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COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O VALOR DO TRABALHO HUMANO E A LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA. COMPATIBLENESS AMONG THE VALUE OF HUMAN WORK AND FREE ENTERPRISE. Marcus Augustus Saboia Rattacaso RESUMO A Ordem Jurídica Econômica, em sua passagem do estágio liberal para o intervencionista, deixa de ser apenas uma reprodução do atuar dos agentes econômicos, segundo o modelo de produção capitalista, para permitir ao Estado intervir na economia para prover a justiça social e o bem comum do povo. Essa intervenção deve se dar de forma que vise a conciliar o valor do trabalho humano com a livre iniciativa, sem que isso possa representar uma ruptura do capitalismo. Em casos de conflito entre os valores do trabalho humano e da livre iniciativa, deve o intérprete priorizar o primeiro, tendo em vista que o trabalho é elemento de concretização do Princípio da Dignidade Humana, o qual dá unidade a todo Ordenamento Constitucional. Não obstante a escolha do legislador constituinte pela absoluta valorização do trabalho humano, o que se vê, hodiernamente, é a livre iniciativa globalizada, munida de sua política neoliberal, sobrepujar o valor trabalho, apregoando o achatamento dos direitos sociais, sobretudo através da flexibilização das relações trabalhistas, em busca da mais valia que extravasa os limites do aceitável e fere de morte o Estado Social. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS CHAVES: VALORIZAÇÃO DO TRABALHO; LIVRE INICIATIVA; ORDEM ECONÔMICA; TENSÕES ENTRE VALORES; INTERPRETAÇÃO DE PRINCÍPIOS; GLOBALIZAÇÃO; FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO. ABSTRACT The Legal Economic Order in transition from liberal stage to interventionist one leaves to be only a reproduction of acting by economic agents according the capitalistic model of production in order to allow the State to intervene in the economy to make social justice and common well of the people. This intervention must be made at way that focuse to conciliate the value of human labor with free initiative without this could to represent a breaking of the capitalistic system. In cases of conflicts among values of man work and free enterprise the law`s interpreter must to give preferential rating to the first since work it is constituent of the Human Dignity Principle, which gives unity to all Constitutional Ordeinment. Notwithstandig the Constituent Lawmaker choice for absolute valorization of man work what we see actualy it is globalized free enterprise instrumented with its neoliberal policy superseding work`s value, doctrinally teaching 7428

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COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O VALOR DO TRABALHO HUMANO E A LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA.

COMPATIBLENESS AMONG THE VALUE OF HUMAN WORK AND FREE ENTERPRISE.

Marcus Augustus Saboia Rattacaso

RESUMO

A Ordem Jurídica Econômica, em sua passagem do estágio liberal para o intervencionista, deixa de ser apenas uma reprodução do atuar dos agentes econômicos, segundo o modelo de produção capitalista, para permitir ao Estado intervir na economia para prover a justiça social e o bem comum do povo. Essa intervenção deve se dar de forma que vise a conciliar o valor do trabalho humano com a livre iniciativa, sem que isso possa representar uma ruptura do capitalismo. Em casos de conflito entre os valores do trabalho humano e da livre iniciativa, deve o intérprete priorizar o primeiro, tendo em vista que o trabalho é elemento de concretização do Princípio da Dignidade Humana, o qual dá unidade a todo Ordenamento Constitucional. Não obstante a escolha do legislador constituinte pela absoluta valorização do trabalho humano, o que se vê, hodiernamente, é a livre iniciativa globalizada, munida de sua política neoliberal, sobrepujar o valor trabalho, apregoando o achatamento dos direitos sociais, sobretudo através da flexibilização das relações trabalhistas, em busca da mais valia que extravasa os limites do aceitável e fere de morte o Estado Social.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS CHAVES: VALORIZAÇÃO DO TRABALHO; LIVRE INICIATIVA; ORDEM ECONÔMICA; TENSÕES ENTRE VALORES; INTERPRETAÇÃO DE PRINCÍPIOS; GLOBALIZAÇÃO; FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO.

ABSTRACT

The Legal Economic Order in transition from liberal stage to interventionist one leaves to be only a reproduction of acting by economic agents according the capitalistic model of production in order to allow the State to intervene in the economy to make social justice and common well of the people. This intervention must be made at way that focuse to conciliate the value of human labor with free initiative without this could to represent a breaking of the capitalistic system. In cases of conflicts among values of man work and free enterprise the law`s interpreter must to give preferential rating to the first since work it is constituent of the Human Dignity Principle, which gives unity to all Constitutional Ordeinment. Notwithstandig the Constituent Lawmaker choice for absolute valorization of man work what we see actualy it is globalized free enterprise instrumented with its neoliberal policy superseding work`s value, doctrinally teaching

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the weakening of social rights mainly through labor flexed relations aiming more value that exceed the limits of acceptability and wound to death Social State.

KEYWORDS: KEYWORDS: WORK VALORIZATION; FREE INITIATIVE; ECONOMIC ORDER; CONFLICTS OF VALUES; PRINCIPLE’S INTEPRETATION; GLOBALIZATION; WORK FLEXIBILITY.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo descrever a relação entre o valor social do trabalho humano e a livre iniciativa, relação esta cujos valores muitas vezes se nos apresentam inconciliáveis. Buscar-se-á delinear a compatibilidade entre os mesmos, tomando como luz norteadora da racionalidade aqui desenvolvida os princípios fundantes da República e do Estado Democrático de Direito, sobretudo, o princípio da dignidade humana, bem assim os princípios que embasam a ordem econômica.

De logo, há que se ressaltar que a acepção do termo trabalho aqui utilizada será a de maior abrangência que o mesmo possa emprestar, de tal sorte que será usado não só para designar as relações de emprego, mas para se referir a toda forma de atividade laborativa capaz de gerar riqueza, não só para o homem como para toda sociedade.

1 DA ORDEM ECONÔMICA LIBERAL À ORDEM ECONÔMICA INTERVENCIONISTA.

O Estado liberal é caracterizado por se reger pelo império da lei, e sucedeu o velho modelo de caráter monárquico absolutista cujo arbítrio do soberano confundia-se com a própria vontade divina. O poder, ilimitado, antes concentrado nas mãos do rei, é transferido para órgãos com funções distintas, os quais exerciam, cada um, fração do poder uno. A estrutura que se desenhou foi baseada nos ideais iluministas, de caráter racionalista, fortemente influenciada por Hobbes, Locke e Rousseau, bem assim por Montesquieu, que idealizou a clássica separação de poderes em sua obra “O Espírito das Leis, 1750”, atribuindo a função de criar leis ao Legislativo, a de executá-las ao Executivo, e a de resolver litígios entre os cidadãos, ou entre estes e o Estado, ao Judiciário.

A nota característica, pois, do Estado Liberal é ser um Estado de Direito, subordinado à vontade da lei, que havia de comandar os homens e ter os predicativos da generalidade e impessoalidade.

A primazia do Direito refletiu-se nas Constituições, leis das leis, que se constituíram em documentos a um só tempo organizador e limitador do Poder. Por meio do constitucionalismo, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho[i]: “buscou-se instituir o governo não arbitrário, organizado segundo normas que não pode alterar, limitado pelo respeito devido aos direitos do Homem”.

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O Estado Liberal, como concebido que foi pela burguesia, deveria cuidar de aspectos ligados à soberania, além de zelar pelo direito à propriedade privada e o cumprimento dos contratos. Deveria se afastar totalmente do dever de regular e disciplinar a economia, esta se regeria, segundo a Teoria Clássica de Adam Smith, Malthus, Ricardo e Mill, pela lei natural do mercado, que por si só ditava os rumos dos recursos e das riquezas produzidos.

Franz Neumann bem situa a ordem legal e sua relação com a economia no Estado Liberal:

A livre concorrência precisa da generalidade da lei e do direito por ser ela a mais alta forma de racionalidade. Necessita também da absoluta subordinação do juiz ao direito, e daí a separação de poderes. (...) A tarefa primordial do Estado é criar um Estado Legal que garanta a execução dos contratos, pois uma parte indispensável para o sucesso empresarial é saber com certo grau de certeza que os contratos serão respeitados” [ii].

As constituições liberais, típicas do final do século XVIII e XIX, não precisavam dispor formalmente de uma Ordem Econômica, pois, dado o caráter abstencionista do Estado, bastavam apenas permitir, sem exercer nenhum tipo de intervenção, a atuação dos agentes do mercado nas infinitas relações econômicas.

Eros Roberto Grau[iii] distingue Ordem econômica (mundo do ser) de Ordem Econômica (mundo do dever ser). A primeira representa o conjunto de relações econômicas tal como se dá, livremente, entre os seus sujeitos; a segunda corresponde ao conjunto de regras e princípios que orientam a atividade econômica.

Sob o enfoque do renomado mestre pode-se afirmar que a Ordem Econômica Liberal é contemplativa do mundo do ser, vez que sobre ele não produz qualquer alteração ou ação de conformação. Bastava então a Constituição tratar da propriedade e da liberdade contratual, para que restasse recepcionada a Ordem Econômica praticada no mundo real.

A economia deixando-se orientar pela lei da oferta e da procura agradava cada vez mais a burguesia industrial, que via na minimização dos custos de produção, sobretudo o de mão-de-obra, a forma perfeita para obtenção de crescentes lucros e expansão dos seus negócios.

No entanto, a doutrina do laissez-faire, laissez-passer acarretou precárias condições de trabalho nas fábricas, minas e outros setores produtivos, não poupando a ocupação de mulheres e crianças, nas mesmas condições insalubres em que laboravam os demais operários.

Com o Estado omisso, e com o fim das corporações de ofício, não havia a quem a classe operária recorrer para retirá-la da situação de penúria em que se encontrava. O trabalho estava reduzido a simples mercadoria a concorrer deslealmente com a crescente mecanização da indústria.

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As imperfeições reveladas pelo liberalismo, evidenciadas na passagem do século XIX para o século XX, bem como a incapacidade do mecanismo social de auto-regulamentarão dos mercados, provocaram o surgimento de novas funções do Estado.

Nasce o Estado Social, intervencionista, e garantidor do exercício das liberdades sociais, entre estas, o direito ao trabalho digno, com limitação de jornada, salário mínimo, descanso periódicos, férias, sindicalização livre, entre outras..

O Direito deixa de ser mero instrumento de pacificação de conflitos e legitimação do poder para também atuar no domínio econômico através da implementação de políticas públicas. Desta forma, as constituições passaram a instrumentar a Ordem Econômica (mundo do ser), condicionando-a à realização de certos fundamentos e princípios.

No Brasil, este foi o modelo de Ordem Econômica estatuída pelo legislador constituinte de 1988, o qual elegeu como fundamentos da mesma o valor social do trabalho humano e a livre iniciativa, e disse que a partir desses pilares, e com o fim de assegurar a todos uma existência digna, deveria a citada ordem se conformar aos princípios da soberania, propriedade privada e sua função social, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio-ambiente, redução das desigualdades, pleno emprego e tratamento favorecido a empresas de pequeno porte. Desta feita, pode-se assegurar que a Constituição de 1988, como se vê claramente, recepcionou a Ordem Econômica Intervencionista.

A passagem de uma Ordem Econômica Liberal para uma intervencionista, entretanto, conforme assevera Eros Grau, não causa ruptura no modo de produção econômica desenvolvido, que no nosso caso é o capitalista. Ao contrário, a Ordem Intervencionista está comprometida com ele. Assim é que o Estado se torna responsável pela integração, modernização e legitimação capitalista, o que implica o implemento de políticas públicas[iv].

São esclarecedores os ensinamentos do Professor Paulo Bonavides quando, ao tratar da transição do Estado Liberal para o Estado Social Intervencionista, pontuou que a referida mudança não significou um abalo nas estruturas nucleares do capitalismo:

O Estado Social representa efetivamente uma transformação superestrutural porque passou o antigo Estado Liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar; é que ele conserva a sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia.

Daí compadecer-se o Estado Social no capitalismo com os mais variados sistemas de organização política, cujo programa não importe modificações fundamentais de certos postulados econômicos e sociais. [v]

No Estado intervencionista, a livre iniciativa, que no Estado Liberal era princípio tão somente baseado na propriedade e liberdade contratual, passa a ficar condicionada ao atendimento da necessidade de garantir a dignidade dos trabalhadores e adequação do sistema capitalista em busca da justiça social.

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Logo, a ordem econômica deve priorizar o valor do trabalho sobre todos os valores da economia de mercado, devendo o Estado intervir na economia de forma a proteger os direitos sociais dos trabalhadores, até porque da existência destes depende mesmo todo o modo de produção capitalista.

Esta foi a fórmula que encontrou o capital para manter vivo sua ideologia, conforme Rafael da Silva Marques muito bem ponderou, sustentando que os objetivos das normas intervenção é permitir o funcionamento da máquina capitalista em troca da garantia à classe trabalhadora de um pouco mais de dignidade[vi].

Esta postura de intervenção na Ordem Econômica com o fim de conciliar os direitos à propriedade, ao trabalho e à livre iniciativa está em consonância com o que preconiza uma Constituição dirigente, como é a nossa atual carta, que voltada para ações futuras direciona o Estado para a consecução destes fins.

3. TENSÕES ENTRE OS VALORES CONSTITUCIONAIS DO TRABALHO HUMANO E O DA LIVRE INICIATIVA.

Segundo Karl Marx, o principal elemento para se compreender os mecanismos do desenvolvimento social é o trabalho, assim definida a ação do homem sobre a natureza. Para Marx, o trabalho é ainda o processo pelo qual o ser humano impulsiona, controla e regula, com sua ação seu intercâmbio com a natureza[vii].

Num sistema fundado no modo de produção capitalista, cujo valor mais importante é o econômico, o trabalho é a forma que se tem para a aquisição de bens necessários à sobrevivência e ao conforto dos indivíduos. Dada esta importância, se apresenta, por força constitucional, como fundamento da República.

Assim é que o trabalho jamais pode ser visto apenas como elemento de produção, mas principalmente como instrumento de concretização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual se mostra prezável pelas constituições dos mais diversos Estados, sendo que, no Brasil, tem o condão de dar unidade a todo o sistema constitucional.

Prova da sua importância é que aparece contemplado em dois momentos na Carta Política de 1988: no artigo 1º[viii] como Princípio Constitucional Conformador, segundo Canotilho; e no artigo 170 caput[ix], , como Princípio Constitucional Impositivo[x], segundo o citado autor, ou Princípio Diretriz, na qualificação dada por Ronald Dworkin[xi], ou ainda, como assim denomina Eros Grau, norma-objetivo[xii].

Merece destaque a lição de Eros Grau sobre a inserção do princípio da dignidade humana na Ordem Constitucional Econômica (art. 170, caput):

Nesta segunda consagração constitucional, a dignidade da pessoa humana assume a pronunciada relevância, visto comprometer todo o exercício da atividade econômica, em sentido amplo – e em especial, o exercício da atividade econômica em sentido estrito – com o programa da existência digna, de que, repito, todos devem gozar. Daí porque se

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encontram constitucionalmente empenhados na realização desse programa – dessa política pública maior – tanto o setor público quanto o setor privado. Logo o exercício de qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado àquela promoção expressará violação do princípio duplamente contemplado pela Constituição.[xiii]

Como exemplo da importância do princípio também no direito comparado, podemos citar o artigo primeiro da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha: “A Dignidade do homem é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público”. Já a Constituição de Portuguesa preconiza que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”.

Assim, sendo o trabalho concretizador da dignidade humana, valorizá-lo significa enaltecer o homem, através do alcance de sua vocação profissional. “Mesmo numa economia de mercado, na qual o trabalho nada mais é, isso em uma concepção liberal, do que elemento de produção, não pode prescindir de valorizar o trabalho como elemento crucial ao alcance da dignidade humana” [xiv].

O Estado quando busca o pleno emprego e, nesse sentido, põe em prática políticas públicas, está valorizando o trabalho, que é quem efetivamente gera riqueza, através da modificação da natureza. Valorização do trabalho aqui deve ser entendida como aquela visada por um Estado Social cujo objetivo deve ser buscar a maior qualificação dos trabalhadores, oferecer-lhes maior segurança no lavor – coibindo em grau máximo as atividades desenvolvidas em ambientes insalubres ou perigosos –, não exigir do obreiro horas extras desnecessárias ou em excesso. Em suma: ter o homem trabalhador como fim em si mesmo, e não como meio para que o capital atinja o seu fim.

Não deve, pois, o Estado Social, permitir ao capital o aumento descontrolado da mais valia, quando esta implicar sensivelmente uma diminuição dos direitos sociais, tão arduamente conquistados ao longo de anos de lutas sociais, e que tiveram seu reconhecimento constitucional quando foram alçados à categoria de direitos fundamentais, entendidos estes não na concepção liberal de proteção das liberdades, mas naquela que reclama do Estado a conduta comissiva de prestar assistência social aos cidadãos.

Impende afirmar que o lucro não deve se reproduzir às custas da dignidade da pessoa e do desvalor do trabalho, visto que tal comportamento está expressamente vedado pela Constituição Federal de 1988, que preceitua, ao lado dos princípios da propriedade privada e da livre iniciativa, a busca do pleno emprego. E este, como já dito, passa pela valorização do trabalho humano, como única forma de torná-lo alcançável.

Desta maneira, e com o intuito de enobrecer o lavor humano, deve-se garantir salários dignos e proibir-lhes a redução, não só nominal como, e principalmente, aquela relacionada ao exponencial aumento da mais valia, que altera substancialmente a natureza dos salários pagos para reduzir-lhes à condição de preço de mercadoria a integrar o custo de produção do modelo capitalista.

Marx, com a racionalidade que lhe é própria, atentou muito bem para o fato de que, mesmo nominalmente alterando-se o valor do salário poder-se-ia ainda assim perenizar

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a sua redução, nos casos em que o lucro exacerbado aumentasse mais que proporcionalmente em relação ao acréscimo nominal dos salários:

Vemos assim que, mesmo quando nos limitamos à relação entre o capital e o trabalho assalariado, os interesses do capital e os interesses do trabalho assalariado são diametralmente opostos. Um crescimento rápido do capital equivale a um crescimento rápido do lucro. O lucro só pode crescer rapidamente se o preço do trabalho, se o salário relativo, diminuir com a mesma rapidez. O salário relativo pode diminuir, mesmo quando aumenta o salário real simultaneamente com o salário nominal – o valor em dinheiro do trabalho – mas só quando esses últimos não aumentarem na mesma proporção que o lucro. Se por exemplo, numa época de negócios favoráveis, o salário aumentar 5% e o lucro, por seu lado, aumentar 30%, então o salário proporcional, o salário relativo, não aumentará mas diminuirá. [xv]

Ademais, a desvalorização do trabalho humano representa afronta aos objetivos fundamentais figurados no artigo terceiro da Constituição de 1988: “construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando-se a pobreza e a marginalização, com o bem de todos”. Isto porque tal conduta significa excluir as pessoas do seu locus natural, que é a sociedade, e que a Constituição busca integrar.

Como reflexo imediato da não valorização do trabalho tem-se o subemprego. O subemprego, conforme assevera Lafayete Petter, é aquele prestado por pessoas sem qualquer qualificação, que se propõem a fazer qualquer coisa em troca de um pouco de dinheiro[xvi]. Esses trabalhadores não têm carteira assinada, muito menos proteção do sistema de previdência social e sujeitam-se, muitas vezes, por questão de sobrevivência, às mais perversas formas de exposição a riscos ocupacionais, sejam de natureza física, química ou biológica.

Note-se que o Brasil apresenta um grande número de trabalhadores informais e sendo também recordista em acidentes de trabalho, há de se concluir que grande parte dos acidentados está totalmente desguarnecida de qualquer benefício da previdência social, vez que esta tem natureza securitária e, portanto, caráter contributivo.

Outro problema afeto à valorização do trabalho é a insegurança. O capital deseja, quando celebra contratos, sobretudo financiamentos e de aquisição de bens, que sejam previsíveis suas conseqüências.

A ordem pública, marcada pela racionalidade e estabilidade, próprias da lei, garante a execução dos contratos. Saber, com certo grau de certeza, se os contratos serão ou não cumpridos é de suma importância para o sucesso empresarial. Daí por que o capital clama por calculabilidade e previsibilidade nas relações econômicas, e não se conforma com conceitos de textura aberta, tais como boa-fé objetiva ou função social dos contratos e da propriedade, pois os mesmos não decorrem de fórmulas universais, mas são assimiláveis somente diante da análise das peculiaridades do caso concreto. Almejam os empresários a associação do econômico com a norma previsível como base de sustentação de suas relações contratuais, fenômeno que a doutrina hodierna vem denominando de análise econômica do direito (Law and Economics). Pérsio Arida ilustra esta corrente doutrinária:

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Na nossa história recente, a introdução, no texto constitucional e no Código Civil, de conceitos como a função social da propriedade ou a boa-fé objetiva, sem que tenham sido acompanhados de uma jurisprudência coerente e consolidada que permita antever seu impacto sobre as decisões de juízes em casos de litígio, certamente dificulta o respeito aos contratos tal qual concebido por economistas.[xvii]

Esta mesma segurança não almejam os empresários no mundo do trabalho. Conforme assere Rafael da Silva Marques:

Os trabalhadores sentem-se inseguros com relação à sua renda, que pode, comparada ao mercado, e índices inflacionários, reduzir-se muito, mesmo que não haja redução nominal. Sentem insegurança com relação ao seu emprego também. O mercado pela própria precarização e eliminação de muitos postos de trabalho, lança a mão-de-obra fácil e barata, disponível a quem necessita. Estas pessoas concorrem com quem está empregado, o que faz com que estes também tenham insegurança, mesmo estando trabalhando. Isso tudo torna o empregado muito vulnerável e sujeito a pressões, quer individuais, quer através do próprio sindicato, sob o medo de perder sua única fonte de renda. [xviii]

Com o objetivo de afirmar o valor do trabalho humano é que a Constituição o adota não só como fundamento da Ordem Econômica (art. 170) como também da Ordem Social (art. 193), e não nos esqueçamos, como fundamento da República, além de elencá-la como direito fundamental do trabalhador (art. 7º).

Acentua-se, portanto, a partir da interpretação do art. 170, caput da Constituição, que o Estado brasileiro, muito embora adote o sistema capitalista de produção baseado no livre mercado, prioriza o valor do trabalho humano em relação aos demais princípios que norteiam a Ordem Econômica.

Mais uma vez nos socorremos do direito comparado para deixar patente a importância do valor do trabalho humano nos ordenamentos alienígenas. Assim é que a Constituição italiana preceitua, em seu art. 1º, que a Itália é uma “República baseada no trabalho” e a Constituição espanhola apregoa, no art. 42, que o “Estado velará pela salvaguarda dos direitos sociais dos trabalhadores nacionais e estrangeiros”.

Ressalta-se que a valorização do trabalho humano não está apenas na criação de medidas protetivas do trabalho tomadas pelo Estado Social (wellfare state), mas sim, em admitir o trabalho como principal agente de transformação da economia e meio de inserção social[xix].

Daí se conclui que o capital deve valorizar o lavor como forma de manutenção do sistema de produção capitalista, pois este precisa do trabalho para promover o acúmulo de riquezas.

De outro lado, para que o trabalho humano não fosse considerado apenas elemento de custo de produção capitalista, o Constituinte assumiu o papel de alçá-lo a fundamento

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da República e à condição de direito fundamental, não podendo ser mitigado ou atingido.

O intérprete diante de situação que envolva o trabalho humano deve resolvê-la levando em conta o valor social do trabalho, que por sua vez é elemento da dignidade humana, a fim de fazer valer os objetivos fundamentais da República e os princípios da Ordem Econômica.

A livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho humano, constitui-se em princípio da Ordem Econômica e, segundo o art. 1º, IV da Constituição, fundamento da República. Assim dispostos topograficamente, quis o legislador constituinte que o Estado brasileiro obtivesse o ponto ideal de convívio entre o capital e o trabalho, para que ambos, conciliados, pudessem ser os promotores de uma sociedade livre, justa e igualitária.

De logo, vislumbra-se que não se pode reduzir a livre iniciativa apregoada pela Constituição à mera liberdade econômica. Noutras palavras, como afirma Eros Grau, não se pode visualizar no princípio tão somente uma afirmação do capitalismo. Deve-se dar a ele – o princípio – a interpretação de que traz o valor não apenas da liberdade do capital, mas também do trabalho. A livre iniciativa, mais uma vez assere Grau, é expressão do trabalho e, portanto, corolária da valorização do trabalho humano, em uma sociedade livre e pluralista. O mesmo autor prossegue afirmando que a livre iniciativa deve também ter função social, tal qual tem o valor do trabalho, nunca devendo ser tomada como expressão individualista, mas como algo socialmente valioso.[xx]

O que deve ficar aclarado é que os valores do trabalho e da livre iniciativa, ambos cumprindo sua função social, devem ser preservados, visto que o primeiro é quem gera a riqueza necessária para que a segunda se torne útil à sociedade, e não apenas ao mercado e ao capital.

Dada a sua função de alicerce da ordem capitalista é que o valor do trabalho humano deve restar privilegiado quando, no caso concreto, conflitar com os interesses da livre iniciativa, resultando em impossível concordância prática (Konrad Hess), tendo em vista que a Constituição quando expressamente o preceituou, nos arts. 1º, IV, e 170, fê-lo para que fosse tornado núcleo duro da Ordem Constitucional brasileira, devendo o intérprete dar-lhe a devida relevância diante das relações sócio-econômicas. Ademais, em circunstância como esta, em que se envolvem princípios colidentes, há de se impor sempre a solução que guarde maior sintonia com a proteção da dignidade humana[xxi].

3. A LIVRE INICIATIVA NEOLIBERAL E A DESVALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO.

Inobstante as considerações aqui tecidas, nas quais se avultou a necessidade almejada pela Constituição de convívio harmônico entre o valor social do trabalho e a livre iniciativa, bem assim a necessidade de se impor a prevalência do primeiro, em caso de conflito de interesses entre o capital e o trabalho, o que se vê, na sociedade que

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absorveu o modo de produção capitalista da Revolução Industrial dos tempos modernos, conhecida como globalização, cuja ideologia é o neoliberalismo, é uma total inversão dos valores prefalados, impondo-se ao capital, sobretudo o financeiro, preponderância em relação ao valor do trabalho.

A globalização nada mais é do que a integração econômica de vários países nos setores de produção, consumo e serviços, com o propósito de ampliar ainda mais o alcance do capital, fazendo-o circular pelas mais variadas regiões do mundo. A este fenômeno da economia, Marx e Engels já faziam menção quando proclamaram a célebre frase: “proletários de todos os países uni-vos”.[xxii]

O que há de novo são as transformações oriundas do progresso da microinformática, microeletrônica e telecomunicações, que permitiram a globalização financeira. O dinheiro deixou de ser um intermediário na troca entre valores de uso para ser um valor considerado em si mesmo, com capacidade de se reproduzir e gerar riqueza altamente volátil, que povoa as bolsas de valores do mundo.

Aqui, faz-se necessário assentar que em um sistema capitalista as normas tendem a proteger a manutenção desse modo de produção. Nesse sentido é que sustenta Eros Grau ser a sociedade capitalista essencialmente jurídica, e nela o direito atua como instrumento mediador de suas relações de produção [xxiii]. Essas relações não conseguiriam se reproduzir sem a forma do direto positivo dado pelo Estado. O direito posto pelo Estado surge para disciplinar os mercados, permitindo a fluência da circulação mercantil. Entretanto, com a globalização financeira, tem havido uma deterioração da capacidade estatal de impor o direito posto, e os mercados financeiros globalizados passam a ser regidos por outros sujeitos que não o Estado.

A receita neoliberal prevê a desregulamentação dos mercados domésticos e a submissão das empresas à concorrência global, eliminando resquícios de protecionismo e políticas de fomento, além da flexibilização das normas trabalhistas e sociais. O Estado deixa de ser um promotor do bem-estar social para ser um atenuador de risco, assegurando a acumulação do capital em prejuízo do fator trabalho.

Esta forma de capitalismo, apregoada sobretudo pelos Estados Unidos, preceitua, como já falado, a flexibilização danosa dos direitos trabalhistas. No Brasil, seus efeitos passaram a ser sentidos desde a década de 60, com a edição da Lei do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, em substituição à estabilidade decenal prevista pelo art. 478 da Consolidação das Leis do Trabalho, e com a Lei do trabalho temporário (Lei 6.019/74) que permitiu a contratação de empregados, por até três meses, em caso de substituição de pessoal regular e permanente ou acréscimo extraordinário do serviço.

O modelo da globalização financeira, nos moldes estadunidenses, teve início, marcadamente, com o ingresso das empresas multinacionais, as quais tinham por objetivo a redução de custos, sobretudo através da flexibilização dos direitos dos trabalhadores, e o aumento exorbitante dos lucros, algo não mais possível dentro dos seus limites territoriais. Seu ápice se deu na década de 80, com a política neoliberal instituída por Ronald Reagan, nos Estados Unidos e Margaret Thatcher, na Inglaterra,

Segundo Rafael da Silva Marques, a globalização, ao pregar o livre mercado e a flexibilização dos direitos sociais, cria sistemas normativos paralelos aos estatais. A

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vontade contratual passa a preponderar, dando origem à arbitragem e outros instrumentos de mediação, em detrimento das normas constantes do ordenamento nacional, enfatizando mais o direito oriundo de normas coletivas. Tal fato é deletério para os países periféricos, em que os trabalhadores ainda não atingiram maturidade política suficiente para defender seus direitos em negociações coletivas[xxiv].

O mesmo autor aponta três nefastos exemplos da flexibilização em nosso ordenamento. O primeiro deles é do art. 7º, VI, da Constituição que prevê a possibilidade de redução dos salários por negociação coletiva. O segundo é quanto à jornada, onde no art. 7º, XIII, consta que é possível o aumento de trabalho em um dia, além das oito horas, e a redução em outro, através de compensação, desde que prevista em acordo coletivo. Deste dispositivo nasceu a Lei 9.601/98, que dando nova redação aos parágrafos segundo e terceiro do art. 59 da CLT, ampliou para um ano o prazo para compensação – sistema que foi conhecido como banco de horas. Por último, aponta o art. 7º, XIV, da Constituição, que preceitua jornada de trabalho com duração de seis horas para os casos de turnos ininterruptos de trabalho, salvo disposição coletiva em contrário.

O novo modelo de livre-iniciativa também deseja reduzir cargos e funções, ao concentrar em um único trabalhador tarefas antes realizadas por vários deles, consubstanciando o tão propagado processo de reengenharia social da empresa, o qual tem se mostrado fatigante para o homem.

Por sua vez, as tarefas intermediárias, não ligadas diretamente aos fins sociais da empresa, são transferidas a empregados de empresas terceirizadas, com o objetivo precípuo de reduzir custos e não, necessariamente, aumento de qualidade no desempenho das tarefas delegadas a terceiros. Isto se dá porque, na moderna sociedade capitalista, o lucro se situa em primeiro plano e tudo deve ser feito no sentido de reduzir despesas para a otimização de resultados financeiros cada vez mais crescentes.

A terceirização rompe o vinculo bilateral justrabalhista e cria a relação triangular de trabalho, onde o trabalhador da empresa prestadora migra do setor a que pertence a empresa para se situar no setor terciário de prestação de serviços. Este fenômeno tem se mostrado prejudicial ao trabalhador, tendo em vista que o alija de vários benefícios oferecidos aos colaboradores da empresa tomadora, normalmente de maior porte que a terceirizada e, portanto, de maior capacidade econômica para oferecer melhores salários, prêmios, gratificações e outros penduricalhos remuneratórios que se acrescem à renda dos obreiros.

É importante destacar que a inovações tecnológicas trazidas pela microeletrônica, sistemas digitais, mecatrônica e outros aparatos da era moderna não reduzem, ao contrário do que se propaga, os postos de trabalho. O que fazem é substituir antigas funções por outras que exigem maior especialização do trabalhador. São essas as funções que geralmente são preenchidas pelas empresas prestadoras, as quais passam a funcionar como entidades satélites em torno da empresa contratante, fato que, invariavelmente, tem proporcionado uma fragilidade das relações de trabalho. Esta arquitetura do processo de produção está em sintonia com o modelo de gestão conhecido por toyotismo, elaborado por Taiichi Ohno, cuja maior preocupação é a subcontratação de serviços de forma a reduzir os custos do produto final. Maurício Godinho, retratando o modelo que substituiu o taylorismo, cuja característica era a divisão do trabalho no âmbito da própria empresa, assenta que o mecanismo da

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subcontratação garante a um só tempo a diminuição dos custos da empresa-pólo, o acréscimo da produtividade do trabalho e a redução da renda dos trabalhadores[xxv]. Ou seja, é a receita típica do modelo neoliberal.

Do estudo empreendido, conclui-se que a política neoliberal é incompatível com o disposto nos artigos 1º, 3º, 7º e 170 da Constituição, pois a mesma define um modelo econômico baseado no bem-estar, cuja vinculação deve ser observada pelos poderes estatais. Nesse sentido, os programas do governo devem se compatibilizar com a Constituição. A incompatibilidade entre os mesmos e o modelo econômico constitucionalmente definido deve implicar em inconstitucionalidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Ordem Constitucional brasileira alçou a valorização do trabalho e a livre iniciativa a condição de fundamento da República e da Ordem Econômica, esta como bem se sabe, baseada no modo de produção capitalista, o qual tem por alicerce a lei de livre mercado. Não obstante, não pode o trabalho ser considerado como mero instrumento do mercado, que, ávido por cada vez mais lucros, quer reduzi-lo à mera condição de elemento de custo de produção.

O Trabalho deve ter a proteção do Estado, visto não ser apenas um conceito econômico, mas, antes disso, um conceito social, humano. Tanto é assim que o homem busca o valor do trabalho não apenas para satisfazer suas necessidades de sobrevivência e conforto, mas também para satisfazer suas demandas existenciais e de vida. Desta forma, deve ser o lavor considerado uma das principais formas de concretização do Princípio da Dignidade Humana, princípio este que dá unidade a toda a Constituição de 1988.

O intérprete, por sua vez, deve ter sempre em mente este valor da dignidade humana realizado pelo trabalho, para que, no caso concreto, ao se deparar com o conflito de interesses entre o mercado da livre iniciativa, ávido por cada vez mais lucros, e o trabalho, possa resolvê-lo em favor deste, levando em consideração que numa ponderação principiológica, baseada na razoabilidade e proporcionalidade, há de se sobrelevar o valor que enaltece a existência humana.

Não se quis com o presente excluir o valor da livre iniciativa, até porque fora o mesmo consagrado pela Carta Política, mas se procurou esposar que esta deve ter a sua função social, como muito bem observou Eros Grau, no sentido de que não se pode deixar ao capital o controle da sociedade para servir-lhe na busca demasiada pela obtenção de lucros exorbitantes e redução de custos sociais, sobretudo, como se demonstrou, pela diminuição de salários e de proteção ao trabalho.

Apesar do dever social, tanto do capital quanto do Estado, de realizar o valor do trabalho humano, o que se vê é um poder estatal que se mostra atrofiado frente ao poder econômico representado pelas grandes instituições capitalistas multinacionais, que ditam, debaixo do dogma da globalização e do neoliberalismo, defendidos como

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bandeiras da livre iniciativa intocável, as normas de um mercado auto regulado que busca, desenfreadamente, a flexibilização dos direitos sociais duramente alcançados.

REFERÊNCIAS

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MARQUES, Rafael da Silva. Valor Social do Trabalho, na ordem econômica, na constituição brasileira de 1988. 1ª ed. São Paulo: Ed. Ltr, 2007.

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PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005.

SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005.

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ZYLBERSZTAJN , Decio, SZTAJN, Rachel (organiz.) e outros. Direito& Economia. Análise Econômica do Direito e das Organizações.1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2005.

[i] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 1995, p.3.

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Estado Democrático e Estado Autoritário[ii] NEUMANN, Franz. . Trad. de Luiz Corção. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1969, p.49-50 apud GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 12ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2007, p.36.

[iii] A distinção entre Ordem Econômica – mundo do ser e Ordem Econômica – mundo do dever ser está na obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 12ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2007, p.67-69.

[iv] GRAU, Eros Roberto. Op.cit,p.74-75.

[v] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 1996, p.184.

[vi] MARQUES, Rafael da Silva. Valor Social do Trabalho, na ordem econômica, na constituição brasileira de 1988. 1ª ed. São Paulo: Ed. Ltr, 2007, p. 94

[vii] SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Durkhein, Weber e Marx. 3ª Edição. Itajaí: Ed. Univali, 2002,p.163.

[viii] Art. 1º da CF/88: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

[ix] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência;V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais;VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

[x] Canotilho denomina Princípios Constitucionais Conformadores aqueles que explicitam as decisões fundamentais do legislador constituinte (ex: organização e estrutura do Estado) e Princípios Constitucionais Impositivos aqueles que submetem o legislador à realização de fins e execução de tarefas in CANOTILHO, J. J. Gomes: Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1987.

[xi] Dworkin chama de diretrizes as pautas que estabelecem objetos a serem alcançados, geralmente referidos a algum aspecto social, político e econômico in DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. 5ª imp. Londres, 1987, p.22

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[xii] GRAU, Eros Roberto. Op.cit, p.197.

[xiii] GRAU, Eros Roberto.Op.cit,p.197.

[xiv] PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p.153.

Trabalho Assalariado e Capital[xv] MARX, Karl. . 2ª ed. São Paulo. Editora Global, 1983. Apud Marques, Rafael da Silva in Valor Social do Trabalho na Ordem Econômica na Constituição de 1988. 1ª ed. São Paulo: Editora Ltr, 2007, p.112.

[xvi] PETTER, Lafayete Josué. Op.cit., p.156-157.

[xvii] ARIDA, Pérsio. A Pesquisa em Direito e em Economia: em torno da historicidade da norma in ZYLBERSZTAJN , Decio, SZTAJN, Rachel (organiz.) e outros. Direito& Economia. Análise Econômica do Direito e das Organizações.1ª ed. Rio de Janeiro:Editora Elsevier, 2005, p.68.

[xviii] MARQUES, Rafael da Silva.Op.cit. p.114.

[xix] BOCORNY, Leonardo Raupp. A valorização do trabalho humano no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, apud MARQUES, Rafael da Silva in Valor Social do Trabalho na Ordem Econômica na Constituição de 1988. 1ª ed. São Paulo: Editora Ltr, 2007, p.116.

[xx] GRAU, Eros Roberto, op.cit, p.201-208.

[xxi] SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p.145.

Manifesto Comunista[xxii] Marx, Karl. Friedrich, Engels. . Comentado por Chico Alencar. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p.188.

[xxiii] GRAU, Eros Roberto. Op.cit., p.36-38.

[xxiv] MARQUES, Rafael da Silva. Op. Cit., p.135.

[xxv] DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. São Paulo: Ltr, 2005, p.48

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