arte, experimentação e vanguarda no pensamento de jean-françois ...
Comunicação e ironia no pensamento de Jean...
Transcript of Comunicação e ironia no pensamento de Jean...
Comunicação e ironia no
pensamento de Jean Baudrillard1
RESUMO:
No cruzamento das idéias de Jean Baudrillard, Michel
Maffesoli e Edgar Morin, este ensaio trata, na fronteira do
absurdo permitido pelas hipóteses ad hoc, da possibilidade
de compreender a comunicação moderna como «fenômeno
extremo». Até que ponto a reflexão viral de Baudrillard
pode ajudar a entender o campo cultural, dominado pela
circulação acelerada da informação, deste fim de século.
Possivelmente, apenas uma sócio-epidemiologia da
comunicação possa fornecer instrumentos para a vertigem
pós-moderna dos signos. O Brasil estaria imune?
Juremir Machado da Silva2
1 Este texto analisa a influência da ironia de Jean Baudrillard na
reflexão sobre os fenômenos comunicacionais deste final de século.
Trata da relação entre sentido (ou ausência de) e produção de
socialidade através dos recursos das novas tecnologias das mídias e das
adaptações dos antigos meios de comunicação. A idéia básica sustenta
que, num sistema de circulação viral de signos, a mensagem é o meio de
E se a tarefa mais relevante da mídia (e mesmo das
escolas) fosse distrair e entreter grande parte da
população? E se entreter fosse a única forma de salvar a
massa do tédio existencial inexorável em qualquer tipo de
sociedade, com ou sem desigualdade social? E se a educação
fosse apenas uma forma histórica privilegiada de
entretenimento? Hipóteses inaceitáveis, cínicas, imorais ou
simplesmente ad hoc, no sentido utilizado por Paul
Feyerabend?3. Imagine-se uma sociedade perfeita, formada por
artistas, intelectuais e desinteressados fruidores da arte
suprema (música erudita, balé, artes plásticas, alta
literatura, etc.), onde todos os dilemas sociais estivessem
totalmente resolvidos. Restaria entreter o contigente
populacional entregue à eterna repetição dos dias.
estabelecer empatia. Mas, como tudo que diz respeito a Baudrillard, tal
noção esbarra numa leitura «apocalíptica» de sua obra. 2 Juremir Machado da Silva é jornalista e historiador, formado pela PUC-
RS; doutor em Sociologia pela Universidade René Descartes, Paris V,
Sorbonne. Leciona nos cursos de graduação e de mestrado da Faculdade
dos Meios de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Publicou sete livros: A miséria do
cotidiano, Porto Alegre, Artes & Ofícios, 1991, Muito além da
liberdade, Porto Alegre, Artes & Œfícios, 1991, ambos sobre o tema dos
paradigmas moderno e pós-moderno; A noite dos cabarés, Porto Alegre,
Mercado Aberto, 1991; A prisioneira do castelinho do Alto da Bronze,
Porto Alegre, Artes & Ofícios, 1993; O pensamento do fim do século,
Porto Alegre, L&PM, 1993; Cai a noite sobre Palomas, Porto Alegre,
Sulina, 1995, e Anjos da perdição — futuro e presente na cultura
brasileira, Porto Alegre, Editora Sulina, 1996.. 3 FEYERABEND, Paul. Contra o método, Rio de Janeiro, Francisco Alves,
1977, p. 141.
Quando todos são eruditos, não há mais erudição.
Quando todos já foram educados, a educação torna-se uma
tarefa ordinária. E então? Que fazer do tempo livre? Uma
parte fundamental e culta da humanidade continua a viver na
ilusão da sociedade perfeita. A outra, mastiga o pasto
servido pela mídia, que conhece cada vez mais as
preferências dos consumidores, e sente-se feliz por
enganar, durante algumas horas, a fatalidade do enfado. O
entretenimento não é um mal necessário, mas o vírus
salvador da era massificada do tédio. Delírio, absurdo,
falsa teoria? Possivelmente. A exemplo de todas as outras,
que tudo explicam e nada esclarecem. A teoria é o reino da
doxa. Nada mais.
Apenas um exemplo. Os escritores escrevem para que os
jornalistas os julguem. Estes, formados por professores
pertencentes a alguma linha teórica, legitimam o que
corresponde à matriz que carregam na mente e rejeitam tudo
o que contesta essa grade. Últimos herdeiros do
positivismo, os jornalistas acreditam ainda em verdades
científicas, pré-popperianas, e contestam em nome da
ciência tudo o que esta nega. Teoria, quer-se uma para
viver... Mas o sonho jornalístico de algo para além do
entretenimento pressupõe uma esfera superior da condição
humana. Neste ponto, Jean Baudrillard entra em cena. Por
que pôr no lugar do vazio uma esperança religiosa?
Implacável, Jean Baudrillard não deixa ninguém
indiferente ao pensamento devastador que dissemina como um
vírus do mal necessário contra a hipocrisia do bem
castrador. Apocalíptico para uns, reacionário para outros,
herdeiro da Escola de Frankfurt, segundo os mais
delirantes, o sociólogo francês é antes de tudo um
extraordinário franco-atirador. Numa época de
«politicamente correto», Baudrillard escolheu estar na
contramão das teorias críticas para examinar os «fenômenos
extremos» com a força da ironia.
Tentar entender o novo com ajuda de velhas categorias,
de resto, é o caminho mais curto para a recusa. No outono
da modernidade, a busca do paraíso perdido da produção de
sentido transforma-se, com freqüência, em ressentimento
contra a circulação desenfreada de signos. A explosão
tecnológica possibilita relações que escapam ao controle
concreto das autoridades governamentais e à dominação
teórica tradicional dos intelectuais. Sob os escombros
conceituais do passado, em estado de penúria analítica,
jazem os instrumentos que deveriam iluminar o futuro e
fundar o amanhã da harmonia.
A lógica comunicacional moderna deveria produzir
sentido. Às ciências humanas, caberia descobrir o Sentido
da História. Ora, Jean Baudrillard, em seu delírio
filosófico iconoclasta, aponta para a entrada na era da
irrealidade, estádio viral da circulação sígnica, no qual
«o valor irradia em todas as direções, em todos os
interstícios, sem referência ao que quer que seja, por pura
contigüidade »4. Não é apenas a referência do signo que se
perde, mas também a capacidade última de decifração do
objeto pelas ciências. A certeza cede lugar à incerteza e
pode-se « substituer enfin à l’éternelle théorie critique
une théorie ironique »5.
O primeiro grau dessa « teoria irônica » poderia ser a
lei da refutação universal, segundo a qual toda a tese
nasce para ser invalidada, cujo núcleo desvela o ápice da
vertigem da reflexão: o saber nasce para a negação do
outro. O saber é signo em circulação. Realidade e ficção
entrelaçam-se. A construção imaginal de teorias torna-se um
exercício estético sustentado por evidências razoáveis. De
onde, a possibilidade do cruzamento total, o
estabelecimento fictício de axiomas (premissas admitidas
4 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal - ensaio sobre os fenômenos
extremos. Campinas, Papirus, 1990, p. 11. 5 ___ Les stratégies fatales. Paris, Grasset, 1983, p.101.
como universalmente verdadeiras sem exigência de
demonstração) viróticos:
Axiomas:
* Todo conhecimento é signo puro em pura circulação.
* Na mecânica científica, esclerosada ou não, o fazer
intelectual apologiza o medíocre (aplicação) ou aposta na
obsolescência (renovação).
* Toda idéia existe para ser negada, bloqueando a
estagnação.
* O conhecimento é sempre antropofágico e parnasiano.
* O dispositivo da construção do conhecimento não se
assenta sobre a dúvida, mas sobre a certeza de que toda
certeza será negada. E toda dúvida.
* A lei da sedução impõe que uma idéia dominará o mercado
em razão do seu potencial de novidade, engenhosidade,
artifício e carência de negações revitalizadoras.
* Na vertigem do movimento, espiral, tudo é sustentável. E
nada perpetuável. O tempo da sedução é fugaz.
* Todo teórico é um impostor.
* Não há eterno retorno: existe descontinuidade e
contingência.
* O conhecimento é a abstração, o deslocamento de conceitos
e o prazer do pensamento. A ciência das idéias é vazia de
sentido. Somente a sociedade pode saber algo de si. Mas não
sabe.
* As humanidades, como a arte e o esporte, retiram o homem,
temporariamente, da perplexidade universal. E devolvem-no a
ela com um acréscimo de signos.
* A inteligência não é um mérito individual. Não se pode
inventá-la ou escolhê-la. O intelectual, como a estrela
esportiva, é portador de algo que o supera. Ambos merecem a
mesma reverência. Ambos são agidos por uma qualidade que
lhes é exterior. O destaque auferido é a conseqüência da
lei do ritual: o conjunto de práticas que historicamente
angariam valor social.
* A sedução das idéias sempre derrota os experts. A vitória
de uma idéia favorece, primeiro, um indivíduo ou grupo. Ao
fim, ela explicita a derrota coletiva. O vencedor de hoje
será o perdedor de amanhã.
* Toda adesão a uma idéia é aleatória: a ideologia é
contingente e, a curto prazo, os valores equivalem-se. A
posteridade é um fetiche.
* O relativismo não tem qualquer importância: os experts
podem tornar absoluto qualquer premissa relativizadora, por
consenso. O absoluto, portanto, é a suprema vitória do
relativismo.
* A lei do ritual, princípio da ação sócio-intelectual,
parte da necessidade de controle do vazio, da vaidade, do
absurdo e, dialeticamente, resolve-os pela mobilização
intelectual através da obsolescência. O importante é a
prática gregária ou individual, o salto para a frente, a
desatenção em relação ao desespero, o esquecimento da
passagem do tempo, a distração frente à morte, mesmo que
com base na ilusão do entendimento. Poder, desejo,
distinção e vaidade são instrumentos de um interesse, nem
sempre consciente, mais nobre: a atividade.
* A atividade, qualidade do movimento, alimenta-se do
conflito, dos símbolos e das imaginárias soluções para os
problemas expostos. Ela ritualiza, estipula honrarias,
permite trocas, intercâmbio de afetos, de ódio, forja
referenciais, caminhos e estações de chegada. Seduz, aquece
e põe a máquina em movimento. Que importa se isso ocorre a
partir da ilusão?
* A sedução plena reside na auto-ilusão da luz. A vertigem
pós-moderna, que atenta contra o mecanismo ilusionista da
Verdade, coloca em risco a eficiência da engrenagem. A
mentira, quanto à capacidade da ciência de produzir
verdades, é, talvez, a salvação da humanidade. É preciso
que se salve a verdade com uma mentira.
* O ignorante sabe tanto quanto o sábio: nada. Mas ambos
acreditam que sim.
* As humanidades justificam-se pelo valor simbólico,
geração de ilusão, e não pela qualidade de suas
investigações.
* Apenas uma sócio-epidemiologia da comunicação poderá
tentar dar conta da fatalidade viral da circulação sígnica6.
A utilização dessa forma discursiva não pretende
causar escândalo nem invalidar os esforços teóricos
legítimos e valiosos feitos permanentemente pelos
intelectuais. Sequer está em questão uma pretensão
derrisória de originalidade. Em contrapartida, a lógica
binária do raciocínio moderno continua a exigir abordagens
frontais e desestabilizantes. A crítica pode ser um simples
atalho para o obscurantismo. O próprio Jean Baudrillard já
se encarregou de enfatizar radicalmente o caráter ilusório
da realidade: « La réalité, en général, est trop évidente
pour être vraie »7. A frase sugere um retorno à oposição
essência/aparência.
6 O jogo de axiomas fictícios foi desenvolvido antes em MACHADO DA
SILVA, Juremir. Cai a noite sobre Palomas (romance de idéias). Porto
Alegre, Sulina, 1995, pp. 229-231. A transposição alterada desse lance
de dados da ficção para um texto teórico segue a lógica da
reversibilidade total de Jean Baudrillard e procura levar às últimas
conseqüências a teoria irônica. 7 BAUDRILLARD, Jean. La pensée radicale. Paris, Sens & Tonka, 1994, p.
17. Baudrillard, de resto, na mesma obra, considera a realidade « uma
cadela » (p.21), sem solidez e totalmente permíssivel à desordem.
No estádio viral da circulação sígnica, em que tudo
contribui para a ilusão de esclarecimento, o sentido habita
em outro lugar. Baudrillard não está imune à ironia. A teia
espetacular de signos tecida por ele parece, em
determinados momentos, buscar a inocência perdida, quando o
homem não era dominado pelo objeto ou escravizado pela
máquina. O sentido integra a vontade trágica de viver, o
vitalismo que não exige transcendência e nutre-se das
contradições e das descontinuidades espontâneas do
cotidiano. A teoria irônica pode e deve acoplar-se ao
formismo: « O formalismo conceitual empenha-se em dar
sentido a tudo o que observa; assim, dá razões e submete à
razão - ao passo que o « formismo » se contenta em delinear
grandes configurações que englobam, sem reduzi-los, os
valores plurais e às vezes antagônicos da vida corrente »8.
A mensagem é o meio
O sentido arrancado das palavras de Michel Maffesoli é
um não-sentido, uma falsa ontologia, um silêncio sobre a
essência que permite a explosão vitalista e, mais ainda,
que se faz à revelia de qualquer teleologia. Maffesoli não
hesita: « ...as aparências, sob todas as formas possíveis,
não devem ser rejeitadas, visto que « em potência » remetem
8 MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum - compêndio de sociologia
compreensiva. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 115.
à forma divina »9. Ao divino social. Este tipo de
interpretação calcada no cotidiano encontra ainda
resistência. Adorno e Horkheimer dominam o pensamento
crítico , refratário à ironia pós-moderna, com a força da
autoridade que impõe sentido e rejeita o novo em nome da
desconfiança relativa à técnica.
Nada mais característico desse positivismo travestido
de lucidez que a imprecação de Adorno e Horkheimer contra o
prazer: « S'amuser signifie être d'accord (...) S'amuser
signifie toujours: ne penser à rien, oublier la soufrance
même là où elle est montrée. Il s'agit, au fond, d'une
forme d'impuissance »10. É lícito, ao contrário, sustentar
que o prazer integra as estratégias de afirmação dos
indivíduos e grupos. Mais do que de estratégia, campo da
razão instrumental, trata-se do vivido. Os homens simples
parecem realizar melhor a distinção entre a diversão e a
política.
Para Adorno e Horkheimer "le plaisir favorise la
résignation qu'il est censé aider à oublier "11. Em
conseqüência, a compreensão do lúdico estimulado pelas
novas tecnologias da comunicação e pelo imaginário pós-
moderno (a Internet é um vasto campo de jogos) esbarra na
9 Idem, p. 117. 10 ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. La dialectique de la raison . Paris,
Gallimard, 1974, p. 153. As massas seriam fantoches nas mãos da
indústria cultural, impotentes para rebeliões mais fortes, e voltadas,
cada vez mais, na direção do privado. Divertir-se, dizem os pensadores,
é uma « fuga diante da última vontade de resistência que a realidade
pode ainda ter deixado subsistir em cada um ». 11 idem, p. 151. O divertimento serviria simplesmente a encobrir a
realidade da exploração.
resistência pautada pela ideologia do sofrimento. Basta
lançar um olhar sobre o pensamento de Alfredo Bosi, por
exemplo, para ter-se uma rápida noção do curral teórico da
modernidade: "Por que insistir na denominação pós-moderno
aplicada à atual indústria das aparências?"12. Nesse tipo de
postura reside o desejo da retomada do sentido devorado
pela aceleração dos tempos e dos objetos. Sentido que, de
resto, nunca significou liberdade, mas apenas uma promessa.
O grande problema está justamente aí: o lúdico como
inimigo da « revolução ». De uma revolução cada vez mais
impossível. Nostalgia de um futuro idolatrado. Os meios de
comunicação acusados velada ou abertamente de forjar visões
de mundo da resignação. Fazem-no. Mas são também feitos
pela vertigem dos signos que os ultrapassa e canibaliza. A
modernidade pretendia uma alta definição identitária. A
pós-modernidade enlaça os indivíduos em grupos de baixa
densidade histórica e de alto magnetismo identificatório.
Esperava-se que o conteúdo fosse a mensagem. Mcluhan
embaralhou as cartas13. O meio seria a mensagem. Essa
interpretação perdeu sua potencialidade original e
converteu-se numa maneira mais sofisticada de dizer que os
meios silenciam os emissores. Na pós-modernidade, a
12 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização . São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 354. 13 Mcluhan, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.
São Paulo, Cultrix, 1969, p. 21. O revolucionário pensador começa este
texto de maneira sintomática: « Numa cultura como a nossa, há muito
acostumada a dividir e estilhaçar todas as coisas como meio de
controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um tanto chocante lembrar
que, para efeitos práticos e operacionais, o meio é a mensagem ».
mensagem é o meio. A mensagem é um meio de gerar
« socialidade »14.
A socialidade implica um vitalismo transbordante que
foge às determinações moralistas e às projeções futuristas
emancipatórias. Na socialidade, o lúdico marca com fogo a
aventura humana. Quando a mensagem é meio, o dito engendra
ligações, laços, empatia, uma cultura do sentimento, uma
estética da afetividade. A mensagem é meio de sentir, de
atrair, de seduzir, de reunir, de colocar em conjunto, de
fazer comungar, de distrair, de levar ao êxtase gratuito.
A mensagem é meio de enunciar a vontade de estar-com, o
desejo de contatar, a pulsão tátil mediada pela técnica.
Nesse sentido, pode-se especular sobre a efervescência
alcançada nos diálogos (e relações) travadas nos chats da
Internet.
A manipulação das massas chafurda nas contradições do
discurso que lhe dá sustentação15. A massa contém ao mesmo
tempo o excluído absoluto das sociedades e o indivíduo das
camadas médias que manipula o seu computador até o orgasmo.
A teoria crítica dos meios de comunicação tende a condenar
14 MAFFESOLI, Michel. À sombra de Dioniso - contribuição para uma
sociologia da orgia. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 17. O sociólogo
francês entende por socialidade « uma expressão cotidiana e tangível da
solidariedade de base, vale dizer, do societal em ato ». O societal é
um aspecto fundamental do estar-junto, da relação de partilha entre
indivíduos livres para identificações sucessivas e « infiéis ». 15 BAUDRILLARD, Jean. Les stratégies fatales. Op. cit., p. 104: « Les
masses ne sont pas de tout un objet d’oppression et de manipulation .
Les masses n’ont pas à être libérés et elles ne le peuvent pas. Toute
leur puissance (transpolitique) est d’être là comme objet pur, c’est-à-
dire d’opposer leur silence, leur absence de désir à toute velléité
politique de les faire parler ».
todo esse amplo espectro ou, na melhor das hipóteses, a
querer salvá-lo da alienação. Se Baudrillard continua a
admirar Mcluhan e a refletir sobre o meio como mensagem,
Nicholas Negroponte é categórico: « Le média a cessé d’être
le message »16. Não basta afirmar isso. Urge apostar na
inversão total dos paradigmas: a mensagem é o meio. Não se
trata, porém, de voltar ao fetiche do conteúdo iluminista.
A mensagem é o meio (modo) de fomentar alianças
transitórias através de instrumentos técnicos (canais) de
pôr em relação. Eis o profundo relativismo tecnológico.
Em A Transparência do Mal, Jean Baudrillard parece
confortar o pesadelo dos apocalípticos: « A imagem do homem
sentado, contemplando, num dia de greve, sua tela de
televisão vazia, constituirá no futuro uma das mais belas
imagens da antropologia do século XX »17. A leitura rigorosa
do filósofo da metástase indica, entretanto, que o jogo das
palavras tripudia sobre a ilusão da denotação. Há na frase
citada acima uma visão que se debruça sobre o passado (o
século XX) e deixa entrever um outro imaginário não-
delineado (certamente pior, em se tratando de Baudrillard);
em todo caso, há uma conotação de movimento. A ironia
ordena lembrar que a televisão será consumida pela
metástase tecnológica (talvez as greves não escapem) e dará
lugar a um híbrido interativo capaz de tornar caducas as
mais graves ou doces previsões dos cientistas sociais. O
16 NEGROPONTE, Nicholas. L’homme numérique. Paris, Robert Laffont, 1995,
p. 83. 17 BAUDRILLARD, J. A transparência do mal. Op. cit., p. 19.
futuro pertence ao desconhecido que apenas sinaliza a sua
existência.
Rumo à perdição imaginal
O dispositivo da construção do conhecimento não se
assenta sobre a dúvida, mas sobre a certeza de que toda
certeza será negada. E toda dúvida. Depois de séculos de
desesperada procura da identidade, os homens da condição
pós-moderna rumam para a perdição imaginal que poderá,
talvez, livrá-los da condenação original: o mito do amanhã
redentor. A conquista do direito ao lúdico como fonte do
prazer imediato e sem culpa ainda não atingiu o seu grau
máximo de exploração. As carpideiras do passado choram em
cima do corpo vivo do hedonismo. Liberados do espaço pelo
universo do virtual, os seres deste final de milênio pagam
tributo aos adores do tempo.
Frederic Jameson refere-se em tom de reprovação a uma
« nostalgia pelo presente »18, o que serve para recolocar em
cena a expectativa romântica e datada de um futuro pré-
fabricado. Nunca é demais lembrar os ensinamentos de Edgar
Morin a respeito da necessidade de construção de um mundo
melhor (dado que o melhor dos mundos era uma perversão do
18 JAMESON, Frederic. Pós-modernismo - a lógica cultural do capitalismo
tardio. São Paulo, Ática, pp. 285-301.
imaginário utópico). Em tempos de bruma, deve-se navegar
sem visibilidade: « ... o verdadeiro realismo é aquele que,
embora levando em conta as certezas locais, as
probabilidades e as improbabilidades, se funda sobre a
incerteza do real »19. A trama do « real », esse
fragmentário e gelatinoso elemento de imbricação imaginária
coletiva, funde o desejo e o desejante na atmosfera do
irrealizado. Nela, o tempo é apenas um horizonte fugidio,
uma criação precária dos sentidos.
Na contramão do medo da imagem e do horror ao
hedonismo, as novas tecnologias fomentam tempos de jogo. O
lúdico não é explicável por uma finalidade que lhe seja
exterior. As perspectivas finalistas (funcionalistas)
extirpam a natureza peculiar do prazer em nome de um outro,
de uma função, de uma exterioridade justificável em si. O
jogo é circulação, superação, inutilidade, evasão. Quebra
da rotina, o jogo fundamenta uma relação particular de
emoção e entrega ao ato de brincar. Em certo sentido, o
jogo, « virtual por natureza », ocorre fora do tempo e do
espaço, pois o indivíduo retira-se da ordem do cotidiano
para navegar na especificidade dramática e estética de uma
espécie de faz-de-conta.
19 MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Porto Alegre,
Sulina, 1995, p. 139.
Todas as explicações totalizantes racionalistas do
lúdico pecam por reducionismo. O jogo não é sintoma de
nada. As tentativas moralistas de esquerda ou de direita
para enquadrar civicamente o esporte, por exemplo, resultam
na adulteração da própria atitude lúdica. De resto, a
mercantilização do jogo, outra variante grave da
manipulação da liberdade e da espontaneidade do lúdico, não
consegue suprimir as brechas que consagram o « artista » na
sua ousadia e impulsionam o observador-participante à
efervescência irredutível da paixão. Johan Huizinga, autor
do talvez mais belo e célebre ensaio sobre o jogo, alertou
que « nous jouons, et nous sommes conscients de jouer: nous
sommes donc plus que des êtres raisonnables, car le jeu est
irrationnel »20
O racionalismo, perversão da racionalidade, consuma a
irracionalidade. O não-racional engloba inegavelmente
algumas das facetas da complexidade humana. O primarismo
cartesiano que obriga a mutilar o homem para salvá-lo
simbolicamente enquanto ser diferenciado impede a
compreensão de fenômenos banais, mas relevantes justamente
pela banalidade, do vivido. No fútil, no irrelevante,
reside uma parte expressiva da capacidade humana de evasão,
20 HUIZINGA, Johan. Homo ludens - essai sur la fonction sociale du jeu.
Paris, Gallimard, 1951, P. 20.
o que não quer dizer de descomprometimento ou de
incapacidade de entendimento dos dilemas sociais. A evasão
faz parte do homem tanto quanto a sua aptidão criadora.
Huizinga sintetizou: « Le jeu est plus ancien que la
culture»21. O lúdico precede a razão e o finalismo.
Na era da circulação viral de signos, que servem a
múltiplas finalidades, da informação ao desperdício, as
tecnologias do virtual atualizam o jogo como fator
constitutivo do humano demasiado humano. A neutralização do
manipulador, da qual fala ironicamente Baudrillard,
acontece pela evasão lúdica e pela indiferença corrosiva ou
cínica. A própria produção do conhecimento, com seus
rituais e distinções, paga tributo aos mecanismos amplos do
jogo. Quem sabe se a imagem antropológica mais importante
das primeiras décadas do século XXI não será a de um ancião
com seu neto, mergulhados numa cyber-viagem construída a
cada instante pelo jogo de imaginação dos dois, num
testemunho profundo de empatia?
Se tal projeção parece ingênua em função de seu
otimismo, é correto também afirmar que as previsões
catastrofistas a respeito da comunicação de massa chocam-se
na atualidade com a reversibilidade desconcertante do boom
tecnológico. Surge no horizonte, ao menos como
21 Idem, p.15.
probabilidade, o temor contrário: a fragmentação capaz de
eliminar a comunicação de massa e pôr no seu lugar a
segmentação perversa, a privatização quase absoluta da
troca de mensagens. Ou, dito de outra forma, a disseminação
de signos a ponto de sobrepor o caos a qualquer princípio
de organização; nesse caso, a babel venceria a ordem
construtora de sentidos e de identificações entre parceiros
de uma aventura comunicacional.
Michel Maffesoli tem visto na socialidade o antídoto
contra todas as totalizações que amputam ao homem o seu
caráter lúdico e original: « A socialidade de todos os dias
que tentamos abordar é justamente o lugar onde a potência
social tenta se exprimir »22. Essa reflexão anterior aos
problemas suscitados pelas novas tecnologias da comunicação
antecipa a perspectiva mais frutífera para as análises que
o futuro imediato exige. Afinal, como destaca Maffesoli,
« para além da moral estreita do dever-ser, existe um
imoralismo dinâmico que traduz uma profunda exigência
ética, cujo único sentido, não nos esqueçamos, é o de viver
junto, viver coletivamente »23.
Muitos se espantam diante dessa apologia do coletivo
quando o contrário parece ser evidente. O novo esconde-se,
22 MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco,
1984, p. 48. 23 Idem, p.48.
por vezes, na aparência. Os caçadores de essências não
conseguem ver o que a tela lhes mostra. Não compreendem
porque pretendem explicar; não mostram porque desejam
demonstrar; não descrevem porque só acreditam no
julgamento. As trocas travadas em cyber-grupos indicam, ao
menos em certo grau, um intenso gosto pelo estar-junto
virtual cujo meio é a mensagem. Vale completar o pensamento
de Maffesoli: « É normal que frente a imposições que tendem
a atomizar os indivíduos ou as famílias restritas, exista
um mecanismo de circulação capaz de ultrapassar essa
atomização; o que chamamos de libertinagem ou orgia é a
expressão desse sentido ético profundo »24.
Orgia de signos em movimentos, de contradições e de
paradoxos, de teses e de antíteses, de jogos e de
tecnologias, de sentidos e de éticas. Orgia viral.
Metástase orgiástica. Câncer da realidade moderna. Orgia
posterior à orgia. Verdadeira pós-orgia25. Se a técnica
espreita como monstro, assustador por « essência », seduz,
ao mesmo tempo, como deusa da estética e de um novo
potencial lúdico para o qual tudo é movimento perpétuo. No
caminho tortuoso da luz que já não ilumina, o homem que
« ousa saber » aprende a cada dia que deve ousar mais ainda
24 Ibid, p.48. 25 Sobre a noção de pós-orgia, ver BAUDRILLARD, Jean. A transparência do
mal. Op. cit., pp. 9-19.
para sair de si e compreender o Outro na torrente de afetos
e símbolos que o engolfam.
Uma teoria da perdição necessita agarrar o signo na
fugacidade do vôo. Precisa voar com o signo na eternidade
irredutível do gesto. Uma teoria da perdição ignora o
dever-ser para mostrar a cultura na complexidade do
múltiplo. O sentido perdeu o sentido. A hegemonia do Uno,
ambição paradoxal do dualismo moderno, sofre a corrosão
letal da dialógica da pluralidade. Neste cruzamento de
reflexos, espelho precário de diálogos não-autorizados com
interlocutores soberanos, a colagem, explícita e
insistente, cristaliza a reverberação inexorável desta
época de maldição da Verdade. A « teoria irônica » põe a
crítica em relação com os seus limites. Tudo é possível,
epistemologicamente falando.
O fundamento da teoria da perdição é essa ironia que
relativiza, desconstrói, dessacraliza, desmitifica,
pressupõe o inadmissível, ri de si mesma. A ciência subiu
ao altar da razão e perdeu o sentido do jogo, embora esteja
perpassada por lances especulativos da ordem do acaso e da
intuição. No discurso das ciências humanas, onde o símbolo
é a única realidade, a perdição instalou-se desde a origem.
No lugar do objeto, mora a interpretação: a morte do
analisado que inventa um outro, o texto colocado no espaço
antes ocupado pelo cadáver daquele de quem se fala, que
jamais fala, que não existe. O texto substitui o vivido. O
texto usurpa o poder de Deus. Texto demiúrgico.
Reencontro com o vivido, mesmo se amarrada pelo seu
caráter de simulação, uma teoria da perdição implica a
ruptura com a linearidade do juízo instaurador de uma
unidade moral. Quando todos os referenciais naufragam, a
teoria não pode continuar a ostentar a saúde que já não
possui. Antes de emitir suas condenações habituais, precisa
despir-se para entrar na arena orgiástica. No vaivém das
idéias, Jean Baudrillard pode ainda contribuir para o
fechamento: « Ainsi partout les objets, les enfants, les
morts, les images, les femmes, tout ce qui fait office de
reflet passif dans un monde à l’identique, est prêt à
passer à la contre-offensive. Déjà, il nous ressemblent de
moins en moins... »26. Já, ninguém se parece consigo mesmo.
26 BAUDRILLARD, Jean. Le crime parfait. Paris, Galilée, 1995, p. 205.