Conceitos - Le Corbusier

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Le Corbusier O ESPÍRITO NOVO EM ARQUITETURA (1924) Senhoras e senhores, Queria, esta noite, tentar mostrar que a arquitetura da época moderna tem abandonado suas vacilações, que possui a técnica sã e poderosa capaz de sustentar uma estética, já formulada, por outra parte, por prescrições profundas; técnica absolutamente nova, pura e homogênea; estética que é o extrato de uma época totalmente renovada e que, depois de muitas guinadas e caminhos opostos, tem conseguido alcançar, no mais fundo de nós mesmos, as bases essenciais de nossa sensibilidade, as bases puramente humanas da emoção. E talvez será então quando tomaremos consciência de que esta nova arquitetura, assim condicionada, é passível de grandeza e de acrescentar um novo elo na linha das tradições que funda no passado. Vou começar fazendo desfilar diante de seus olhos uma série de fatos. 1. Surgem objetos novos, assombrosos, temerários, animados de grandeza, comovendo-nos, perturbando nossos costumes. 2. Reina a precisão. A economia manda. Invencivelmente somos atraídos a um novo eixo. Começou outra época. Na atmosfera pura do cálculo voltamos a encontrar certo espírito de clareza que animou o passado imortal. No entanto, a preguiça domina nossos atos e nossos pensamentos: pesadumes, recordações, desconfiança, timidez, medo, inércia. 3. Um século de ciência conquistou meios poderosos e desconhecidos até então. A matéria está em nossas mãos. Este século do aço é novo, diante dos milênios. Em todos os continentes começa um imenso trabalho. Este espírito se comunica de povo em povo e o progresso desencadeia suas conseqüências. 4. Por todas as partes surgem interrogações. Sinais de inquietação. Testemunhos do desejo de conhecer. Presságios de atos que querem ser concisos e claros. 5. O homem está desejando. Seu coração, sempre um coração de homem, busca a emoção muito além da obra utilitária, aspira a satisfações desinteressadas. Dos novos fatos de desprende uma poesia violenta e

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Estudos sobre a arquitetura de Le Corbusier

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  • Le Corbusier O ESPRITO NOVO EM ARQUITETURA (1924) Senhoras e senhores, Queria, esta noite, tentar mostrar que a arquitetura da poca moderna tem abandonado suas vacilaes, que possui a tcnica s e poderosa capaz de sustentar uma esttica, j formulada, por outra parte, por prescries profundas; tcnica absolutamente nova, pura e homognea; esttica que o extrato de uma poca totalmente renovada e que, depois de muitas guinadas e caminhos opostos, tem conseguido alcanar, no mais fundo de ns mesmos, as bases essenciais de nossa sensibilidade, as bases puramente humanas da emoo. E talvez ser ento quando tomaremos conscincia de que esta nova arquitetura, assim condicionada, passvel de grandeza e de acrescentar um novo elo na linha das tradies que funda no passado. Vou comear fazendo desfilar diante de seus olhos uma srie de fatos. 1. Surgem objetos novos, assombrosos, temerrios, animados de grandeza,

    comovendo-nos, perturbando nossos costumes. 2. Reina a preciso. A economia manda. Invencivelmente somos atrados a um

    novo eixo. Comeou outra poca. Na atmosfera pura do clculo voltamos a encontrar certo esprito de clareza que animou o passado imortal. No entanto, a preguia domina nossos atos e nossos pensamentos: pesadumes, recordaes, desconfiana, timidez, medo, inrcia.

    3. Um sculo de cincia conquistou meios poderosos e desconhecidos at

    ento. A matria est em nossas mos. Este sculo do ao novo, diante dos milnios. Em todos os continentes comea um imenso trabalho. Este esprito se comunica de povo em povo e o progresso desencadeia suas conseqncias.

    4. Por todas as partes surgem interrogaes. Sinais de inquietao.

    Testemunhos do desejo de conhecer. Pressgios de atos que querem ser concisos e claros.

    5. O homem est desejando. Seu corao, sempre um corao de homem,

    busca a emoo muito alm da obra utilitria, aspira a satisfaes desinteressadas. Dos novos fatos de desprende uma poesia violenta e

  • radiante. O corao tenta conciliar os fatos brutais com os padres profundos e ntimos da emoo.

    Vocs acabam de ver na tela uma srie heterclita de imagens; esta srie, chocante ao extremo, surpreendente em todo caso, constitui o espetculo quase cotidiano de nossa experincia; e estamos em um momento em que a cada dia se propem tais inovaes perturbadoras, contrastes to surpreendentes que ficamos transtornados e, no mnimo, sempre fortemente comovidos.

    Vocs viram antes o navio Paris, por exemplo, que lhes deve ter

    parecido algo notvel, magnfico; depois viram o salo deste mesmo navio que, sem dvida, lhes doeu na alma: parece, de fato, assombroso encontrar, no corao de uma obra to perfeitamente ordenada, uma tal antinomia, um tal contrrio, uma falta de unio, a bem dizer uma tal contradio: divergncia total entre as linhas mestres do navio e sua decorao interior; as primeiras so a obra cientfica dos engenheiros, a outra, dos chamados decoradores especialistas.

    Tambm viram, na seqncia, as salas dos castelos de Fontainebleau e

    Compigne, assim como a galeria Colonna de Roma: obras clebres, cheias de valores diversos, que pertencem a outra poca: comparem-nas com o que, no nosso tempo, constitui o marco de nossa vida; parecem chocantes, deslocadas, e levam nosso esprito a admitir, com toda naturalidade, que em outra parte onde devemos buscar o aprendizado.

    Mas em nossas escolas s se d aos alunos um ensino baseado nestas

    obras de outro tempo: assim se compreende facilmente o mal-estar que reina nos espritos e o absoluto estado de crise em que nos encontramos.

    A seguir, lhes mostrei interiores de bancos americanos: so de tal pureza,

    de tal preciso, de tal convenincia que estamos perto de ach-los belos. Foram projetados por um arquiteto, certamente muito talentoso, que parece estar animado pela lgica e por uma grande clareza de esprito: no entanto, na Bankers Magazine, que publica suas obras, este senhor acrescentou um convite aos leitores para visitar-lhe e, para atra-los, no achou nada melhor que publicar o interior do seu escritrio de trabalho. E nesta foto se v uma ambiente mobiliado com bas Renascimento e, num canto, at uma armadura de guerreiro, alabarda em punho, uma imensa mesa Lus XIII com enormes ps torneados e esculpidos, tapearias...O homem que moblia assim seu escritrio o mesmo que concebeu estes interiores de bancos, obras de lgica pura! A est o desacordo.

    Mais uma coisa. No ano passado visitei, nos Alpes, os trabalhos de um

    dique imenso: este dique ser, certamente, uma das obras mais belas da

  • tcnica moderna, uma das coisas mais subjugantes para quem tem a possibilidade de se entusiasmar: sem dvida o lugar grandioso, mas o efeito produzido se deve, sobretudo, ao esforo combinado da razo, da inveno, do talento e da ousadia. Um amigo me acompanhava, um poeta: tivemos o azar de comunicar nosso entusiasmo aos engenheiros que nos acompanhavam pela obra: tudo o que conseguimos foi riso e piadas, diria at inquietao. Aqueles homens no nos levaram a srio, talvez dissessem que estvamos loucos. Tentamos explicar que, se achvamos maravilhoso seu dique, era porque compreendamos o que a envergadura de tais trabalhos, trasladada s cidades, por exemplo, poderia trazer como transformaes radicais. E, de repente, estes homens, que manuseiam o positivo, o lgico e o prtico, exclamaram: Mas vocs esto querendo destruir as grandes cidades!, so uns brbaros!, se esquecem das regras da esttica!. Eram totalmente diferentes de ns dois, pelo seu prprio estado de esprito: acostumados a conceber e executar obras de puro clculo, revelaram-se incapazes de imaginar, num campo diferente do seu, as conseqncias de sua prpria atividade; transformaram-se em homens de outro tempo.

    Na verdade, vivemos um transtorno, e somos obrigados a fazer uma

    reviso total de valores se queremos tentar ver claro na atual situao e chegar a constatar que alcanamos um conceito diferente daquele que podiam ter nossos pais e nossos avs; se queremos chegar a apreciar que a vida que levamos radicalmente oposta, distinta em todo caso, do que foi a vida das geraes que nos precederam.

    Estamos diante de um acontecimento novo, de um esprito novo, mais

    forte que tudo, que passa por cima de todos os costumes e tradies e que se difunde pelo mundo inteiro; as caractersticas precisas e unitrias deste esprito novo so o mais universais e humanas que podem e, no entanto, jamais foi to grande o abismo que separa a antiga sociedade da sociedade maquinista em que vivemos.

    O nosso sculo e o sculo anterior opem-se a 400 sculos anteriores: a

    mquina, baseada no clculo, que nascera das leis do universo, erigiu, frente s divagaes possveis do nosso esprito, o sistema coerente das leis da fsica; impondo suas conseqncias nossa existncia e forando nosso esprito a um determinado sistema de pureza, modificou o marco de nossa vida: abriu-se um fosso entre duas geraes.

    Diante deste fosso, devemos refletir, parar e tentar ver o que nos cabe

    resolver para comearmos a criar o mecanismo verdadeiramente atual da nossa existncia.

    Sem medir muito exatamente os feitos, somos, neste momento,

    indivduos revolucionados. Mal o percebemos. Participamos de uma vida rpida, apressada, dura, penosa, muitas vezes estressante, temos a

  • impresso de que isto pode ser sempre assim, que cada dia se torne talvez um pouco mais difcil, mas no temos a sensao, repito, de que estamos completamente revolucionados com respeito ao perodo anterior.

    Somente um olhar lanado histria vai nos permitir captar tal mudana.

    De fato, se v, na vida dos povos, certos momentos em que a curva espiritual encontra seu ponto de inflexo, marcando a transio de uma forma de pensar a outra, de uma determinada cultura a outra totalmente diferente.

    Permitam-me, para afirmar o que digo, tomar como exemplo a Idade

    Mdia, que se seguiu ao perodo romnico, por sua vez conseqncia de toda a cultura antiga. A transio aconteceu, no se pode dizer bem a data precisa - deu-se entre o ano 1000 e o 1200: homens vindos de todas as partes, novos povos, acabavam de misturar-se com povos antigos, um caos geral...mais tarde, quando passa o tempo, com os sculos de distncia necessrios, nos damos conta, num belo dia, que intervieram modos de pensar e atuar, modificando radicalmente tudo o que havia existido at ento.

    Se h um campo onde este fato flagrante o da arquitetura, pois

    oferece testemunhos caractersticos que escaparam aos rigores do tempo. A arquitetura romnica se caracteriza, como sabem, por aberturas de

    meio ponto, denotando o uso de formas de geometria primria, tradio de cultura antiga. Trs sculos depois, eis que passou-se, sem demonstrar-se, a um sistema bem distinto, de formas muito complicadas, revelando uma esttica completamente diferente. Foi uma revoluo considervel, contudo, no momento em que se produzia, ningum mediu a reviravolta.

    E esta mudana atingiu muito mais do que geralmente se imagina. Na poca romnica, a cidade era composta por prismas simples; entre as

    formas desenvolvidas nas casas, dominava a horizontal: a geometria mais pura se afirmava em todas as partes, at chegar a conferir paisagem uma atitude muito precisa. Mal passado um sculo, a cidade e a paisagem tinham se transformado, oferecendo ao olhar um aspecto radicalmente oposto.

    Estamos no outono, plantam-se jardins: nos ltimos dias plantei dois.

    Vocs podero constatar que o esprito humano age no s sobre as obras puramente humanas, como a arquitetura, mas inclusive no que se vem chamando de natureza, moldando as paisagens, escolhendo as essncias das rvores cujas caractersticas plsticas estejam dentro de num determinado sistema do esprito.

    A natureza moldada pelo homem alia-se s casas que ele constri.

    Viajando por vrios pases, nota-se que os modos de cultivo determinam

  • aspectos profundamente diferentes da paisagem; as casas no campo unem-se num mesmo esprito. E no so s os climas que ditam a forma do lugar.

    O que quis mostrar que se estabelece uma hierarquia entre os

    diferentes estados de esprito, entre os distintos sistemas do esprito, e que alguns talvez sejam superiores a outros. Isto, em todo caso, permito-me afirm-lo, porque para mim uma certeza (e demonstrarei) que o esprito se manifesta pela geometria. Da deduzirei que, quando a geometria todo-poderosa, que o esprito progrediu com relao ao tempo de barbrie anterior.

    No quero dizer com isto que a cultura da Idade Mdia fosse brbara,

    mas que estava arraigada em fatos ainda brbaros, em um passado turvo e que se encontrava nos comeos do seu desenvolvimento, enquanto que a cultura antiga, pelo contrrio, havia chegado a importantes concluses, manifestadas pelas geometria.

    Mostrarei que a ascenso at a geometria se traduz no aspecto desta

    obra humana que se estende desde a casa at o lugar. Voc conhecem a casa tal como ela nasceu, mais ou menos normalmente, com o telhado sobre o muro primitivo: pouco a pouco, evolui numa busca cada vez mais declarada da horizontal, at que, num perodo de claridade intelectual como o Renascimento, alcana a todo-poderosa horizontal, a horizontal que no alto arremata a composio com uma linha categrica, enquanto que at este momento a composio se perdia nos pedaos oblquos dos telhados, mansardas, etc. A, os telhados se escondem atrs de um tico cuja misso mascarar uma obliqidade que inoportunamente contradizia o princpio ortogonal da composio. Esta situao no Renascimento denota, inclusive contra as justas reivindicaes da razo, esta aspirao do esprito rumo ao definido e pureza.

    Pois este o surpreendente exemplo de um esprito que se cultiva pouco

    a pouco e que se depura at o ponto de buscar os procedimentos que lhe permitam realizar obras de pura geometria ou, pelo menos, obras onde a geometria possa realizar tudo o que capaz de realizar, ou seja as propores, que so a linguagem da arquitetura e que se expressam em sua maior perfeio no sistema ortogonal.

    Mas, hoje dispomos dos meios para continuar magnificamente esta

    ascenso geometria, graas inveno do concreto armado, que nos traz o mecanismo ortogonal mais puro, estamos de posse de um meio ortogonal nunca possudo por poca alguma, um meio que nos permitir utilizar a geometria como elemento capital da arquitetura. Esta noite devo precisar, sobretudo, o valor e a importncia inigualvel da geometria.

  • Acontece que, atravs de sucessivas etapas da arquitetura, o esprito se cultiva e se depura; por outra parte, os meios desenvolvem-se e tornam-se cada vez mais precisos e poderosos: detectamos um meio que nos d o ortogonal e a geometria pura, e devemos ressaltar com entusiasmo esta aquisio, pois ela nos permitir abordar obras de alta arquitetura. Este esprito de geometria certamente a coisa mais preciosa que hoje pode nos interessar. Mas, no momento atual da evoluo, o reconhecimento deste esprito um fato bastante novo.

    Em 1920, quando fundamos a Esprit Nouveau com dois amigos

    Ozenfant e Derme -, estvamos diante do fenmeno cubista, ento em plena potncia: fonte de profundas invenes, ato violento de revolta e novo contato com os elementos da plstica. Junto ao cubismo, o futurismo se entregava a estados de nimo insensatos, entusiastas, desbordantes, sem medida. Por ltimo, o dadaismo, movimento de jovens, representava com esplendor este perodo da vida ente os 20 e 30 anos, quando se nega tudo, quando no se acredita em nada que no se tenha comprovado.

    A Esprito Novo, neste momento, tinha por programa atualizar, se

    possvel, um sistema construtivo. No podamos fazer mais que nos ocupar do maquinismo, estimando que era este o fenmeno novo, o acontecimento da poca. Agora nos atacam, e estes ataques se acentuam. Maquinismo dizem voc sempre fala da mesma coisa, j a conhecemos, voc nos fere os ouvidos, voc nos chateia!

    Se j esto cansados de ouvir falar do maquinismo, prova da fabulosa

    rapidez com que as idias se implantam: quando empreendemos, num meio tumultuoso, nossas tentativas de depurao de idias e de construo de um sistema coerente do esprito, baseando-nos na atual transformao da sociedade, do estado social, ramos novos; somente podamos encontrar gente que gritava de satisfao ou de indignao diante do tumulto da mquina, diante da mquina metralhadora, do martelo pilo, da mquina fumegante, da mquina devoradora de homens; ns, ao contrrio, queramos chegar a aprender a lio da mquina, a fim de abandon-la depois ao seu simples papel, o de servir. No queramos admir-la mais, e sim, estim-la; queramos classificar os acontecimentos para oferecer ao nosso corao, depois desta vitria da razo, os elementos pelos quais pode se emocionar.

    Esta classificao que havamos empreendido foi til, penso eu, para toda

    uma srie de investigaes que se seguiu, depois. Naquele momento, tambm chegamos a precisar as condies em que se

    desenvolvia o maquinismo, a lei da economia que o meio pelo qual se guia todo trabalho moderno. Constatamos que o maquinismo est baseado na geometria e, finalmente, estabelecemos que o homem vive, de fato, s de geometria, que esta geometria , falando com propriedade, sua prpria

  • linguagem, querendo dizer com isto que a ordem uma modalidade da geometria e que o homem s se manifesta pela ordem.

    O que um homem faz primeiro estabelecer o ortogonal diante de si,

    ajustar, por em ordem, ver claro; encontrou o modo de medir o espao por meio de coordenadas sobre trs eixos perpendiculares. Este fenmeno de ordem to inato que podemos at estranhar ter que falar dele. Mas, no nos esqueamos que samos de um perodo o final do sculo XIX de reao contra a ordem, de medo ante esta violenta instigao ordem que trazia a mquina, e de reao terrvel: no se queria ordem; o fato de organizar a nova vida sobre o fenmeno da ordem uma criao que remonta a alguns poucos anos.

    O homem, afirmo, manifesta-se pela ordem: quando vocs saem de trem

    de Paris, o que vem aparecer aos seus olhos seno um imenso pr-em-ordem? Luta contra a natureza para domin-la, para classificar, para se acomodar, em uma palavra, para instalar-se num mundo humano que no seja o meio da natureza antagonista, um mundo nosso, de ordem geomtrica. O homem s trabalha sobre geometria. Os trilhos so de um paralelismo absoluto, os taludes so a realizao desenhos geomtricos, as pontes, os viadutos, as barragens, os canais, toda esta criao urbana e suburbana que se desenvolve ao longo dos campos mostra que, quando o homem atua e quer fazer segundo sua vontade, converte-se em um gemetra e cria sobre a geometria. Sua presena se traduz no fato de que, apresentando-se sob um aspecto acidental, numa paisagem que ato da natureza, o trabalho humano somente existe sob a forma de retas, verticais, horizontais, etc. E assim como se traam as cidades e como se fazem as casas, sob o reinado do ngulo reto.

    O fato de reconhecer neste ngulo um valor decisivo e capital j uma

    afirmao de ordem geral muito importante, determinante na esttica e, consequentemente, na arquitetura.

    No obstante, a este respeito persiste a confuso. Em um livro intitulado

    Eupalinos ou o arquiteto, Paul Valry conseguiu, como poeta, dizer coisas sobre a arquitetura que um profissional no saberia formular, porque sua lira no est afinada neste tom: sentiu e traduziu admiravelmente muitas das coisas muito profundas e muito puras que o arquiteto sente ao criar; no entanto, em um dilogo entre Scrates e Fedro, Valry segue um pesamento bastante desconcertante.

    Se te dissesse que pegasses um pedao de giz ou carvo disse

    Scrates e desenhasses na parede, o que desenharias? Qual seria teu gesto inicial?

    E Fedro pega um pedao de carvo e risca no muro, respondendo:

  • Parece-me que tracei uma linha de fumaa, vai, volta, une-se, enrola-se

    em si mesma, e me d a impresso de um capricho sem objetivo, sem princpio, sem fim, sem mais significao que a liberdade do meu gesto no raio do meu brao.

    No se admitir sem estranheza que tal seja o gesto inicial de um

    homem. Para mim, que no sou filsofo, que sou simplesmente um ser ativo, parece que este gesto primeiro no pode ser vago, que no prprio nascimento, no momento quando os olhos se abrem luz, surge imediatamente uma vontade: se tivessem me dito que traasse algo numa parede, parece-me que teria traado uma cruz, que est feita de quatro ngulos retos, que uma perfeio que traz em si algo divino e que , ao mesmo tempo, um ato de posse do meu universo, porque nos quatro ngulos retos tenho dois eixos, apoio das coordenadas com as quais posso representar e medir o espao.

    Paul Valry tambm parece chegar a esta concluso. Um pouco mais

    adiante, de fato, Scrates diz da geometria: No conheo nada mais divino, mais humano, mais simples, mais poderoso...

    Elie Faure dizia-me certo dia: Por que uma ponte to emotiva?

    Reconhecemos ento que, entre as obras humanas de todos os tempos, a ponte era a nica feita totalmente de geometria, to pura que se mostrava ntida aos nossos olhos. Lanada sobre a caprichosas sinuosidade do rio, dos desprendimentos de terra ou das encrespadas massas de rochas, por entre a suavidade das matas, a ponte, como um cristal, cintila firme e voluntria entre o tumultuo que a cerca. a vontade humana escrita numa obra humana.

    Mostrei-lhes, atravs das imagens desenhadas na lousa, que o homem,

    adquirindo pouco a pouco um instrumental formidvel, descobre inconscientemente, encontra depois conscientemente, pelo clculo, o princpio essencial de suas atuaes, encontra seus padres: a lei da geometria.

    Chega a sentir tanto mais o divino quanto mais renuncia ao trabalho de

    suas mos pesadas, delegando-o mquina que, baseada na geometria, pode executar com toda a eficcia as concepes do seu esprito. O homem que pratica a geometria e que trabalha segundo a geometria pode ento atingir este nvel de satisfaes superiores, chamadas de satisfaes de ordem matemtica, e chegamos assim a admitir que, numa humanidade ocupada quase exclusivamente da geometria, como o caso atual, as artes e o pensamento no podem manter-se distantes deste fenmeno geomtrico e matemtico.

  • Acredito que, at agora, nunca tnhamos vivido um perodo de tal geometria: se pensamos no passado, se tentamos imaginar o que era, nos surpreender ver que vivemos num mundo de geometria quase pura, de geometria humanamente pura, suficientemente pura a nossos olhos: tudo, ao nosso redor, geometria; jamais vimos to claramente formas, crculos, discos, retngulos, ngulos, francamente traados com uma nitidez to grande, to categrica: cilindros, esferas puras. O maquinismo nos deu um imagem absolutamente nova do nosso mundo, imagem que os outros sculos no podiam adotar. Os prprios grandes matemticos, Pitgoras, Coprnico e tantos outros, se viram obrigados a dar-se mentalmente estes deleites, enquanto que ns os temos cotidianamente ao alcance das mos.

    Desde ento, pode-se dizer que estamos preparados para admitir uma

    arte formada, em grande parte, por elementos geomtricos e orientada aos deleites matemticos. A pintura, precedendo as demais artes porque um ofcio mais facilmente realizvel no digo em concepo, e sim materialmente e porque sua evoluo mais rpida que a da arquitetura, que s pode ser conseqncia de meios definitivamente adquiridos, a pintura j havia expressado atravs do cubismo esta tendncia ao esprito geomtrico e s satisfaes de ordem matemtica; os esforos que continuam o cubismo empurram cada vez mais neste sentido.

    No diria que o pblico acompanhou o movimento; ao contrrio, estamos

    diante de uma reao violenta, choque com retrocesso, ltima onda como a reao romntica do final do sculo XIX, oposio, dio e protesto contra a mquina. Hoje, estamos de novo em estado de protesto contra coisas que sero fatalmente nossas; estas queixas no tm outro efeito que fazer-nos perder tempo as coisas seguem seu rumo. No campo das artes, no campo da pintura, o fenmeno da geometria intervir cada vez mais; a pintura at agora considerada normal, permitida, a de imitao, no poder reinar exclusivamente. Ser substituda por um conjunto de realizaes plsticas novas que, por uma parte, vo livr-la do interesse que podia ter desde o ponto de vista representativo aludo ao cinema e fotografia, que absorvem por si s todas as curiosidades de ordem representativa e que, pela outra, faro que s possa viver das relaes existentes entre suas cores, suas massas, suas linhas, consequentemente, da proporo e das qualidades de ordem matemtica que a se encontrar. E, bem entendido, por um indispensvel nexo de unio sensvel com nosso meio ambiente.

    Chegamos, pois, ao fenmeno da geometria na arquitetura, em tempos

    que, estou convencido, j nos permitem comear a formul-lo porque os meios existem.

    Coisa que no teria acontecido h quinze ou vinte anos porque no

    dispnhamos, de maneira indiscutvel, deste meio que o concreto armado.

  • Certo, o concreto armado existe h uns sessenta anos, mas somente h pouco tempo utilizado e admitido correntemente por todos. Este meio, convertido em usual e disposio de todos, , repito, de base ortogonal; logicamente, procede elementarmente do ngulo reto; est, pois, feito para nos seduzir, porque contem um princpio fundamental do nosso prazer esttico.

    (Peo desculpas pelo que vou dizer, por tomar exemplos dos meus

    trabalhos e de scio, Pierre Jeanneret, na inteno falar somente de coisas que conheo bem e, assim, evitar possveis erros.)

    Estamos acostumados a buscar o fenmeno arquitetnico exclusivamente

    no estudo dos palcios, que, evidentemente, representam uma certa proposio. Mas, vou falar meramente da casa, que um pretexto mais que suficiente para formular leis e regras da arquitetura. A arquitetura atual se ocupa da casa, da casa normal e corrente, para homens normais e correntes. Abandona o palcio. Estudar a casa para o homem comum, plano, recuperar as bases humanas, a escala humana, a necessidade tipo, a funo tipo, a emoo tipo.

    A casa tem duas finalidades. , em primeiro lugar, uma machine

    habiter, ou seja, uma mquina destinada a dar-nos uma ajuda eficaz para a rapidez e a exatido no trabalho, uma mquina diligente e atenta para satisfazer as exigncias do corpo: comodidade. Depois, o lugar til meditao, e finalmente o lugar onde a beleza existe e aporta ao esprito a calma indispensvel; no pretendo que a arte seja um prato para todo o mundo, simplesmente digo que, para certos espritos, a casa deve oferecer o sentimento da beleza. Tudo o que concerne s finalidades prticas da casa o engenheiro j o proporciona; o que diz respeito meditao, ao esprito de beleza, ordem reinante (e que ser o suporte daquela beleza), ser da arquitetura. Trabalho do engenheiro por um lado, arquitetura pelo outro.

    A casa procede diretamente do fenmeno do antropocentrismo, ou seja,

    que tudo se remete ao homem, e isto pela razo bem simples de que a casa, fatalmente, s interessa a ns mesmos e mais que qualquer outra coisa; a casa se adapta a nossos gestos: a concha do caracol. necessrio, portanto, que seja feita nossa medida.

    Remeter tudo escala humana constitui, assim, uma necessidade; a

    nica soluo que se pode adotar; , sobretudo, o nico meio de se ver claro no problema atual da arquitetura e que permite uma reviso total dos valores, reviso indispensvel depois de um perodo que , em suma, a ltima onda do Renascimento, a culminao de quase seis sculos de cultura pr-maquinista, perodo brilhante que veio a se romper ante o maquinismo, e que, contrariamente ao nosso, consagrou-se magnificncia exterior, palcios dos senhores, igrejas dos papas.

  • Mas, como j disse, nos encontramos frente a um fenmeno novo, o

    maquinismo; os meios para se construir uma casa escala humana esto totalmente mudados, prodigiosamente enriquecidos, opostos aos costumes, at o ponto em que nada do que nos chegou do passado de alguma utilidade, e que uma esttica nova est se experimentando. Estamos no comeo de uma nova forma: ela o que vamos tentar expressar.

    O antropocentrismo, ou seja, o novo contato com a escala humana, , em

    uma palavra, brutal, estudar portas, estudar janelas; a casa uma caixa na qual abrem-se portas e janelas; portas e janelas so elementos da arquitetura. Chegou-se a construir edifcios com portas de 12 e de 3 metros de altura so to inadequadas umas quanto outras; relaxaram as medidas legais, criou-se pouco a pouco um cdigo de medidas arbitrrias, enquanto conservamos imutvel nosso tamanho de 1,80m. H que se fazer, pois, uma reviso das medidas, uma reviso dos elementos da arquitetura.

    Acabo de afirmar que portas e janelas so determinantes da arquitetura -

    no um paradoxo e podemos comprov-lo estudando a histria da janela. Nos tempos dos romanos, as casas de Pompia nos mostram que no

    havia, ou quase, janelas, somente grandes vos abertos a jardins ou a ptios internos. O grande vo era a passagem de luz e, para a passagem do homem, havia tambm a porta.

    Nos nossos pases, o clima e um conceito diferente da vida domstica

    reclamavam outra coisa; mas, fazer um buraco em um muro era de uma grande dificuldade: era preciso construir sobre este buraco, salvar a abertura; como o arco no podia ser muito grande, as janelas eram pequenas.

    Com o descobrimento do arco ogival e dos sistemas de arcobotante,

    realizou-se mais tarde a janela gtica, que permitiu ganhar largura, como se v nas catedrais; mas, na casa, ficava impossvel superar determinada largura porque seria necessrio elevar demais o arco os ps-direitos acabariam desmedidos. Assim as janelas continuaram pequenas, porm multiplicaram-se. O Renascimento viu surgir as janelas com montantes de pedras que permaneceram integralmente iguais at nossos dias; de se destacar, no entanto, o desaparecimento dos montantes, que j no se encontram nas construes desde Lus XIV; estas janelas se tornam, a cada dia, a melhor escala humana; no reinado de Lus XVI, fazem-se casas tipo em srie, bastante adequadas escala humana; e, finalmente, Haussmann, em suas obras de Paris, fixa a forma e a dimenso de uma janela que tem direito de cidadania em qualquer parte, que parece perfeita, ao ponto de permitir supor que j no se alterar mais. No me detenho na janela ps 1900, falta de razes srias, conseqncia de uma arquitetura de gesso e papelo surgida dos palcios da Grande Exposio.

  • Assim pois, toda esttica arquitetnica deriva de um simples ato prtico, a

    altura de uma planta, e vai se ver modificada por um novo fenmeno tcnico, o concreto armado.

    As janelas, at este momento, no podiam alargar-se de modo til porque

    seria necessrio fazer vergas muitos longas, de difcil realizao, ou arcos que acabariam levantando demais os tetos. Mas, agora a casa pode ser construda com estes pilares de concreto armado que vocs j conhecem, de 15 a 20cm de seo e separados uns 5m em mdia, deixando entre si um certo vazio que a casa construda antes com paredes de pedras j no se constri mais do que com estes pilares. A seguir, a nova casa de vrias plantas apresentar uma fachada com aspecto de uma enorme malha, constituda pelos pilares e pelas vigas de concreto armado, deixando entre si vazios totais.

    Neste momento, fatalmente surgiu um problema, que passei a investigar,

    ainda sem concluses, que coloco em discusso, de modo que se possa chegar a um sistema lgico e defensvel.

    Para que, pergunto, encher este espao, posto que foi dado vazio? Para

    que serve uma janela, seno para iluminar as paredes? E isto no uma obviedade, uma realidade arquitetnica profunda. Se uma janela normal ilumina a parede em frente, ilumina menos as paredes laterais e no ilumina, em absoluto, o plano no qual foi aberta: duas zonas de sombra inundam a metade do cmodo. Pelo contrrio, se conservo vazio todo o espao disponvel, obtenho a sensao arquitetnica primordial, fisiolgica, capital, a da luz se est a gosto na luz. Foi assim que cheguei a admitir que uma janela corrida, igual em rea a uma grande janela vertical, lhe superior, j que permite iluminar as paredes laterais. (E, diga-se de passagem, tem tambm outras conseqncias prticas na disposio das habitaes.)

    Da pode-se deduzir todo tipo de conseqncias, mas o que tento

    ressaltar a fora de um fenmeno antropocntrico. Coloco, antes de tudo, o homem em seu meio, perguntando-me o que ele necessita para ter sensaes agradveis. Deduzo, ento, que esta janela tem, fisiologicamente, uma vantagem. E assim como posiciono diante de um quadro arquitetnico singularmente transtornado. (Aplausos)

    At 1900, quando se falava de casas, entendia-se pelo termo umas

    paredes e um telhado eram as partes determinantes da casa. Sem dizer uma sagacidade, podemos afirmar que as paredes e os telhados j no existem, j no tm razo de existir. Tentarei explicar o que vocs podero tomar uma piada.

  • Antes, uma parede tinha diferentes funes: servia para se defender dos malfeitores; muros de cidades, de fortalezas, de casas, tudo isto repousava sobre uma noo de defesa. Uma vez desaparecida esta primeira finalidade, as paredes permaneceram, porque tinham outra funo, a de suportar os pavimentos. Tinham de ser grossas, j que eram feitas com pedras que dificilmente se uniam, sobretudo porque no se dispunha de aglomerante de forte aderncia, quer dizer de argamassa; a argamassa no apareceu at o final do sculo XIX; no se dispunha mais que de barro, argila ou cal magra para juntar bem ou mal as pedras ou as lascas: era preciso, pois, fazer paredes grossas para faze-las suficientemente slidas.

    Quando surgem os cimentos artificiais, aglomerantes mais duros que a

    pedra, em seguida se pensa em fazer paredes menos grossas. Mas esta tentativa, que levou criao do concreto armado, logo fez considerar a prpria supresso dos muros portantes. Com os pilares empregados hoje em dia, tenho o direito de dizer que a parede est suprimida. No tenho mais que tampar o intervalo entre dois pilares para defender-me do frio, do calor ou dos intrusos, atentando que uma parede fina, porm dupla, mais eficaz que uma parede nica e grossa.

    Graas aos materiais modernos, a parede j est constituda s por uma

    fina membrana de tijolos ou qualquer outro produto que forme um fechamento, duplicada por uma segunda membrana no interior; o que antes era um elemento portante converteu-se em um simples recheio: levando as coisas ao absurdo, poderia fazer, sem dificuldade e sem perigo, paredes de papel: a solidez do edifcio no se importaria.

    Eis a um fenmeno novo em arquitetura; j no tenho que utilizar

    espessuras enormes e grandes reas de parede, que acarretavam um sistema esttico determinado.

    A tcnica moderna nos conduz ainda a outras conseqncias. O telhado

    inclinado era, antes, o nico meio de evacuar as guas da chuva. No entanto, desde o final do sculo XIX, o cimento Portland permite fazer coberturas planas, em terrao, absolutamente impermeveis.

    Sei que fazendo esta afirmao vou suscitar dvidas, mas a mantenho

    categoricamente. Se muitos construtores tm falhado nas coberturas em terrao porque o abordaram mal, misturando velhos princpios com novos procedimentos.

    Antes, os telhados eram constitudos por uma armao de madeira, as

    chuvas eram captadas por calhas: no havia outro sistema. Mas hoje, uma superfcie de concreto pode evacuar as guas da chuva j no ao exterior, mas ao interior da casa; h que se construir a cobertura em forma de concha.

  • Este um aperfeioamento importante. Chamado para construir uma casa a 1.000m de altitude, num clima muito duro com fortes nevadas, tive que chegar a estudar o encadeamento dos fenmenos e constatar que uma inovao tcnica traz consigo uma srie de conseqncias considerveis e inesperadas.

    As casas do Alto Jura tm estufas de cermica que expandem um suave

    calor em cada pavimento: se, por desgraa, introduzimos a calefao central, o calor se expandir em todo o imvel, at a cobertura; a parte inferior da camada de neve em contato com o telhado comear a derreter-se e a gua escorrer sobre as telhas, sob a capa de neve.

    No entanto, no alto da parede, na parte baixa do telhado o efeito do calor

    cessa (pensem que o frio alcana s vezes 18o); imediatamente a gua que escorria sobre a telha ou a ardsia se congela, formando estalactites de gelo penduradas nas calhas e arrancando-as.

    Mas, a introduo da calefao central tem conseqncias muito mais

    graves, e eu as experimentei, s minhas custas, construindo, na mesma altitude, um grande cinema de 1.200 lugares. Penso que esta experincia uma experincia tipo, uma verdadeira experincia de laboratrio, pois raramente as condies so to limpas. Minha sala de projeo, de rea grande, estava coberta por um telhado sobre o qual se acumulava, em um dia, uma camada de neve de mais de meio metro de espessura. Sob as telhas, a calefao central expelia do interior uma massa de ar quente. A este calor acrescentava-se, por volta de meia noite, o calor desprendido por 1.200 espectadores. Fora, 20o de frio, no interior, 20 ou 30o de calor. Minha cobertura noite fumaava, como um enorme ebulidor: o vapor subia em nuvens at o cu! Entre a camada de neve e as telhas, escorriam milhares de litros de gua...

    Mas no ngulo da parede exterior com o telhado, a calefao cessava

    seus efeitos. S o frio reinava, -20o! Sob a camada de neve, a gua tinha impregnado as telhas, e tambm a neve. A calha, fora da parede, estava cheia de gelo; por cima, quer dizer, no beiral do telhado, as telhas, a gua e a neve formavam um bloco compacto de gelo. Ou seja, uma muralha de gelo, portanto uma borda intransponvel para a gua que jorrava deste imenso telhado: os milhares de litros de gua, seguindo a lei dos vasos comunicantes, encontraram sua sada mais alm da primeira linha de telhas, em direo ao interior, e passaram sala de cinema! Dilvio ao longo das paredes, no interior.

    Concluso lgica desta experincia tipo: o telhado deve ser em cncavo,

    no convexo; a gua deve ser evacuada ao interior por meio de condutores situados sob a influncia do calor da casa e, por conseguinte, com a

  • impossibilidade de congelar. A neve permanece tranqilamente amontoada sobre o terrao, formando um excelente isolante contra o frio.

    Se esta a nica soluo nos casos mais difceis, estamos certos de que

    esta soluo a soluo tipo para todos os casos. A cobertura submetida intemprie deve ser cncava e evacuar suas guas no interior, desde que a calefao central tenha sido instalada na casa.

    A partir da, tentem perceber as implicncias esttico-arquitetnicas que

    teria, num pas inteiro, a supresso dos telhados e sua substituio por terraos.

    H uns quinze anos, fundou-se na Alemanha um liga para a difuso das

    coberturas de terrao: as achavam bonitas, esteticamente falando. Mas, no se afrontara o problema pelo lado justo, no se deu a razo tcnica que satisfaz o esprito, que tranqiliza a conscincia e permite seguir adiante: com uma razo tcnica que confirma o esprito em seus direitos e o tranqiliza, podemos ento admitir as belezas da geometria, do ortogonal, posto que a esto, autorizadas a partir de agora, impulsionadas inclusive pelas condies tcnicas essenciais do problema.

    Por conseguinte, quando digo que j no h telhados, nem paredes, e

    que estes fatores atuam profundamente sobre a esttica, me vejo obrigado a buscar uma nova esttica.

    Para poder ser formulada, esta esttica precisa se acomodar em bases

    seguras: quais podem ser? A fisiologia das sensaes nos d um ponto de partida til. Esta fisiologia das sensaes a reao de nossos sentidos frente a um

    fenmeno tico. Meus olhos transmitem aos meus sentidos o espetculo que lhes oferecido. Diante destas vrias linhas que trao na lousa, nascem outras tantas sensaes diferentes: diante de uma linha quebrada ou contnua, at o sistema cardaco se v influenciado; sentimos as sacudidas ou a suavidade da linhas que observamos.

    Acompanhemos as repercusses sobre nossa sensibilidade destas

    sensaes fisiolgicas; chegaremos a fazer uma seleo: tal linha quebrada desagradvel, tal linha contnua agradvel, tal sistema de linhas incoerentes nos afeta, tal sistema de linhas rtmicas nos equilibra, e logo percebero que se faz uma escolha, que se estabelece uma preferncia e que tornam, irremediavelmente, ao que os artistas tm feito e escolhido sempre, a umas linhas e a umas formas que satisfazem nossos sentidos.

  • Neste campo de linhas e formas que satisfazem nossos sentidos, verificamos uma vez mais que a geometria onipotente.

    A conseqncia ser o emprego de formas de geometria pura; estas

    formas tero para ns um atrativo considervel, e isto por duas razes: em primeiro lugar, atuam claramente sobre nosso sistema sensorial; segundo, desde o ponto de vista espiritual, trazem em si a perfeio. So formas que foram geradas pela geometria, formas que chamamos de perfeitas, e cada vez que encontramos uma forma perfeita experimentamos uma grande satisfao. Saibamos que estamos numa poca em que, pela primeira vez, graas ao maquinismo, vivemos em coabitao efetiva com as formas puras da geometria.

    Queria que aferissem como se concretiza a composio da obra

    arquitetnica e como o fenmeno geomtrico da arquitetura desemboca na preciso.

    Disse que a questo tcnica precede e a condicionante de tudo, que

    traz conseqncias plsticas imperativas e que leva, s vezes, a transformaes estticas radicais: depois, trata-se de resolver o problema da unidade, que a chave da harmonia e da proporo.

    Os traados reguladores servem para resolver o problema da unidade. Diz-se que pela garra se reconhece o leo; em outros termos, um leo

    tem todos os seus rgos feitos de tal maneira que existe nele uma harmonia. Uma obra arquitetnica deve possuir os mesmos nveis de harmonia, pela garra deve-se reconhecer o leo.

    Quais so os fatores emotivos de uma arquitetura? O que o olho v. O

    que v o nosso olho? V superfcies, formas, linhas. Trata-se, pois, de criar a todo custo na obra arquitetnica o determinante essencial da emoo, quer dizer, as formas excitantes que a constituem, que a animam, que estabelecem entre si relaes apreciveis, que proporcionem as sensaes.

    A exatamente est a inveno arquitetnica: relaes, ritmos,

    propores, condies da emoo, mquina de emocionar. S o talento atua aqui.

    Eis aqui como se estabelece o carter emotivo da arquitetura: primeiro, o

    cubo geral do edifcio lhes toca bsica e definitivamente: a sensao primeira e forte. Voc abrem nele uma janela ou uma porta: imediatamente surgem relaes entre os espaos assim determinados; a matemtica est na obra. Pronto, isto arquitetura. Falta polir o trabalho introduzindo a unidade mais perfeita, ajustando a obra, regulando os diversos elementos: intervm os traados reguladores.

  • O traado regulador foi muito empregado em certas grandes pocas, ao

    menos pelo que dizem excelentes historiadores da arte; isto o que tenho lido, em particular, na admirvel histria da arquitetura de Choisy, que diz o suficiente para despertar em ns o gosto pela unidade.

    Os traados reguladores haviam cado em desuso neste ltimo perodo:

    trata-se pois de tornar a lanar mo deste meio to til e de ver por que caminho se chega ao traado regulador.

    Certa vez escrevi um captulo sobre o traado regulador: um ano mais

    tarde recebia uma carta de um colega de Amsterdam, homem de grande valor, que tinha pelas costas uma carreira gloriosa de precursor. Em sua carta me dizia que sempre fizera traados reguladores; ao mesmo tempo, me enviava seu livro. A encontrei traados contra os quais, pelo que me diz respeito, sou obrigado a levantar-me.

    D, por exemplo, uma fachada com torres acopladas; seu traado

    regulador est formado por uma rede de diagonais pelas quais chega a fazer passar (no difcil) todos os pontos da sua construo: j no se trata de um traado regulador, uma tela; de acordo com este pensamento, todos os bordados de ponto cruz estariam feitos com traado regulador; o verdadeiro traado regulador o que chega a unificar, em suas caractersticas, tal elemento em relao ao conjunto, uns fragmentos em relao aos outros, que chega a revelar a relao matemtica suscetvel de animar regularmente todos os elementos da obra.

    Indicarei rapidamente um ou dois, para tentar objetivar este mtodo que

    deve, de fato, conservar o mximo realismo e no cair nunca no palavrrio nem, sobretudo, na iluso dos grficos eruditos.

    (Demonstrao na lousa, impossvel de reproduzir sem a figura.) Vm vocs como chego a enlaar os elementos principais com os

    elementos secundrios atravs de uma relao geomtrica sensvel e autntica.

    Para se chegar a estes traados reguladores no existe uma frmula

    nica, fcil de se aplicar; a bem dizer, uma questo de inspirao, de verdadeira criao; tem que se encontrar a lei geomtrica que est em potncia em uma composio, que a regula e determina; em um dado momento revela-se ao esprito e unifica tudo; ento acontecem alguns deslocamentos, algumas retificaes; uma harmonia perfeita reina, no fim, em toda a composio.

  • Para terminar, deixem-me dizer ainda algumas palavras sobre uma das caractersticas determinantes da arquitetura atual. Quero falar da cornija, que neste momento apresenta um problema grave e desencadeia posies antagnicas.

    Do mesmo modo que no h paredes, nem telhado, chega-se quase

    normalmente a formular este princpio herico, grave de conseqncias: j no possvel a cornija. Nem parede, nem telhado, nem cornija, resultado inquietante de uma evoluo tcnica. Que conseqncias estticas, pois!

    Suprimir o valor da cornija infligir um importante transtorno aos hbitos

    adquiridos e isto j me custou muitos protestos, mais ou menos justificados. Mas, desde o ponto de vista esttico, o nico que me interessa definitivamente, admitir que a cornija deva ser eliminada aportar um elemento capital redao de um novo cdigo da arquitetura.

    Na origem, a cornija respondia a uma idia: suportar algo. A cornija

    primitiva no telhado que avanava a parede que o sustentava, princpio elementar que encontramos em todas as construes primitivas; depois, com o desejo de faze-lo melhor, se sustentaram as vigas em balano com msulas de pedras; em seguida, colocou-se sobre as msulas uma pedra horizontal sobre a qual se fizeram apoiar as vigas do telhado: tinha nascido a cornija. Nasceu. Mas tambm vai desenvolver-se e converter-se no elemento principal de toda arquitetura: a cabea, em certo modo, rgo sentimental. A cornija, como as ordens, toma o valor de um postulado. Impossvel destron-la sem uma razo vlida!

    De repente, surge um procedimento novo que suprime o telhado: manter

    a cornija se converte num paradoxo; j no desenhada pelas mos de um arquiteto, pelas mos de um construtor.

    Mas, dizem, a cornija protege a fachada. , no entanto, um elemento caro

    de se fazer e estamos, por sorte ou desgraa, em uma poca que obriga buscar solues mais econmicas. Filosoficamente, a economia uma aspirao elevada. Assim pois a cornija j no tem razo de ser, posto que bastar fazer com cimento uma aresta viva, ntida como a borda de uma tigela, que enviar as guas da chuva em direo ao desge central da cobertura. E nego, at novo aviso, a eficcia da pretendida proteo que a cornija exerce sobre as paredes: a chuva cai mais ou menos obliquamente, para que queremos uma cornija que proteja 2 ou 3m de fachada de um arranha-cu de 200m? Para que uma cornija, mesmo em uma casa de dois andares?1

    1 Restam, no entanto, dois fenmenos por vencer: 1) o da porosidade das argamassas geralmente empregadas, e sua opacidade: a gua da chuva, no decorrer das horas, filtra-se lentamente de cima abaixo, formando uma baba momentnea muito feia, que desaparece com o primeiro raio de sol. Mas, por que limitar-se a argamassas que imitam pedra e no admitir os esmaltes brilhantes sobre os quais este fenmeno

  • Eliminar a cornija, atualmente, desembocar em uma conseqncia

    esttica considervel e verdadeiramente revolucionria. O fato de elimin-la e poder explicar esta eliminao logicamente, o fato de construir bem, de no fazer uma construo que seja incmoda, que apresente avarias, representa uma das conquistas mais caractersticas da arquitetura atual. Chegamos a uma concluso de ordem esttica que o aspecto simples.

    O simples o resultado da economia, e dou a esta ltima palavra o mais

    alto valor, porque tem o mais belo significado. A grande arte simples; as grandes coisas so simples.

    Mas, no nos esqueamos jamais e terminarei com isto que se o

    simples grande e digno porque, por definio, a sntese do complicado, do rico, do complexo. um comprimido. Seria desolador ver-nos fracassar na moda do simples, se esta simplicidade no for mais que uma moda. E este mais ou menos o seno que nos ameaa.

    Por todas as partes se vm coisas simples, e nos extasiamos dizendo:

    simples! Se uma simplicidade de resulta de uma grande complexidade e de uma grande riqueza, todo bem; mas, se a pobreza o que se expressa sob estas novas modalidades, como se expressava antes sob as modalidades complicadas da decorao, no se ganhou nada, no se fez nenhum progresso.

    Desejo que esta simplicidade seja, ao contrrio, a concentrao, a

    cristalizao de uma infinidade de pensamentos e de meios. Assim, o traado regulador, a supresso da cornija e do telhado,

    conduzem simplicidade; mas, esta simplicidade exige em troca uma grande exatido construtiva, uma preciso de inteno e um rigor de raciocnio absolutos; sobretudo requer o aporte da proporo, da relao matemtica, se prope provocar este deleite de ordem matemtica que , como tentei dizer no incio desta conferncia, uma das aspiraes mais lcitas do nosso carter de esprito moderno.

    A este respeito, acho que a Exposio das Artes Decorativas, que ser

    aberta no prximo ano, vai dar um golpe ao que ainda se chama de artes decorativas. J no estamos em um tempo que possa digerir a arte decorativa; a arte decorativa um resto velho do passado que j no tem razo de subsistir ante uma renovao to completa do nosso estado mental. Logo estaremos fartos dos encantos um tanto obsessivos e fteis da decorao e nos veremos diante do nico problema que poder nos seduzir,

    de porosidade no se produz? 2) Talvez se produza um efeito de sifo por cima da aresta aguda do coroamento, em favor do plano vertical da fachada. Estudamos um coroamento de ferro laminado, perfil ntido e decisivo da casa contra o cu, e que serve de para-sifo.

  • a pureza, a cristalizao, a coisa ntida, um pouco irremissvel, dura talvez, mas tal como pode cri-la o estado de esprito a que nos ter conduzido o maquinismo e suas inevitveis conseqncias; um estado de esprito de poca requer de ns concentrao, violncia contra ns mesmos. este esprito de ordem geomtrica, matemtica, que ser o dono dos destinos arquitetnicos. Da mesma forma que a pintura, atravs de muitas guinadas, se dirige a tais destinos, do mesmo modo a arquitetura, que se pauta pela excelncia das relaes, ser o lugar da geometria pura.

    A este respeito, o urbanismo, que a coisa eminente sem a qual a

    arquitetura no tem sentido, que a nica razo de ser de uma arquitetura de poca, o urbanismo que bate porta com pancadas fortes, sacudindo todas as torpezas pela potncia e rapidez com que se impe o acontecimento moderno, o urbanismo, digo, vai nos proporcionar, sobre traados geomtricos, cidades novas, que podero estar to bem intra-muros como extra-muros. O urbanismo se dedicar grande cidade e no ir construir novas cidades em pases novos e desconhecidos: est feito para ser aplicado ao estado atual das cidades atuais. Chegaremos a traados novos das cidades: quer se trate de Paris, Londres, Moscou ou Roma, estas capitais devero transformar-se totalmente sobre seu prprio meio, por mais esforo que custe, por radical que deva ser o transtorno. E aqui tambm, repito, o nico guia possvel ser o esprito de geometria.

    (Aplausos.) Terminarei esta conferncia oferecendo aos seus olhos fotografias

    destinadas a objetivar as idias que acabo de expressar.