Como os Irlandeses salvaram a Civilização - Thomas Cahill

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    A H I S T Ó R I N Ã O C O N T A D A

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    Como od irfandeJed t1afvaram a civ fb:ação

    é o primeiro volume da sérieA Hutória não contada em que ThomasCahill pretende contar a História domundo ocidental por um outro ângulo.Se a literatura da área geralmente nosleva a pensar a História como umasucessão de grandes catástrofes Cahill

    enfoca o que muitas vezes se perde noesquecimento. São narrativas de graçasrelatos de momentos únicos em queapenas um gesto foi capaz de mudarpara sempre a sucessão dosacontecimentos.

    Neste primeiro volume Cahill revelacomo os irlandeses foram fundamentaispara a História da CivilizaçãoOcidental.Quando se pensa em povos quedesempenharam um papel marcante na

    História dificilmente os irlandeses sãolembrados. Se nos dispusermos a pensarem uma CivilizaçãoIrlandesa nenhumaimagem grandiosa surgirá.No entanto a pequena ilha à beira daEuropa que desconheceu a Renascençae o Iluminismo teve seu momento deglória e moldou à sua maneira aCivilização Ocidental a partir daIdade Média.

    Enquanto ruía o Império Romanoenquanto a Europa se emaranhava ebárbaros saqueavam cidadesapossando-se de objetos de arte equeimando livros os irlandeses queentão começavam a ler e escreverassumiram a grande tarefa de copiartoda a literatura ocidental. Sem opaciente trabalho de seus escribasmanuscritos de escritores greco-latinostextos pagãos e cristãos estariamperdidos para sempre. Ao assumir esta

    3ªEDIÇÃO

    COMOOS IRL NDESESS LV R M

    A CIVILIZAÇÃO

    q _OBJfllY

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    THOMAS CAHILL

    COMOOS IRL NDESES

    S LV R M

    . A CIVILIZAÇÃO

    TraduçãoJosé Roberto O Shea

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    © 19 95 by T h om as Ca hill T od os s dire ito s re se rvad os

    T ít u lo orig in alow the I ri sh Sa v ed C i vil izat ion

    D ir eito s em lín gu a p o rtu gu esa pa ra o B rasi l, adqu ir idos a trav és doD o ub l ed ay, um a d iv isão d a Ba n tam D ou b le da y D eli P ub lish in g G ro up , l n c.

    po r ED ITOR A OB J E TI V A LT DA ., r ua C o sm e V el ho, 10 3R io de J an eiro RJ C EP : 22 2 41 -0 9 0

    Te .: (02 1) 55 6 -7 82 4 - Fax: (021 ) 55 6 -3 32 2 I N T E R N E T : ht tp ://w w w. o bj e tiva .c om

    C apa

    V i c tor B urto n

    Re visão da T raduç ã oM a ria M iran d a O ' S he a

    Revis ão

    U m be r to Fi gueir edo P into

    Fátim a Jo rge F adeiT ereza de Fá tima da Ro cha

    E dito ração Eletr ônica A br eu's S ystem Ltda .

    199910 9 8 7 6 5 4 3

    A HIS TÓR IA N ÃO -CONTA DA Em geral pens amos na h istór ia com o u m a ca tástro fe

    atrás d a o u tra, u m a g uerra segu ida p o r o u t ra, u m a v iolênc iapor outra violê n cia - qu a se co m o se a hi s tória não passa sse

    de narra tivas do s o frim ento h u m a no, o rgan izada s em seqüên cia. E ce r tam e n te es ta é c o m mu ita freq üênc ia, um ade scriçã o ade quad a . M a s his tória t a m b é m sã o n ar rativa s deg raça, os re latos d aque les m o m e n tos a benç o ad o s e in e xplicáve is, qu an do algu ém fez al g uma coisa pelo o utro , salv ouum a vida , co n c edeu u m a dá d iv a, d e u alg o alé m d o que e rarequ er ido pela circu nstân cia.

    Na sér ie A HISTÓRIA NÃ O-C ONT ADA p r e tend o c o n t ar a h istó r ia do mun do o c iden ta l en q u a n t o h is tória do s gra ndes doad ores, aque les q ue c o nfia ram a os no

    ssoscu idad o s um ou o u t r o do s teso u ros s ingu lares q ue c onsti t u í ram o p a t r im ô n i o do O cide n te. Também é a his tória d a e v o luçã o d a sensib ilida d e o c identa l, a n arrat iva de co m o n o s to rn am o s as pesso as qu e som os e p o r q ue p ensa m os e se ntim o s de sta m aneir a. Po r fim , é o relat o da q ueles m om e n tos essen ciais e m q u e tu d o es tava em jo go, q u a n d o aco r rente pode rosa q ue se torn o u a h istó r ia oc ident a l est a vae m p e rigo e que deve ria te r-se d ividi d o em c em trib u tário sinúte is, ou co n g elad o até a m o r te, ou ev a pora d o co mple

    ta m ente . M as os gr a ndes doad ores, cheg ando no mom entod e crise, torn a ra m possí vel a trans ição, a tra n sfor m aç ã o ea té m e sm o, a tran sfigu ração , n os d eixa ndo um mundo mais varia d o e c om p lexo, mais impr e ssio n ante e agr adáve l, ma isbe lo e forte d o qu e aq u ele q ue e n cont raram .

    TH OMA S CA HILL

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    ara Susie

    augusta e bela ... prima e cara:

    Tende só alegria e riquezaPaz Prazer mor e Beleza.

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    ada

    que valha a pena pode ser realizado duran te a vida;portanto seremos salvos somente pela esperança. ada queseja verdadeiro belo ou bom faz pleno sentido em

    qualquer contexto histórico imediato; portanto seremossalvos somente pela fé Nada que fizermos por mais

    virtuosos poderemos fazê-lo sozinhos; portanto seremossalvos somente pelo amor.

    REINHOLD NIEBUHR

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃOAté que Ponto Será Verdadeiraa História? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    CAPÍTULO 1 0 FIM O MUN OComo e Por que Roma Caiu . . . . . . .2

    CAPÍTULO 2 0 QUE FOI PERDIDOA Complexidade da Tradição Clássica 47

    CAPÍTULO 3 0 INSTÁVELMUN O DAS TREVAS

    A Irlanda Profana 85

    CAPÍTULO 4 A BOA NOVA VINDA DE LONGEO Primeiro Missionário . . . . . . . . . . 117

    CAPÍTULO 5 ESTÁVELMUN O DA LUZA Irlanda Sagrada. . . . . . . . . . . . . . . 139

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    CAPÍTULO 6 - QUE FOI ENCONTRADOComo a Irlanda Salvoua CivilizaçãoOcidental . . . . . . . . . . 165

    CAPÍTULO 7 - FIM DO MUNDO

    Haverá Alguma Esperança? . . . . . . . 221

    Guia de Pronúncia de PalavrasIrlandesas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .243

    Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . .245

    Cronologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .253

    Agradecimentos 257

    Índice Remissivo . . . . . . . . . . . . . . . 261

    INTRODUÇÃO

    Até que Ponto Será Verdadeira a História?

    A alavra irlandês raramente remeteà palavra civilização . Quando pensamos em povos civilizados, ou civilizadores, vêmà nossa mente egípcios e gregos, italianos e franceses,chineses e judeus.Os irlandeses serão sempreos indomáveis,

    indolentes e charmosos, ou taciturnos; reprimidos e corruptos, mas não, necessariamente,os civilizados.Se nos dispusermos a pensar em uma Civilização Irlandesa ,nenhumaimagem surgirá, nenhum Crescente Fértil, nenhum Vale doIndo, nenhum busto sisudode Beethoven. O mais simplóriomecânico grego escolhe para sua oficina o nome Partenão ,estabelecendo umelo pessoal com uma suposta cultura ancestral.O dono de restaurante, semi-alfabetizado,de origem siciliana,exibe em local privilegiado sua cópia degesso do avi de

    Miguelângelo, pressupondo,assim laços pessoais com a Renascença. Jáum comerciante irlandês estará bem mais inclinadoa batizar seu estabelecimento com o Bar Breffniou Mudan-ças Kelly , sugerindo apenas referências locais, livres de qualquer ressonância de História ou de civilização.

    Contudo, a Irlanda, pequena ilhaàbeira da Europa, quedesconheceu a Renascença e o Iluminismo - até certo ponto,um país de Terceiro Mundo, dotado, segundo John Betjeman,

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    de lima cultura da Idade da Pedra - teve seu momento deglória. Enquanto ruía o Império Romano, enquanto a Europase emaranhava, e bárbaros imundos saqueavam cidades, apossando-se de objetos de arte e queimando livros, os irlandeses,que então começavam a ler e a escrever, assumiam a grande

    tarefa de copiar toda a literatura ocidental - tudo que lhescaía em mãos. Através do trabalho de tais escribas, as culturasgreco-romana e judeu-cristã seriam transmitidas às tribos daEuropa, recém-estabelecidas em meio ao entulho e aos vinhedos destruídos de uma civilização que acabava de ruir.Sem esse serviço, tudo o que aconteceu posteriormente teriasido inconcebível. Sem a missão dos monges irlandeses que,sozinhos, pelas baías e vales do exílio, reinstauraram a civilização em todo o continente europeu, o mundo que' os sucedeu

    teria sido completamente diferente - um mundo sem livros.E o nosso próprio mundo jamais teria se consolidado.

    Há mil anos - desde que a Legião Espartana pereceuno desfiladeiro das Termópilas - a civilização ocidental nãose submetia a tamanha prova, nem voltaria a confrontar aprópria extinção, até descobrir, no presente século, meios deacabar com toda e qualq uer forma de vida. No início do séculoV, momento em que começa a história aqui relatada, ninguém poderia prever o futuro colapso. Porém, já na segunda

    metade do século, os indivíduos mais esclarecidos que examinavam a situação à sua volta não tinham dúvida que o fimnão tardaria a chegar: aquele mundo estava condenado. Aúnica opção, com o fez Ausônio, era isolar-se na privacidadedomiciliar, escrever poesia e aguardar o inevitável. No entanto, jamais ocorreria àqueles indivíduos que os alicerces do seumundo seriam preservados, em circunstâncias tão inesperadas,em terras tão distantes que os romanos nem se deram ao trabalho

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    de conquistar, e a partir da iniciativa de certos indivíduos estranhos, que viviam em casebres em cumes rochosos, que raspavamparte da cabeça e se puniam praticando jejum, passando frio erolando sobre urtiga. Segundo Kenneth Clark, contemplando opassado, a partir de grandes civilizações, como a França do século

    XII e Roma do século XVII, custamos a crer que durante muitotempo - quase 100 anos - o cristianismo sobreviveu noOcidente apenso a locais como Skellig Michael, um rochedosituado a 27 quilômetros da costa irlandesa, projetando-se a 218metros acima do nível do mar .

    Clark, que inicia seu livro Civilisation com um capítulointitulado The Skin of Our T eeth , discorrendo a respeitoda precária transição do clássico ao medieval, constitui umaexceção, ao atribuir à contribuição irlandesa o devido valor.

    Muitos historiadores a ela sequer fazem menção, e poucosrelatam o drama desse verdadeiro precipício cultural. Issoocorre, com certeza, porque é mais fácil descrever estase (falarprimeiro do clássico e, mais tarde do medieval) do quemoviment o (falar do clássico ao medieval). Ocorre, também,porque, geralmente, os historiadores se especializam em períodos históricos específicos, de modo que a análise de transições costu ma escapar à sua competência (e à de todos nós?).Com efeito, desconheço a existência de um livro sequer,

    editado nos dias de hoje, que se proponha a estudar essatransição, ou no qual o assunto ocupe posição de destaque.

    Com o intuito de preencher essa lacuna, perguntaríamos: até que ponto será verdadeira a História? Será nada maisque uma grande sopa, contendo tal mistura de ingredientesque a torna impossí·vel de ser caracterizada? Será procedente

    Por um Triz . [N.T.]

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    a observação de Emil Cioran, de que a História nada provaporque tudo abrange?Não será verdadeira a recíproca, de quea História pode ser manipulada a ponto de afirmar o quequisermos?

    A meu ver, cada época reescreve a História, revisandofeitos e textos de outras épocas, a partir deuma perspectivamais distanciada, mais favorável. A nossa História, aquela queestudamos na escola eà qual nos remeteremos mais tarde, foi,em grande parte, escrita por protestantes ingleses e norte-americanos de origem anglo-saxônica.e historiadores contemporâneos vêm demonstrando que tais escritoresnem sempresão confiáveis,no que concerne, por exemplo,àcontribuiçãodas mulheres,ou dos afro-americaqos, não devemos nossurpreender ao constatar que tais escritores fecharamos olhos

    grande contribuição celta e católica, emum passado longínquo, contribuição essa sem a qual a consolidaçãoda civilizaçãoeuropéia teria sido inviável.

    Paraum inglês culto do século passado, por exemplo, osirlandeses eram, por natureza, incapazes dese tornarem civilizados. Os irlandeses , proclamava Benjamin Disraeli, querido primeiro-ministroda Rainha Vitória, têm ~ e r s ã oànossa ordem, à nossa civilização, à nossa indústria empreendedora,à nossa religiãopura [o pai de Disraeli abandonara ojudaísmo, convertendo-seà Igreja Anglicana]. Essa raça selvagem, irresponsável, inconstante e supersticiosa não apreciao caráter inglês. Seu ideal de felicidade é a alternância entreas rixas de clãs e a rude idolatria[i.e. o catolicismo]. SuaHistória descreveum círculo vicioso de intolerância[ ] esangue. O racismo venenoso e o preconceito implacávelpresentes nessa caracterização podem, hoje em dia, ser óbvios;contudo, nos dias dodear old Dizzy conforme a rainha

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    chamava ohomem que a presenteoucom a Índia, tais palavrasencerravamuma verdade incontestável.

    H á que se admitir que, ocasionalmente, mesmoos presunçosos colonizadores do impérioda pequenina rainha tinham seus momentos de remorso.Não seriamos conquis

    tadores responsáveis pela situação precária em quese encontravam os colonizados? Logo, porém, suprimiam a dúvida eabrigavam-seem sua impérvia superioridade, comose vê naseguinte reação, esboçada pelo historiador Charles Kingsley,dianteda miséria, induzida pela fome, que ele próprio pôdetestemunhar na Irlanda vitoriana:

    Fiquei assustadocom os chipanzés humanosque vi ao longo de mais de100quilômetros deumaregião abjeta.Não creio que seja culpa nossa (grifomeu). Penso que são agora em maiornúmero doque antes e que jamais estiveram tão felizes, tão bemalimentados e confortavelmente alojados comoagora, sob nosso jugo. Mas é aterrorizante verchipanzés brancos; fossem eles pretos, não doeriatanto, mas sua pele, exceto onde que imada pelo sol,é branca como a nossa.

    Tampouco podemos nos consolar, supondo que essetipo de atitude terá ficadono passado. Segundo palavras deAnthony Grafton, conceituado historiador da Universidadede Princeton,em artigo recentemente publicadona ewYork Review o Books a respeito de Departamentos de História das melhores universidades norte-americanas:

    A cultura católica - assim como a maioria doscatólicos - era freqüente objeto de desdém, reduto

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    de seres inferiores, talhados para as lendárias escolasparoquiais, onde freiras diziam às internas que,quando acompanhadas, jamais pedissem ravióli emum restaurante, pois os namorados talvez se lembrassem de travesseiros. Estereótipos e preconceitos

    dessa natureza, tão maldosos quanto os que pesavam sobre os judeus, persistiram em universidadesnorte-americanas até data recente, o que nos causagrande constrangimento.

    Na verdade, tal data pode ter sido apenas anteontem. Noentanto, não vai aqui qualquer acusação de que determinadohistoriador falsifique dados deliberadamente. Não, o problema é mais sutil do que a mera falsificação, sendo, commuita arte, descrito por John Henry Newman em sua fábula

    O Homem e o Leão :

    Certa vez o Homem convidou o Leão à suacasa, e o recebeu com hospitalidade principesca. OLeão teve acesso a todo o magnífico palácio, ondehavia um grande número de objetos admiráveis.Os salões eram amplos, com longos corredores,luxuosamente decorados, repletos de belas esculturas e pinturas, obras dos grandes mestres. Os motivos representados eram os mais diversos; porém,uma determinada obra, a que mais se destacava emtodo o acervo, mereceu o interesse particular donobre animal, que por entre elas espreitava: aquelaque representava o próprio Leão. E à medida que odono da mansão o conduzia de um aposento aooutro, o visitante não pôde deixar de reconhecer a

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    homenagem, ainda que indireta, que todas aquelasobras de arte prestavam à espécie dos leões.

    No entanto, todas as obras tinham uma característica, ao mesmo tempo comum e extraordinária, à qual o anfitrião não parecia de todo insen

    sível, embora, por educação, permanecesse calado:por mais diversas que fossem, todas as reproduçõesapresentavam o homem como vencedor; o leão,como vencido.

    O problema aqui não é a exclusão do Leão da históriada arte, mas o fato de ter sido mal representado - e de jamaisvencer. Quando o Leão termina de percorrer o palácio,prossegue Newman, o anfitrião pergunta-lhe o que acharadas riquezas nele contidas; o Leão responde, fazendo jus àfortuna do proprietário e ao talento dos artistas, mas acrescenta: 'os leões teriam se saído melhor, fossem eles próprios

    'os artistas .

    Ao longo da narrativa aqui contida, encontraremos diversos anfitriões, indivíduos de renome, que têm uma históriapara contar, alguns dos quais chegam a crer que sua versão éa única. Seremos corteses e os ouviremos sem depreciação.Tentaremos até enxergar as coisas do ponto de vista dessaspessoas. Mas, às vezes nos surpreenderemos como ciceronesde leões. Nesses momentos, será cada leitor por si.

    Iniciaremos, entretanto, não na terra dos leões, mas noorganizado e previsível mundo romano. Para podermos apreciar o significado da contribuição irlandesa, será necessário,primeiro, fazer um inventário do império civilizado da Antiguidade.

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    FIM O MUN O

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    OMO E POR QUE ROMA CAIU

    o último e frio dia de dezembro no ano 406 segundo anossa cronologia o Reno congelou fornecendo a pon tenatural que centenas de milhares de homens mulheres ecrianças famintas tanto aguardavam. Tratava-se da r r i-

    para os romanos uma indistinta e mesclada massa de estranhos em nada aterrorizante apenas uns desordeiros um

    estorvo algo com o que não se deseja lidar isto é não-romanos. Para eles próprios presume-se os bárbaros eram mais doque isso mas como os iletrados deixam poucos registros só

    podemos conjeturar a opinião que tinham de si mesmo.Nem os entediados e disciplinados guerreiros romanos

    ao longo da margem ocidental do Reno nem as ansiosas edesastradas tribos bárbaras amontoadas pela margem oriental poderiam avaliar a posição que ocupariam na História.Mas aquele momento suspenso de uma calma relativa antesdo pandemônio que se seguiu propicia-nos a oportunidadede estudarmos os contingentes posicionados em ambas as

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    gigantes culturais que construíram tais obras estaria em todasas bocas. Petrarca, poeta e estudioso toscano, devidamentelembrado como o pai do humanismo renascentista, redescobre a noção de 'queda', pela qual, seguindo a linha de Agostinho, há de apontar as falhas internas do império. Maquiavel,

    escrevendoum

    século e meio mais tarde, em época menosespiritual e mais cínica, culpará os bárbaros.

    Quando, em 1776, surgiu o primeiro volume de TheHistory o the Decline and Fali o the Roman Empire deEdward Gibbon, a obra suscitou maior interesse em Londresdo que as notícias vindas das colônias rebeldes na América doNorte. O declínio de Roma , escreve Gibbon, foi conseqüência natural e inevitável de sua desmedida grandeza.A noção coincidia com o espírito f;io e racional da época.

    Mas, à medida que os súditos ingleses mais convencionais,naquele final do século XVIII, viravam as páginas da obra deGibbon, o sangue começou a ferver-lhes nas veias. Uma vezque a felicidade de uma vida futura constitui o grande objetivoda religião , prosseguia Gibbon,

    podemos supor, sem surpresa ou escândalo, que oadvento ou, ao menos, o abuso do cristianismoexerceu alguma influência sobre o declínio e a

    queda do Império Romano. O clero, com sucesso,pregou as doutrinas da paciência e da pusilanimidade; as virtudes fortes da sociedade foram desencorajadas e os vestígios do espírito militar foramenterrados nos claustros; grande parte da riquezapública e privada foi consagrada às falsas exigênciasda caridade e da devoção; e o pagamento dos sol-dados foi desperdiçado em multidões inúteis, de

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    ambos os sexos, cujas virtudes jamais i riam além dacastidade e da abstinência.

    O impacto causado pela obra foi seguido de refutações,e Gibbon logo se defendeu, publicando Vindication. Na

    verdade sua teoria nada tinha de nova, pouco se distinguindoda teoria pagã contra a qual Agostinho erguera o braço há

    mais de 13 séculos. Tampouco foi inteiramente destituída demérito. Sendo assim, vale conhecer um pouco a história dopróprio Gibbon. Aos 16 anos, convertendo-se em católicofervoroso, Gibbon é enviado à Suíça, pelo pai enfurecido. Lávem a ser reconvertido ao protestantismo (desta feita em suaversão calvinista) e quase simultaneamente, ao ceticismointransigente de Voltaire, com quem se encontrara. Será fácilavaliar o efeito permanente que tantas - e contraditórias -paixões de juventude provocariam no homem maduro.

    Esses primeiros intérpretes - desde os pagãos que criticavam o cristianismo, passando por Agostinho, Petrarca,Maquiavel, até Gibbon - definiram os limites de futurasleituras: Roma caiu em decorrência de fraquezas internas,sejam de caráter social ou espiritual; ou Roma caiu devido àpressão externa causada pela horda bárbara. O que podemosafirmar, com toda confiança, é que Roma caiu lentamente, e

    que, durante muitas décadas,os

    romanos mal percebiamque estava ocorrendo.

    Indicações quanto à natureza dessa miopia romana estãopresentes na mencionada cena às margens do Reno congelado. Os legionários, no lado romano, sabem que são maisfortes, e que sempre o serão. Embora alguns não passem derecrutas inexperientes, recentemente alojados do lado de cádo rio, são agora romanos, herdeiros de quase 12 séculos de

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    estilo de vida poderá nos indicar as grandes limitações dasociedade romana, limitações que levariam, diretamente, àscalamidades do século V. Trata-se de Ausônio, poeta, donode urna vasta e bem-cuidada propriedade rural em Bordeaux,na província da Gália, e após a morte do pai, herdeiro de

    outra propriedade, igualmente valiosa, na Aquitânia. Nascido100 anos antes da migração germânica sobre o Reno, Ausônionão cresceu sob os cuidados da mãe, de quem, ao que parece,não guardou boas lembranças, mas de duas viragos: urna avóe urna tia, ambas chamadas Emília.

    Em sua obra Parenta/ia, que pode ser traduzida cornoExéquias aos Antepassados , ele lhes exalta as virtudes. Da

    avó Emília, relembra:

    et non deliciis ignoscere prompta pudendis

    ad perpendicu lum seque suosque habuit.[Aos prazeres questionáveis não oferecia abrigo,mas rígida trazia a si e a casa.]*

    A outra Emília parece ter sido mulher corpulenta:

    Aemilia, in cunis Hilari cognomen adepta,quod laeta et pueri ad effigiem,reddebas verum non dissimulanter ephebum.[Emília, alcunhada Forte ainda no berço,por seres tão divertida quanto um menino,e sem fingir, sempre pareceres com um rapaz.]

    A progressão retórica que podemos aqui observar levanos por três estágios de crescimento, em três versos: bebê incunis); menino puen) e adolescente ephebum). Emília,

    A tradução do latim é feita a partir da livre versão inglesa de Cahíll. [N.T.]

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    embora robusta, não há de crescer tanto quanto um homem.Algo, no entan to, conti nua a crescer em Emília.

    Tia Emília obtém notas mais altas do que Vó Emília,embora, muitas vezes deva ter sido severa com o meninoAusônio, que, homem feito, vai chamá-la de virgo devota -

    decididamente virgem- tão decidida, na verdade, quefeminei sexus odi um tibi semper et indecrevit devotae virginitatis amor.[ódio ao sexo feminino cresceu sempre em tie daí surgiu teu amor à virgindade consagrada.]

    Embora, para mim, essa poesia seja motivo de diversão,para Ausônio, não o era. Traduzo versos ambíguos reforçando-lhes a arnbigüidade. Ausônio cerca esses versos de senti

    mentos convencionais, em nada mais sinceros e reveladoresdo que os que esperamos encontrar hoje em dia em um cartãode condolências. Assim, por exemplo, conclui ele o poemadedicado à avó:

    haec me praereptum cunis et ab ubere matrisbianda sub austeris in uit inperiis.tranquillos aviae cineres praestate, quietiaeternum manes, si pia verba loquor.[Com bondade ela me criou, arrancando-me do berçoe do seio materno, mas sob o disfarce de ordensseveras.Deixai em paz as cinzas de minha mãe,trevas sempre caladas, se eu fizer as preces certas.]

    Os amigos de Ausônio, talvez, pudessem perceber arelativa insinceridade dos elogios - quando não, porque,indiretamente, tais elogios chamam atenção para o próprio

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    autor. Ah, o caro Ausônio - talvez suspirassem os amigos-aquelas mulheres foram tão duras com ele No entanto, comoele é bom, leal, e como observa todos os rituais - pia verbaliteralmente, com 'palavras fiéis' - conforme dele se esperaria .

    A poesia de Ausônio encontra-se repleta de pia verba; à

    exceção de uma ou outra epifania, nem sempre intencional(como no caso dos poemas sobre as duas Emílias), há poucoo que descobrir. Temos trechos intermináveis sobre antepassados, antigos professores, vida cotidiana, temas clássicos (osher6is da Guerra de Tr6ia, os Doze Césares), intermináveisjogos de palavras, e intermináveis imitações de Virgílio. Ausônio compôs um poema - "Cento Nuptualis" - er6ticoo bastante para ter sido deixado sem tradução na coletânea

    'intituladaAusonius, causando, assim, o deleite de gerações de

    latinistas idosos (capazes de compreender o original) e frustrando gerações de alunos (nem sempre capazes de fazê-lo):trata-se de uma descrição, clínica e cínica, do defloramentode uma noiva na noite de núpcias. Entretanto, até nesse caso,Ausônio é, deliberadamente, derivativo: cada frase é retiradade poemas de Virgílio. Será que com esse tipo de prática elepretende evitar a censura, ao invocar a suprema autoridadeliterária, e merecer admiração geral, com uma exuberantedemonstração de seu conhecimento de Virgílio? Na verdade,excetuando-se essas homages há raros trechos memoráveis,apenas jingles escritos segundo fórmulas. E as cartas de Ausônio,igualmente intermináveis, não são melhores. Há poucas informações a serem comunicadas, uma raridade de insights e totalausência de emoção. Embora seus companheiros em decadência tenham-no comparado a Virgílio e Cícero, o consensosegue a contundente opinião de Gibbon: "A fama poética deAusônio compromete o gosto de sua época."

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    Como pôde um homem maduro. viver tanto tempo demaneira tão tola? Há que se admitir que ele seguia as normasde comportamento geral. Tratava-se de um mundo estático.Viver civilizadamente, como, por exemplo, cultivar os magníficos vinhedos de Ausônio, em Bordeaux, significava fazer,de uma maneira satisfatória, algo que havia sido feito antes.Fazer o que se esperava encerrava o valor maior, e o segundovalor decorria do primeiro: merecer a admiração dos companheiros por ter correspondido às expectativas.

    Embora Ausônio fosse cristão convertido, conformedemons tra sua "Orat io'', seu cristianismo era uma capa, a servestida ou despida, conforme a situação. Sem dúvida, eleadotava o comportamento geral. Sua verdadeira visão demundo reluz, debilmente, na obra: uma espécie de paganismo

    agnóstico que lhe permite invocar as trevas silenciosas dosubmundo pagão sem, no entanto, levar o leitor à impressãode que o autor acredita em qualquer outro mundo que nãoseja este em que vivemos. Na obra de Ausônio - e de outros'luminares' da época, tão parecidos uns com os outros quefica difícil distingui-los entre si - detectamos a falha naanálise de Gibbon quanto aos motivos da queda de Roma. Ospoderosos deuses romanos não foram eclipsados por umareligião fraca, cheia de fantasias orientais. A fértil Vénus e o

    Marte sanguinário não cederam espaço a um Cristo patéticoe pacifista. Antes, a vida da antiga religião já se esvaíra; equando o cristianismo chega a atrair a atenção da nobrezaromana, os deuses já não passavam de sombras do que haviamsido - estavam à margem, qui ti manes perambulando emmeio a uma eternidade obscurecida. Não é à toa que, hoje emdia, ao pensarmos no Danúbio e no Reno, os dois rios queseparavam o mundo civilizado do mundo dos bárbaros do

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    nais à prestação do serviço militar, ao mesmo tempo em queas fileiras passam a criar oportunidades para homens desqualificados que antes jamais a elas teriam acesso; a retóricabarata, que decanta valores há muito perecidos; a pretensãode que ainda somos o que outrora fomos; a crescente divisãoda população entre ricos e pobres, em decorrência de umsistema tributário corrupto e do desespero que o mesmo,inevitavelmente, causa; o superdimensionamento do poderexecutivo, em detrimento do legislativo; a legislação ineficazpromulgada com grande estardalhaço; a vocação moral dohomem em posição de comando, no sentido de preservar aordem a qualquer custo, ao mesmo tempo em que se desinteressa pelos dilemas cruéis da vida cotidiana - são questõescorriqueiras no mundo em que vivemos, e não 'privilégios'concedidos por Deus a determinado partido ou pont o de vistapolítico, embora, freqüentemente, nos comportemos comose o fossem. Pelo menos, o imperador não tinha meios paralegar à posteridade o déficit público gerado por financiamentos de longo prazo, pois a idéia de dívida flutuante ainda nãohavia sido concebida. O único tipo de riqueza que mereciaatenção eram os frutos da terra.

    Ainda que, para nós, seja fácil perceber a grande instabilidade do império em seus dias finais, para os romanosnão era tão simples assim. Roma, a Cidade Eterna, tornara-seinexpugnável desde que os celtas da Gália saquearam-na, desurpresa, em 390 a.C. Nos oito séculos seguintes, Romatornar-se-ia a maior potência mundial, inatacável, a não serpor eventuais rebeliões isoladas ao longo de suas fronteiras.Os gauleses, há muito, haviam se tornado romanos civilizados, e Roma oferecia idêntico processo de 'romanização' aquem assim desejasse, em certos casos, conforme ocorreu com

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    os judeus, a despeito de sua própria vontade. No entanto, demodo geral, todos desejavam ser romanos. Como Teodorico,grosseiro rei dos ostrogodos, costumava dizer: "Qualquergodo capaz deseja ser como um romano; só um romano infeliz

    duer ser como um go o.

    Os cidadãos de Roma, por conseguinte, mal puderamcrer quando, próximo ao final da primeira década do séculoV, acordaram com os exércitos de Alarico, rei dos visigodos,acampados diante dos portões da cidade. Era como se Alaricofosse o rei dos mamelucos, ou qualquer outro estrangeiro que,através da História, tenha servido de objeto de escárnio apovos civilizados. Que absurdo Foram designados dois emissários para desempenhar o papel entediante de negociadorese mandá-lo embora. De início, os emissários fizeram ameaçassem fundamento: qualquer ataque a Roma estava fadado aofracasso, pois seria repelido por força invencível e por uminumerável contingente de guerreiros. Alarico era homeminteligente e à sua maneira, brusco e justo. Ademais, tinhasenso de humor: Quanto mais alta a relva, mais fácil ceifá-la",respondeu, com toda tranqüilidade.

    Os emissários, prontamente, perceberam que não es-tavam diante de um tolo. Mu ito bem, quanto ele queria parair embora? Alarico disse que seus homens varreriam a cidade,levando todo o ouro, a prata e qualquer outro objeto de valorque pudesse ser carregado. E mais, libertariam, e com eleslevariam, todos os escravos bárbaros.

    Mas, protestaram os emissários, desesperados: o que nosrestará?

    Alarico fez um pausa e disse: "Vossas vidas."

    Naquela pausa, a segurança de Roma chegou ao fim eum novo mundo foi concebido.

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    QUE FOI PERDIDO

    ·

    I; g

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    A COMPLEXIDADED TRADIÇÃO CLÁSSICA

    A s s i mrestaram-lhes

    asvidas, isto

    épara a maioria deles.Mas, cedo ou tarde,os sobreviventes ou seus descendentes,

    perderiam quase tudo mais: títulos, propriedades, estilo devida, conhecimento - especialmente conhecimento.Ummundo em caos nãoé local onde livros são copiados ebibliotecas preservadas. Nãoé local onde estudiosos podemse dedicar à expansão de seu Saber. Nãoé local onde ogrammaticus pode programar aulas regulares a seus jovensdiscípulos e onde o conhecimentoé transmitido, paulatinamente, ano após ano.

    Entre o saque de Roma, realizado por Alarico em 410,e a morte do último imperador do Ocidente, em 476, omperium tornou-se cadavez mais instável. Os grandesse-

    nhores de terras, criandoas próprias leis, ignoravamos decretos do imperador, chegandoao ponto de transformar grandesedifícios públicos em pedreiras de onde retiravam materialpara seus palácios particulares.Aprópria Roma, abandonada

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    na maioria dos casos, não era tanto a libertação do prisioneiroromano, mas sua escravização, corno servo, na propriedadedo novo senhor. O valor do resgate pago era baixo, por urnavida inteira de serviços a serem prestados pelo prisioneirolibertado. Às vezes, o estratagema era mais simples: porocasião de um ataque, um agricultor que trabalhava em urnagrande propriedade recebia proteção para si e para a família;quando a horda bárbara se retirava, nem ele nem os seusrecebiam autorização para partir.

    s bárbaros, igualmente, escravizavam todos osque lhescaíam nas mãos. Mas, no tráfico de escravos, nenhuma tribofoi mais feroz e temida do que a dos irlandeses. Eram excelentes navegadores - em embarcações revestidas de couro, asquais manobravam com grandd destreza. Pouco antes doalvorecer, um pequeno grupo de guerreiros conduzia seusbarcos ovalados até urna enseada, aproximavam-se, com passadas inaudíveis, de algum retirado casebre, agarravam ascrianças adormecidas e antes que alguém percebesse o queacontecera, já estavam a meio caminho da Irlanda.

    Agiam, também, em grandes contingentes de guerreiros.Certa vez por volta do ano 401, urna grande frota irlandesadeslocou-se ao longo da costa oeste da Britânia, provavelmente, adentrando o estuário do rio Severn, e após capturar(segundo urna testemunha) 'milhares' de jovens, trasportararn-nos a um mercado de escravos na Irlanda. o testemunho de um dos cativos, um rapaz de 16 anos chamadoP ~ t r i c i u ssobreviveu ao tempo. Ele conta que o pai, Calpurnms, era (que Deus tenha piedade) um cura is e que o avô,Potitus, fora padre católico; portanto, tratava-se de um jovemde classe média, um britano romanizado que aspirava a urnaformação clássica e a urna carreira. Não será surpresa fato

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    de não desejar seguir ospassos do pai: Vendi minha condiçãode nobreza; não me envergonho nem lamento tê-lo feito.Mas osplanos desse intrépido jovem foram interrompidos porum ataque irlandês. Ele se declara vítima de inúmeras punições e humilhações, tais corno passar fome e andar nu , naqualidade de escravo-pastor, pertencente a um certo rei chamado Miliucc, no distrito irlandês de Antrirn. O que foi feitode Patricius será assunto de outro capítulo, após termosdeixado, para sempre, o mundo civilizado, e viajado às terraspagãs da Irlanda.

    Mas antes de desejarmos boa-noite ao mundo clássico,e de nos deslocarmos até a região dos mais ferozes entre osferozes bárbaros, será preciso considerar urna última questão:o que foi perdido com a queda do Império Romano? A vidade Ausônio mostra-nos o caminho da queda, mas não nosmostra pelo que chorarmos. A civilização clássica - o mundoque surgiu na Atenas de Péricles, cinco séculos antes de Cristo,e que agora morre, 500 anos depois de Cristo, no século em queocorrem as invasões bárbaras - merece elegiasuperior àquelaoferecida por Ausônio. O que sucumbiu, quando ninguém maispodia dispor de horas de lazer, para ensinar a essência datradição clássica, quando bárbaros incendiaram bibliotecas elivros viraram pó, quando as pedras que sobraram servirampara a construção de banheiros externos em zonas rurais?

    Encontramos a resposta na vida de Agostinho, Bispo de, Hipona, praticamente, o último homem clássico - e quase

    o primeiro homem medieval.

    ã o mais que 30 anos antes de Patricius ser levado preso,em correntes, à Irlanda, outro adolescente, de classe social

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    semelhante - um africano romanizado cujo pai fora funcionário pouco importante- dirigiu-se, de livre e espontâneavontade,não a uma região inóspita e distante, masà fervilhante capitalda África romana. A Cartago eu vim , relembra Agostinho mais tarde, onde soava aomeu redor utnturbilhão de amores pagãos. Até então, não amara ninguém;contudo, amava o amor,e, a partir deum profundo sentimento de necessidade, odiava-mepor não serum necessitado.Apaixonado pelo amor, buscava qualquer pessoa, qualquer coisa, que pudesse ser amada. Odiava a segurança, equalquer caminho sem risco; sentia uma fome interior.

    Trata-se deuma prosa pungente, implacável. Porém,pormais bem escritas que sejam, hoje,as palavras de s Confissõesnão saltam aos olhos, causandoo esmo impacto que provocaramquando da publicação de suas memórias, em 401 -provavelmente, omesmo ano em que Patricius foi raptado.Issose dá porque, desde então, a sensibilidade típica de Agostinho tornou-se de tal maneiracomum que já não recebemos

    s Confissões como o terremoto que foi para leitoresdaAntiguidade. Agostinho é o primeiro serhumano a dizer 'eu'- no sentido em que hoje empregamos a palavra. SuasConfissões representam a primeira autobiografia autêntica daHistória. s implicações desse fato são tremendase, aindahoje, difíceis de entender.U m bom começo, é claro, será ler

    s Confissões e se deixar encantar. Mas para compreender agrandezada realização de Agostinho, é preciso leras 'autobiografias' que antecederam a sua.

    Basta abrir qualquer coletânea de 'Grandes Pensamentos' ou 'Grandes Provérbios' - especialmente algumacomoa Bartlett organizada em ordem cronológica - e procurar apalavra 'eu'.Na literatura mais antiga, a escassezda palavra

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    bem como a falta de força que a cerca serão impressionantes.Sem dúvida, personagens emHomero referem-se asi mesmoscomo 'eu'. Sócrates chega a falar em seudaimon seu espíritointerior. Mas auto-revelação, do tipo da que hoje estamos tãohabituados, inexiste. Até poemas líricos, para nossos padrõesatuais, parecem objetivos, eas exceções destacam-se:umfragmento ( A luase pôs .. ),* atribuído a Safo, eos Salmos,atribuídos ao Rei Davi.

    Quando, no período clássico, encontramosas primeirasobras classificadas como biografias, surpreende-nos otomimpessoal. Marco Aurélio, segundo Gibbon, o mais eruditodos imperadores e grande filósofoda Antiguidade romana,fala-nos através de epigramas, como antes o fizeram Confúcioe oautor do Eclesiastes: Estemeu ser, seja o que for, consisteem um pouco de carne,um pouco de ar, e na parte que ogoverna - referindo-seà mente. Esse é o máximd da confidenciabilidade a que Marcose permite. E que tal o seguinte,como exemplo de revelação pessoal?Tudo o que estiveremharmonia com você, meu Universo, estará em harmoniacomigo.Nada que chegue, para você,na hora certa chegará,para mim, cedo ou tarde demais. Em seu pedantismo,ospensamentosdo grande imperador são inenos pessoais do quequalquer mensagem escondida dentro deum biscoito chinêsda sorte.

    Chegamos, então, a Agostinho, que nos revela tudo -os ciúmes e os furtos duran te a infância,os furtos de menino,o relacionamento tempestuosocom a mãe prepotente (Mônica, a sempre-certa), os anos de namoro,os colapsos nervosos, o amor desregrado por uma camponesa não identificada,

    A luase pôs, e as plêiades. É noitealta e o tempopassa, sim passa - e deito-mesó.

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    fi l t b d A t d i ã é tã

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    e a quem, finalmente, abandona. A autodepreciação é tãomoderna quanto a de um personagem de Camus ou Beckett- e não menos concreta: Trazia dentro de mim uma almaretalhada e sangrenta, e não sabia como dela me livrar.B u ~ q u e itodo tipo de prazer - o campo,os esportes, avagabundagem, a paz do jardim, amigos e boa companhia,0s e ~ oa leitura. Minha alma tateava no vazio - e voltava paramim. Aonde poderia ir meu coração para fugir do meucoração? Aonde poderia ir para escapar de mim?

    Jamais alguém falara assim.Se folhearmos, rapidamente,ª.literatura universal, dos primórdios até o advento de Agostinho, constataremos que, com Agostinho, a consciênciahumana dáum salto quântico - ese torna autoconsciente.Pela primeiravez, um indivíduo observa'-se asi mesmo de.maneua consciente, não como homem, mas como um ho-

    mem singular - Agostinho. A partir daquele momento,ficam viabilizadas a autobiografia, bem como a prima maispróxima, a ficção autobiográfica. A ficção sempre estiverapresente nos relatos e nas histórias. Agora, pela primeiravez,reluz a possibilidade da ficção de cunho psicológico: a históriasubjetiva, a história da alma. Embora o grito deAgostinho_o Homem que Gritou 'Eu' - não volte a ser ouvido até0inicio da modernidade,ele é o pai não apenas da autobiografiamas, também, do romance moderno.É, ainda, um dos grandes precursores da psicologia moderna.

    Ü que preparou Agostinho para ser Agostinho? Quais te-\ nam sido o solo e a semente? ·

    Agostinhofoi um dos últimos homens a receber umaeducação clássica. Nascido em 354, em um mundo que todos

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    acreditavam estável, vivenciana, na velhice - nos anos420 - os últimos dias dogrammaticus. Seu latim tinha umrefinamento eum sabor que poucos podiam igualar, emqualquer período da Antiguidade. A delicadeza de nuances dotrio de palavras - amor, necessidade, ódio- no célebretrecho de s Confissões citado acima, colocam-no dentro dosmais elevados padrões da retórica clássica. Aquilo que Ausônio usava como medalha, Agostinho traz impresso no coração; as realizações exibicionistas de Ausônio são, para Agostinho, honrosas disciplinas do espírito.

    Agostinho apresenta-nos a primeira descrição de comou m a · ~ ~ i a n ç a2ode apaixonar-se, perdidamente, pela literatura- uma paixão tão palpável que é quase carnal. Como criançascriativas de todasas épocas, desprezouas primeiras tarefasescolarçs, abrangendo assuntos como leitura, escrita e aritmética , por não passarem de memorização:'Um mais um,

    d ' ) 'l d I liois; dois mais ois, quatro - que cantl ena etestave .Tampouco interessou-se pelas primeiras lições de grego,acompanhadas de castigos e ameaças cruéis do mestre,afirmando, sucintamente, a queixa de inúmeras gerações dealunos, antes e depois dele: Dominarum idioma estrangeiroera amargo comofel, pois eu não entendia uma palavrasequer. Finalmente, depoisde aulas cansativas e penosarecitação, é expostoà verdadeira literatura, em seu próprioidioma: Eu amava o lat im(..) e chorei com a morte de Dido,ela, que 'buscou na espada o golpe e o ferimento fatais'.

    Desesperada, Dido, rainha de Cartago, suicida-se, enquanto Enéas, amante magnífico, recolhe a âncora e zarpapara sempre:eis uma das imagens mais perturbadoras eindeléveis do mundo clássico.O que abriu ()_coração de(Agostinho para a literatura latinafoi a Eneida de Virgílio,

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    obra prima literária do mundo romano a Bíblia e Shakes

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    obra-prima literária do mundo romano, a Bíblia e Shakespeare reunidos{ A Eneida é conscientemente, um é p i c ~ J l t f ~ -

    rário, não um épico popular como a gregalllíada.'Retomand;·a história do ponto em que Homero a deixara - a queda deTróia diante do exército grego, que penetra o reduto cercadode muralhas inexpugnáveis por meio de um 'presente', um

    imenso cavalo entulhado de homens armados - Virgíliorelata as aventuras do herói, Enéas, filho de Vênus e de paitroiano. Arma virumque cano (Canto armas e o homem),inicia Virgílio em meio a ruidoso toque de clarins. Conformeos leitores de Virgílio seriam capazes de prever com deleite eemoção, Enéas escapará, milagrosamente, de Tróia em chamas, carregando o velho pai às costas e trazendo o filho pelamão. Errante, será calorosamente recebido pela rainha deCartago, fascinada pela história do herói. O destino de Dido

    e Enéas será apaixonarem-se, perdidamente, um pelo outro,mas Enéas ~ e m p r esoube - assim como o lei tor - que,embora pa rtmdo o coração de Dido e levando-a à morte, serianecessário seguir, bravamente, seu próprio destino, a fundação de Roma.

    . \ rg_ílio escreveu na época de César Augusto, o prime iro~ : U ? e ~ ~ ~ º E ; ~ econcebeu a Eneida como um épico nacional (ou n ~ c ~mteuamente bem-sucedido na literatura universal),~ r t 1 s t t c a m e n t eorquestrado para invocar no leitor um senti

    mento de patriotismo pelá instauração do grande império.Ç ?rr:º aquela civilização, mais jovem e menos experiente,localizada no oeste latino, absorvera a estrutura política ecultural da grande civilização do leste grego, tornara-se necessário e.stabelecer a sua própria l e g i ~ r n l c i a d epara govern;rc ~ n q u 1 s t a rPara os gregos, os romanos eram orgulhosose mcultos. Para os romanos, os gregos eram pretensiosos e

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    insípidos. (Ao· observar a refinada Helena .desdenhar-lh.e asuperioridade, o romano comum, sem rode10s, expressana a

    · "P J . Euspeita de perversão que trazia em mente: ~ r uptter. ssesgregos fazem vista grossa àqueles tutores afemmados que lhesmolestam os próprios filhos ") A relação cultural entre romano e grego era, em muitos aspectos, semelhante à ~ l ç ã ocultural de um inglês e um francês, e de um norte-amencano e uminglês: nas três relações, de um lado, a s i m p l i ~ i d d ~é i r t ~ d eecomplexidade é defeito; do outro lado, a suuleza e valonzadae a objetividade (que é considerada grosseira) pode ofender.

    De acordo com o novo mito de Virgílio, uma Romadireta é moralmente superior a uma Grécia furtiva e (surpresa ), na verdade, a mais antiga das duas civilizações, visto queteria raízes n a fabulosa l i u m a Tróia antiga. Virgílio tornaseu novo mito inesquecível ao envolvê-lo em nova linguagem,rival de qualquer produção grega: um latim, igualmente,heróico e flexível e capaz de ressoar através do tempo. Aorecontar a história do cavalo de madeira, que os gregosutilizaram para vencer pela trapaça, já que não conseguiamvencer condignamente, no campo de batalha, Enéas previnenão apenas Dido, mas toda a humanidade futura: TimeoDanaos et dona ferentis (Desconfio de gregos, mesmo quando trazem presentes).

    Em Dido , temos, nitidamente, a figura da rainha africana de pele morena - de uma Cleópatra cuja sensualidade'oriental' seduziu Marco Antônio. Mas nosso herói, Enéas,possui suficiente virtude para, no final, rejeitar uma situaçãoque atentava contra seu destino, e contra o destino de todos

    s romanos. Não resta dúvida, ele é feito de carne e osso, enada tem de moralista; além do mais, o amor do casal é objetode alguns dos trechos mais excitantes da poesia virgiliana. E

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    i/

    o suicídio de Dido, autêntica tragédia, é necessário. Estei f i id ifi ã i i i ã

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    , g ,para gregos e romanos - o antigo sentido d td .· · , l , a rage ia. amev1tave catastrofe.

    Aplica-se a Dido, especialmente, o melhor entreos melhores versos de Virgílio:

    unt lacrimae rerum et mentem morta/ia tangunt[Estas sãoas lágrimas das coisas ·e nossa mortalidade corta-nos o coração.]

    . Para Agostinho, romano da província e filho dÁfj.D1do er ' · d a nca,a n:enos exot1ca o que paraum italiano; ela era, decer:a m ~ n e i r a ~a encarnação da África, e sua catástrofe era acatastro1e da Afric dÁfi· .. a, a nca s,ensua1,cup grande cidade deCartago fora a cidade de D ·do . · e era agora a de Agostinhono ardor de seus17anos - a cidade quefl 1h e '

    A . erv1 avapor 10ra,enquanto gostinho ferviapor dentro.A célebre frase A Cartago eu vim ( ), .d l b d · encerrauma nma

    e I. era a, uma das primeiras da literatura latina.* Onomeda cidade, Cartago, rima comsartao-o caldeirão A 1- o ' . s pa avrassao um encantamento, com o propósitod. d .· .- b e 111girnossa

    ~ t e ~ ç a opara o urburinho da cidade e para o b b . hmt1mo d . ur unn o. o O v ~ m ,macrocosmo e microcosmo. Recurso retó-

    ~ 1 ~forte e sutil, a~ a ~ e mno entanto, teria sido consideradam ecens - g ~ o s s e i r aInconveniente - e evitadapor todo eq u a l q u ~ rescritor de gerações anteriores. Ao contrário dodesarra1gado Ausônio, contudo A . h . .' gostm o, promissor lati-* Creio tratar-se da segundaCo e d· nwrme pu e constat · ·tradução latina que Jerônimof d d ar, ª pnme1ra estariana

    . az a segun a carta de Paulo aTim6te . 13certamen certav 1 ctt1Jum consu . fid . o. o numh . mav1, J em servav1 (Combati o b bc egue1ao fim da )'ornada conservei'º P , om com ate,' a Ie · orem não d 1 · d ·

    pode ter sido inevitávelna tradução. ' sen op aneJa a, a nma

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    nista africano, quese identifica tão inteiramente com a paixãode Dido,em certos momentos, será capaz de deixar transbordar seu fervilhante interior, em ritmos africanos e recursosretóricos. Após sua conversão e consagração como bispo deHipona, Agostinho, em inúmeras ocasiões, causa o deleite dacongregaçãocom seu calor verbal, expressocom 'balanço'africano. Bona dona (boas dádivas) tornar-se-áum dossermões prediletos da congregação. Nesse processo de vernaculização do latim, podemos discernir o primeiro passo emdireção ao 'latim do povo', simplificado, ritmado,. rimado,que surgirána Idade Média.

    SeVirgíliofoio grande mestre da linguagem e do estilo (ougramática e retórica, segundoas categorias da escola medieval),Cícero foi o grande mestre do argumento e do debate (dialética,na terminologia medieval).Se o equivalente grego de Virgíliofoi- grosso modo - Homero, o equivalente grego de Cícero foiDemóstenes. Os dois oradores projetam suas sombras eencobrem o sol da vida escolardemuitos alunos de grego e latim.O jovemC S.Lewis,radiante sob osoldo meio-dia nas históriasbélicasde Homero, e satisfeito na tarde amena de Catulo, comseu discreto erotismo, ede Tácito, com sua discreta precisão,finalmente vê-se diante do momento temido: Os Dois GrandesTédios (Demóstenes e Cícero) eram inevitáveis.

    Homero e Virgílio eram arte. Cada qual foi, em seu tempo e lugar, o que bons filmes representam hoje para nós -assistir a bons filmes jamais seráuma atividade espinhosa, massempre algo agradável, ocasionalmente, enobrecedor.De-móstenes e Cícero são autores difíceis, nos dias de Agostinho,estudados como exemplos da 'arte' da persuasão - algosemelhanteao que hojese aprende em escolas de jornal ismo.Sea Eneida é a linguagem como metáfora, ritualização sacra-

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    mental da experiência humana, os discursos de Cícero são a d i i di l d

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    mental da experiência humana, discursos de Cícero são alinguagem como ferramenta. Não seria impossível imaginarque um poema de dois mil anos fale-nos, hoje em dia, comforça comparável à do original. No entanto, jamais poderíamos esperar o mesmo de um editorial de jornal escrito há doismil anos, nem de um jingle comercial composto há dois mil

    anos. Tampouco podemos esperar isso de Cícero.Cícero, nascido no século anterior a Cristo, pôs em

    prática suas técnicas quando a Roma republicana, com todoseu vigor, acolhia homens públicos. Cícero era apreciado porAgostinho, como também por todo o mundo latino, que, noquadro das divindades, colocava o orador romano logo abaixode Virgílio. Gerônimo, o mal-humorado tradutor da Bíbliapara o latim, certa noite, acordbu em meio a um frêmito desuor: sonhara que Cristo o condenara ao inferno, por ter sido

    mais ciceroniano do que cristão.) Os antigos atribuíam aosentido prático das palavras valor bem mais elevado do quenós, provavelmente porque estavam bem mais próximos datradição oral observada em comunidades pré-históricas -fato claramente ilustrado no discurso de Nestor aos chefesgregos, na Ilíada e no de Marco Antônio, diante do corpo deJúlio César, quando o destino de toda uma raça pode depender das palavras de um único homem.

    Sentimo-nos, porém, incomodados e entediados com as

    elaboradas instruções de Cícero a respeito dos truques de seuofício, das diversas técnicas para convencer as pessoas a agiremsegundo nossa vontade. Para Cícero, abri r o coração seria amaior das tolices; devemos falar sempre segundo um plano:o que eu gostaria de ver acontecer aqui? O que meu públicogostaria de ouvir? omo posso motivá-lo a fazer minhavontade? omo disfarçar meus argumentos mais fracos?

    60

    omo encandear meus ouvintes, para impedi-los de enxergare de raciocinar claramente?

    s técnicas do político bem-sucedido, os métodos daublicidade moderna, todos os requintes da persuasão serão

    p · d C rencontrados em Cícero. A figura mais pareci a com ice oem nossa época seria Dale Carnegie, ao preconizar que ~ ~ d

    palavra e cada gesto devem ser c l c ~ l d o ~com o p r o p o ~ i t ode convencer e influenciar. Por mais delicado que esse tipode conselho possa nos parecer, para os antigos, era perfeitamente justificável. Além de se aprender.a.escrever um.poemapara satisfazer um anseio pessoal, a redigir um .texto ~ t ~ ~ -

    sante para agradar um amigo, havia uma m i s s ã ~hteranamaior, a ser desempenhada na sociedade, na polis à qualtodos os homens letrados tinham de dar sua contribuição, esobre a qual tinham de exercer uma influência positiva. Enesse mundo de política, a arte da persuasão era indispensávelao sucesso. Em Ausônio, a formação clássica ficou calcificadano meramente decorativo. Em Agostinho, ela permanecevigorosa como nos dias de Cícero, e Agostinho, por toda suavida, utilizará o arsenal de técnicas de Cícero, elaboradas echeias de nuances, em nome de uma nova visão do mundo ede uma nova agenda política. Esta será a contribuição públi.cade Agostinho, cidadão romano, à agonizante es Publicaromana.

    Além das artes da retórica e da persuasão, havia umterceiro campo de estudo para o homem de formação liberal,campo esse que só os dotados de um talento especial podiamabraçar: a filosofia. Além da arte literária encontra-se, pormais imperceptível que seja, a Busca da Verdade, do Saber.Nos dias de Agostinho, tal busca era iluminada pelas obras deum grande mestre: Platão, filósofo grego, discípulo de Sócra-

    6

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    ainda que efêmero, de uma comunidade assentada nessesld i di i d d i l

    natureza da alma[psyche em grego], embora caracterizá-la

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    moldes indica-nos a seriedade e o comprometimento pessoalque a investigação filosófica podia ter na Antiguidade - algobem mais próximo a umashram do que a um Departamentode Filosofia em nossas universidades.E essa comunidadevaifornecer a Agostinho o canteiro que ele precisa para fazergerminar sua própria filosofia.

    Sócrates, pelo menos segundo Platão, não teria, na verdade, desenvolvido uma filosofia afirmativa e sim suscitadoperguntas, perguntasessas que expõem a debilidade das suposições dos interlocutores. Foi o inventor, é óbvio, dométodo socrático, instandoos alunos a iniciarem a busca daVerdade com uma confissão de ignorância. Platão, produtodesse método, raciocina com sutileza, na construção de umedifício grande e arejado - a maior edificação da filosofiaclássica. ·

    ~ I a t ã o _ l ? ~ ~ eda própria experiência de uma centelha,divinaÍ n ~ : ~ n t ea todasas c r i a t u r a ~do mundo natural,C ~ n t ; . :Ih.a por ele percebida, especialmente, emsi mesmo e nos sereshumanos - ou seja,daimon, em Sócrates. Masessa centelhaestá inserida em ummundo de corrupção e morte,0 mundoda carne. Vale a pena determo-nos um momento em Platão,segundo suas próprias palavras, que nos darão uma idéia dodesafio confrontado por Agostinho, bem como da natureza

    do ashram agostiniano.(A maior parte do pensamento dePlatão é impenetrável em uma primeira leitura. Caso0 leitorcomece a sentir dores de cabeça, sugiro que salte para

    0final

    do trecho, e que aceite minha interpretação. Aqui temos emPlatão, noPedro a centelha,daimon - a alma. Sobre a

    Local de retiro religioso, na Índia, [N.T.]

    64

    [p y g g ],seria ocasião para discursos divinos e longos,*

    representá-lanuma imagem já é coisa quese possafazer num discurso humano de menores proporções. A alma pode serc o ~ 2 a r a d acom umafor

    n a t u r J ~adva que uneum carro puxado por umap a ~ ~ i h a a l a d ~e ~ o n d u z i d oum cocheiro.~ c a v a l o ~ - ~ - ~ ~c ~ c h e i r o sdas almas divinas sãobons e de boa raça, masos outros seres são mestiços.O cocheiro que nos governa rege uma parelha, naqual um dos cavalos é belo e bom, de boa raça, enquanto que o outro é de má raça e de natureza contrária. Assim, conduzir nosso carro é ofício difícil epenoso.

    Cabe ainda explicar a razão pela qual, entreosseres animados, uns são mortais e outros imortais.

    alma universal rege a matéria inanimada e manifesta-se no universod ~ - i l l " ú l t i p l a sformas.Quandoé p ~ ~ f ; I t a - ~ ~ f ~ < l ; : ~ p T ~ n anos e governa a ordemuniversal. Masq ~ a n ~ operd

    1

    e ªs suasasas, rola ~ r a -lvés dos espaços mfimtos ate Untar-se a um solido ·qualquer eaí estabelece o seu pouso.Q 1 1 < u 1 d _ Q _ e . x ~ ~te a forma de um corpo terrestre, estec o ~ ç _ agra_:.ças à força que lhe comunica a afina, amover-::se. É_~ e s t ; ~ - ; ~ O . r üdea.Ta; ;;de corpo que chamamosde ser vivo e mortal.

    - ~ - ~ ~~ ~ ~ n ~ ~ n ~ - n n - • ~ ~ ~

    Platão - Diálogos: Mênon - Banquete - Pedro. Tradução de Jorge Paleikat.Edições de Ouro. Editora Tecno print s/d,v, I. p. 225-227. Atualização ortográfica feita pelo presente tradutor. [N.T.]

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    Quanto à denominação imortal isto é algo gyeÍdade Os outros grimpam com dificuldade porque

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    nã ) p g q e m ~ ~ ~ p ~ i ~ ~ d ; ~ ~ ; ~ ; ~ ~ i ; ~ ~ ~ a ~ Í ~ n a i .

    N ~ - C ~ ( ) 1 Í e ~ t l J I < l J 1 Q ~ ,sem disso possuirmos a d e v i d ~~ ~ ~ i ~ _ : i c i ~ ~ e ma suficiente clareza que um serimortal é a combinação e uma alma e de um corpoque ~ u n mpara toda a eternidade. Mas isto de

    _ p e ~ d ede Deus.

    Expliquemos agora de que modo as almas perdem as asas. A força da asa consiste em conduzir oque é pesado para as alturas onde habit a a raça dosdeuses. A alma participa do divino mais do quequalquer outra coisa corpórea. O divino é belosábio e bom. Por meio destas qualidades as asas sealimentam e se desenvolvem enquanto que todasas qualidades contrárias como o que é feio o que

    é mau a fazem diminuir e fenecer. Zeus o grandecondutor do céu anda no seu carro alado a darordens e a cuidar de tudo. O exército dos deuses edos demônios segue-o distribuído em tribos.Héstia [deusa do lar] é a única entre s seres divinosque permanece em casa. Cada um dos onze deusesé o guia conforme a ordem de sua tribo. á muitose agradáveis espetáculos e caminhos no céu porond e anda a grande família dos deuses fazendo

    cada um deles o que lhe está afeto e seguindo-osaqueles que s podem seguir.

    Quando se dirigem para o banquete que sespera s carros sobem por um caminho escarpadoaté o ponto mais elevado da abóboda dos céus. Oscarros dos deuses que são mantidos em equilíbriograças à docilidade dos corcéis sobem sem dificul-

    66

    dade. Os outros grimpam com dificuldade porquecavalo de má raça inclina e repuxa o carro para a

    Terra. á então grande trabalho para a alma.As almas daqueles que chamamos imortais

    logo que atingem a abóboda celeste aí se mantêm;são impelidas por um movimento circular e podementão contemplar tudo o que fora dessa abóbadaabarca o Universo.

    Nenhum poeta ainda cantou nem cantará oque se situa acima dos céus. Vejamos t o d ~ v i acomoela é. Se devemos dizer sempre a verdade a isso somosainda mais obrigados quando se fala da própriaverdade. A realidade sem forma sem cor impalpável só pode ser contemplada pela i n t e l i g ê n ~ i a

    que é o guia da alma. E é na Idéia Eterna que residea ciência perfeita aquela que abarca toda a verdade.

    O pensamento de um Deus nutre-se de inteligência e de ciência puras. O mesmo se dá com todasas almas que procuram receber o alimento que lhesconvém. Quando a alma depois da evolução pelaqual passa chega a conhecer as essências esse conhecimento das verdades puras a mergulha namaior das felicidades. Depois de haver contemplado essas essências volta a alma ao seu ponto departida. Mas durante a revolução pela qual passouela pôde contemplar a Justiça a Ciência - nãoestas que conhecemos sujeitas às mudanças que sediferenciam segundo os objetos - mas a ciênciaque tem por objeto o Ser dos Seres. Quando assimcontemplou as essências quando se saciou da suasede de conhecimento a alma mergulha nova-

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    mente no interior do céu e volta ao seu pouso. E desvio funesto elase enche de alimento impuro de

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    após a volta da alma o condutor leva os cavalos àmanjedoura e dá-lhes ambrosia e néctar. Essa é avida dos deuses.

    A sorte das outras almas éporém esta: elas tudofazem para seguiros deuses erguem a cabeça doguia para a região exterior ese deixam levarcom arotação. Mas perturbadas pelos corcéis do carroapenas vislumbramas realidades.Ora levantamora baixam a cabeça e pela resistência dos cavalosvêem algumas coisas mas não vêem outras. Outrashá porém que nostálgicas seguem todas para cimaacompanhando a rotação incapazes dese levantarem empurrando-se ed e r ~ u b a n d o s eumas às outras quando alguma pretende passar adiante.Háconfusão e briga e abundante suor. Muitasse fe-rem por culpa dos cocheiros. Muitas perdemaspenas de suasasas. Todas após esforços inuteis naimpossibilidade dese elevarem até a contemplação doSer Absoluto caem e a sua quedaas condena à simplesOpinião [em lugar da verdadeira ciência]. A razão queatraias almas para o céu da Verdade é porque somenteaí poderiamelas encontrar o alimento capaz de nutrilas e de desenvolver-lhesas asas aquele que conduz a

    alma para longe das baixas paixões.uma lei de Adrástea [personificaçãodo inevi

    tável]: toda alma que segue a deum deus contemplaalgumas verdades; fica isenta de todosos males aténova viagem ese o seu vôo nãose enfraquece elaignorará eternamente o sofrimento. Mas quandojá não pode seguiros deuses quando devido aum

    8

    desvio funesto elase enche de alimento impuro devício e de esquecimento torna-se pesada e precipita-se semasas ao solo.

    Uma lei estabelece queno primeiro nascimento a alma não entra no corpo deum animal;

    aquela que mais contemplou geraráum filósofoum estetaou um amante favorito das Musas; a almade segundo grau irá formarum rei legislador guerreiro ou dominador; a do terceiro grau formaumpolítico um economistaou financista; a do quartoum atleta incansávelou um médico; ado quintoseguirá a vida deum profetaou adepto de mistérios;a do sexto a existência deum poeta ou qualqueroutro produtor de imitações; a do sétimo a deumoperárioou camponês; a do oitavo a deum sofistaou demagogo; a do nono a deum tirano. Quemem todas essas situações praticou a justiça moralterá melhor sorte.Quem não a praticou cai emsituação inferior.

    Platão é o maior dos autores da prosa grega e em suasfrases muito bem tecidas correm fios deuma beleza delicadade uma graça alusiva. Sua prosa nãofaz lembrar a de qualqueroutro que seja e ficamos convencidos não apenasda grandezade sua mente como também do misticismo autêntico de seuespírito. Prontamente avisa-nos que desenvolveráuma metáfora mas não podemos deixar de crer que tenha vislumbrado o mundo além do véu. Seu pensamento possui tantospontos comunscom a sabedoria do Or iente -com o budismo e o taoísmo - quanto com a filosofia ocidental queseseguiu. É simplesmente o grande filósofo; ninguém conse-

    9

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    lágrimas", em suas próprias palavras,vem-lhe não se sabe ded "d f d t d i h l " D t d

    . ' . orno toda a poesia clássica; Heródotomero eV 1l10 b c ' l' Demóstenes e Cícero e

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    onde - "do fundo secreto da minha alma". Desconcertado,corre da casa ao jardim, atira-seaos pés de uma figueira e"abandona-seàs lágrimas". Começa a lamuriar-se, frases aparentemente desconexas pronunciadaspor motivos que nemele próprio compreende: "Evós Senhor,por quanto tempo?

    Quanto tempo, Senhor Permanecereis irado para sempre?"Em uma casa localizadaao lado do jardim,ele ouve uma

    voz de criança, cantando em linguagem desconexa:Tolle,lege, tolle, lege (Tome, leia, tome, leia). Jamais tendo escutado aquela canção infantil, Agostinho decide quese trata deum sinal a ele endereçado. Volta ao interior da casa (onde oatônito Alypius permanecera sentado) e toma nas mãos o livroque estivera lendo, uma ediçã6 dasepístolas de Paulo.Àmodahonrosa domundo antigo, abre o livro, aleatoriamente, com

    o intuito de receber como mensagem divina a primeira sentença em que seusolhos se fixassem. E a sentençafoi esta:Nem os impudicos, nemos idólatras, nemos adúlteros, nem

    os depravados, nemos sodomitas, nemos ladrões, nemosavarentos, nemos bêbados, nemos injuriosos herdarão oReino de Deus."

    Agostinhose rende. Submete-se à morte da carne atravésdo batismo - e ao Deus cristão.

    Vimos utilizando Agostinho como lupa com a qual examinamos omundo clássico. O que está prestes a ser perdidonodecorrer do século das invasões bárbaras é a literatura - osignificado da civilização clássica.Se a destruição tivesse sidototal - se todasas bibliotecas tivessem sido desmanteladas etodos os livros queimados - teríamos, talvez, perdidoHo-

    72

    mero eVug1l10 bem. c ' . l' . . Demóstenes e Cícero e' . t da a H1stona cassICa l ie Tac1to e o . l A . t'teles e toda afi oso ia' . l ' a· p atao e ns otoda a o ratona cass1c ' d ' . subseqüente. T ería-. p fí · e to a acnucagrega; Plotmo e ormo de uma civilização. Dozed. d gosto e o aroma ·mos per i o o ' . 'd' n ente, investigação mte-séculos de beleza lmca, trage iapu g l S ber - o cumed a sofistica e o amor pe o alectual,os estu os, An . 'd d - teriam escoado pelos· T d na t1gu1 a edo discursoc1v1 iza o b d Si à exceção de algunsH. , · T da a0 ra e a10ralos da istona. o d b de autores de tragédias gregasnde parte a ora l lversos, e gra ' .d de fato escoou peos ra os.-Ésquilo, Sófocles, Eunp1es - . '

    d mos toda a literatura latma.E quase per e d d mos oespírito da civilização clás-

    De todo mo o, per e " eu Kenneth Clark em. Em determinadas épocas ' escrev1ca.Civilisation

    h mano adquire consciência de algo ares_reitoo ~ u po e alma - que fora deixadode s1 mesmo - cor . " · l t

    luta diária pela sobrev1venc1a, na u amargem, na 'd dmedo· e sente anecess1 a eoturna para vencer o ' . t .

    . d d flexão e senumen o,e desenvolvervmu es e re , , l dara oderse aproximar, tanto quantop o s s v ~. e

    p iàeal de perfeição: razão, justiça,beleza. fü1caum 'l'b . O ser humano tem conseguido sa-m equi i no. ,

    .d d d várias maneiras - atravesisfazer talnecess1 a e e . fil _do mito da dança e da música, de sistemasl os;ficas, e :través da ordem por ele impostaao mun ovisível.

    . . . l t para vencer o medoluta pela sobrev1venc1a e a u a d" . tir de então, o que resta aoltam a ter ascendenc1a,e a par

    73

    civilização clássica não será encontr d .páginas dos livros. ª 0 na vida, mas entre as os livros causam ao homem medieval. A palavra r m m r -

    1

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    O que realmente se perde uand . . .desgasta e fenece é a confi qfi 0 uma CIV1lização se

    1ança, con 1ança t dordem e pelo equilíbrio . d es a construi a pelaCl k

    permiti os pelo lazer Noar : · vamente,

    A civilização rrial b equer uma certa prosperidade mate-Porém o a ~ t a n t epara promover um pouco de lazer

    ~ a d sque isso, requer confiança - confian.ça na socte ad . -e em que se vive credibil d dsua filosofia, credibilid d . I a e emdade na capacid d a el em suas leis e credibili

    a e menta das pesso ( ) ·energia, vitalidade: toda . as rand ~ s ..... tgor,ou época · · · d g es ClVllizações -s c v iza oras. . . . - contaram com uma energ1a que as impulsionou Alguns a d -

    · T · cre 1tamc1v1 ização consiste em sensibilidades a que aconversa fluente etc. Is d guçadas,eia agradável da e · · s ~po e ser uma conseqüên-

    v 1zaçao mas - ,civilização, e uma sociedade nao e o que faz umaamenidades e m . pode apresentar essas

    esmo assim, estar morta, rígida.

    Em última análise na-o1 vem ao caso ·pe a queda da civilização cl , . f . se o ma10r culpado. 1 ass1ca 01 uma l d d .rnso uvel ou um mal . . 1 . rea I a e política

    bespmtua Interno A d .

    o ras que vimos estud d .v

    a refletida nasV . 1 an ° - a nobr ·. irgí io, o racionalismo frio de C eza apaixonada detial de Platão - h Icero, a contemplação celes-

    . essa e ama de civ T - ,extmguir. As própr1' b 11zaçao, esta prestes a se

    as o ras escapar- .1trarão no novo mund d Id ao por mi agre. Mas en-0 a ade M d

    estranho quan to obJ eto b d e ia como algo tão1 s a an onados p

    1 ,P anetários. Um exempl b . ora lelllgenas inter-

    . o asta para ilustrar a estranheza que

    7

    primeiro passo no currículo escolar clássico, que moldavatodos os homens letrados, de Platão a Agostinho - é malpronunciada por uma das tribos bárbaras: glamour .* Emoutras palavras, quem dominasse grammar - isto é, quemsoubesse ler - dominava um tipo de magia inexplicável.

    Assim, fenece uma civilização, a ser reconstituída e avaliada por estudiosos em épocas futuras, a partir dos textosmilagrosamente preservados nas páginas dos livros. Todavia,uma tradição clássica sobreviveu à transição: a ainda vivatradição do Direito Romano.

    Já nos deparamos com o Direito Romano, como letramorta, editado pelo imperador e circundado, primeiro, pelospoderosos, depois, gradualmente, por qualquer indivíduo quefosse capaz de fazê-lo. Enquanto as leis do imperador enfraquecem, o cerimonial em torno das mesmas torna-se cada vezmais barroco. Nos dias finais, os editos do Diviníssimo sãoescritos em ouro, em papel lilás, recebidos por mãos enluvadas, como sacerdotes manuseiam cálices sagrados, e erguidosà adoração da multidão, que se prostra diante da lei - para,em seguida, ignorá-la.

    Porém, observado isoladamente, esse quadro seria enganador. Assim como vimos, anteriormente, que os antigosrespeitavam bem mais o aspecto prático do discurso públicodo que nós, do mesmo modo, tinham muito mais receio docaos. Os britanos, gauleses, africanos e eslavos que há muitodesertaram, atraídos pelo estandarte romano, abandonandouma lealdade tribal tacanha para tornarem-se cidadãos deRoma, beneficiaram-se tremendamente de seu novo status.

    Aqui, também, nos sentidos de magia , feitiço . [N.T. ]

    7

    Ao ~ r o c a r e ma identidade tribal por uma penumbra de cidadama, receberam a proteção da Pax Romana _ e toda a sua

    bispo, cercado de certa pompa, como sucessor dos apóstolose símbolo de nidade para a congregação local embora

    , \

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    s e g ~ r a n ? ª ·Com o declínio da violência de todo tipo, podiam,entao, vislumbrar o futuro como nunca: pod iam fazer planos,prosperar, ter uma expectativa de vida normal

    Após o e r e c i m e n t oda u l t u r ~romana e ~ asubstituição

    por novas e vibrantes produções culturais bárbaras, as pessoase s ~ u e c e r a m - s ede muitas coisas - ler, pensar, erigir grandesedificações-, mas lembravam-se da paz perdida, e lamentavam-se. Podemos chamá-los de gente da Idade d T

    . as revas, sequisermos, mas não podemos subestimar o anseio pela leiobservado nos homens e mulheres do início da Idade M dU fí · e ia.

    m º ic10 contudo, sobreviveu intacto, da polis clássica àmedieval: o ofício do bispo c a ~ ó l i c o .

    . N ~~ n t i g ~ i d a d eenquanto administrações municipais e

    provrnciais desrntegravam-se e pessoas designadas pelo imperador para ocupar cargos de confiança abandonavam seuspostos, u m determinado 'servidor' sempre permanecia ao lado~ o ss e u ~ a ~ éa o r t e :o episkopos palavra grega que significas u p e r ~ i s o rou superintendente'. Nos Atos dos Apóstolos e

    nas Epistolas de Paulo, bispos são, ocasionalmente, mencio~ a d o scomo funcionários da igreja, quase que indistinguíveis

    os ~ a d ~ e s(do grego presbyteroi ou anciãos). Ao que consta,a .ma10na das p ~ i m e i r a scongregações cristãs teria sido admi

    nistrada~ o r

    'col:gações de bispos e padres, homens locais -e nos pnmordios, mulheres tambe'm es lh d 1' - co i os pe osm ~ m b r o sda congregação, segundo mandatos definidos, para

    cuidarem. de questões práticas . Com a morte dos apóstolosapostolo1, ou emissários), que haviam sido os principais

    portadores da mensagem de Jesus o papel do b.· · . , . ' ispo tornou-se

    mais importante; Ja no rnício do século II, encontramos o

    7

    e símbolo de unidade para a congregação local - emboraainda escolhido pela própria congregação. Co mo símbolo deunidade, tinha o dever de consultar a congregação em todosos assuntos importantes. Desde o princípio do meu episcopado , confidenciou a seu cl ero o aristocrático C i ~ r i a n o.de

    Cartago, grande bispo da Africa no século III, tomei adecisão de nada fazer segundo minha opinião pessoal, semvosso conselho e sem o consentimento da congregação.

    Por ocasião da morte de Agostinho, esse tipo de consultaestava se tornando uma exceção. A democracia depende deum eleitorado bem informado; os bispos já não podiamconfiar na opinião de seus rebanhos - cada vez mais, constituídos de analfabetos oprimidos e mal informados; alémdisso, provavelmente, agradava-lhes ver seu próprio poderio

    crescer à custa do povo. Em muitas regiões, os bispos tornaram-se as únicas autoridades restantes, o derradeiro vestígioda lei e da ordem romanas. Começaram, então, eles mesmosa designar bispos; e assim nasceu, cinco séculos depois damorte de Cristo, a perpétua hierarquia que até hoje rege aIgreja Católica.

    A polis romana sempre dependera mais de homens doque de leis. As leis precisavam ser interpretadas e e x e c u t a ~ a ~

    e homens abastados e de prestígio gozavam de grande flex1b1-

    lidade na interpretação das leis. Na Nova Ordem, bispos,juntamente co m reis e príncipes de pequenos reinos, tornarse-iam os únicos indivíduos de posse e prestígio. Tipicamente,o 'rei', ou chefe local, seria um bárbaro com estranhas noçõdde justiça e poucas noções de ordem. Caberia ao bispo -muitas vezes o único a possuir qualquer espécie de livro e àexceção dos escribas, o único capaz de ler e escrever -

    77

    1

    ·I[

    i

    1

    111

    ~ i v i l i z a ro rei, introduzi-lo, diplomaticamente, nos princí10 e l e m e ~ t ~ r e sd u s t i ç ~ A i d d bi

    a Trindade. Deus é um só - conforme o 'Antigo' Test t E it d j d d lid d

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    p10s e l e m e ~ t ~ r e sde u s . t i ç ~e governo. Assim, o poder do bispo,às vezes o umco prmcipe presente, continuava a crescer.

    Agostinho morreu enquanto os vândalos atacavam osp.ortões da cidade onde servira como bispo; portanto, nãoviveu o bast ante para presenciar a desordem e 0 tumult o dessaNova Ordem em sua máxima devastação. Ainda assim seusúltimos anos de vida foram repletos de desgaste e contro;érsia.Em seguida à conversão, ele nutriu esperanças de prosseguirem sua pacata busca da Verdade, dentro de uma comunidadefilosófica de correligionários. Mas sua grande envergadura,

    , u e em t e ~ p o sde paz teria retardado seu progresso eclesiástico, a t n b u m - l ~ ea aparência qe um bispo pront o para ofício- pastor c ~ r a J o s oque não desertaria o rebanho em peri~ o-.-, e foi apenas uma questão de tempo, até que algumai ~ r e po r e ~ r u t a s s eNo caso, foi a igreja de Hipona, segundacidade da Africa romana.

    , Se a a ~ t i g aigreja o r i ~ n t ~ l(ou grega) possui muitos 'padres - teologos responsaveis pela articulação das formula-ções clássicas da fé no mundo greco-romano a ant' · ·d - igaigre1a~ c iental ( l a t i ~ a )p o s ~ ~ iapenas um merecedor de nota: Agos-tinho'. A partir de dialogos interiores com Platão e Paulo,Agostinho formulou a doutrina do pecado original - opecado de Adão e Eva, passado de geração a geração, atravésdo ato carnal da concepção. Pois, assim como todos morremem Adão, em Cristo todos irão renascer : Agostinho entendeas p a l ~ v ~ a sde Paulo como uma descrição da solidariedadenecessana à raça humana, tanto ao cair, irremediavelmenteno pecado, quanto ao se levantar, pela graça, para a redenção'.~ o r ~ u l aa doutrina da graça - dádiva divina, concedida amdivíduos que não a merecem. Formula uma explicação para

    8

    tamento, a Escritura dos judeus - mas no cerne da realidadeexiste uma relação, a proximidade de amigos: pois Deus, queé um só, é três: o Pai, que ama o Filho, o Filho, nascido doamor do Pai por toda a eternidade, sendo o amor do Pai peloFilho tão intenso que forma uma terceira 'pessoa' nessa divinaTrindade, o Espírito Santo.

    No ano 410, Roma, a Cidade Eterna, cai diante deAlarico, o Godo. As acusações morais contra a maioria cristã,feitas por parte da decrescente comunidade pagã, atingem oponto máximo. Agostinho não tinha como prever que, embreve, as críticas dos pagãos já não importariam. Reúne todasas forças para escrever a última obra-prima: A Cidade eDeus na qual a realidade humana aparece dividida: Babilônia, a Cidade do Homem, que, necessariamente, acaba em

    corrupção e morte, e a Nova Jerusalém, a Cidade de Deus,que há de prosperar eternamente, a despeito de toda e qualquer provação. Roma, embora superior à maioria dos es-tabelecimentos políticos criados por seres humanos, está fa-dada a desaparecer, como tudo mais na esfera corruptível.

    Muitos são os inimigos de Agostinho. Notoriamente,cruza espadas com Pelágio, monge britano, obeso, postuladorde que a graça de Deus nem sempre é necessária, que oshomens, por si mesmos, podem fazer o bem apenas com o

    auxílio da mente e da boa vontade. Além disso, Pelágio é umelitista segundo o qual alguns homens - os bem-nascidos eletrados - são superiores aos demais. Agostinho fareja afalácia platônica, i.e. a equação entre Saber e Virtude, e atacasem piedade. A vitória é fácil.

    Conforme todos os bispos católicos africanos da época,está cercado de donatistas, hereges que negavam que a graça

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    dos sacramentos pudesse ser conferida pelos ofícios de ums a c e r ~ o t eindigno, mas que, em todos os demais aspectos,

    de Agostinho é um tirano cruel. Agostinho argumenta que opecado original é transmitido pelos fluidos da procriação, e

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    g , q , p ,aproximavam-se de seus irmãos católicos. Para Agostinho, ossacramentos da Igreja são profundamente necessários; sem 0~ m p · a ~ odos s a c r a ~ ~ n t o stodos os homens, em sua fraquezainevitavel, sucumbmam ao mal. A eficácia do sacramento não

    pode depender do caráter do sacerdote que o administra.Agostinho alia-se à força civil para perseguir os donatistas etrazê-los, à força, para o interior do catolicismo. Subseqüent e ~ ~ n t ~e s . c r e ~ ea p:imeira justificativa católica para a perseg ~ i ç . a oi n s m u c 1 0 ~ a h z a d ados equivocados: o erro não possuidireitos; desacreditar em conversões forçadas é negar 0 poderde D . e ~ ~ :e Deus deve punir o novo filho - per molestiase r ~ d 1 t 1 0 .(a verdadeira erudiç'ão começa com castigo físico).E isso vindo de um homem que condenara os "castigos e

    ~ m ~ a ç ~ scruéis" na sala de aula, remetendo-se à sua própriainfancia. Ago.stinho, o último grande homem da Antiguidaderomana, aqui exagera. A doutrina por ele formulada ecoará? e l ~ sten_ipos em i n ~ â m i a sc ~ u é i slevadas a cabo com amplasJUstificauvas. Agostinho, pai de tantas coisas boas é tanib

    . d I emo pai a nquisição.

    Em sua idade madura, Agostinho é desafiado por Julianode Eclanum, jovem bispo, casado, de formação aristocrática~ m aespécie de pelagiano, que discorda das teorias de A g o s ~

    ~ i n h ~ s o ~ r eo pecado or.iginal - ou, pelo menos, de algumasi m p h ~ a ç o e sdessas teorias. Agostinho, que, segundo vimos,acred.itava que Deus havia predestinado cada um de nós na~ t e r n i d a d epor conseguinte, conclui que Deus condenará aoinferno todos os não-batizados - mesmo os recém-nascidosque morrem s ~o sacramento. Agostinho justifica a justiçade Deus por ser inescrutável. Juliano contra-ataca que o Deus

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    que o ato sexual, por acarretar a perda do controle racional,será sempre, ao menos, pecado venial - devendo ser praticado o mínimo possível. (Lembremo-nos da importância que oautocontrole - o oposto do caos - representava para os

    antigos. O argumento de Agostinho poderia ter sido desenvolvido por um estóico, um budista, tanto quanto por umcristão.) Juliano informa a Agostinho que faz sexo com aesposa sempre e onde deseja. Agostinho explode:

    Ora, ora Então, é essa a rua experiência? Decertonão irias preconizar que casais se abstivessem dessemaL pois se falo de teu bem predileto Então, queresque rolem na cama sempre que desejarem, sempreque excitados pela luxúria. Que não adiem, pois,tal anseio até a hora de dormir: vamos permitir a"legítima união de corpos" de que falas sempre queo bem natural' esteja excitado. Se é esse o tipo devida conjugal que tens, não traga tua experiênciapara o debate

    Aqui temos Agostinho na pior veia de Cícero, argumentando sem atenção à justiça e à verdade, mas apenas paravencer - o tipo de argumento mais grosseiro, o d hominem.

    Não devemos esquecer que o mun do antigo, tanto o ocidentalquanto o oriental, geralmente, considerava o desejo sexual -especialmente nas mulheres - objeto de chacota, ou mesmodesprezo. Agostinho vai mais longe, e, perto do próprio fim,o libertino reformado considera os afagos de uma mulher algo"sórdido, sujo e horrível". Juliano propõe uma nova abordagem, baseada em sua própria experiência. Trata-se de um

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    homem racional, que só será justificado com o pensamentode Tomás Aquino, no século XIII.

    Agostinho o home m do sentimento revela aqui o limite

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    Agostinho, o home m do sentimento, revela aqui o limitedo sentimento, quando a mente se fecha para tudo que se

    opuser a proposições preestabelecidas. Agos tinho viveu antesdo tempo dos crucifixos, confessionários e imagens da VirgemMaria, mas podemos vislumbrar sua aprovação. O corpussangrento é o próp rio Agostinho, estirado, como Cristo, entreo céu e a Terra. s sombras do confessionário teriam lhe proporcionado uma opo rtunidade perfeita para dar vazão à delicada compreensão que demonstrava co m relação aos pecadores; contrário à presunçosa postulação de Pelágio de que o serhumano é responsável por cada ação realizada, Agostinhoinsistia que muitos pecados ( .. ) são cometidos por homens

    'gemendo e chorando de desespero . Maria, mãe de clérigoscelibatários que renunciaram ao amo r carnal, encerraria, para

    Agostinho, a projeção celestial perfeita de sua própria mãedominadora.

    Agostinho, apesar de toda grandeza pessoal, torna-se, navelhice, uma espécie negativa de clérigo, misericordioso comrelação aos que o temem, desdenhoso quanto os que ousam aele se opor, disposto a abraçar a causa da Babilônia e de qualquercrueldade institucionalizada que, em nome da Ordem, possasuprimir-lhe a oposição. Não há um país sequer no mundohoje em dia que não possua alguns exemplos dessa espécie.

    nquanto isso, em uma ilha do Atlântico ond e jamais seouvira falar de Agostinho e sua luta ..

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    INSTÁVEL MUN O D S TREV S

    homem racional, que só será justificado com o pensamentode Tomás Aqu ino, no século XIII.

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