecomaescumalhadecriminososdaPIDEeomesmodestino
queosseuscúmplices.”
Aspalavrasdedenúnciadotraidorvãotornando-semaisacutilantes,àmedida
que os efeitos da traição são conhecidos na máquina clandestina. É assim em
72
Setembrode1963,onomedeVerdialvoltaaserexpostopublicamente,nosseguintes
termos:
“(...)nodecorrerdetãoárduacomohonrosalutatêm-sereveladoosnomes
dosheróisemártiresdonossopovocujamemóriaperduraránamentee
coraçãodaclasseoperáriaedopovoportuguês.Masadurezadalutatem
revelado também os pusilânimes cobardes que não souberam enfrentar
dignamente o inimigo fascista ao serem presos pela PIDE, traindo assim,
todos os seus compromissos. Estão neste caso os dois indivíduos cujos
nomeshojeexpomosàexecraçãopública–RolandoVerdialeIsidroPaula.
Pelosseuportemiserávelestastraidorestransformaram-seemservidores
dosinimigosdaclasseoperáriaedopovoportuguêsfacilitandoaacçãoda
PIDEcontraoPartidoeoPovo”.
Sematenuantesnemcontemplações,Verdialéincluídonoroldosinimigosda
classeoperáriaperanteacomunidadedosleitoresdoAvante!,cujamaioria,dadasas
circunstâncias da clandestinidade, desconhece a real dimensão dos estragos que a
traiçãoprovocounoaparelhopartidário. Éohistoriador JoãoMadeiraque se refere
aos “efeitos devastadores das declarações prestadas na polícia por quadros
importantesdopartido–RolandoVerdialem1963,NunoÁlvaresPereira,em64-65,
FernandodeSousaem67eAugustoLindolfoem1971–nãosóprovocavamsucessivas
razias nas fileiras partidárias como alimentaram a reserva, a desconfiança e o
distanciamento”76. É o mesmo autor que revela serem difíceis de contabilizar “os
efeitosdirectoseindirectosdasdeclaraçõesprestadasporRolandoVerdialnapolícia,
em1963,comquempassouacolaborar,remuneradoeprotegido.Masessesefeitosna
MargemSul,naregiãodeLisboa,comoportodasaszonasporondepassouedeque
tinhaconhecimento,foramdevastadores.”77
Domingos Abrantes, que privou com Verdial na clandestinidade, comenta o
conteúdodasnotíciasdoAvante!,nasquaisumheróipassaavilãodeumaediçãopara
outra.“Éumfacto.SemetivessemditoqueoVerdialse iaportalmal,custava-mea
76Madeira,p.718.77Madeirap.786.
73
acreditar,masaconteceu.Achoqueeletinhaumdesequilíbriopsicológico,masnunca
acheiqueele ia falar.Essasnotícias, tantoasqueexaltavamobomcomportamento
comoasquecriticavamomau,eramimportantescomoestímulo,comoexemplo”.
4.Heróis
4.1”Liberdadeparaospresos!”
Seháheróisnamilitânciacomunistacontraaditadura,noOlimpoestãoosque
naprisãodavamoexemplocomobomcomportamentonosinterrogatóriopoliciaise
napreparaçãodasfugas.Afugaeraumaconsequêncialógicadaprisão.Comoescreve
CarlosBrito,relatandoaospreparativosparaasuafugadacadeiadoAljubeemMaio
de 1957, “mal assentámos arraiais nas novas instalações, começamos a avaliar as
possibilidadesdefuga.Aocabodeumasemana,nãomais,decogitaçõesindividuaise
reflexõescolectivasarespostafoiafirmativa:haviacondiçõesdefuga”78.Nasegunda
quinzenade Junhode1957,oAvante!deudestaqueaessa fuga, como sempre fez,
exaltando-acomoatoheroicodequemparticipounela:
“Ganhandoforçaeaudácianasuafirmezadelutadores,jácomprovadaem
muitasacçõesdemocráticasperanteoinimigo,ocamaradaAméricoG.De
Sousa e os democratas Rolando Verdial e Carlos Brito conquistaram a
liberdadeatravésdeumacorajosafugadoAljubedeLisboa.(...)saudamos
todososcamaradasqueigualmenteediariamentelevantamnasprisõese
foradelasagloriosabandeiradoPartidoComunistaPortuguês”.
Entreosgrandesatosheroicos,afugadeÁlvaroCunhal integradonumgrupo
dedezpresosdacadeiadePenicheestáemprimeiro lugareocupaquasetodaa1ª
páginadaediçãodaprimeiraquinzenaJaneirode1960,sendoqueorestanteespaçoé
preenchidocomoutrasnotíciasrelacionadascomasituaçãodospresospolíticos.Uma
1ª página plena de heróis. Da notícia da grande fuga, vale a pena reproduzir uma
saudaçãodosevadidos,umaespéciedemanifestopolítico,querevelaaconsciênciado
78CarlosBrito,TempodeSubversãoPáginasVividasDaResistência(NelsondeMatos,2011),p.73.
74
impacteaevasãonosmeiosoposicionistas,bemcomooalcancedoAvante!alémdos
militantes:
“Ao alcançarmos a liberdade e ao retomarmos o posto de combate,
suadamosantesdomaisonossoPartidoeoPovoPortuguês,afirmandoa
nossadeterminaçãodeosservircomoatéhojenalutapelainstauraçãoem
Portugal de um regime de liberdade e legalidade. Saudamos todos os
portugueses honrados, qualquer que seja a sua ideológica e crença
religiosa; saudamos todas as forças e correntes anti-salazaristas,
salientando a importância e a urgência da Unidade como condição
fundamental para a solução do problema político português. (...)Muitos
dedicados filhos do povo português continuam nas prisões fascistas,
sofrendo torturas e longos anos de prisão. A acção dos patriotas
portugueses apoiada pelos trabalhadores e democratas do mundo
conseguirálibertá-lostambém.”
Como já fizemos referência neste trabalho, é possível percepcionar que em
determinadosmomentospolíticos,oAvante!teráumamaiornotoriedade,atéporque
a imprensa legal estava sujeita ao regimede censuraprévia. Tantoo julgamentode
Cunhal,comoafugadePenichesãodoisdoscasosparadigmáticosdessesmomentos
susceptíveisdealargaraaudiênciadojornal.
Enquanto esteve preso, Cunhal nunca deixou de estar presente no órgão
central doPCP,ora comnotícias sobre asmedidasdeexceçãoaqueestava sujeito,
como na edição de Setembro de 1953, na qual surge uma fotografia (a única) a
acompanharo textona1ªpágina, ora emcampanhaspermanentes a exigirema sua
libertação. O julgamento de Álvaro Cunhal no tribunal plenário da Boa Hora, em
Lisboa, que decorreu entre 2 e 9 de Maio de 1950, foi notícia em duas edições
consecutivas,emJunhoeJulho.Noprimeironúmero,o148,érealçadona1ªpáginao
atoheroicodeCunhal:
“Depoisde15mesesdeprisão,praticamenteincomunicável,semquaisquer
meiosparaprepararasuadefesa,ÁlvaroCunhal,dirigentequeridodoPCP,
levado ilegalmente ao tribunal, fez deste uma tribuna, onde expôs e
defendeu publicamente com vigor a linha política e os objectivos do seu
75
partido. Ao fazê-lo, ele sabia que, pra além do tribunal, o escutavam
atentamente todos os militantes do PCP, a classe operária, todos os
trabalhadores, todoopovo laboriosoeoprimidodePortugal. (...)Escrevei
por toda a parte, nos muros, nas estradas, nos comboios, em todos os
lugarespúblicosLIBERDADEPARAÁLVAROCUNHAL”.
Naediçãoseguinte,épublicadograndepartedotextodadefesaeCunhalvolta
aseroassuntoprincipalatodaalargurada1ªpágina:
“Enfrentando firme, corajosa e serenamente tribunal fascista onde o seu
‘julgamento’iaterlugar,ÁlvaroCunhal,dirigentequeridodoPCP,ergueu
ali a tribuna onde o acusado passou a acusador (...) E Álvaro Cunhal
termina:’...quesesentemosfascistasnobancodosréus,quesesentemo
bancodosréusosactuaisgovernantesdaNaçãoeoseuchefeSalazar’.”
E, tal como é prática habitual para os históricos dirigentes comunistas
internacionais,sãoassinaladosnoAvante!osaniversáriosdeCunhal.EmNovembrode
1953 pode ler-se na 1ª página: “Saudemos o 40º aniversário de Álvaro Cunhal
intensificandoalutapeladefesadasuavidaepelasualibertação.(...)Salvemosavida
preciosa de Álvaro Cunhal.” A notícia é completada com a publicação na íntegra da
saudaçãoenviadaaCunhalporJacquesDuclos,emnomedocomitécentraldoPartido
Comunista Francês, na época, o secretário-geral interino, devido a ausência por
doençadeMauriceThorez.
É sabida a preocupação posterior de Cunhal em combater o culto da
personalidade,masénotórioqueapartirdosanos40o seunomepassaa seruma
referênciaparaosmilitantes comunistase, gradualmente,alargaa sua influênciano
quadrointernacional.ComoohistoriadorJoséNevesescreveu,“àmedidaqueassumiu
papel de destaque no seio do PCP, Cunhal foi objecto de atenção e cuidado sempre
especiais. Entre os militantes anónimos, houve quem lhe dedicasse versos de
homenagemequemaosdescendentesdesseoseuprimeironome.”79Oautoracentua
tambémcomofoioregimedeSalazar/Caetanoqueomantevepresodurantequinze
anos,acontribuirparatornarafiguradoantigosecretário-geraldoPCPumexemplo,
79Neves(coord.),p.11.
76
“ao tomarem-no como encarnação doMal, igualmente o investiram de um enorme
poder simbólico, que outros acabaram por reconduzir à figura de Cunhal enquanto
singularexemplo, senãosimplesmentedoBem,deumanoçãodeÉticaoudeMoral
sempreescritacommaiúscula.”80
Nodiscursodosmilitantes, revela-seuma tentativade contrariara tendência
para heroicizar a figura de Cunhal, ao arrepio do que se verificou no Avante!
clandestino,queocolocounopedestaldosheróis.Exemplaresdessatendênciasãoas
palavras de José Pedro Soares, que, admitindo ter sido pessoalmente com o seu
percursopolíticodecomportamentonaprisão,“umexemploparamuitos”,dizquede
ÁlvaroCunhal“sósabiaqueeraumartistaeescreviamuitobem”.Osseusheróiseram
Dias Lourenço, JoséMagro,Octávio Pato, Severiano Falcão,militantes exemplares e
maispróximosdasuaexperiênciapessoal.
JáparaMargaridaTengarrinha,queem1962,emMoscovo,foiumaespéciede
secretária de Cunhal, quando este estava a preparar o texto programático “Rumo à
Vitória”, “a exaltação de alguns heróis é compreensível porque eles servem-nos de
exemploefazempartedaeducaçãodosmaisnovos.Usarmosoexemplodavidadessa
genteparadefinirmosonossoprópriocaminho.”
NoAvante!,Cunhal,defacto,nãoestásozinho.Apardasfigurasincontestadas
dopartido,comoBentoGonçalves,cujoaniversáriodasuamorteésempreassinalado,
de JoséGregório, deMilitãoRibeiroou e FranciscoMiguel, só para citar alguns dos
maispresentes,aspáginasdojornalestãorecheadasdehistóriasexemplares.
EmJaneirode1963,“Umexemplo”énofemininoevemdoCouço.Depoisde
relatar com pormenores as torturas a que foi sujeita e indicando os nomes dos
agentesdapolíciapolíticaqueainterrogaram,otextosobreMariaCustódiaChibante,
doCouçoterminaassim:“(...)estevepresacincomesesemeiosemvisitasdafamília,
semlivrosnemjornais.Foirecebidanaterrapor400pessoasquealevaramacasa.(...)
Elavinhaalegreeconfiantedasuahonradezefirmeza”.
80Neves(coord.),p.12.
77
Osexemplossãotambémrealçadospeladimensãodasuarepercussãoentreos
militantes.EmAbrilde1969,oAvante!publicaumacartadirigidaaCanaisRocha,que
seencontravapreso,assinadapormilitantesportuguesesebelgas,expressandoapoio
eadmiraçãoaosindicalistacomunista.Estetextoésingularporqueretrataaatenção
dada ao posicionamento dosmilitantes portugueses na emigração, uma vez que no
finaldadécadade60osemigrantesrepresentamumalfobreconsideráveldeoposição
àditadura.Nofinaldareproduçãodoconteúdodacarta,lê-se:
“Estacartatestemunhaoamploecodacondutafirmedoscomunistasante
o inimigo. Embora presos e torturados, os nossos heroicos camaradas
continuam,comoseuexemplo,adarcontribuiçãoefectivaàlutadopovo
português”.
CanaisRocha,falecidoem2014,marceneiroqueviriamaistardeasermestre
emHistória Contemporânea, foi elevado à categoria de herói,mas acabaria por ter
umaquedaabruptadessepedestal.LogoaseguiràRevoluçãode1974,osindicalista
comunista foi eleito, a 27 de Abril, em plenário de sindicatos, o primeiro secretário
geraldaCGTP-IN.Poucotempodepois,emAgostodessemesmoano,foisubstituídoe
expulsodoPCP,porterfraquejadoquandoestevepresopelasegundavezem1968.A
estruturadiretivadopartidosóterátidoconhecimentodafraquezadeCanaisRocha
peranteapolícia,depoisdo25deAbril. Foiesse facto, aliás,queagravoua sanção,
porque os militantes que eram presos tinham obrigatoriamente que relatar as
condiçõesdaprisãoeconteúdodosinterrogatórios.ComoDomingosAbrantesconta,
“aprimeiracoisaquesefaziaquandosechegavaàcadeia,depoisdosinterrogatórios,
erarelatarcomoéquefomospreso,comonosportámos,oqueapoliciasabiaenão
sabia, se tinhahavido tortura,que tortura”.EmrelaçãoaocasoparticulardeCanais
Rocha, JoséPedro Soares consideraqueoantigooperárioe sindicalista só terá sido
expulsodopartido“porqueomitiuterfraquejadoperanteapolícia,nãoporcausada
traição.”
A exaltação dos heróis é também feita através de textos não atribuídos
especificamenteaumdeterminadomilitantepreso.Temparalelismocomasimbologia
do “soldado desconhecido”, o que se pode ler em Setembro de 1959, sob o título
78
“Mensagem de um Herói”, como se tratasse de um texto ficcionado destinado a
transmitirexemplosaseguirporquem(ainda)nãofoipreso:
“Dentre as centenas de patriotas caídos nas garras do inimigos, surgem
exemplos de luminoso heroísmo, enormes na sua simplicidade, que são
espelhodalutapatrióticadonossopovocontrasosopressoressalazaristas.
Publicamos a seguir o fragmento duma mensagem dum desses simples
heróisquesouberamdignificarasagradacausadopovo:‘Fuipresoelogo
no2ºdiafuichamadoàPIDEepuseram-me6diase6noitesseguidasde
estátua e sem me deixarem dormir, depois mandaram-se para um cela
ondemedeixaram10dias.Saidaestátuatodoinchadodosjoelhosatéaos
pésemaisalgumacoisa.Depoisde10diasdecelafuinovamenteparaa
estátua onde estive mais 3 dias e 3 noites. Querem que reconheça
fotografias.Mantenho-me firme emanter-me-ei sempre firme. Se algum
doscamaradasdaorganizaçãoforpreso,asalvaçãoseránãodizernada,
negartudo,nãosedeixemlevar.Elesdizemquesabemedãodadoscertos
comoprovasenãonosdeixamdormirdediaedenoite; chegamosaver
bichos,ochãoaandarparacimaeparabaixo,acabeçaocaegelada,mas
é uma grande alegria passar tudo isto e olhar para o futuro sem corar.
Neguemtudomesmocomprovas”.
Ainformaçãoqueoscomunistaspresospassavamparaoexterior,alémdeser
material de prova da conduta assumida perante a política e durante o tempo de
prisão,constituíaumelemento relevanteparaopartidoconstruirodiscursopolítico
deoposiçãoàditadura.EoAvante!clandestino,cujaredededistribuiçãoextravasaa
dosmilitantes, é o canal de divulgaçãomais eficaz, num quadro de censura prévia
sobre os órgãos de informação. O jornal torna-se essencial para manter os presos
comunistas informados sobre a vida interna do partido, do país e do mundo e,
simultaneamente, transmitir para o exterior informações sobre os maus tratos
infligidospelapolíciapolítica.Opequenoepoucoespesso jornalera introduzidonas
cadeiase,talcomocáfora,circulavademãoemmão.
79
Paraqueainformaçãocirculassededentroparaforaedeforaparadentrodas
cadeias,hárelatosdeformasmuito imaginativasusadaspelospresoseporquemos
visitava.
No forte de Peniche, por exemplo, Carlos Brito conta que “no suporte de
madeiradeumchuveiro,mãoshabilidosas,pacientesepersistentestinhamescavado
uma bonita caixinha, com tampa e tudo, onde cabia um Avante! Clandestino, bem
dobradinho”81.
Semquererpormenorizarosprocedimentosseguidosnointeriordascadeiase
não aceitando esclarecer como chegava oAvante! àsmãos do presos, porque “por
principionãodevemosdivulgarporquepodeviraserprecisonovamente”,Domingos
Abrantesadmiteque“os‘avantes’(eosinformes,comoo‘RumoàVitória’)entraram
sempre e às vezes, como costumo dizer, à tonelada, passavam pelas mãos dos
carcereiros, escondidos em coisas que eles levavam para fora sem saberem o que
estavamafazer”.OAvante!entravanascadeiascomregularidadeesaíaainformação
sobre o que se passava lá dentro. Precisávamos de todas essa informação era
importanteparanosmanteremosapardoquesepassavanopaisenomundo”.
UmexemplodesseexpedienteestáexpostonoMuseudoAljube,comolembra
Abrantes. “Éuma camisa do Jaime Serra, onde ele escreveu informações que foram
levadasparafora.Atravésdasvisitaseraimpossívelporquenãohaviacontactodireto,
mas fabricavam-seobjetos sópara sepassar informaçãoeos ‘avantes’. Eraprecisos
sermosmuitoengenhososporqueserapanhadonacadeiacompropagandadavaum
processodeatividadessubversivasnacadeia”.
DomingosAbrantesnãoesqueceacontarumepisódiodoperigoquecorreuna
cadeiadePenicheporcausadoAvante!:“Umdiaapanheiumsusto.Estavanorecreio
etinhaummolho,umrolo,de‘avantes’nobolso,queeraparadeixaremdeterminado
sítioparaseremlevadosparaoutropavilhão.Adeterminadaaltura,oguardachamou-
meparamelevaraodiretorenãomedissequeeraparaumavisita.Quandoíamosà
visita,emboranãofossepossívelocontactofísico,osguardastinhamohábitodenos
revistarem.Sónocaminhoparaogabinetedodiretoréqueoguardamedissequeia
81CarlosBrito,CadeiaDoFortedePeniche,ComoFoiVivida(AletheiaEditores,2016)p.84.
80
terumavisitadecincominutoscomaConceição[Matos,comquemviriaacasar-sena
prisão], que eu já não via há anos. Eu não tinha sido revistado à ida, mas seria
certamente à saída e fiquei tão preocupado que ainda hoje nemme lembro do que
dissemosumaooutronavisita.Fuielaborandoumaestratégiaeporsorte,oguarda
quemelevavaeraumtipogordocomumcorpodescomunal,quetinhadificuldadeem
andar, e eu era jovem. Logo que acabou a visita, arranquei a esticar o passo em
direçãoaopavilhãoeoguardasódizia,‘sr.Abrantesmaisdevagar!.´Tiveasortedea
portaestarabertaeeuatireioroloparaumpavilhãoqueestavadesativado.Depois,
foiprecisoarranjarumestratagemapararecuperaros ‘avantes’.Entãonós,quenão
trabalhávamos na cadeia, fomo-nos oferecer aos carcereiros para limpar aquele
pavilhão com o argumento de que estavamuito sujo e que cheiravamal. Eles nem
queriam acreditar na oferta e aceitaram. Lá fomos nós, uma vez sem exemplo,
munidosdevassouras,baldeseesfregonas,recuperaros‘avantes’.
Todoessefluxode informaçãodeforaparadentroededentroparaforados
estabelecimentosprisionaiseraorganizadoatravésdoaparelhodopartidonoexterior
eaorganizaçãointernadoscomunistasnacadeia.ComorelataAbrantes, “haviaum
aparelho da direção do partido, secreto, com pessoas de alta confiança que faziam
chegar o material e fizemos sair informação, por exemplo, de angolanos, que não
tinhamorganizaçãoexteriorparaosapoiar.Porexemplo,fizemossairinformaçãopara
oVaticanosobreoJoaquimPintodeAndrade”.
Comunistas que nunca estiveram presos também tiveram conhecimento do
tráfegodeinformaçãoentreointerioreoexteriordascadeias.ÉocasodeMargarida
Tengarrinha, cuja primeira tarefa como militante do partido, em 1952, foi a de
integrar uma comissão de apoio aos presos políticos, dirigida por Maria Machado.
“ÍamosaCaxias,falávamoscomasfamíliasàportadasprisõesparasaberdoscastigos
e dos problemas que pediam para ser resolvidos. Também passávamos informações
clandestinamente. Por exemplo, como eu era do Algarve, lembrei-me de usar uma
caixadesapatoscomestrelasdefigo,comumfundofalso,ondesemetiaoAvante!.As
informações saíam, por exemplo, nas roupas enviadas para lavar, através das
famílias”.
81
Também José Pedro Soares recorda como fez chegar ao exterior da prisão
informações que viriam a chegar à Amnistia Internacional, por exemplo: “Consegui
passaraoMDM(MovimentoDemocráticodasMulheres)umainformaçãoescritaem
mortalhasdecigarrosquepasseiduranteumavisita”.
Sócomaexistênciadessefluxonoticiosopendularentreointerioreoexterior
das cadeias é que se justifica publicação no Avante! de mensagem dirigidas
diretamenteaospresospolíticos.Expressãomáximadessacomunicaçãodeforapara
dentro das cadeias está publicada em Março de 1961, uma edição integralmente
dedicadaao40ºaniversáriodoPCP.Naúltimapáginadojornallê-se:
“Saudaçãoaospesospolíticos” (...) souberamerguerbemaltoabandeira
do partido (...)Em especial para vocês, queridos camaradas que vos
entregasteiscompletamenteàviaeàactividadedopartidoesobrequemo
inimigodescarregaoseuódiomaisferoz”.
Depois de enumerarmais de duas dezenas de nomes de presos e de omitir
outras identificações “por motivos da sua própria defesa”, termina com uma
promessa: “Vós sois, camaradas, o orgulho do nosso Partido, que não esquecerá o
vossobeloexemplodededicaçãoefirmeza.OPartidonãopouparáesforçosparavos
arrancardasgarrasdoinimigo”.
Anãopublicaçãodenomesdealgunsdoscomunistaspresostem,defacto,a
vercomquestõesdesegurançaparaodetidoeparaopartido.ErapráticadoAvante!
nãopublicarnomesdedetidosqueaindaestivessemsujeitosainterrogatórios.Aregra
é confirmada por José Pedro Soares: “Antes de sermos julgados não eram
publicamenteidentificadoscomomilitantesdopartidoeerabemfeitoporquemuitos
denósnegávamosqueéramosdopartidoealgunsnãorevelávamosonossonomeà
polícia.Noquedizíamos,oumelhornoquenãodizíamos,procurávamosretirartodaa
cargainformativaqueaPIDEtinhaeaquerqueria”.
4.2“Inclinamosasnossasbandeiras”
Na constelação dos heróis, osmártires têmumbrilho especial no imaginário
comunista,queestábemvivonaspáginasdoAvante!.
82
Voltandoadarcomoexemploaediçãonº298,ado40ºaniversáriodoPCP,um
dostextosqueojornalpublicachamaaatençãoparaosquemorreramnaresistência
àditaduranosseguintestermos:
“Em 40 anos de luta implacável,muitos comunistas já deram a sua vida
pela libertaçãodoPovo.Passandoaosmilharespelasprisões,suportando
os maiores sofrimentos, dando o melhor do seu esforço á luta, os
comunistasportuguesestêmsidoaguardaavançadadocombatecontrao
fascismo.Aopassaro40ºaniversáriodoPartido,recordemososnomesdos
camaradascaídosnaluta,orgulhodonossoPartidoedonossoPovo”.
ÀcabeçadalistadosmártiresestáBentoGonçalves,mortonoTarrafal,citado
noutrotextonamesmaedição,comoo“obreirodoPartido”,cujo“exemplocontinuaa
continuará sempre vivo no coração de todos os comunistas portugueses”. O texto
terminacomafrase:“Glóriaaosnossomártireseheróis!”.Curiosamente,ausenteda
históriadoPCPnoassinalar do40º aniversário estáonomede JoséCarlosRates, o
primeirosecretário-geral,queviriaaafastar-sedoideáriocomunista,aproximando-se
dabaseteóricadoEstadoNovo.
Poucotempodepoisdetersidoassinaladaessaefeméride,uma“mortesaiuà
rua”,comoadesignouJoséAfonsoaocelebrá-lanacanção,adoartistaplásticoJosé
Dias Coelho, assassinado na rua dos Lusíadas, em Lisboa, quando vivia na
clandestinidade. Um mártir que o Avante! homenageou num texto que viria a ser
redigido por Margarida Tengarrinha, a sua companheira, também a viver na
clandestinidadeeque termina comaspalavrasdopróprioDiasCoelhoescritaspara
homenagearMariaHelenaMagro,falecidanaclandestinidade.
“Não te dizemos adeus, camarada! As tuas mãos cerradas vão com as
nossasmãoscerradas.Atuavozvaicomasnossasvozescantarmaisaltoa
liberdadedonossoPovoe,sobaabandeiraonossoPartido,osteusolhos
hão-deolharcomosnossosolhosoPortugalfelizquenãoreviveste.”
O relato deMargarida Tengarrinhadomomento emque soubedamorte do
seu companheiro revela como as regras do partido na clandestinidade eram
humanamente frias, numa aparente contradição com a heroicidade e humanidade
83
exaltadasnostextospublicadosnoAvante!sobreavidaealutadoscomunistas,nos
quaissesugereumrelacionamentofraterno.
“Só soube que o Zé [Dias Coelho] tinha morrido, já ele estava enterrado.
Vivíamosnumacasaclandestina,comaminhafilhamaisnovaecomoutracamarada.
Ele fazia ligações internacionais do partido na área da cultura e no dia 19 de
Dezembro,tinhasaídodecasaparaumareunião.Comonãovoltou,nemninguémme
fezchegarqualquerinformação,partidoprincípiodequetinhasidopreso.Nodia22
deDezembro,prepareiumsacocomroupadeleparaquelhefosseentreguenaprisão
e saí de casa para o encontro que estava marcado com o camarada que era
responsável por fazer a ligação entremime o secretariado do partido por causa da
redaçãodoAvante!.OencontroeranumaruanazonadeBelém.Quandoocamarada
apareceu,jáumpoucoatrasadoemrelaçãoàhoraprevista,disse-lhequeoZéestava
desaparecido e que suspeitava que tinha sido preso. Ele respondeu-me com estas
palavras: “Não foi preso, foi assassinado. Desmontas a casa e sais”. Antes de se ir
emboramarcouadatadareuniãoseguinte.Fiqueiali comosacodaroupanamão.
Andeiàsvoltaspelasruas,semsaberbemondeestava,meti-menumtáxiparavoltar
para casa, mas não consegui dizer a morada para onde queria ir. Era a zona do
Restelo,easmoradias tinham iluminaçõesdeNatale sóvia luzinhasapiscar.Ainda
hoje,nãosuportoiluminaçõesdeNatal.”
O camaradaque lhedeuanotícia foi FranciscoMartinsRodrigues,queerao
membro da direção do partido na comissão de redação doAvante! e era ele quem
faziaocontactocomMargaridaTengarrinha,enquantoredatoradojornal.Margarida
descreve-ocomoum“umbomcamarada,masumapessoamuitorígida,muitodura,
quenãorevelavagrandehumanidade”.Dizaindatercompreendidoaatitudedelepor
“medoepelanecessidadedeteralgunscuidadosporoZé[DiasCoelho]tersidomorto.
Nem fiquei magoada porque aquilo foi tão duro e todos vivíamosmomentosmuito
difíceis.Houvemuitasprisõesnaquelaépoca,emDezembrode1961.Ostirosdapolícia
corresponderam ao estado de desespero que foi transmitido aos pides por Salazar.
Maistardefiqueirevoltada.NareuniãoseguintedacomissãoderedaçãodoAvante!,
emJaneiro,eudisse‘quemfazanotíciasoueu’,etodaagenteaceitou.Oretratoem
linóleo,feitoapartirdefotografia,quesaiuna1ªpágina,équeeunãoconsegui.
84
O testemunhodeMargarida Tengarrinha remete para uma complexa teia de
cumplicidadesedesentimentosqueaclandestinidadeforjou,ondeoAvante! foium
dosprotagonistas.
Na categoria de mártires foram integrados pelo Avante! comunistas que
morremdemortenaturalmasquepassaramlongosanosnaprisão,sofrendotorturas
ehumilhaçõesequesedestacaramcomoseucomportamentoexemplar.
“OnossopartidoeoAvante! inclinamassuasbandeirasanteamemória
honrada de uma heroína e saudosa camarada, exemplo de abnegação
revolucionária”.
Aheroína descrita na 2ª quinzena deOutubro de 1958 éMariaMachado, a
“obreiradoAvante!”queemboranãotenhamorridoàsmãosdapolícia,étratadacom
honras de mártir porque, como vimos na 1ª parte deste trabalho, foi presa com a
quedadeumadastipografiasclandestinasdopartido.
4.3”Umhomementreasestrelas”
São humanos, mas estão literalmente acima dos outros homens, os heróis
soviéticosque conquistaramoespaço.Numartigopublicadona revista LerHistória,
em 2016, o historiador José Neves, numa reflexão sobre a utopização damilitância
comunista, sublinhaque “talvez tenha sidona segundametadedo séculoXX, coma
corridaespacial,queoutopismotécnico-científicoassumiumaiorimportânciaentreos
comunistas. Nas décadas de 1950 e 1960, os feitos astronáuticos soviéticos foram
entusiasticamentevividosporcomunistasdetodoomundo”.Provadessautopiapode
ler-se na edição nº354, de Abril de 1965, do Avante!, num texto com o título que
ocupa todoo rodapédaúltimapágina, “Umhomementre as estrelas – Sensacional
vitóriacósmica”:
“Nodias18deMarço,aniversáriodagloriosaComunadeParis,ossábios
soviéticos tornavam possíveis os primeiros passos do homem entre as
estrelas.(...)GlóriaàCiênciasoviéticaeaos2Heróis!”.
Amortedograndeheróidocosmos,YuriGagárine,“intrépidocombatenteda
causa comunista”,merece destaque na 1ªpágina doAvante! deAbril de 1968: “Um
85
profundopesartocouopovosoviético,oseuPartidoComunista,ogovernodaURSS,os
comunistaseostrabalhadoresdetodoomundo”.
ClaroqueGagárinefoinotíciaquandorealizouoprimeirovooscósmico,em12
de Abril de 1961 com o título é “O vôo cósmico de Yuri Gagárine mostra a
superioridadesoviética”.
Dois anos depois, “nova vitória cósmica da União Soviética” com a viagem
espacial de Valentina Tereskova, “uma comunista no espaço” que constitui “um
exemplobrilhante(...)queenchedesãoorgulhotodasasmulheresdomundo”.
ComparávelàconquistadoespaçosóaRevoluçãodeOutubro.Oumelhor,sóo
socialismonascidodarevoluçãode1917permitiuquefossemdadosessespassosem
pleno tempo de guerra fria.OAvante! reflete essa dimensão no 50º aniversário da
Revoluçãodedicando-lheumaediçãoespecial,comumafotodeLeninena1ªpáginae
sem qualquer destaque a Estaline. Brejnev era o líder e o estalinismo caíra em
desgraça.
Na edição seguinte, em que ainda é celebrada a “glória imortal aos
combatentesdaRevoluçãoSocialistadeOutubro”,surgeanotícia,discreta,napágina
5, da morte de “Ernesto Guevara herói da revolução cubana, morto pelos lacaios
bolivianosdo imperialismonorte-americano”.Comidênticodestaque,surgeanotícia
doscombatescontraaditaduradeSuharto,naIndonésia,comaexaltaçãodoexemplo
do coronel Utung, membro do Partido Comunista, ao ser executado: “Tombou,
cantandoestrofesdaInternacional,comumheroísmoexemplar”.
Além da expressão iconográfica de algumas das notícias relacionadas com a
exemplosdeexpoentesdocomunismoaonívelmundial,oAvante! reflete,acimade
tudo,aalinhamentodopartidoemtermosinternacionais.Édeanotar,nestecontexto,
uma das poucas referências à China comunista (se comparadas com profusão de
textos laudatórios da sociedade soviética e da Revolução de Outubro). Está
assinalado,aoaltoda1ªpáginadaediçãodeOutubrode1949,o10ºaniversárioda
revoluçãocomunistanaChina,incluindoumafotografiadeMaoTseTung:
“Avitóriada revoluçãopopularna imensaChina foi, depoisdavitóriada
GrandeRevoluçãoSocialistadeOutubro,naantigaRússia,umdosmaiores
86
acontecimentos da história da Humanidade. A revolução chinesa não
somente libertou da opressão imperialista e da reacção semi-feudal a
naçãomais populosa domundo, como veio alterar a correlaçãomundial
das forças entre o campo socialista e o campo capitalista, numa sentido
favorávelaosocialismo”.
NavidadoPCP,osanos60vãoaprofundaraaproximaçãoàUniãoSoviéticae
aos seus mais fiéis aliados na Europa, como o PCF. É Fernando Rosas um os
historiadores que estabelece uma ligação direta entre a saída de Cunhal bem como
partedadireçãodopartidoparaoLesteeuropeueoalinhamentomaisclaroaoPCUS.
Dessealinhamento,oexemplomáximoéoapoioexpressopublicamenteáinvasãoda
Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia. “O PCP, apesar da particular
posição que sustenta no movimento comunista internacional, ou por isso mesmo,
rompe comaantiga tradiçãode relativa autonomia e torna-se umdosmais zelosos
defensoresdaortodoxiapró-soviética.(...)Emtroca,obtivera,desdeParisaMoscovo,
amaissólidaretaguardalogística,propagandística,detreinoeformaçãodequadros,
definanciamento,derecuoedesegurançadeligaçõesedeslocaçõesdequealguma
organizaçãoantifascista jamaisdispuseraemPortugalatéaoderrubedaditadura.O
PCPficariadefinitivamentepresoatalapoio,Atéhoje,nuncafoicapazdeorepensar
criticamente.”82.
Já José Pacheco Pereira83revela uma interpretação diferente,menos linear e
focando-se numa análisemais estratégica do pensamento de Cunhal em relação ao
quesignificariaoanode1968paraomovimentocomunistaeconsiderandoquetêm
sidomal compreendido o apoio à URSS na questão checa, bem como o excesso de
ortodoxiadoentãosecretário-geraldoPCP.Aorecusaraexistênciadeum“seguidismo
acrítico” o historiador defende que Cunhal “teve a percepção de que o movimento
comunistaestáemcrise”ea“umreceiodedebandada ideológicaepolítica,emque
paramanterosanéisseperdessemosdedos”.
82Neves(coord.),p.53.83Pereira,ÁlvaroCunhal,UmaBiografiaPolítica,OSecretário-Geral(1960-1968)pp.453-454.
87
AtalausênciadereflexãocríticaaqueserefereRosasviriaaestarsubjacentea
cisõesnopartidoqueseverificaramaindanofinaldosanos60enadécadaseguinte,
quelevaramàcriaçãodemovimentosdeextrema-esquerdaealgumabalcanizaçãodo
PCP.Jáemplenademocracia,otemadoapoiodeCunhalà linhasoviéticaviriaaser
debatidoduranteagrandecriseinternanopartidoiniciadaem1989.
88
PARTEIII—Asuperioridade(banal)doscomunistas
1.Alinguagembanal
1.1Oexemplomoral
Ao longo das primeiras duas partes do presente trabalho, tentoumostrar-se
comooAvante!clandestinoconstituiuuminstrumentoagregador,porumlado,ede
demarcaçãoideológica,poroutro,sempreatravésdeumalinguagemdeproximidade
comosleitores,constituídosnumacomunidadeque,mesmoextravasandoouniverso
dosmilitantes,sepretendiacoesanograndeobjectivopróximoqueeraodederrubar
aditadura.
Nestecapítulo,mantém-sealinhadeanálisedetextospublicados,masparase
aferircomoalinguagembanal/correntecumpreodesígnioestratégicodosdirigentes
doPCP.Paraaíchegar,parte-sedametodologiaseguidaporMichaelBillignoseulivro
“BanalNationalism”84,queanalisouostermosusadospelasediçõesdodia28deJunho
de 1993 dos jornais diários britânicos de maior circulação e detectou sinais de
nacionalismodoquotidiano, expressoemsímbolosque,de tãopresentes, passama
serbanais.EssediadaImprensabritânicaemestudofoiescolhidopornãoserumdia
de grandes acontecimentos políticos previsíveis, um dia banal, no qual a questão
nacionalnãoeradominantenodiscursopolítico,aocontráriodoquetinhaacontecido,
por exemplo, em 1982, durante a chamada guerra das Malvinas ou Falklands, o
conflito militar que entre o Reino Unido e a Argentina, quando o tradicional
distanciamentodos jornalistas britânicos foi posto à prova.Aodefinir o conceitode
nacionalismo banal, Billig convoca-nos para a investigação enquadrada na nova
históriaintelectualenoestudodalinguagempolíticacomrecursoàanálisedodiscurso
efémeroedifuso,produzidoporpensadoresconsideradosnãoclássicosoumarginais.
Éestequadroinvestigativodanovahistóriaque“permite”aanálisedasideiaspolíticas
também através de palavras que transitam por outros textos, de outros autores
divulgadosnoutrossuportesquenãoapenasosdospensadoresclássicoseditadosem
84Usadaaediçãoespanhola“NacionalismoBanal”,de2014,daeditoraCapitánSwing,comtraduçãode
RicardoGarciaPérez
89
ensaios de referência. E se como filósofo JacquesRancière85foi abertoo lequedos
objectosdeestudo,porexemplo,comorecursoapanfletosparaelaborarumahistória
das ideias domovimento operário, em Billig, é na linguagem comum ou banal que
passa amensagem que vai dar consistência à interiorização popular de uma teoria
política,nocasoonacionalismo.
Noprimeiropontodestecapítulo,analisamosossinaislexicaisqueenformamo
padrãomoraldoscomunistasequeestãopatentesnostextospublicadosnoAvante!,
seguindoemlinguagemcorrente/banalateorizaçãoposteriordeÁlvaroCunhalsobre
Asuperioridademoraldoscomunistas.NessetextodeJaneirode1974,Cunhaltraçao
perfildocomunista,norelacionamentocomopartidoenaatuaçãoparaoexterior,na
sociedade. “A condutamoral dos comunistas não é um problema privado, que diga
apenas respeito a cada qual. Essa conduta tem repercussões na actividade e no
prestígio do Partido. Pertence também em certa medida ao Partido. A força do
exemplo, pelo seu extraordinário poder de convencimento e de atracção junto das
massas,éumdosgrandestrunfosdaacçãodoscomunistas”.
No mesmo texto, que estudaremos mais pormenorizadamente no final do
capítulo,Cunhalinsistenaimportânciadoexemplo,aoescreverque“asmassasestão
particularmenteatentasesãoparticularmentesensíveisaoexemplomoraldadopelos
seusmembros [do partido]. Exemplo de dedicação. Exemplo de combatividade e de
firmeza. E também exemplo de comportamento pessoal numa sentido mais largo:
exemplodedignidadeedeintransigênciaparacomasconcepçõesdamoralburguesa
e as práticas dela decorrentes. Se a vanguarda ajuíza das influências da moral
burguesasobreasmassas,asmassasjulgamporsuavezocomportamentomoralda
vanguarda.Oscomunistastêmdeagirdeformaapassarcomhonrataljulgamento”.
As edições do Avante! clandestino estão recheadas de artigos que contam
histórias exemplares de militantes de base e de trabalhadores “honrados” que
“honram”opartidoequecomasuacondutamoralsão“exemplosaseguir”.Muitas
vezes, publicadas nas páginas interiores, surgem pequenas notícias que falam de
85JacquesRancière,Omestre ignorante:cinco liçõessobreaemancipação intelectual (Pedago,2010).,AspalavrasdaHistória:ensaiodapoéticadosaber(UNIPOP,2014).,ANoiteDosProletários:ArquivosDoSonhoOperário(Antígona).
90
comportamentosmoralmentedignosdeseremseguidosportodososquedeletomem
conhecimento.
O título usado nesses pequenos textos é, em regra, bem explícito do que se
pretende.Éo casodanotíciapublicadanaediçãonº283,deNovembrode1959,na
qual se relata a iniciativa de pôr a circular um texto abaixo-assinado de apoio a
JoaquimJoséDias,presopelapolíciapolítica:“Eisumexemploquedeveser seguido
pelosamigosecompanheirosdetrabalhodetodososhomenshonradosquejazemnas
prisõesdaPIDE,noAljube,emCaxiasouemPeniche.(...)”
ÉrecorrentequeotítulodoopúsculodeCunhal“Seforespresocamarada”seja
transcrito para encabeçar textos sobre exemplos de bom porte na cadeia. É o que
acontece na edição nº368, de Julho de 1966: “Se fores preso...tenhamos presente o
exemplodosnossoscamaradasqueseportaramcorajosamenteenadadeclararamà
policia.”
Os trabalhadores “honrados”, não necessariamente militantes, que são
transformados em exemplos, constituem, simultaneamente, o universo ao qual se
destinam os textos de exaltação de comportamento a seguir em caso de serem
apanhadosnasmalhasdapolícia.Osconstantesavisosparaquehaja“bom-porte”nos
interrogatóriosenascadeiasconfiguram,nãoapenasumaatitudepreventivaparaos
que,estandonaresistênciaàditadura,arriscamaprisão,mastambémummanualde
algumasdasregrascomqueseforjamosexemplosmorais.Vejamosumexemplode
texto,comotítulo“NaPIDEnãosefala”,publicadoemNovembrode1966:“NaPIDE
resiste-se corajosamente às torturas e suplícios, mas não se denunciam camaradas,
irmãos de luta. Esse é o exemplo de quantos em Portugal e no mundo servem os
interessedaclasseoperária”.
Oleitor/militanteaquemsedirigeestetextoédesafiado,comoseuexemplo,
a integrar-se num grupo com características especiais, ao nível mundial, digno de
serviredefenderosinteressesdopovoedostrabalhadores.
Oexemplomoralgeratambémumacumplicidadeemtornodosqueresistem,
dos que estão do lado certo da barricada política. De um lado está a polícia e os
tribunaisfascistasedooutroestãoosresistentese,emparticular,oscomunistas.Essa
91
dicotomia, que é permanente no discurso político e nos textos informativos do
Avante!,estábemexpressanaprimeiraquinzenadeFevereirode1961,numacoluna
dapág.2,sobumtítuloqueenuncia,desdelogo,umadiretiva:“Oscomunistasperante
ostribunaisplenários”.
“(...)Vários comunistas têmsabidodefender corajosamenteo seuPartido,
desmascarar com vigor a política repressiva e anti-nacional de Salazar ,
denunciar o carácter arbitrário dos tribunais plenários, as torturas e os
maustratosdaPIDE.(...)MandadocalareexpulsodoTribunal,CarlosAboim
Inglês gritou para os seus verdugos: ’Não admito lições de moral deste
tribunal!Nãorecebo liçõesdemoraldumfascista!(...)Anteapolíciacomo
anteosjuízesvendidosdostribunaisfascistasoscomunistasmostramasua
heroicidadeevalentiaemdefesadoseuPartidoedacausa justaporque
lutam.”
Umavezmais,aquestãodoexemplomoralestápresentenamensagemqueé
transmitida a cada um dos leitores. Essa transmissão é susceptível de criar um
sentimentodepertença auma comunidade. É atravésda linguagembanal, repetida
uma e outra vez, como acentua Billig, que “estes episódios retóricos recordam-nos
continuamente que nós somos ‘nós’ e, ao fazê-lo, permitem-nos esquecer que nos
estão recordando issomesmo”86.Oautor refere-seà interiorizaçãodonacionalismo,
masomesmoprocessoanalíticosepodeaplicaràidentidademoraldoscomunistas.É
possívelseguirumcertoexercíciodetransportedeestruturadonacionalismoparao
militante. Embora no objecto desta dissertação os elementos linguísticos não se
possam incluir nosdeíticosqueBillig refere, há tambémnoAvante! a práticaqueo
autor identifica como utilização rotineira desses vocábulos “que aponta
continuamenteparaapátrianacionalcomoolugardosleitores”87,setranspusermoso
conceito de pátria sem fronteiras físicas para uma “comunidade imaginada” (de
comunistas), como Benedict Anderson 88 a concebeu. “Imaginada porque até os
86MichaelBillig,NacionalismoBanal(CapitánSwing),p.191.87Billig,p.29.88Anderson.
92
membrosdamaispequenanaçãonuncaencontrarãoenuncaouvirãofalardamaioria
dos outrosmembros dessamesma nação,mas, ainda assim, namente de cada um
existe a imagem da sua comunhão.” 89 No caso do Avante!, essa identidade de
comunidadeécriadaatravésdatransmissãodeconceitosmorais,sempreaplicadosa
casos concretos e exemplares. A mensagem é passada, não apenas por textos de
elaboração teórica,mas tambématravés de relatos pessoais, revelando e exaltando
uma determinada conduta exemplar para que seja replicada por cada um dos que
pertencemouquerempertenceràcomunidade.
Cita-seaindaBilligaoanalisaropensamentodeAnderson,quandoesteautor
sugere que “o sentimento nacional é gerado pelo conhecimento de que, em toda a
nação,aspessoascumpremoritualdiáriodeleromesmoperiódico”.90
A analogia pode aplicar-se diretamente ao sentimento de pertença gerado
entre a comunidade de leitores doAvante! clandestino. Como já aprofundámos na
primeira parte desta dissertação, o jornal, além de potenciar essa ligação entre os
leitores,assume-secomoparteintegrantedessatalcomunidadeimaginada.
1.2Ódiopeloinimigo
O sentimento é aliado à razão quando se trata responder ao “inimigo”, a
ditadura de Salazar/Caetano, personificado na polícia política. Basta ler um texto
publicado na 1ª quinzena de Fevereiro de 1959 para se perceber o peso da carga
impostapelaspalavras.
“(...)OscrimesdeSalazardevemencontrarrepulsadetodososquetêmno
peitoumcoraçãosensívelehumano.(...)OAvante!denunciaasatrocidades
daPIDEepassaráapublicarosnomesdostorturadoreseassassinosqueas
praticamparaqueonossopovoosnãoesqueça(...).”
Otextoacimacitado,alémdeserumbomexemplodotomusadoparainstigar
o ódio, enquadra-se na referida dicotomia bem/mal, que distingue “fascistas e anti-
89Anderson,p.25.90Billig,p.211.
93
fascistas”, ou os “torturadores e assassinos”, dos que têm “coração sensível e
humano”.Nestecasoos“bons”nãosãoapenasoscomunistas,mastodososquenão
aceitamequenãoesquecerãoasatrocidades.
OódioquetransparecenalgunstextosdoAvante!clandestinoestende-seaum
universo mais largo do que o inimigo político, abrangendo os concorrentes no
combate à ditadura, os dissidentes e os “miseráveis” traidores que tiveram “mau
comportamento” na polícia. Em relação a todos estes alvos, que são concretos e
identificados, a linguagem utilizada, ao fazer uma denúncia pública de atitudes
consideradasodiosas,transmiteaobrigaçãodeosostracizarerepelir.
Tambémnestecaso,umtextoéexemplificativoda linguagemusadaao longo
de todaaVI sériedoórgãocentraldoPCP.Naediçãonº333,deSetembrode1963,
doisantigosmilitantesdopartidosãoexpostos“àexecraçãopública”como“cobardes
traidores”, que “não souberam enfrentar dignamente o inimigo fascistas, ao serem
presospelaPIDE,traindo,assimtodososseuscompromissos”.
Textos carregados com uma terminologia susceptível de instigar ódio sobre
pessoasconcretassurgemacadaediçãodoAvante!comajustificaçãode,comoselê
em Outubro de 1971, “Apontar os miseráveis pelos seus nomes (...) julgamos ser
absolutamentenecessário”.
VoltandoaBilligeaofortalecimentodoconceitodenaçãoedonacionalismo
atravésdautilizaçãobanaldevocábuloscomo“nós”emoposiçãoa“eles”,paraocaso
emestudodestetrabalhoserápertinenteacentuarqueostextosdoAvante!,quando
se centram nos exemplos de homens honrados com corações sensíveis e atitude
abnegada, transmitem tambéma repulsa pelos outros, pelo inimigo ou pelos que o
servem,pelasuapráticadetraiçãooudecolaboração.
1.3Avingançaserve-sefria
Se o ódio é instilado, palavra a palavra, quando o tema é o inimigo ou os
traidores,avingançaéservidafrianasentrelinhasdotexto.Sãoemgrandenúmeroos
artigospublicadosnoAvante!clandestinonosquaissevaticinaeaconselhaocastigo
futurodecarrascosedetraidores.
94
Em Dezembro de 1963, dois anos depois de José Dias Coelho ter sido
assassinado, surge um dos textos emblemáticos desse apelo ao ajuste de contas
futuro:
“Com a sua morte perdeu o Partido um destacado militantes e o nosso
povoumartistaprometedor.Seráessemesmopovoqueosaberávingarno
dia da liberdade. Os criminosos não escaparão ao ódio do povo, à sua
justiça”.
Não há uma teorização sobre a estratégia do partido para o futuro no que
respeita à responsabilização política ou criminal dos dirigentes da ditadura ou da
políciapolítica,maso textocitadodeixaclaroquea justiçaserá feitapelasmãosdo
povo.“QuandoemPortugalhouverliberdade,esteeoutroscrimesdofascismoserão
julgadoseseráfeitajustiça”.Frasescomoesta,publicadanaediçãonº202deJulhode
1955, recorrentes no Avante! clandestino estão carregadas de uma aparente
intencionalidadequeultrapassaoqueestá impresso, remetendoparao conceitode
QuentinSkinner91dequeotextotemdeserestudadoparaalémdotexto.
Nocasodanotíciacitada,queserefereaosassassinatosdeAlfredoDiniz(Alex)
edeFerreira Soaresumadécadaantes,para ládaspalavrasusadasestáo contexto
que de alguma forma determina a intencionalidade. Além da garantia de que os
criminosos não ficarão impunes, o texto transmite a certeza a quem o lê de que a
liberdadenãoéumamiragem,masumacerteza.
Podecitar-seaindaoutrotexto,publicadoemSetembrode1962.Depoisdeter
sidodenunciadoonomede“umprovocador”,anotíciaéconcluídacomumalertaem
formadeameaçaparaofuturo:
“Éprecisoqueesteeoutroscanalhassintamopesodoódiopopularpela
sua infame colaboração com a PIDE. Que os seus nomes não sejam
esquecidosparaqueamanhãsoframojustocastigo”.
Aqui, o apelo à justiça surge com laivos de ameaça de vingança para o
“amanhã”quandoaliberdadeforconquistada.
91Skinner.
95
2.Obanaldeliberado
2.1Sentimentoeemoção
Em1985,nolivroOPartidocomParedesdeVidro,ÁlvaroCunhalteorizasobre
acondiçãodesercomunista,alargando-aaosentimento:“Sercomunistanãoéapenas
umaformadeagirpoliticamente.Éumaformadepensar,desentiredeviver”92.Nas
páginas Avante! clandestino é claro que à razão se alia a emoção. Há textos
exemplares, nos quais a exaltação do comportamento heroico de militantes é
lexicalmenteelaboradadeformaatransmitirumaenvolvênciaemocional.
AmortedeJoséGregóriofoinoticiadanaediçãodeJulhode1961,aoaltoda
1ª página, com fotografia, num texto onde as expressões usadas conduzem a uma
quase osmose de significados, que vão da exaltação da heroicidade e abnegação à
emoçãodosofrimento,passandopeloelogioàsolidariedadecomunistainternacional
eàcertezadequeaditaduraseráderrubada.
“NaChecoslováquiasocialistamorreuocamaradaJoséGregório(Alberto).
Deixou de pulsar o coração de um amado filho da classe operária
portuguesa,dumdosmaisabnegadoslutadorespelacausadosexplorados
e oprimidos, duma dos mais destacados obreiros do nosso Partido, dum
valorosocombatentepelacausadaindependêncianacional,dademocracia
e do socialismo. (...)Nunca pode frequentar a escola e ainda não tinha 8
anos quando iniciou a sua vida de operário vidreiro.(...)por se recusar
firmemente a dar quaisquer informações à polícia, foi barbaramente
espancadoduranteváriashorasconsecutivasporváriosfacínorasdaPIDE
até perder os sentidos. Homem de carácter íntegro e dotado de uma
extraordináriaforçadevontade,JoséGregórioéumexemploparatodosos
militantesdoPartido.ComojustamentedeclarouÁlvaroCunhal,Secretário-
GeraldonossoPartido,peranteotribunalqueocondenou, JoséGregório
pertenceuaonúmerosdoshomensquepossuemasupremavirtudequeé
92Cunhal,p.195.
96
dedicaçãoilimitadaaonossopovoeànossaPátriaque‘sãooorgulhodo
Partido e do Povo’.(...) Numa elevada demonstração de fraterna
solidariedadeproletária,oPartidoComunistadaChecoslováquia,opovoe
osmédicos rodearam-nodetodoocarinhoe tudo fizeramparasalvarou
prolongarasuavida.(...)Onossopovoprestaráumdiaa JoséGregórioa
merecidahomenagem.(...)”
Aprosacitadafazumasíntesedodiscursopolíticoracionalcomoemocional,
referindo-seaummilitanteedirigenteconsideradoexemplar,masomesmotipode
linguagemdeafetoséusadaparacontarumahistóriasobrequemnãotem‘nome’no
partido.TemaestruturadeumafábulaoqueselênaediçãodeAbrilde1951,sobrea
recolhadeassinaturaspelapazepelodesarmamento,encimadocomo título “Uma
mulherdeLisboa”:
“Quando à porta de uma fábrica do Porto, duas operárias da fábrica
procuravam recolher assinaturas, as operárias da fábrica mostravam-se
receosas.Entãoumaoperáriadeavançadaidadegritou:Nãotenhammedo
deassinar!Éumacausajusta!Ponhamláomeunomeeodosmeusfilhos.
Eu tenho 2 netos e não os quero ver mortos. Logo em seguida foram
recolhidas41assinaturas”.
Entreosmuitostextosqueapelamàemoção,podecitar-seaindaumquefoi
publicadona2ªquinzenadeAbrilde1958.Paradenunciar“ummiserável”patrãoe
informadordaPIDE,usa-seumformatodehistóriainfantilcommoralnofim.
“DenunciadaporumtalHonrado,proprietáriodeumafábricadeconservas
de peixe em Olhão, onde trabalhava, foi presa no dia 12 de Março a
operária Olívia Lebre, mulher do operário corticeiro José Carlos que se
encontrahámesespresonasmasmorrasdaPIDE.AoperáriaOlíviaLebre
eraoamparodeduas filhinhasde tenra idadequeobandodaPIDEque
prendeu a sua mãe deixou abandonadas em Olhão. Povo de Olhão!
AmparaiasfilhasdaoperáriaOlíviaLebreedenunciaiportodooAlgarveo
miserávelqueadenunciou–oindustrialdeconservasHonrado.
97
Destes exemplos pode partir-se para uma reflexão sobre a relação entre o
emocional e o racional no discurso político dos comunistas. É neste contexto que o
militanteexemplar,obommilitante,sóoénamedidaemquenasuapráticarevela
preocupaçãocomooutro,namedidaquenãopõeemperigoavidadeumcamarada
oudopartidoelutapelobem-estardopovo.
Essa relação com o outro, que é política, torna-se emocional quando é
adjetivadasegundopadrõeséticose/oumorais,transformandoomilitanteem“bom”
ou“mau”consoante,porexemplo,oseuporteperanteapolíciapolítica.
Ao analisar o pensamento de Espinosa, o neurocientista António Damásio
escreveexatamentesobrearelaçãodasemoçõescomaética,argumentandoquehá
umarelaçãoestreitaentreapráticadaaçãoindividualeasconsequênciasdesta.Em
síntese, a boa ação merece esse qualificativo se não provocar danos negativos a
outros.DaíqueDamásioconclua:“Espinosaquerdizerqueosistemaconstróiemcada
pessoaimperativoséticoscombasenapresençademecanismosdeautopreservação,
desdequeessapessoatenhaemmentearealidadesocialecultural.Paraalémdecada
si individual há os outros, como indivíduos ou como entidades sociais, e a
autopreservaçãodessesoutros,atravésdosseusprópriosapetiteseemoções,deveser
tomadaemconsideração”93.
A dimensão ética do comportamento emocional individual do militante
comunista está presente numa banalização moralizadora nos textos publicados no
Avante!, embora reflita a intencionalidade da teorização encontrada em mais uma
passagemdotexto“Asuperioridademoraldoscomunistas”,quandoCunhaldefineo
internacionalismo proletário “fonte criadora de conceitos, sentimentos e atitudes de
generosidade de colectivismo, de fraternidade entre os trabalhadores e os
comunistas(...)”.
2.2.Aheroicidade
93AntónioDamásio,AoEncontrodeEspinosa-AsEmoçõesSociaisEasNeurologiaDoSentir(Círculode
Leitores,2003),pp.151-152.
98
A exaltação dos atos heroicos dos comunistas é permanente, quer sejam os
militantesportugueses,cujocomportamentonaprisãoenos interrogatóriospoliciais
é considerado “exemplar”, ou os membros de partidos-irmãos (em particular o
francês,noquadrodaIIGuerraMundial)ouaindaosprotagonistasdaconstruçãoda
URSS, além dos “pais” do socialismo e obreiros da Revolução de Outubro. São
realçados os “heróis” da conquista do espaço e podem incluir-se no conceito de
heroicidadeosresultadoseconómicosesociaisdasociedadesoviética,profusamente
divulgadosnaspáginasdoAvante!.OhistoriadorJoãoMadeirafaladeuma“espéciede
fé” para designar a forma como é encarado o regime de Moscovo, nascido da
Revolução de Outubro de 1917: “Os militantes eram assim educados na exaltação
reverencialdaURSS,cujoprocessodeassimilaçãotendia,nadificuldadedeinculcaro
detalhe das conquistas concretas da União Soviética, em fazer passar os princípios
propagandísticos da “pátria do socialismo” e da “superioridade do socialismo
soviético” uma espécie de paraíso na Terra, que tinha nos militantes defensores
incondicionaise indefectíveis.Estadevoçãotornava-seaindaumaespéciedeamparo
internacional em relação aos combates perseguidos nas condições difíceis e
asperamente vividas na base do partido. A fé na caminhada, da URSS como das
“democracias populares”, para o socialismo e para o comunismo era um estímulo
poderoso para reforçar convicções e entregas, tornando-se numa espécie de fé
revolucionária, de que os militantes comunistas portugueses se alimentavam e
acalentavam”94.
No plano interno, como sublinha Madeira, “os heróis e mártires comunistas
eram bandeiras de exemplo desfraldadas, encorpavam um imaginário colectivo de
coragem com que se argamassava a resistência e o combate quotidiano contra o
regime, feito de exemplos sempre presentes de um risco assumido, para que cada
militantepodiaserconvocadoemcadamomento,mobilizandoacoragemevencendo
omedo”95.
94JoãoManuelMartinsMadeira,p.760.95Madeira,p.768.
99
Masaglorificaçãodosheróisnãopodeenãodeveserconfundidacomoculto
dapersonalidade,queCunhalseesforçou,empalavras,porcondenar,emparticular,
apósoestalinismo,numquadroemqueopróprioPCUStambémofez.Aliás,naedição
nº212, deAbril de 1956, oAvante! reproduz parte de uma síntese de umartigo do
Pravda,oórgãocentraldoPCUS(PartidoComunistadaUniãoSoviética)apropósitoXX
congresso,noqualselê:
“Nãopossuindomodéstiapessoal,Stalinenãosónãocortavaoslouvorese
elogiosquelhefaziam,comoosapoiavaeestimulavaportodososmeios.
Comotempo,estecultodapersonalidadefoitomandoaspectoscadavez
maisdeformadosecausousériosdanos.Compreende-sequesemelhantes
páticas de Staline significavamuma infracção dos princípios leninistas de
direcçãoecontradiziamoespíritodomarxismo-leninismo”.
Mas, se no plano teórico a diretiva era atacar o culto da personalidade, na
práticapolíticaedaescritacorrente/banaldostextospublicadosnoAvante!eramuito
ténueafronteiraentreessecultoeaglorificaçãodosheróisvivosdopartido,entreos
quaisCunhal sobressaía. São constantes apelos à libertaçãododirigentedopartido,
cujo nome “está dentro do coração de todos os trabalhadores portugueses e é
respeitadopelosdemocrataspelosdemocrataseanti-fascistasdonossopaís”,lê-sena
edição de Janeiro de 1956. Ainda namesma edição, surge o apelo para que sejam
feitasinscriçõesnasparedes,exigindoalibertaçãodeCunhal.
O fruto desse apelo surge de imediato, na edição de Fevereiro-Março desse
mesmoano,numanotíciaintitulada“Reforcemosmaisemaisalutapelalibertaçãode
ÁlvaroCunhal”,naqualsedácontadareceptividadeaosmanifestosdivulgadoseàs
inscriçõesfeitasemnumerosospontosdopaís:
“(...)Os manifestos foram por quase toda a parte lidos colectivamente,
comentados e aprovados calorosamente. Uma jovem católica algarvia
afirmou que não havia direito de se praticarem tais atrocidades. Nas
aldeiasalentejanas,oentusiasmofoienorme.Oscamponesesreuniram-se
paraouvirlerosmanifestosrepetidasvezes.Umavelhinhadizia.‘Eujáouvi
leràminhafilha,maselanãoasexplicabemeeutenhodeouviroutravez’.
Numrancho,oscamponesesqueestavama lerummanifesto,explicaram
100
aomanageiroquemeraÁlvaroCunhaleaqueleacaboupordizer:Seeleé
comovocêsdizem,éjustoquesejapostoemliberdade!”
A mensagem política envolta numa linguagem corrente que transmite uma
proximidade emocional entre quem lê e quem “fala” na notícia é bem notória em
textos como este, não deixando dúvidas sobre a intencionalidade de glorificar um
herói.
2.3.Sercomunistaé...
Chegamosàessênciade ser comunista,depoisde ficardefinidoodentroeo
foradogrupodosqueinteressamaopartido.Aconstruçãodeumnúcleocoesocapaz
demanter a ação política permanente durante a clandestinidade foi possível com a
delimitação clara entre os que cabem e os que não cabem no conceito de ser
comunista.Passoapasso,númeroanúmerodoAvante!foisendodefinidaaessência
queconduziuàteorizaçãodo“sercomunistaé...”.
Érecorrenteautilizaçãodeadjetivosquedefinemos“verdadeiros”comunistas
como homens (havendo residualmente também casos exemplares de mulheres)
“abnegados”,“honestos”,“honrados”,“dedicados”àcausa,“patriotas”,“resistentes”
à ditadura, “corajosos” ou “fortes como rochedos”. Em suma, os “dignos filhos do
povo”.EmboranaspáginasdoAvante!o“sercomunista”passeemregistobanalizado,
por vezes sem uma carga ideológica explícita, há um enquadramento teórico do
conceitode“ser comunista”que resultadaassimilaçãodos textos teóricos.Palavras
como estas, detectadas em inúmeros títulos e textos do Avante! clandestino, são
susceptíveisdecriarumsentimentodeorgulhonapertençaaessegrupoespecial.
Umdostextosexemplaresparadefiniroperfildeumcomunista“verdadeiro”
estápublicadonaediçãodeJunhode1964:
“Na Polícia só fala quem quer... esta é a têmpera dos verdadeiros
comunistas, esta é a têmperade todos os homensquepõemahonradez e o
patriotismoacimadosinteressespessoais,quesabemserviroseupovoeuma
causa que não se compadece com cobardias ou charlatanices de qualquer
espécie”.
101
Essahonradez, sempreassociadaaodespojamentopessoal,éum ingrediente
indispensável para um comunista manter a verticalidade. Como se lê em Junho de
1965, ainda e sempre sob um título imperativo, o texto, ao transmitir orientações
sobre o porte nos interrogatórios, define os contornos da personalidade do
“verdadeirocomunista”.
”Napolicianãosefala!Osverdadeiroscomunistasnãosevergamperante
oinimigo...quandoosentidodahonraedodeversãoautênticosenãopura
ficção, não hámaus tratos, métodos ou processos que obriguem a falar
quemnãooquerfazer,esteéocaminhodoscomunistas.”
O rumo que deve seguir o “verdadeiro comunista” é também indicado por
vozesquevêmdefora.Alémdeexistirem,comojá foiassinalado,numerosostextos
de exaltação das realizações socialistas e do percurso de membros dirigentes de
outrospartidoscomunistas,emparticularosoviético,ofrancêseoitaliano,detectam-
secasosdepublicaçãodeelogiosexternos.Aheroicidadedoscomunistasfrancesesna
Resistência durante a II Guerra Mundial é exemplar para os militantes do PCP. Ao
longo do período da guerra, o Avante! vai dando notícia dos avanços das tropas
soviéticas e, simultaneamente, divulgando apontamentos da ofensiva nazi sobre a
Europa e emparticular sobre a França. Na segunda quinzena de Agosto de 1942, o
Avante!publicaumtextodeglorificaçãodasvítimasdaresistênciafrancesa,exaltando
o caso do fuzilamento de Gabriel Pèri, redator do L’Humanité, o órgão central do
Partido Comunista Francês, considerado “glorioso filho do povo, que tinha sido
entreguepelostraidoresdeVichyàsautoridadesalemãs,quecevaramneleoseuódio
à França Revolucionária e imortal”. A glória a que se refere o texto extravasa a
dimensão do militante-mártir, dirigindo as loas para a França, “que combate os
invasores de Berlim e os seus lacaios de Vichy”. A notícia termina com o relato da
atitude exemplar de Péri na hora do fuzilamento: “Seguiu, levado em braços e
cantandoaInternacional,paradiantedopelotãohitleriano”.
ÉmuitonoPCFedoseuhistorialderesistênciaqueoscomunistasportugueses
vãobuscaroexemplo.ComoescreveuMauriceThorez,“avontadedelutardasmassas
populares é estimulada pela valentia dos nossos heróis e pelo semnúmero de actos
102
heróicos dos militantes.”96Aliás, o antigo secretário-geral do PCF foi ele próprio um
herói, glorificadonoAvante!,nomeadamenteaopublicaranotíciada suamorte,na
ediçãodeAgostode1964.Nessanotícia,ilustradacomumafotodeThorez,cita-sea
mensagem de condolências assinada por Álvaro Cunhal, então no exílio: ”(..)O seu
exemplo constitui uma preciosa herança são só para os comunistas franceses como
tambémparaoscomunistasdetodosospaíses”.
EmMarço1968,destaca-seumtítulo,emrodapénaúltimapágina:“Homens
fortes como rochedos”. Uma frase atribuída ao título de um livro de um escritor
soviético(NaumMar)eéusadacomoexaltaçãodocomunistaportuguês:
“(...) é para nós um motivo de grande alegria, testemunho da
solidariedade dos povos soviéticos e dos seus intelectuais pela luta dos
comunistasedopovodePortugal”.
Esses “homens fortes como rochedos” são os verdadeiros comunistas,
exemplares,comotemosvistonoAvante!.Emtodasasedições,alinguagemusadana
generalidadedostextosremeteparaumacondutaexemplar,semprehumanizada.O
“verdadeiro comunista”nãoéumconceitoabstracto,um figura teórica retiradados
textos clássicos marxistas-leninistas, mas sim definido por uma linguagem do
quotidiano e sempre tendo como referência pessoas em concreto. Exemplificativa
dessaverificaçãoempíricaéa rubrica“Quemsãoos comunistas?”, incluídaemduas
ediçõesnoanode1961.
Podemosisolaroprimeirotextodessarubricaquefoieditadononº300eque
serefereaCândidaVentura,presanaépoca,queesteve,comFernandoPiteiraSantos,
na“reorganização”doPCP,partidodoqualviriaaafastar-se formalmenteem1976,
depoisdeumafastamentoideológicoquecomeçounofinaldosanos60.
“(...)Cândida Ventura revelou possuir, desde muito nova, um coração
abnegado,umafortepersonalidadeeumespírito inteligente(...)viveu17
anosna clandestinidadeéumaheroicaeabnegadamulherqueaonosso
PartidoeaonossoPovotemdadoomelhordasuavida(...)”.
96MauriceThorez,FilhoDoPovo(EditorialNoticias,1976)p.173.
103
O texto, um dos poucos ilustrados com gravura, cuja autoria poderá ser
atribuída a José Dias Coelho, que na época, na clandestinidade, trabalhava para o
Avante! com Margarida Tengarrinha, é composto por adjetivos capazes de induzir
respeitoeadmiraçãodosleitoresporumamilitantecujoexemploéexaltadotambém
pela forma como se dedica ao partido e ao povo. Uma vez mais se assinala que a
linguagem corrente do texto da notícia contém uma mensagem doutrinária,
conceptual e estratégica. Tal como em muitos outros textos de exaltação das
qualidades dos comunistas, transmite o conceito de simbiose, umas vezes mais
explícita,outras,quasesubliminar,entreopartidoepovo/país.Ouseja,amensagem
é: quem não luta contra a ditadura, como os comunistas, em primeiro lugar, não é
patriota. Há nesse aglutinar de patriotismo e comunismo a expressão de uma
“identidade de interesses”, que, como assinala Billig, referindo ao nacionalismo, “os
nossos interesses são os interesses do mundo inteiro”97. No caso em estudo, os
interessesdoscomunistasconfundem-secomosinteressesdanação.Defora,estãoos
nãopatriotas,ostraidores.
Arelaçãoentreahonramilitanteeahonrapatrióticaestáexplícitanotextojá
citado,publicadononº274,da1ªquinzenadeAbrilde1959,intitulado“Napolícianão
sefala”:
“(...) não há drogas como não há espancamentos, estátua ou qualquer
outratorturaquepossaobrigarumhomemouumamulherafalar,afazer
declarações à política, ou a confirmar declarações desta, desde que esse
homemouessamulherestejadispostoafazê-lo,adefenderasuahonrade
patriotaea suahonestidadedepessoa séria (...)osque confiamnopovo
nãootraemedefendematéaofimasuacondiçãodehomensemulheres
patriotasehonrados”.
2.4A“superioridadecomunista”
97Billig,p.293.
104
NaleituradoAvante!clandestinoquetemsidofeitanestetrabalho,chegamos
a um ponto da análise que nos permite identificar camadas difusas de ideias que
subjazememtextoscujosautoresnãoestãoidentificados,masqueseconjugamcoma
conceptualização teóricaqueÁlvaroCunhalviriaadeixarescrita.Podeconsiderar-se
que este estudo do não se afasta de uma concepção metodológica que pode
enquadrar-se na História Intelectual, ao definirem-se os redatores do jornal como
agentes da propagação de ideias — nem sempre lineares ou apresentadas como
doutrina—quemarcamdeterminadocontextohistórico.
A superioridademoral dos comunistas é uma dessas ideias que ganharam a
forma de tese nos escritos de dirigentes do partido,mas está também expressa na
linguagemcorrentedetectadanostextospublicadosnoAvante!clandestino.Aolongo
dosanosdeditadura,oórgãocentraldoPCPfoi forjando,na linguagemdasnoticias
sobreocomportamentodosmilitantesperanteapolícia,umpadrãomoralqueviriaa
ser teorizado por Álvaro Cunhal. Nas edições regulares do jornal consultadas, entre
1941 e 1974, não se detecta a existência da expressão “superioridade moral dos
comunistas”,masacadapasso,ouseja,emcadaumdos464númeroslidos,hásinais
lançadosparaaos leitores,deformamaisoumenosexplicita,quersejapelapositiva
quer seja, como contraponto, pela negativa. Pode dizer-se que há aqui uma
banalização de linguagem a que se refereMichael Billig na obra que temos vindo a
citar,susceptíveldedivulgaraideiadepertençaaumacomunidadeespecial,superior
pelosseusideaise,acimadetudo,peloseucomportamento.
Pretende-se neste capítulo, e neste ponto em particular, aferir como as
expressões usadas nas edições doAvante! clandestino induzem no leitor a ideia da
existênciadeumasuperioridademoraloudeumasupremaciacomunistaàqualesse
leitordeveaspirar,mesmoantesdeesseconceitoserassumidodeformadoutrinária
no texto de Cunhal ao qual já fizemos referência, A superioridade moral dos
comunistas.
Prosseguindoométododeanálise lexical seguidoporBillig, é imperiosauma
reflexão sobre os mecanismos lexicais usados. Está implícito na linguagem utilizada
que osmilitantes e a comunidademais alargada de leitores doAvante! clandestino
105
pertencemaumgrupode“eleitos”quetemumamissão.Equeparaacumprirtemde
seguir,exemplarmente,asregrasestabelecidaspeladireçãodopartido.
ParaBillig a construção conceptual teóricapode resultar da interiorizaçãodo
uso (não) intencional de uma linguagem “banal”. Partindo da tese de que “o
nacionalismoestáentranhadonanossaconsciência”98,oautor,como jáacentuámos
anteriormente,chamaaatençãoparaautilizaçãocorrentedepalavrascomo“nós”ou
“aqui”emtextospublicadosnaImprensa.“Nãosãopalavrasquechamemàatenção,
mas desempenham uma missão importante no tema de empunhar a bandeira.
Dirigem-sea ‘nós’banalmenteusandoaprimeirapessoadoplural e situam-‘nos’na
pátriaenocentrodeummundodenações.”99
A análise de Billig centra-se na procura de um léxico “banal”, que passa
despercebido numa primeira leitura, mas que está carregado de bandeiras
nacionalistas. Os meios de comunicação de massas, que divulgam o discurso dos
políticos,“utilizammecanicamenteadeixisdaspequenaspalavras”100.
Essaspalavras,astais ‘nós’ou ‘aqui”,maisdoqueoseusignificadoconcreto,
remetemparaoespaçomentaldeconceitosdepertençaadeterminadacomunidade,
quetantopodeser“anação”,nocasodoestudodeBillig,como“opartido”,naanálise
de conteúdo do jornal Avante!. O nacionalismo, objecto de estudo do autor,
transporta-seaquiparaoconceitodemilitância,tendocomocentroocomportamento
domilitantecomunista.
Aqui, voltamos à sistemática construção da identidade comunista que se
observaemcadaediçãodaVIsériedoAvante!,naqualaheroicidadeéapresentada
comoanormalidadeaquesedeveaspirarnumquadroespecial,anormal,queéoda
resistência à ditadura e à repressão. Esses heróis são apresentados comomilitantes
“normais”, mas que pelo seu percurso político se tornam especiais, exemplares,
imprescindíveisparaa lutacontraosopressoressejavitoriosaabem,nãoapenasdo
partido,mas,acimadetudo,dopovoportuguês.
98MichaelBillig,NacionalismoBanal,p.31.99Billig,290.100Billig,p.290.
106
Não é raro depararmos com expressões como, “Álvaro Cunhal faz falta ao
nossopovo”, insertanaediçãodeFevereiro-Marçode1956,numtextopublicadona
1ªpáginade apelo à lutapela libertaçãodeCunhal, entãopresonaPenitenciária de
Lisboa. O sublinhado do dirigente que “faz falta” ao povo imprime uma carga
conceptualnãolongeaimprescindibilidade.Poroutraspalavras,oscomunistase,em
particular,osdirigentesdopartidopertencemaumgrupoprotetordopovo.
Nesse mesmo número do órgão central do PCP, escreve-se sobre a fuga de
JaimeSerradacadeiadoFortedeCaxiasemtermosqueconfiguramumaheroicidade
foradocomum,superior.
“Numa fuga audaciosa, perseguido a pouca distância pelos tiros dos
sentinelas,JaimeSerraconseguiupelasegundavezconquistaraliberdade,
paravirocuparoseupostodevanguardanalutacontraoinimigodonosso
povo–ofascismosalazarista.Asuacoragem,asuadedicaçãoàcausado
povo,comprovadas jáváriasvezes,permitirammaisestavitóriadonosso
partido sobre os carrascos salazaristas, vitória que enche de alegria o
Partido,aclasseoperária,osdemocratasetodoopovo.”
Estanotíciapodeserlidacomoumasíntesedospontosqueexplanamosneste
capítulo.Afulanizaçãodoconteúdopermiteaoleitor interiorizarqueafugarelatada
nãoéumafugaqualquer,nãoéumaaçãofácil,éumatoheroicocometidocontrao
inimigodopovoporumhomemforadocomum,umverdadeirocomunista.
Atendamosaosqualificativosqueperpassampelotextoeaoqueelescontêm
decargaemotivaparaoleitor:Afugaé“audaciosa”;JaimeSerra,“perseguido”pelos
tiros,revela“coragem”,“dedicação”;conquistaaliberdadepelasegundaveznãoem
proveitopróprio,masparalutarcontrao“inimigo”,quetambémnãoépessoal,mas
sim o do “nosso povo”; a sua vitória é a “vitória do Partido sobre os carrascos”; e,
cerejanotopodobolo,“enchedealegriaoPartido,aclasseoperária,osdemocratase
todoopovo”.
Esta linguagem heroica e moralizadora enquadra-se no programa político e
estratégico que viria a ser explanado, mais tarde, por Cunhal em “A superioridade
moraldoscomunistas”.
107
Naediçãoseguinte,tambémnaprimeirapágina,éaindaCunhaleaexigência
da sua libertação que motiva a publicação da seguinte frase, no final do texto:
“Salvemos a vida preciosa de Álvaro Cunhal, a vida de um dos mais dignos e
destacadosfilhosdonossopovo!”.
A par da exaltação das qualidades de algunsmilitantes, que induz a ideia da
construçãodeumasuperioridade,évincadapublicamentealigaçãoentreopartidoe
os seus dirigentes ao povo português, o que é uma das constantes nas edições do
Avante! clandestino. Há, como se pode perceber em praticamente todos os textos
publicadosqueremetemparaalutacontraaditadura,asimbiosedosdoisconceitos,o
daheroicidadenadefesadopartidoedosprincípios ideológicoseodopatriotismo,
pela defesa do povo, em nome do qual se desenvolve a luta dos comunistas. Sem
querer levarestareflexãoparaocampodoconceitodenacionalismoqueenformao
pensamentoepráticadoscomunistasportugueses,évisívelnostextosdoAvante!que
opartidosetornasinónimodepovo,nãoapenascomo“classesocial”,mastambém
como nação. O herói é aomesmo tempo superior nas qualidades e filho do povo,
entendidocomoumaentidademítica.
LidosalgunsexemplospublicadosnoAvante!clandestino,torna-seclaroquea
linguagem corrente utilizada não é inócua e a teorização posterior dos conceitos
transmitidos ‘banalmente’ vem comprovar que essa escrita está carregada de
conceitosteóricos.NoNacionalismoBanal,Billigdiscorresobreessepostuladoquando
cita Hannah Arendt ao afirmar que também na imprensa britânica que analisou “a
banalidadenãoésinónimodeinocuidade”101.Emboranãoexistaumaintencionalidade
conceptual oumesmo consciente, no caso em estudo neste trabalho, é cumprido o
objectivofinaldecriarumasuperioridademoral.
Mas, quando citamos Arendt para explorarmos a ideia de “banalidade” a
propósitodopresenteobjectodeestudo,talvezsejarelevanteatendermosaoquea
filósofa escrevenopós-escrito incluídona edição revista e aumentada (de 1964) do
seulivroEichmannemJerusalém,explorandooconceitodequeháumaausênciade
reflexãoideológicanapráticadomal.Arendtescreveque“oquefezdele[Eichmann]
101Billig,p.22.
108
umdosmaiorescriminososdasuaépocafoiaausênciadopensamento–oquenãoé,
ealgumaforma,amesmacoisaqueestupidez”102.
Semconfundira“banalidadedomal”deArendtcomo“nacionalismobanal”de
Billig e, muito menos, estabelecer qualquer paralelismo na análise dos textos
publicados noAvante! clandestino, é possível refletir, com base no pensamento de
Arendt, na utilização pela imprensa comunista de uma linguagem corrente/banal
aparentemente desligada do sustentáculo teórico que a enforma. A base ideológica
estálá,emcadapalavra,masoleitor/militantenãoprecisaterumaformaçãoteórica,
ou“pensamento”,paraseguirnoseuquotidianodemilitanteasorientaçõesqueessas
tais palavras carregam. Do militante espera-se o cumprimento das tarefas
estabelecidaspelosdirigentesdopartido,seguindoumalinhadecondutaintrínsecaa
umaleituraaparentementedesprovidadepropósitoestratégico.Acresce,nocasoem
estudo,quea leituradoAvante! foibasilar, tantonotempodaditaduracomojáem
democracia, na formaçãodosmilitantes de base,muitos dos quais analfabetos, que
tomavam conhecimentos dos textos em leituras colectivas clandestinas. Como
exemplificouohistoriadorJoséNeves,aotomarcomoestudodecasoaexperiênciade
trêsirmãosmilitantesdoPCP,“aspráticasdeleituranãopassamtantopeloconsumo
dos clássicos, isto é pela doutrinação política, mas mais por processos variados e
dispersosdeleituradoromanceaojornal”103.Nomesmotrabalho,Nevessublinha,no
entanto, que se os canais que se poderiam designar por banais serão centrais na
alfabetização comunista dos militantes de base, o mesmo não se passa com os
dirigentes.“Aleituraéumindispensávellubrificanterevolucionárioqueoperaemdois
níveis. Num primeiro nível, os quadros do partido necessitam ler os clássicos para
encontraremformasdedirecçãopolíticaquesejamadequadas.Numsegundonível,a
literaturadopartido,sobaformadediferentessuportestextuais,emregraproduzida
por aqueles quadros, deve ser lida por uma comunidade de trabalhadores pensada
comoumcomunidadedeleitores.104”
102HannahArendt,EichmannEmJerusalém,UmaReportagemSobreaBanalidadeDoMal(Itaca),p.428.103DiogoRamadaCurto(dir)eJoséNeves,EstudosdeSociologiaDaLeitura-AlfabetizaçãoLeninista(OCasoDosIrmãosFigueiredo)(FundaçãoCalousteGulbenkian,2006)p.702.
104CurtoeNeves,p.678.
109
Instadaafazerumareflexãosobresefoicultivada,nomeadamenteatravésdo
Avante!,a ideiadasuperioridademoraldoscomunistas,MargaridaTengarrinha,que
viveu na clandestinidade e nunca esteve presa, recusa a ideia de existir a noção de
supremacia,masadmite:“Háumasuperioridademoraldoscomunistas.Aexaltaçãode
alguns heróis é compreensível porque eles servem-nos de exemplo e fazemparte da
educação dos mais novos. Devemos usar o exemplo da vida dessa gente para
definirmosonossoprópriocaminho”.
Entre os que pertencem ao grupo dos quadros/heróis, é significativo que a
heroicidadeseja sinónimodedever, comosepodeatestarpelaopiniãomanifestada
porDomingosAbrantes, centradano conceitoda superioridade: “Nãoéheroísmo, é
umaquestãodedever.Hápessoasque foram torturadas,assassinadas,porquê?Por
princípios,porque tinhamvalores,porqueconsideravamquenão tinhamodireitode
salvarapeleafavordavidadeoutros.Háumconjuntodeprincípioséticosepolíticos
quesepõeacimadetudo.Háumasuperioridadedesde logoporteroptadoporessa
vida.Outrosnãoofizeram,quemofezforamoscomunistas.Háumamoralsuperior
doscomunistas,fomososúnicosduranteofascismocomaparelhoclandestino”.
O discurso de Domingos Abrantes remete novamente para Billig e para a
referidadicotomiadasupremaciaentre“nós”eos“outros”,quepodeseraplicadaà
teorizaçãoexpressanoopúsculoCunhal.
“A força do exemplo, pelo seu extraordinário poder de convencimento e de
atracção junto das massas, é um dos grandes trunfos da acção dos comunistas. O
militantesérioemodestoque,nasmaisdiversascondições,defendeinfatigavelmente
os interesses dos trabalhadores, o clandestino que suporta sem abrir boca cruéis
torturas,ocomunistasoldadoouguerrilheiroquedáavidaemdefesadoseupovo,o
herói do trabalho socialista, iluminam com os seus exemplos o caminho da luta,
alargamereforçamoprestígioeinfluênciadoPartido,atraemàssuasfileirasmuitos
novoscombatentes.”105
NesteexcertodateorizaçãodeCunhal,queterásidolidoporumaminoriade
militantes, está contida todaaprodução “banal” impressanaspáginasdoAvante! e
105ÁlvaroCunhal,ASuperioridadeMoralDosComunistas(EditorialAvante,1974),p.5.
110
que chegou a uma comunidade muito alargada de militantes e de resistentes à
ditadura, em geral. Noutras passagens do texto é bem notória a importância que é
dadaaocomportamentomoral,reforçandosempreaforçaessencialdoexemplo:“As
massas não só aferem, pela sua experiência, a justeza da orientação política e das
palavras de ordem do Partido como estão particularmente atentas e são
particularmente sensíveis ao exemplo moral dado pelos seus membros. Exemplo de
dedicação. Exemplo de combatividade e firmeza. E também exemplo de
comportamento pessoal num sentido mais largo: exemplo de dignidade e da
intransigência para com as concepções da moral burguesa e as práticas dela
decorrentes.Seavanguardaajuízadasinfluênciasdamoralburguesasobreasmassas,
asmassas julgamporsuavezocomportamentomoraldavanguarda.Oscomunistas
têmdeagirdeformaapassarcomhonraumtaljulgamento.106
Ainda analisando as palavras do dirigente comunista à luz do que foi sendo
escrito no Avante! é visível, uma vez mais, uma consonância conceptual entre o
teórico e o banal. Depois de termos evidenciado notícias nas quais se dá conta de
“falhas” decondutadealgunsmilitantes,Cunhal sintetizao conceitododeverpara
comopartido,realçaaimportânciadadisciplinaedaauto-crítica,marcandodistância
da noção da infabilidade: ”Seria utopia pretender que os comunistas fossem seres
‘puros’ e isentos de faltas. (...) A revolução não se faz com seres ideais. Faz-se com
homens que sofrem influências morais negativas do capitalismo e dos variados e
omnipresentesmeioseacçãoespiritualdeixadospormiléniosdesociedadesdivididas
em classes antagónicas, nas quais a moral dominante era a moral das classes
dominantes, isto é, das classes exploradoras. Esta situação incontroversa não leva à
renúnciadotrabalhoeducativodoPartido,antesaumentaasuaresponsabilidade.O
Partido chama a si os melhores, os mais conscientes, os mais dedicados ao bem
comum.MastambémvêmaoPartido,quaisquersejamascondiçõesemqueactuam
(no poder, legal, clandestino), homens com falhas mais ou menos graves na sua
formação e na sua conduta.Utilizando a arma da crítica e da autocrítica, o Partido
ajuda os seus membros a superar debilidades e faltas e forja nas próprias fileiras
106Cunhal,ASuperioridadeMoralDosComunistas,p.6.
111
lutadores infatigáveis, generosos, dedicados, pessoalmente isentos, corajosos, leais,
despretensiososesimples–homensemulherescapazesdeinspirar,peloseuexemplo,
os‘milagres’dequefalavaLenine.”107
Os comunistas são homens e não seres sobre-humanos, mas “não se
distinguem apenas pelos seus elevados objectivos e pela sua acção revolucionária.
Distinguem-se também pelos seus elevados princípios morais. (...) A moral dos
comunistasécontráriaesuperioràmoralburguesa”108.
Anosmais tarde, já emdemocracia e num contexto de divergências internas
quanto ao rumo do partido, em Agosto de 1985, Cunhal edita em livro um longo
ensaio“PartidocomParedesdeVidro”,noqualpretendeu,segundoassuaspróprias
palavras insertas no início do prefácio da 6ª edição, de Janeiro de 2002, “dar a
conhecer como nós, os comunistas portugueses, concebíamos, explicávamos, e
desejávamosonossopartido”.
Nesteensaio,Cunhaldeixaimplícitosconceitosquecolocamoscomunistas,em
particularosdirigentes,numpatamarsuperioraosdarestantepopulação,aoassumir
que “o reconhecimento da superioridade moral do partido é um dos mais sólidos
critériosdoêxitodasuaacçãocomovanguarda.Atransformaçãodadeterminaçãoe
doheroísmodevanguardanumfenómenodemassas,comoseverificounarevolução
portuguesa,éumdosmaissólidoscritériosetodasverdadeirasrevoluçõesedopapel
queneladesempenhaoPartido”.109
Cunhalafirma,porexemplo,serimportantenumcomunista,“foraasuaacção
revolucionária, sentir-se e gostar de sentir-se comoum ‘homemcomum’, comouma
‘mulhercomum’”110.Note-sequeodirigentedoPCPcolocaoscomunistasnumplano
distintodooutroscidadãos,aonãoafirmarqueumcomunistaéum“homemcomum”,
massimquedevesentir-seum“homemcomum”.
107Cunhal,ASuperioridadeMoralDosComunistas,p.6.108Cunhal,ASuperioridadeMoralDosComunistas,p.1.109Cunhal,OPartidoComParedesdeVidro,p.197.110Cunhal,OPartidoComParedesdeVidro,p.204.
112
Mesmona clandestinidade,ouatépor causadela,omilitanteera impelidoa
agire sentirno relacionamento comosoutros cidadãos, como“homemcomum”,é
sempre a expressão usada por Cunhal ao estabelecer regras para os militantes e
dirigentes do partido. “Há camaradas que, namedida em que desenvolvem os seus
conhecimentosetêmmaisresponsabilidades,sefatigamaoouvirhomensemulheres
compreparaçãomuitoelementar,porvezescomgrandeatrasonaconsciênciapolítica.
Algumacoisafaltaadirigentesdeumpartidooperárioquandonãosabemapreciaro
convívio com as pessoas mais simples, mesmo as mais atrasadas, e não sabem
descobrirouencontrarnariquezadequalquersermotivobastanteparaaalegriado
convíviohumano”.111
Há, nestas passagens da orientação dada por Cunhal aos militantes, um
manifestosentidodesuperioridadedocomunistaemrelaçãoaos“maissimples”,ao
“homem comum”, numa teorização do conceito que está presente nos textos
publicadosnasediçõesdoAvante!clandestino.Peladescriçãodeatitudesexemplares,
quersejanocomportamentonaprisãoounavidaquotidianadelutacontraaditadura
em defesa dos trabalhadores, o órgão central do PCP foi forjando um pensamento
ético/moralquesóviriaasersintetizadoteoricamentemaistarde,jáemdemocracia.
Pode anotar-se que, no caso da transposição dos conceitos implícitos nos
textos publicados no Avante! para a teorização elaborada por Cunhal, há uma
correspondênciacomoqueBilligassinala,aoreferir-seaoprocessode“incrustaçãoda
nossaidentidadeatravésdasrotinasenavidasocial”.112Noentanto,aprecedênciado
banaléapenasaparente,umavezqueháumesteioideológicoquepossibilitaessatal
banalidade, que se vai entranhando nosmembros da tal comunidade imaginada de
Anderson. É o que, de alguma forma, sintetiza Cunhal na sua teorização sobre a
superioridademoral dos comunistas, datada de Janeiro de 1974, “os ideais políticos
influemnasrepresentaçõeseatitudespsicológicasetransplantam-separaosconceitos
moraisedestesparaasatitudesehábitosdeprocedimento”113.
111Cunhal,OPartidoComParedesdeVidro,p.204.112Billig,p.291.113Cunhal,ASuperioridadeMoralDosComunistas,p.2.
113
Conclusão
Chegou-se à parte conclusiva deste trabalho commais do que uma resposta
paraapergunta inicial:“ComooAvante!tratouosseus?”oucomocontribuiuparaa
construção de uma identidade comunista. Partiu-se de uma questão que veio a
revelar-se limitadora ao longo da investigação. É que nem oAvante! clandestino se
podeconfinaraoestatutodeórgãocentraldoPartidoComunistaPortuguêsnemos
“seus”sãoapenasosmilitantescomunistas.
A análise das edições regulares do Avante! clandestino, entre 1941 e 1974,
revelaaexistênciaderegistoslinguísticosdiferentesparaosdiversostiposdeleitores
imaginados por quem escreve os textos publicados. São distintos os termos usados
paraentidadesdiferenciadas,asquais,noentanto,serevelamsemelhantesnamedida
emquepertencemàcomunidadeimaginadadosleitoresdoAvante!.Oórgãocentral
doPCPsuplantouamissãoaqueestavaobrigadopeladefiniçãodeLenine,queeraa
deser,simultaneamente,umorganizador,uminformadoreummobilizador,etornou-
se, como refereMargarida Tengarrinha (já citada anteriormente), “oúnicoórgãode
informaçãoquediziatodaaverdade,proibidapelacensuranosoutros jornais”.Uma
frase que remete para o lema “A verdade a que temos direito” do jornal o diário,
editado entre Janeiro de 1976 e Junho de 1990, propriedade da editorial Caminho,
ligadoaoPCP.Nocasodeodiário,averdadejánãoécondicionadapelacensura,mas,
na óptica dos comunistas, pelo noticiário que é ignorado pelos outros jornais, em
tempo de refluxo revolucionário e da consequente perda de influência do PCP na
Imprensa.
Comoficoureferenciadoaolongodestetrabalho,nasediçõesclandestinasdo
órgão central o PCP publicam-se textos diretamente dirigidos aos militantes
comunistas nos quais o pendor ideológico é mais claro, com uma linguagem de
proximidadeeempática,quersejaparalouvarcomportamentos,condenartraiçõese
fraquezas ou para orientar no caminho a seguir. É exaltada a heroicidade dos
“melhoresfilhosdoPovo”edenegridaaimagemdos“miseráveistraidores”,que,em
muitoscasos,nãosedistinguemdo“inimigo”.Oscomportamentosindividuaiseram
indicados como exemplares, tanto no bom como no mau sentido, sinalizando com
114
sentidoobrigatórioocaminhoaseguir.
Aconstruçãodestestextosésusceptíveldecriarsentimentosdecomoçãoou
de ódio associados a comportamentos éticos, quer sejam militantes ou inimigos
políticos. O uso do “nós” em oposição ao “outro”, de que falaMichel Billig para o
nacionalismo, transporta-separaomilitanteeparaasuarelaçãocomosde fora,os
não militantes, edificando paulatinamente o conceito da superioridade moral dos
comunistas,teorizadoporÁlvaroCunhal.
Mas entre esse “nós” e os “outros” há, no Avante! e no partido, uma zona
cinzenta onde cabem os “homens honestos”. A adjetivação, de “honestos” é
recorrentemente usada nas páginas doAvante! para designar os nãomilitantes, os
anti-fascistasnãohostisaopartido.
O militante integra uma comunidade imaginada de leitores que constitui o
universoalargadodedestinatáriosdamensagemescrita.Estáexpressonoconteúdoe
naformadostextosqueoAvante!“fala”tambémparaosantifascistascomoumtodo,
quando apela à unidade das forças democráticas contra o salazarismo ou ainda
quando relata atrocidades da guerra colonial ou da violência da polícia política nos
interrogatórios e nas cadeias. São textos que induzem a construção de um projeto
político agregador de oposição à ditadura, mas que entram em contradição com
expressõesusadasbastasvezesdecondenaçãoaestratégiasdeoposiçãodiversasàs
seguidaspelopartido.Aprofusãodeartigosdotipoagregadordashostesantifascistas
é mais acentuada durante o período da II Guerra Mundial, seguindo a influência
estratégicadeFrentePopularfrancesa,nopodernofinaldosanos30,enacampanha
eleitoralparaaPresidênciadaRepública,em1958,noquadrodomovimentogerado
pelacandidaturadeHumbertoDelgado.
UmtipodeleitoressemprepresentecomodestinatáriodoAvante!clandestino
são os trabalhadores. As suas lutas são eleitas como motor da ação política dos
comunistase sãoprofusamentenoticiadasnaspáginasdo jornal. Emboranão tenha
sidoobjectodeestudopreferencialneste trabalho, a contestaçãodos trabalhadores
estáemprimeiroplanononoticiárioeéenquadradanacríticaàsopçõeseconómicas
do regime, às quais é proposta uma linha de rumo alternativa. A par das lutas
operárias e nos campos, que são centrais nas edições dos anos 40 e 50, na década
115
seguintecomeçamasurgirnotíciasdefocosdecontestaçãoentreosestudantes,onde
oPCPperdeinfluênciaparaosnovosgrupospolíticosmaoístas,eemsectoresmenos
tradicionais, num sinal denovos temposque se adivinham, comoprincípio deuma
certa “democratização” no acesso ao ensino, decorrente de uma classe média
ascendenteecomo reforçodosector terciáriodaeconomia.AspáginasdoAvante!
espelham a resposta que o partido vai ter que dar a esses novos desafios na
construçãodeumapolíticaeconómicaalternativaaocapitalismoe,emparticular,ao
rumoseguidopeladitadura.Éocasodaslutasdosbancários,enfermeirosemédicos
quevãoassumiralgumaexpressãonoAvante! clandestino.EnquantooPCPalargaa
intervençãosocial,oseuórgãocentraltentaalcançarnovosleitoresimaginados.
Seacomunidadeimaginadadeleitorestemcomonúcleoosmilitantes,opovo
portuguêséouniversomaisalargadodedestinatáriosdamensagem,aoexprimir-se
em nome desse mesmo povo, exaltando os valores patrióticos, na denúncia da
carestia, emparticular,umavezmaisdurantea IIGuerraMundialou, jánoperíodo
marcelista,aocontestarideiadeumapossíveltransiçãodemocráticaoregime.Porser
clandestino,oAvante!,comoéassumidoporDomingosAbrantes,escapavaàcensura
préviaobrigatóriaparatodaaImprensaoquelhepermitianoticiartornar-seummeio
deinformaçãonãocondicionadopelaslimitaçõesàliberdadedeexpressão.
O Avante! clandestino, redigido, composto e impresso em condições muito
difíceis, perigosas para os militantes envolvidos e arriscadas para a máquina
partidária,foidistribuídoportodoopaísatravésdarededemilitantes,chegandopelo
correioamuitos“democratas”“honestos”eintroduzidonasprisõesdeformamassiva.
Tambémaí,ojornaleraumelementocentralnaligaçãoentreospresoseoexterior.
Para dentro passavam mensagem de solidariedade e de apoio à resistência, para
foram eram enviadas denúncias das condições nas cadeias e das torturas nos
interrogatóriospoliciais.Esemprequeerainterceptadopelapolíciapolítica,oAvante!,
alémdeserum focodepreocupaçãopeloque representavadeveículodedenúncia
dosprocessosutilizadosnascadeiasenosinterrogatóriosedeexaltaçãodaresistência
ospresos, tornava-se também fontede informaçõesparaosagentes.Daíque tenha
surgido como relevante saber se as notícias eram redigidas a pensar tambémnesse
grupodeleitoresespeciais.Sechegouahaverpublicaçãodenotíciasfictíciasoucom
116
dadoserradosparainduzirapolíciaemlogrofoiaperguntaqueseimpôsnodecurso
da presente investigação. Domingos Abrantes garante não terem havido notícias
falsas,masassume:“Masumaoutracoisaerapublicaçãodenotíciasdistanciadasda
ocorrência dos factos — encontros, congresso, etc.— para dificultar o trabalho da
polícia.Porexemplo,sesetivessenoticiadonahoraarealizaçãodeumcongresso,e
dado o número de deslocações de militantes das suas regiões, seria mais fácil o
trabalhodepesquisadapolícia.”
O jornal Avante!, no seu período clandestino, está no centro da resistência
comunistaàditaduradeSalazar/Caetanooqueotransformanumelementovivo,logo
contraditório,queacompanhouahistóriadoPartidoComunistaPortuguês,noqueela
teve de construção de uma identidade comunista, ao fomentar exclusões e
sedimentando os alicerces teóricos. Tudo isso está nas páginas do periódico, numa
multiplicidade de registos, que vão da secura da notícia à fabulação, mas falando
semprediretamentecomotalleitorimaginado.
Mascomasrespostasencontradasnãosechegaaofimdeumestudoexaustivo
do conteúdo do Avante! clandestino. Esse pode seguir uma miríade de caminhos,
todoselesaindanãopercorridospelainvestigaçãoemHistória.Aolongodopercurso
queagora se finaliza, surgirambifurcaçõesquepoderiam levaraoutros caminhode
análise.Foiprecisoresistirparaqueoobjectodestetrabalho—odeanalisarcomoo
Avante!criouasuacomunidadedeleitoresecomofaloudelaeparaela—nãofosse
subvertido,masanota-seaquialgunsdospossíveisrumosparainvestigaçõesfuturas.
NarelaçãodoAvante!clandestinocomosmilitantescomunistaspoderáseguir-
se,emcontraponto,umalinhainvestigativadestinadaaavaliarocomoojornalfoilido
pelos seus leitores, com recurso a fontes documentais como memórias escritas e
entrevistas a pessoas que possam representar os diversos tipos que encaixam na
comunidade imaginadados leitoresdo jornal.Nopresente trabalhonão sedeixade
fazerreferênciaàimportânciaqueoperiódicotevenaconstruçãodeumaidentidade
comunista,constituindo-se,elepróprio,comoumorganismovivo,heroicoeexemplar
pelaresistênciaemtemposdeclandestinidadeerepressãopolicial.
Outrasdasviaspossíveiséaanálisedecomoosoutrosjornaise,emparticular
osmais ligadosaoregime,sereferiamaoAvante!.Emregra,osjornaisnacionaisde
117
grande circulação, sujeitos a censura prévia, não farão referências a publicações
clandestinas,masemcertaimprensapanfletáriaepropagandísticadoregimealgumas
referênciasexistirão.Deparou-secomocasodojornalAlerta114,naediçãodatadade
Outubrode1944,ondeotítulo“ANaçãosobumdilúviodapropagandasubversiva”
encabeça um texto de crítica a jornais e jornalistas que se posicionam do lado dos
Aliados,ilustradocomareproduçãodepartedacapadoAvante!nº60,da2ªquinzena
deAgostodomesmoano.
Pela leituradoAvante!, fica clara aposiçãodo jornal sobre a açãopolicial.E
comoéqueapolíciapolíticaliaoAvante!?Umanovapergunta,umanovainvestigação
possívelcomalgunsobstáculosdemontaparaultrapassar, jáque,nestemomento,a
TorredoTombonãopermitequalquersistematizaçãosobreoAvante!,umavezqueo
arquivoaPIDE/DGSéessencialmenteonomástico.Assim,sóaconsultadeprocessos
individuais de militantes presos ou vigiados, dos milhares que estão arquivados no
ArquivoNacionalpoderáfornecerpistasparacontribuirparaesclareceressaquestão.
MuitoestáporinvestigaropapelqueaImprensaclandestinarepresentouna
resistênciaàditaduradeSalazareCaetano,massecomestetrabalhosobreoAvante!
foram identificadas algumas questões, talvez se contribua para que mais linhas de
investigaçãocomecemasurgirnumfuturopróximo.
114Ediçãoreproduzidaemhttps://ephemerajpp.com
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