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265 REVISTA DA ESMESC, v. 12, n. 18, 2005 A NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR UMA ABORDAGEM À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004 Sidney Eloy Dalabrida* 1. INTRODUÇÃO Fundamentalmente, o artigo que segue tem o propósi- to de abordar as conseqüências, no âmbito da Justiça Militar, da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004. Para tanto, principia-se com uma exposição do parâ- metro constitucional reformulado e a indicação dos novos ru- mos da Justiça Militar. Procede-se, a seguir, à análise de questões controverti- das em torno da modificação constitucional da competência da Justiça Militar, com a apresentação, em nível dogmático, do juízo competente para o processo e julgamento de múltiplos crimes militares ligados por conexão ou continência, assim como o rito processual a ser adotado em face da inexistência de procedimento específico disciplinando o processo e julgamen- to singular perante a Justiça Militar Estadual. * Promotor de Justiça. Especialista em Direito Penal. Especialista em Direito Pro- cessual Penal. Mestre em Ciência Jurídica. Professor da Escola Superior da Magis- tratura de Santa Catarina. Professor Pesquisador da UNISUL.

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Justiça militar e suas competências

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A NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITARUMA ABORDAGEM À LUZ DA EMENDA

CONSTITUCIONAL Nº 45/2004

Sidney Eloy Dalabrida*

1. INTRODUÇÃO

Fundamentalmente, o artigo que segue tem o propósi-to de abordar as conseqüências, no âmbito da Justiça Militar,da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004.

Para tanto, principia-se com uma exposição do parâ-metro constitucional reformulado e a indicação dos novos ru-mos da Justiça Militar.

Procede-se, a seguir, à análise de questões controverti-das em torno da modificação constitucional da competênciada Justiça Militar, com a apresentação, em nível dogmático, dojuízo competente para o processo e julgamento de múltiploscrimes militares ligados por conexão ou continência, assimcomo o rito processual a ser adotado em face da inexistência deprocedimento específico disciplinando o processo e julgamen-to singular perante a Justiça Militar Estadual.

* Promotor de Justiça. Especialista em Direito Penal. Especialista em Direito Pro-cessual Penal. Mestre em Ciência Jurídica. Professor da Escola Superior da Magis-tratura de Santa Catarina. Professor Pesquisador da UNISUL.

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Abordam-se, outrossim, os reflexos decorrentes da am-pliação da competência da Justiça Militar Estatual para o pro-cesso e julgamento de atos disciplinares militares e da necessi-dade de garantir-se a simetria constitucional em relação à com-petência da Justiça Militar da União.

Por fim, são apresentados pontos conclusivos a respei-to do tema enfrentado.

2. DESENVOLVIMENTO

Em face da Emenda Constitucional n° 45/2004, osdispositivos constitucionais relacionados à Justiça Militar pas-saram a prescrever:

“Art. 125(...)§ 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tri-bunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, emprimeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos deJustiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça,ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que oefetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar osmilitares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei eas ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalva-da a competência do júri quando a vítima for civil, cabendoao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e dapatente dos oficiais e da graduação das praças.§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processare julgar, singularmente, os crimes militares cometidos con-tra civis e as ações judiciais contra atos disciplinaresmilitares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presi-dência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimesmilitares.”

Da reformulação promovida através da Emenda Cons-

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titucional n° 45/04, portanto, no plano da Justiça Militar Es-tadual, em face do Texto Constitucional anterior, destacam-secomo inovações

a) a inserção do juiz de direito como órgão do primeiro grauda Justiça Militar Estadual;

b) a competência que foi reservada, com exclusividade, ao juizde direito para, singularmente, julgar os crimes militarespraticados contra civis;

c) a definitiva exclusão dos crimes dolosos contra a vida decivil da competência da Justiça Militar;

d) a ampliação da competência da Justiça Militar Estadual parao processo e julgamento das ações judiciais contra atos dis-ciplinares militares.

Procedeu-se, deste modo, uma ampliação substancialda competência material da Justiça Militar Estadual; uma divi-são da competência interna, e o estabelecimento de regra ex-pressa, em favor do juiz de direito, de competência funcionalpor objeto do juízo.

Com a reforma constitucional, modificou-se a estru-tura organizacional da Justiça Militar Estadual que, em pri-meira instância, passou a ser integrada pelo juiz de direito, ti-tular do Juízo Militar, e pelos Conselhos de Justiça.

A alteração implica, notadamente em Estados sem Tri-bunal de Justiça Militar, na necessidade de modificação dasdiversas Leis de Organização Judiciária e Constituições Esta-duais que ainda contemplam a figura do juiz-auditor, bem comoem concurso próprio para o ingresso na carreira, que deixou deser isolada, passando a integrar a da magistratura estadual.

Ao juiz de direito transferiu-se a presidência dos Con-selhos Permanente e Especial de Justiça, de modo a subtrair do

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Oficial Militar todos os poderes que processualmente lhe eramconferidos em face daquela condição, passando automatica-mente àquele todas as atribuições que até então a este eramreservadas. A propósito, conferir a presidência dos Conselhosde Justiça a Oficial Militar que, pelas normas processuais pe-nais militares, sequer tinha o poder de perguntar diretamenteà testemunha (art. 418 do CPPM), direito que faz jus o pró-prio juiz leigo durante a realização do Júri Popular, não sendosequer o primeiro a pronunciar o voto por ocasião do julga-mento (art. 435 do CPPM), sempre se me afigurou comomedida absolutamente desnecessária.

Diante do panorama constitucional redesenhado pelaEmenda Constitucional nº 45/04, impõe-se pontuar algunsaspectos em torno dos quais grassa intensa controvérsia dou-trinária.

2.1 A CONEXÃO E CONTINÊNCIA: JUNÇÃO DOSPROCESSOS CRIMINAIS OU QUEBRA DAUNIDADE

De acordo com a dogmática processual, a conexão existe“quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas porum vínculo, um nexo, um liame que aconselha a junção dosprocessos, proporcionando, assim, ao julgador perfeita visãodo quadro probatório, e, de conseqüência, melhor conheci-mento dos fatos, de molde a poder entregar a prestação juris-dicional com firmeza e justiça”

1, constituindo-se em técnica

processual pela qual se busca evitar o desperdício de recursospúblicos na tarefa de persecução penal, sendo tal economia

1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal 2. 27. ed. São Paulo:Saraiva, 2005. p. 198.

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manifestada pela reunião de causas para uma melhor otimiza-ção da produção probatória, bem como para evitarem-se jul-gamentos colidentes.

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Em face do comando constitucional de transferênciaao juiz de direito da competência para o processo e julgamentode crimes militares praticados contra civis, havendo dois oumais crimes militares ligados em razão de relação de conexida-de ou continência com aqueles, é possível, ao menos em tese,sugerir quatro soluções diferentes: a) cisão dos processos; b)cisão apenas do julgamento, mantida a unidade do processo;c) um simultaneus processus perante o Conselho de Justiça; d)junção dos processos, para julgamento singular pelo juiz dedireito da Justiça Militar Estadual.

O entendimento esposado por alguns, dentre os quaismerece destaque o notável Célio Lobão

3, no sentido de im-

por-se a separação dos processos nestes casos, data venia, nãose apresenta como a solução mais ajustada à hipótese. Embora,em princípio, possa impressionar o argumento que lhe em-presta suporte - de que a competência dos Conselhos de Justi-ça também tem sede constitucional, sendo, portanto, impror-rogável -, uma análise mais cuidadosa da norma de competên-cia depõe em sentido contrário.

Com efeito, no texto constitucional inicialmente seidentifica uma competência de ordem material (crimes milita-res definidos em lei), mantida a tradição jurídica, com a reelei-ção do critério ratione legis.

2 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: Comentários Consolida-dos e Crítica Jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 185.

3 LOBÃO, Célio. Reforma do Judiciário: A competência da Justiça Militar. InDireito Militar nº 50, novembro/dezembro-2004, p. 6-11.

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Assim, prescreve o § 4º, do art. 125, da Carta Política:

“Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar osmilitares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei eas ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalva-da a competência do júri quando a vítima for civil (...).”

Sabe-se que a inobservância desta competência materi-al, por implicar em violação da garantia do juiz natural, im-porta naturalmente na inexistência do processo ou, como sus-tenta parte da doutrina, na sua nulidade absoluta.

No entanto, ao mesmo efeito não pode ser submetidaa hipótese de julgamento, pelo juiz de direito da Justiça Mili-tar Estadual, de crime militar que não seja praticado contracivil por força de uma atração decorrente de conexão ou conti-nência, porquanto, neste caso, ao contrário do sugerido, nãohaverá qualquer ofensa à competência material da Justiça Mi-litar, que permanece intocada, mas tão-somente uma prorro-gação da competência em favor de um dos órgãos jurisdicio-nais da própria Justiça Militar Estadual.

E isto porque, ao tratar dos Conselhos de Justiça e dojuiz de direito e, em relação a este, traçar o objeto do processoe do julgamento, o comando constitucional sub examine ape-nas tratou de regra de competência interna, que se bifurcouentre os Conselhos de Justiça e o juiz de direito da Justiça Mi-litar, sendo a deste expressa, explícita, enquanto a daquele resi-dual e implícita.

Dito de outro modo, num primeiro plano, a EmendaConstitucional n° 45/2004 consagrou a competência materialda Justiça Militar Estadual e, a seguir, tratou da competênciainterna, distribuindo-a entre o juiz de direito e os Conselhosde Justiça. Contudo, em relação ao juiz de direito, estabeleceuexpressamente uma regra de competência funcional por obje-

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to do juízo militar: crime militar contra civil. Já em relação aosConselhos de Justiça, a competência foi estabelecida apenas demodo residual, implícito, isto é, não se tratando de crime mi-litar contra civil, caberá ao Conselho de Justiça processar e jul-gar o crime militar.

Regras desta natureza (competência interna) geralmentese encontram hospedadas em normas infraconstitucionais, sen-do caso típico desta espécie a competência interna de tribunaiscolegiados heterogêneos, dentre os quais pode-se citar o Tribu-nal do Júri: juiz togado e juízes populares.

Entrementes, de modo excepcional, a própria Consti-tuição Federal, por meio do poder reformador, estabeleceu emrelação à Justiça Militar Estadual uma regra interna expressa decompetência em favor do juiz de direito, de modo que, noscasos de conexão e continência com crimes da competênciados Conselhos de Justiça, àquele competirá o julgamento con-junto das infrações penais militares. A vis atractiva, nestes ca-sos, não poderá ser exercida pelo órgão colegiado, porquanto,em relação a estes, a competência interna foi firmada de formaapenas residual, por exclusão.

Não há falar-se, por outro lado, que nestes casos falta-ria ao juiz singular competência para processar e julgar crimesmilitares de outra natureza, além daqueles em que a vítima écivil, porque, como afirmado alhures, trata-se apenas de com-petência interna, sem regra constitucional expressa, fixa, de-terminando aos Conselhos de Justiça o processo e julgamentode todos os demais crimes militares. Note-se que a Constitui-ção Federal passou a dispor: compete à Justiça Militar proces-sar e julgar os crimes militares definidos em lei, e não expressa-mente aos Conselhos de Justiça, fazendo referência expressasomente em relação ao juiz de direito, quando tratou de cri-mes militares praticados contra civis.

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Mutatis mutandis, é o que ocorre em relação à compe-tência constitucional do Tribunal do Júri para o julgamentodos crimes dolosos contra a vida. Ao estabelecer a competênciado Júri Popular para o julgamento dos crimes dolosos contra avida, o legislador constituinte não excluiu a possibilidade dejulgar outras infrações por força de conexão ou continência, jáque tratou de competência mínima e não máxima, tanto que alei ordinária poderá perfeitamente elencar outros crimes paraserem submetidos ao Tribunal Popular. Como professa PAU-LO RANGEL, o que a Constituição proíbe é a “subtração dojúri nos crimes dolosos contra a vida, porém, não impedeque outros crimes sejam julgados por ele, desde que a lei as-sim estabeleça.”

4

O mesmo ocorre em relação ao juiz de direito da Justi-ça Militar Estadual. A circunstância da Constituição Federaldispor que compete ao juiz de direito da Justiça Militar Esta-dual o processo e julgamento do crime militar praticado con-tra civil não significa que, em hipóteses de entrelaçamento dasdiversas infrações por força de conexão ou continência, nãopossa processar e julgar crimes da competência dos Conselhosde Justiça.

Do mesmo modo, ao estabelecer a competência dosTribunais Superiores para o processo e julgamento de certasautoridades, não excluiu a Constituição Federal a possibilida-de de outras pessoas serem julgadas naquela superior jurisdi-ção, por força da regra de conexão ou continência, em quepese o Texto Constitucional não fazer qualquer referência aesta possibilidade.

Embora alguns ainda sustentem, é forçoso reconhecer

4 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: 2001. p. 259.

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como ultrapassado o argumento segundo o qual a competên-cia constitucional de órgãos jurisdicionais superiores como oSupremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça nãopoderia se estender ao exame de causas que guardassem relaçãode conexão ou continência envolvendo agentes não previstosnos dispositivos constitucionais correspondentes.

A propósito, a Súmula 704 do colendo Supremo Tri-bunal Federal, consolidando a jurisprudência daquele Sodalí-cio em torno do tema, pontificou:

“Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e dodevido processo legal a atração por continência ou conexãodo processo de co-réu ao foro por prerrogativa de função deum dos denunciados.”

Também é o que ocorre em relação à competência daJustiça Comum Federal e da Justiça Comum Estadual.

A competência da Justiça Estadual é residual, implíci-ta, ao passo que da Justiça Federal é expressa e taxativa. A cir-cunstância, contudo, não impede o julgamento pela JustiçaFederal de causas afetas à Justiça Estadual quando presente re-lação de conexão ou continência. O afastamento da compe-tência da Justiça Comum Estadual, porquanto não previstaexpressamente, apesar de sua inequívoca residualidade, igual-mente não implica em qualquer subversão ao princípio do juiznatural.

Esse entendimento jurisprudencial foi consolidado naSúmula 122 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece:

“Compete a Justiça Federal o processo e julgamento unifica-do dos crimes conexos de competência federal e estadual,não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Pro-cesso Penal.”

Portanto, não há falar-se que, em face da competência

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residual em favor dos Conselhos de Justiça5, decorrente da

previsão expressa única da competência do juiz de direito daJustiça Militar Estadual, falte ao Juiz Singular competência parao processo e julgamento dos crimes militares conexos com aque-les em que figure como vítima o civil, quando presente elo deconexão ou continência.

Ao contrário, identificada a relação de conexão ou con-tinência, haverá unidade de processo e julgamento, sendo dojuiz de direito da Justiça Militar Estadual, e não dos Conselhosde Justiça,. a competência para o processo e julgamento con-junto das infrações penais militares

Alinhem-se a estes argumentos de ordem técnica, ou-tros de índole eminentemente operacional.

Com efeito, não me parece razoável que, havendo in-frações penais militares que guardem entre si uma estreita im-bricação lógica (conexão), promova-se a disjunção dos proces-sos, procedendo-se a uma instrução criminal em duplicata, coma repetição de todos os atos postulatórios, probatórios e deci-sórios, com prejuízo da perfeita visualização do panorama in-tegral do fato pelo órgão julgador, e a exposição da matériadebatida à pronunciamentos conflitantes.

A providência, é fácil antever, certamente causará umemperramento da Justiça Militar Estadual, com a multiplica-ção dos processos criminais, e congestionamento das pautas,em face de intermináveis audiências.

Poder-se-ia cogitar, como forma de abrandamento des-tes efeitos indesejados, da separação apenas do julgamento,

5 OLIVEIRA, Rodrigo Tadeu Pimenta de. Reflexos da Emenda Constitucionalnº 45, de 08 de desembro de 2004, nas Justiças Militares Estaduais. In DireitoMilitar nº 50, novembro/dezembro-2004, p. 12-15.

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mantendo-se a unidade do processo, com o que se evitaria a re-produção desnecessária daqueles atos processuais. A providên-cia, aliás, não seria inédita, na medida em que já é prevista noâmbito do processo penal comum quando um dos réus nãopuder ser julgado a revelia pelo Tribunal do Júri ou porforça de estratégia defensiva por ocasião das escusas peremp-tórias (art. 79, §2º, do CPP), sendo também prevista no próprioCód. de Proc. Penal Militar em face de circunstâncias especiais(art. 105).

No entanto, a eventual vantagem que a formação desteprocesso militar híbrido representaria pela não repetição dosdiferentes atos processuais estaria comprometida totalmentepelos inconvenientes advindos da prolação, num um únicoprocesso, de duas sentenças definitivas, igualmente impugná-veis através de recurso de apelação, cujo processamento emconjunto praticamente não seria possível, em decorrência daimprovável simultaneidade na sua prolação por força de varia-dos incidentes processuais.

Assim, também sob o aspecto prático, de economiaprocessual, é de rigor que o juiz de direito da Justiça MilitarEstadual, singularmente, processe e julgue os crimes militarespraticados contra civis e todos os demais crimes em relação aosquais se identifique relação de conexidade ou continência.

2.2 O PROCESSO CRIMINAL NOS CRIMES DACOMPETÊNCIA DO JUIZ DE DIREITO DAJUSTIÇA MILITAR ESTADUAL.

O processo penal perante o juízo monocrático, enquan-to inexistente lei ordinária prevendo o rito processual a ser apli-cado nestes casos, deverá continuar obedecendo aquele previs-

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to no Cód. de Proc. Penal Militar, afastando-se tão-somente afase de debates orais, porquanto não se justifica que, em sedede um julgamento singular, seja mantida a solenidade procedi-mental que foi instituída justamente em razão de um julga-mento colegiado.

Justifica-se aqui, para preenchimento deste vácuo nor-mativo, a integração, por analogia, das disposições da legisla-ção processual penal comum, adotando-se, portanto, as fasesfinais do procedimento-regra para os crimes apenados com re-clusão, em virtude de sua maior vocação à preservação dos di-reitos dos acusados.

Dispõe o próprio Cód. de Proc. Penal Militar:

“Art. 3º. Os casos omissos neste código serão supridos:I – pela legislação de processo comum, quando aplicável aocaso concreto e sem prejuízo da índole do processo penalmilitar (...)”

De fato, não há razões para aplicação integral do pro-cedimento ordinário, já que o recurso ao suplemento analógi-co, neste caso, somente se justificaria se não houvesse possibi-lidade de aproveitamento das regras procedimentais especiaisprevistas no próprio Cód. de Proc. Penal Militar. É certo que amatéria procedimental prevista no Cód. de Proc. Penal Militarfoi programada em face de um órgão jurisdicional colegiadoheterogêneo: juiz-auditor e Conselhos de Justiça. Todavia, éfácil também perceber que aquelas regras não são absolutamenteconflitantes com um julgamento singular, até em face da pree-minência, sempre conferida naquele diploma legal, ao juiz-auditor.

Assim, melhor atende à técnica processual e às garanti-as da ampla defesa, a observância de toda a cadeia procedimen-tal prevista na Lei Especial (Cód. de Proc. Penal Militar), com

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a adoção, na fase derradeira, das regras do procedimento ordi-nário que, nesta etapa, ampliaria as oportunidades de defesa,garantindo um processo justo, eqüitativo e, principalmente,livre de qualquer contaminação.

Parece-me insustentável a aplicação das regras do ritosumário, como defendem alguns, com a transformação do jul-gamento militar em uma simples audiência de instrução e jul-gamento. Esta alternativa, que comprime o procedimento pre-visto no Cód. de Proc. Penal Militar, reduzindo direitos pro-cessuais das partes, ineludivelmente sujeitaria o processo mili-tar a incontornável vício de nulidade absoluta. A abreviação doprocedimento previsto no Cód. de Proc. Militar sacrifica irre-mediavelmente o direito de defesa, rendendo ensejo à nulida-de absoluta do feito penal.

A opção pelas regras do procedimento ordinário, aocontrário, amplia os mecanismos de defesa, já que a pretensãopunitiva deduzida ao final do procedimento poderá ser con-trastada pela defesa, também por intermédio de alegações es-critas, em tempo muito superior àquele reservado para os de-bates orais, desmoralizando qualquer alegação de cerceamentode defesa.

A propósito, neste particular, a jurisprudência tem sidoenfática em proclamar que somente a adoção de rito processu-al mais célere e abreviado tem o condão de afetar a validade doprocesso, jamais, porém, a observância de rito processual demaior amplitude.

Noutra angulação, vale recordar que não há como com-pletar o vazio legal por meio de normas de outro ramo do di-reito (heterointegração) quando desta colmatação resultar al-gum prejuízo para o acusado. É a chamada analogia em malampartem, que é repelida pela doutrina mesmo em normas não

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incriminadoras. No caso, o prejuízo com a aplicação do pro-cedimento sumário seria evidente, em face do estrangulamentodo procedimento, com a supressão de inúmeras fases pro-cessuais.

2.3. A COMPETÊNCIA ANÔMALA DO JUIZ DEDIREITO DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUALPARA O PROCESSO E JULGAMENTO DASAÇÕES JUDICIAIS CONTRA ATOSDISCIPLINARES MILITARES.

Não obstante a sua unicidade, resultado de uma opçãopolítica (e política aqui entendida como um processo de esco-lhas axiológicas voltadas ao cumprimento das funções do Esta-do

6), como é cediço, a Jurisdição foi delimitada através da dis-

tribuição racional do exercício da atividade jurisdicional entrediferentes Órgãos do Estado.

A estratificação deste poder ou, mais apropriadamen-te, desta expressão do poder do Estado, se opera em diferentesplanos e níveis, tendo por objetivo principal, como ponto cen-tral de sua preocupação, garantir a realização da justiça. Destemodo, o limite ou a medida da jurisdição (competência) nãotem em mira atender puramente a critérios de conveniência daadministração da justiça, visando um funcionamento mais prá-tico da máquina judiciária, mas fundamentalmente garantirque, em cada caso concreto, as normas de direito substancialconduzam ao resultado prático aspirado pelo Estado.

A ampliação da competência da Justiça Militar Esta-

6 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 11. ed.São Paulo: Malheiros, 2003. p. 100.

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dual para o processo e julgamento de causas de natureza cível,envolvendo atos disciplinares militares, atende ao critério daespecificidade da jurisdição, da racionalidade da sua distribui-ção, na medida em que atribui a um órgão da jurisdição espe-cial, com qualificação própria, a análise de temas que exigemconhecimento específico da esfera de poder de onde emanam.

Ademais, o entrelaçamento quase sempre existente en-tre crimes militares e transgressões disciplinares desaconselhacompletamente o modelo de dualidade de jurisdição até entãoem vigor

De fato, as singularidades que envolvem toda a ativida-de militar, em especial a administrativa, não permitem que amatéria seja tratada por órgãos jurisdicionais sem vocação es-pecífica para esta área do saber.

Neste quadrante, pelo efeito pecaminoso da generali-zação, tem-se observado um completo descaso para com osprincípios que sustentam as instituições militares.

Assim, nos conflitos intersubjetivos submetidos à apre-ciação do Judiciário na Justiça Comum, não raro, a prestaçãojurisdicional é entregue como se não houvesse distinção signi-ficativa entre os valores que transitam pelo direito comum edireito militar, como se o servidor militar não se sujeitasse auma disciplina jurídica própria ou se a relação jurídico-admi-nistrativa comum fosse a mesma relação jurídico-administrati-va militar. A hierarquia e disciplina são apenas critérios ordiná-rios, expressões de completa vagueza semântica, valores semconcretude, dotados de total abstração. Corolário lógico destaatuação não poderia ser outro: contínuo desgaste dos princípiosque sustentam as instituições militares.

Sem embargo da identidade entre alguns princípios que

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inspiram a atuação administrativa comum e a militar, o certo éque o direito disciplinar militar possui características própriase inconfundíveis, que exigem um ofício judicante vocaciona-do à preservação dos valores que mantém de pé as instituiçõesmilitares.

Daí porque o acerto da Reforma Constitucional nesteparticular.

Em decorrência daquela regra constitucional, váriasações cíveis devem ser ajuizadas perante à Justiça Militar Esta-dual, dentre as quais o habeas corpus, repressivo ou liberatório,contra transgressões disciplinares, mandado de segurança con-tra ato ilegal de autoridade militar, ações anulatórias de atoadministrativo relacionado à punição disciplinar militar, açõescominatórias, ações de reintegração de policial militar excluí-do da corporação, medidas cautelares típicas e inominadas, açõesde reparação de danos resultantes de punição disciplinar fun-dada em desvio de poder, ação de indenização por dano moral,ações civis públicas, e, inclusive, ações de improbidade admi-nistrativa, em face de punição disciplinar aplicada com desviode finalidade.

Neste ponto da reflexão, merece referência a Propostade Emenda Constitucional que foi aprovada pelo SenadoFederal e retorna à Câmara Federal, que estabelece mo-dificações na Justiça Militar da União. Embora mantenhaos Juízes-Auditores Federais, não havendo previsão da figurado Juiz de Direito, bem como não transfira a Presidênciados Conselhos de Justiça ao órgão monocrático, a PEC nº29 amplia a competência da Justiça Militar da União parapermitir-lhe o controle jurisdicional sobre as punições disciplina-res militares.”

A necessidade de posicionamento simétrico entre as

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normas constitucionais definidoras da competência da JustiçaMilitar da União e Estadual resulta da própria similitude dosfins perseguidos por estes órgãos jurisdicionais.

A definição constitucional da Justiça Militar como Jus-tiça Especializada tem o propósito de realçar o alto grau deespecialização e especificidade normativa deste ramo do direi-to material, por conta de suas características próprias, especiaise inconfundíveis.

Não se pode ignorar que a assimetria entre as compe-tências especiais das Justiças Militares constitui-se em fator compoder reagente à consecução do próprio fim da delimitação dajurisdição, além de representar um retrocesso em termos depreeminência da União no sistema federativo, princípio tantasvezes invocado pelas Cortes Superiores para solucionar ques-tões de competência.

Em outros termos, se a medida da jurisdição (compe-tência) tem como precípuo escopo político, neste universo, atransferência a um órgão especializado, que é a Justiça Militar,das ações que impliquem em afetação dos bens jurídicos co-muns que por ali trafegam, ainda que indiretamente, não hácomo racionalmente manter-se a radical distinção havida coma reforma produzida pela Emenda Constitucional nº 45.

A distinção estabelece um espaço de tensão entre asnormas constitucionais definidoras da competência na JustiçaMilitar da União e Estadual, comprometendo sensivelmente asua conformidade funcional, cuja preservação é fundamental àfiel concretização dos fins da jurisdição especial militar.

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3. CONCLUSÕES

Fundado nas razões alinhadas, concluo:

a) identificada relação de conexão ou continência com crimemilitar em que figure como vítima exclusivamente civil,haverá unidade de processo e julgamento, sendo compe-tente o juiz de direito da Justiça Militar Estadual para, emum simultaneus processos, processar e julgar todos os crimesmilitares.

b) no âmbito da competência interna da Justiça Militar Esta-dual, firmada a competência do juiz de direito, os processosdeverão observar o rito processual previsto no Código deProcesso Penal Militar, a exceção da fase de julgamento,oportunidade em que deverão ser aplicadas as regras do pro-cesso comum, previstas no Código de Processo Penal.

c) ao juiz de direito da Justiça Militar Estadual compete o pro-cesso e julgamento de todas as ações cíveis cuja causa peten-di guarde relação com atos disciplinares militares.

d) a reafirmação da preeminência da União no Sistema Fede-rativo, a observância da regra da simetria, com a conse-qüente conformidade funcional das normas de extraçãoconstitucional, determinam a ampliação da competência daJustiça Militar da União para o controle judicial dos atosdisciplinares.

4. REFERÊNCIAS

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