Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ......

23
Autoras Marta Morais da Costa Silvana Oliveira Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário 2009 Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Transcript of Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ......

Page 1: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

AutorasMarta Morais da CostaSilvana Oliveira

Concepções, Estruturas

e Fundamentos do Texto Literário

2009

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 2: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Todos os direitos reservadosIESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

C837 Costa, Marta Morais da.

Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário.

/ Marta Morais da Costa. Silvana Oliveira. — Curitiba: IESDE

Brasil S.A., 2009.

200 p.

ISBN: 978-85-7638-814-2

1. Gêneros literários 2. Analise do discurso narrativo 3. Estrutu-

ralismo (Analise literária) I. Titulo II. Oliveira, Silvana

CDD 801.95

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 3: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

Sumário

Literatura e crítica literária | 7O que é literatura? | 7Os muitos conceitos de literatura | 8Funções da literatura | 9Funções da Teoria Literária | 10Funções da crítica literária | 11O papel do crítico literário | 11

O valor na literatura | 17A crítica literária e as outras instituições | 17O julgamento crítico | 18Os critérios de valoração da obra literária | 19A metodologia do discurso crítico | 20O que é um clássico? | 21

Natureza do fenômeno literário | 27Os conceitos do discurso literário | 27O discurso literário: características | 32

Gêneros literários: conceituação histórica | 39O que é gênero literário? | 39O conceito na Antigüidade Clássica e na Idade Média | 41O conceito no Renascimento | 43O conceito no Romantismo | 43Conceitos ao longo dos séculos XIX e XX | 44A perspectiva da atualidade | 46

Gêneros literários: o lírico | 51O que é poesia lírica? | 51A concepção musical da Antigüidade | 54Lirismo, subjetividade e sentimento | 56Lirismo e visualidade | 58

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 4: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

Gêneros literários: o épico ou narrativo | 67O que é o gênero épico? | 67Preceitos aristotélicos sobre a epopéia | 69A passagem do épico ao romance | 70Os tipos de epopéia | 72

Gêneros literários: o dramático | 79A teoria aristotélica do trágico | 80A dramaturgia épica | 83As duas linguagens do gênero dramático | 85Texto dramático e texto cênico | 87Formas principais do gênero dramático | 88

Gêneros literários: o ensaístico | 99O gênero de fronteira | 99O ensaio | 100A crítica literária e suas funções | 102O ensaio no discurso literário: a metaficção e metapoesia | 103

A linguagem poética: poema X poesia | 111O objeto e funções da poesia | 111A metáfora e a metonímia | 117Poemas de forma fixa | 119

A estrutura da narrativa: romance | 133Nascimento e evolução do romance | 133Ficção e realidade | 135Tipologia do romance | 137

A estrutura da narrativa: conto e novela | 151Características do conto e da novela | 151A ação e a representação da realidade no texto narrativo | 155Tipologia da narrativa curta | 159

A estrutura da narrativa: crônica e ensaio | 165Crônica, tempo e realidade | 165A importância literária da crônica | 167O ensaio como literatura | 172

Gabarito | 181

Referências | 193

Anotações | 199

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 5: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

Apresentação

O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orientaram, explícita ou implicitamente, a criação de textos literários ao lon­go da história da cultura. Assim, uma disciplina que se proponha a investi­gar os gêneros literários, como esta que ora apresentamos, procura trazer informações que esclareçam a origem de termos e conceitos, os textos mais importantes dos diferentes gêneros e subgêneros, bem como a classifica­ção e as diferenças e semelhanças estabelecidas entre os textos, na medida em que eles foram se espelhando e interagindo uns com os outros.

O primeiro objetivo da disciplina é apresentar as linhas gerais que definem os três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico e o dramáti­co. Ao mesmo tempo, os conteúdos mostram que essa classificação não é definitiva e permanente, em especial na atualidade, momento em que a cultura e a literatura passam por alterações profundas dos paradigmas da ciência e da arte.

Um segundo objetivo é o de tratar em forma mais minuciosa as prin­cipais características desses três gêneros e as possíveis classificações de subgêneros que eles contêm. Para atender a esse objetivo, também são tratados tópicos teóricos que abordam os aspectos de identidade de cada gênero, seja os relativos aos conteúdos e à contextualização histórica , seja aqueles que dizem respeito aos aspectos discursivos.

Um terceiro objetivo é o de apresentar as idéias manifestas em tex­tos literários, com sua transcrição parcial, acompanhada de comentários sintéticos e objetivos. Privilegia­se, portanto, o estudo do texto literário como base para melhor compreensão das idéias teóricas expostas. Afinal, a literatura é composta pelos textos literários; a teoria lhes é posterior e explicativa.

Um último objetivo é o de expandir o sentido da leitura da litera­tura para outras expressões artísticas, criando relações entre literatura e artes, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema. A intenção é favorecer a ampliação do sentido da literatura para integrá­la à cultura humana e ao momento histórico.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 6: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

A tarefa de atingir a esses objetivos permite que, em cada assunto tratado, as informações trazidas favoreçam a reflexão do leitor e o desejo de conhecer melhor as obras citadas. Estas constituem uma biblioteca mínima para o aprofundamento dos tópicos desenvolvidos, dado que a aprendizagem integral se faz também com a continuidade dos estu­dos, fora dos limites da orientação do profissional docente, quando o estudante se lança, por desejo e vontade próprios, à leitura e à pesquisa complementares.

Por fim, a Teoria da Literatura que trata dos gêneros literários au­xilia fortemente na compreensão do fato literário e nas razões que orien­taram os escritores a criar poemas, narrativas e peças de teatro filiados de alguma maneira a textos anteriores e a concepções discursivas que foram se repetindo ao longo dos tempos. É a permanência da algumas características que, guardadas as devidas proporções e contextualiza­ções, continuam a direcionar o pensamento criativo ou a ser combatidas por esse pensamento, na busca de novas formas de expressão escrita.

A leitura de poemas, peças teatrais ou narrativas, realizada com o embasamento teórico correspondente e atualizado, cresce e se dina­miza, capacitando o leitor a se comunicar com qualidade com os tex­tos literários, prioritariamente, e depois com o mundo que esses textos apresentam, representam e presentificam. Porque teoria e prática são os fundamentos da aprendizagem, do conhecimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 7: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

Gêneros literários: o lírico

Marta Morais da CostaDos três gêneros literários, é a poesia que adquire mais tardiamente destaque e identidade. É ape­

nas no Renascimento que ela ganhará estatura semelhante à do gênero épico e à do gênero dramático. Esse nascimento tardio deveu­se a alguns fatores históricos que trataremos a seguir. O gênero, conjunto de textos que, pela repetição de formas, funciona como horizonte de expectativas para o leitor e “mode­lo de escritura” para o autor (TODOROV, 1980, p. 49), é uma maneira reguladora de leitura e produção. O caráter discursivo do gênero literário é que lhe dá identidade e, ao mesmo tempo, se submete às trans­formações históricas, enquanto arte humana.

O termo lírica provém do grego lyrikós, significando originariamente “som proveniente da lira ou relativo à lira”, instrumento musical de quatro cordas. Em conseqüência, o gênero literário pressupõe um componente musical, expresso pelo ritmo e pela sonoridade de versos e palavras. Segundo Moisés (1997, p. 306) “o vocábulo lirismo foi cunhado no interior do Romantismo francês, com vistas a designar o caráter acentuadamente individualista e emocional assumido pela poesia lírica a partir do século XIX”. Essa outra interpretação do gênero lírico indica o quanto o momento histórico influencia o entendimen­to da terminologia e da teoria a respeito da literatura.

O que é poesia lírica?Para conceituar poesia lírica é preciso ler e pensar sobre diferentes escritores que tentaram definir

esse gênero literário. Todorov (1980, p. 95) principia sua reflexão sobre poesia afirmando: “O discurso da poesia caracteriza­se em primeiro lugar, e de modo evidente, por sua natureza versificada”. Se o verso, isto é, a linha melódica interrompida fosse suficiente para determinar a identidade da poesia, a simples aproximação visual do texto permitiria ao leitor classificar o gênero literário. No entanto, essa diferença é incapaz de dar conta do sentido de poesia. Ele não está no verso, ou no sofrimento do poeta ou no

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 8: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

52 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

acúmulo de exemplos da linguagem figurada (metáforas, metonímias, símiles, analogias, elipses e ou­tros). Segundo Todorov (1980, p. 96­97) ainda

[...] uma parte esmagadora dos nossos contemporâneos nem aderem à teoria ornamental [a do verso], nem à teoria afe­tiva [a do sofrimento do poeta], mas a uma terceira, cuja origem é claramente romântica; uma parte tão predominante que temos dificuldade em perceber que não se trata, no fim das contas, senão de uma teoria entre outras (e não da ver­dade enfim revelada). Nesse caso, a diferença semântica entre poesia e não­poesia não mais é procurada no conteúdo da significação, mas na maneira de significar: sem significar outra coisa, o poema significa de outro modo. Uma maneira diferente de dizer a mesma coisa seria: as palavras são (somente) signos na linguagem cotidiana, ao passo que elas se tornam, em poesia, símbolos: daí o nome de simbolista que utilizo para designar essas teorias.

Para melhor esclarecer o que entende por símbolo, o teórico faz referência à tradição alemã de pen­samento sobre o texto poético (Schlegel, Novalis, Schelling, Kant, Hegel, Solger). São escritores dos séculos XVIII e XIX, do apogeu do movimento literário conhecido como Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) que combateu a herança neoclássica e instaurou uma nova literatura na Europa. Revolução essa que che­gou posteriormente ao Brasil. No que consiste essa concepção de símbolo, e por extensão, de poesia?

Poderíamos resumi­la em cinco pontos (ou cinco oposições entre símbolo e “alegoria”): 1. o símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção, e não o produto acabado. 2. O símbolo é intransitivo, não serve apenas para transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. 3. O símbolo é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo isolado é motivado (não­arbitrário). 4. O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral e do particular. 5. O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo que os signos não­simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu sentido é plural – ines­gotável. (TODOROV, 1980, p. 97)

Temos aí uma perspectiva bastante significativa e didática do que seja a matéria­prima da poesia, o símbolo. As negações de Todorov fazem sentido, porque é muito freqüente encontrarmos, na tenta­tiva de compreender o gênero lírico, a associação entre a subjetividade do leitor e a do poeta. Posição que ele denominou “teoria afetiva”. Maria Lúcia Aragão (1997, p. 75, grifo nosso), por exemplo, ao tratar do gênero lírico afirma:

[...] a extensão da composição lírica [...] deve ser de pequeno tamanho para não trair o que há de essencial na disposição anímica do poeta, e para que haja unidade e coesão do clima lírico no poema.

Ao falarmos em clima, estamos partindo do pressuposto de que o importante no estilo lírico não são as conexões ló­gicas. A comunicação entre o leitor e o poema não exige que a compreensão ocupe o primeiro plano. O leitor se emo­ciona primeiro, para depois entender. Por este motivo, Staiger afirma que “para a insinuação ser eficaz, o leitor precisa estar indefeso, receptivo”. Isso acontece quando a alma do leitor está afinada com a do poeta.

No entanto, Emil Staiger não é de todo partidário de uma arte poética baseada exclusivamente na afetividade. Ao tentar defini­la, em outro momento da obra Conceitos Fundamentais da Poética, ta­xativamente esclarece: “Dizem que uma poesia é bela, e pensam apenas na sensação, palavras e versos. Ninguém pensa, entretanto, que a verdadeira força e valor de uma poesia está na situação, em seus motivos. A partir daí fazem­se milhares de poesias em que o motivo é nulo e que simulam uma espécie de existência, simplesmente através de sensações e versos sonoros” (STAIGER, 1972, p. 25). É possível perceber nessas poucas tentativas como os autores citados combatem diferentes aspectos já estabe­lecidos e repetidos a respeito da definição de poesia. É mais fácil negar o que está em desacordo com a idéia dos autores do que conseguir definir exatamente o que é a poesia lírica. No entanto, também Staiger enumera qualidades que considera definidoras de poesia:

Se a idéia de lírico, sempre idêntica a si mesma, fundamenta todos os fenômenos estilísticos até então descritos, essa mesma idéia una e idêntica precisa ser revelada e ter nome. Unidade entre a música das palavras e de sua significação; atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão (1); perigo de derramar­se, retido pelo refrão e repetições

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 9: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

53|Gêneros literários: o lírico

de outro tipo (2); renúncia à coerência gramatical, lógica e formal (3); poesia da solidão compartilhada apenas pelos poucos que se encontram na mesma “disposição anímica” (4); tudo isto indica que em poesia lírica não há distancia­mento. (STAIGER, 1972, p. 51)

Essa ausência de distanciamento, isto é, o leitor não pode deixar de se envolver com o poema lido, faz com que haja, por vezes, confusão entre o eu lírico (manifestação subjetiva no poema) e o eu bio­gráfico (o poeta enquanto ser vivo). Para que essa diferença se torne mais clara, Angélica Soares (1989, p. 26) assim a qualifica:

1.º o eu lírico ganha sempre forma no modo especial de construção do poema: na seleção e combinação das palavras, na sintaxe, no ritmo e na imagística;

2.º assim, ele se configura e existe diferentemente em cada texto, dirigindo­nos a recepção;

3.º e, por isso, não se confunde com a pessoa do poeta (o eu biográfico), mesmo quando expresso na primeira pessoa do discurso.

Diferentemente do escritor que compõe a sua autobiografia e tenta descrever o passado, o poeta tenta compreendê­lo, o que pressupõe uma atitude objetiva, mas a autobiografia, que também faz a re­flexão sobre o passado, mantém um laço com o passado e com o relógio, ao passo que o poeta lírico, ao debruçar­se sobre si mesmo e sobre seu passado, o faz sempre no tempo presente, como se os fatos esti­vessem a seu lado, dominantemente ocorrendo, num fluir contínuo. “O passado como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação.” (STAIGER, 1972, p. 55). O fato de todos os teóricos tratarem dessa questão da confusão que pode se estabelecer entre sujeito lírico e sujeito empírico demonstra o quanto a poesia provoca a interação intensa do leitor com o texto, ao ponto de confundir o que se lê com o que se vive. Fernando Paixão (1982, p.31) também se detém no estudo dessa relação e considera esse tipo de subjetividade do ponto de vista discursivo e afirma:

Apoiada em sua força simbólica, a linguagem dos poetas – os bons poetas, é claro – se realça por ser um dos raros dis­cursos correntes em nossa sociedade em que existe o tom de confissão e de sinceridade, ainda que afirmem o contrário os famosos versos de Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. O dizer poético, ao meu ver, representa apesar de tudo um dos poucos que ainda mantêm uma relação de necessidade com a vida.

Podemos inferir o quanto de imaginada biografia e realidade podem conter os versos de Augusto dos Anjos:

Vozes de um túmuloAugusto dos Anjos

Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilhoDestes meus olhos apagou!... AssimTântalo, aos reais convivas, num festim,Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!Por quê?! Antes da vida o angusto trilhoPalmilhasse, do que este que palmilhoE que me assombra, porque não tem fim!

[...]

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 10: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

54 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Inconcebível na vida real esse poeta­defunto, mas perfeitamente possível na literatura. Lemos um texto em primeira pessoa, com “eu” explícito, mas que não pode ser acreditado integralmente. Trata­se de um texto simbólico, figurado, para tratar de assuntos relevantes à existência humana, como a força inexorável do tempo e da morte. Fica evidente que as semelhanças físico­biológicas que possam existir entre o eu lírico expresso nos verbos e pronomes de primeira pessoa desse texto não correspondem ao eu empírico Augusto dos Anjos, muito vivo no momento da escrita. Pode haver, sim, semelhanças anímicas e de pensamento, difíceis de serem comprovadas e aproximadas, porque pertencem ao ima­ginário e ao inconsciente do autor. Muitas vezes, o poeta nem comunga dos mesmos sentimentos e usa imagens comuns e constantes da literatura poética, repetindo­as por serem estéticas ou por estarem de acordo com aquelas usadas no período literário em que se enquadra sua obra.

Salete Cara (1989, p. 69) conclui a definição do que acredita seja a poesia lírica com a seguinte sín­tese: “o lirismo se encontra onde se encontra uma expressão particular cuja figura é criada pelas relações – de acorde ou dissonância – entre som, sentido, ritmo e imagens. Essas relações são comandadas pela visão subjetiva de um sujeito lírico”. Observe­se a importância dos termos que a autora grifou, porque eles expressam os elementos relevantes e indispensáveis à poesia de qualidade.

Todorov (1980), ao tratar do gênero lírico, apresenta quatro teorias para explicar a natureza do discurso lírico: a ornamental, a afetiva, a simbólica e a sintática. A ornamental é uma teoria pragmática que considera o poema como um artefato retórico, isto é, destinado a agradar e não a instruir. Conse­qüentemente, um bom poema lírico é o mais belo, o mais carregado de ornatos poéticos (figuras de linguagem, figuras sonoras, construções sintáticas elaboradas). A teoria afetiva considera que a poesia enfatiza os efeitos emotivos do poema, criando diferenças com a linguagem comum, mais voltada para a apresentação de idéias. A poesia busca o efeito afetivo, patético, de sentimentos. A teoria simbólica defende a diferença entre a poesia e a não­poesia estabelecida não pelo conteúdo, mas pela maneira de significar. Essa maneira está no uso das palavras no seu sentido de símbolos, isto é, na capacidade de exprimir o indizível, de realizar a fusão dos contrários, de ter valor intrínseco, em si mesmo, de não ser restrito a um sentido único. A teoria sintática prega “a coerência e unidade entre os diferentes planos do texto”, valorizando sua construção fônica, gramatical e semântica.

Mais uma vez é possível observar a pluralidade de enfoques existentes na compreensão e defi­nição do gênero lírico, de vez que ele está ancorado na história da literatura e da cultura, passível de transformações do ponto de vista da produção e da recepção dos textos literários.

A concepção musical da AntigüidadeA expressão mais antiga da poesia lírica provavelmente foi em forma oral, de modo a que a voz,

por si só, pudesse reproduzir a musicalidade das palavras. A poesia oral nasceu da intenção de colocar na estrutura do texto o sentido intensificado e a de buscar efeitos a serem obtidos junto aos ouvintes, como a descoberta de uma nova forma de olhar para o mundo e para o homem, os sentimentos, a des­crição da natureza.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 11: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

55|Gêneros literários: o lírico

Os tratados científicos da Antigüidade usavam o verso, mas nem por isso os textos pertenciam ao gênero lírico. “Entre gregos, egípcios e hebreus a lírica associava­se, primitivamente, às práticas reli­giosas. Todavia, os críticos romanos, caudatários dos gregos, enfatizaram­lhe o aspecto estético, ou seja, consideravam­na simplesmente uma poesia de natureza musical, acompanhada pela lira e destinada ao canto” (MOISÉS, 1997).

Quanto ao caráter musical da poesia oral e da escrita grega, é preciso salientar a constituição da língua grega clássica, cuja acentuação era intensiva (sílabas longas e sílabas breves) e não tônica, como na língua portuguesa. Salete Cara (1989, p. 15) esclarece:

Embora hoje em dia a gente não possa mais saber o que foi exatamente a música grega e pouca coisa tenha sobrado dos textos de poesia, a não ser fragmentos, é possível observar que as palavras não tinham posição secundária em relação à música, mas permaneciam com suas potencialidades de ritmo e canto. De canto com as próprias palavras, sem notas musicais.

Na Grécia primitiva, o termo que designava o poeta era aedo, que significava cantor. Era simulta­neamente o autor e o recitador de sua produção, o que o distinguia do rapsodo, que apenas executava os poemas de outro poeta.

Embora o primeiro poeta grego, Homero, tenha sido autor de dois importantíssimos poemas épi­cos, a Ilíada e a Odisséia, surgiu a necessidade de uma poesia individual, como expressão pessoal, tra­tando de acontecimentos da vida cotidiana e comunitária. Nascia a poesia lírica, para ser cantada com acompanhamento musical.

Entre os vários tipos de poesia lírica grega, destaca­se a poesia mélica (de “melodia”) que através de Safo e Alceu foi a que teve o acompanhamento musical mais completo e a maior liberdade de composição.

Havia também a poesia de coro e as elegias, que conservavam um pouco das relações com a poesia épica, na medida em que glorificavam deuses e vencedores de jogos, mantendo uma certa natureza política e bélica. (SOARES, 1989, p. 15)

Entre os latinos, predominou o termo “vate”, significando “adivinho, sacerdote”, visto que suas pa­lavras aproximavam­se das profecias, enunciadas por sacerdotes, por inspiração dos deuses. Essa deno­minação conferia ao poeta uma distinção entre os demais artistas. O termo reaparecerá mais tarde entre os poetas românticos, no século XIX, que se acreditavam inspirados por influxos que transcendiam o humano, com vocação distintiva dos outros mortais.

O livro sobre a arte poética, de Aristóteles, escrito no século IV a.C., contém o pensamento da An­tigüidade sobre a forma poética. Entre esses ensinamentos, salienta­se a atenção dada à metáfora, no capítulo XXI do texto: “A metáfora é a transposição de nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para a outra, por via da analogia” (ARISTÓTELES, 1964, p. 304). Na linguagem da poesia, segundo o pensador grego, a elocução do verso pode adotar diferentes espécies de nomes: ou o termo próprio, ou um termo dialetal (que ele não reco­menda), ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, a palavra forjada, ou alongada, ou abreviada1, ou modificada. Trata­se de modos de alterações nas palavras (seja por meio de mudanças neológicas, seja na composição do termo). É possível inferir que as palavras do autor visavam indicar que o texto poético tem o poder de intervir na língua cotidiana para criar efeitos significativos. Essa importância dada à linguagem permanece até os dias de hoje.

1 A língua grega era baseada em acentos de duração. Por isso, vogais longas produziam alongamento das palavras e as breves, sua abreviação. As alterações provocavam efeitos semânticos diferentes.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 12: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

56 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Lirismo, subjetividade e sentimentoÉ muito comum ouvirmos pessoas definirem a poesia como aquela que objetiva traduzir ou co­

municar sentimentos, como o amor, a amizade, a perda, a beleza da vida. Por conta dessa crença, a avaliação dos poemas tende a considerar o texto como simples tradução dos sentimentos pessoais do autor, confundindo freqüentemente a biografia do poeta com o eu lírico.

Massaud Moisés (1997, p. 307) acredita que a poesia contém “uma dada experiência e uma dada postura mental perante a realidade do mundo”. Essa concepção não significa que a beleza do texto este­ja unicamente centrada na subjetividade ou na sentimentalidade. Embora a força dos sentimentos seja muito grande na poesia lírica, é a organização do texto, são as palavras elaboradas de forma inovadora que transportam com maior eficiência e beleza o conteúdo subjetivo do poema.

[...] o aspecto mais característico do lírico [é] a ambigüidade do conteúdo e da sua expressão correspondente, resultan­te da permanente autocontemplação do poeta e, ainda, do próprio esforço de reduzir à equação poética os ingredien­tes do mundo interior: a metáfora representa, distorce, o conteúdo, tornando­o ou revelando­o ambíguo.

Por outro lado, a introjeção do poeta somente lhe permite esquadrinhar as primeiras camadas interiores, as que dizem respeito ao “eu” emocional e sentimental: o lirismo se constitui na manifestação imediata das inquietudes emocionais e sentimentais; no estado natural do “eu” para si próprio e, portanto, na expressão da resposta mais pronta do poeta em face dos estímulos externos e internos. [...]

O conceito emocional da poesia lírica explicaria o consórcio com a música: esta, porque fluida, meramente sonora, não­vocabular, não­significativa, parece traduzir de modo flagrante os contornos íntimos e difusos do poeta, infensos ao vocabulário comum. (MOISÉS, 1997, p. 309)

A poesia lírica nasce da necessidade de expressão individual no momento em que a cultura grega era dominada pela poesia épica, como a Ilíada e a Odisséia, que expressavam idéias e crenças da polis. Nessa poesia épica, “estética e ética andavam juntas” (CARA, 1989, p. 14), ao passo que a poesia lírica serviu para exprimir ainda certas marcas cívicas, mas já com acentuada ligação com a música.

Dois tipos de poesia lírica eram então comuns: a poesia mélica (melos = melodia em grego), “que, através de Safo e Alceu, foi a que teve acompanhamento musical mais completo e a maior liberdade de composição”; e a poesia de coro e as elegias, “que glorificavam deuses e vencedores de jogos, mantendo certa natureza política e bélica.” (CARA, 1989, p. 15). Observemos um poema de Safo (séc. VII a VI a. C.) para conferir essas características:

Basta­me ver­te e ficam mudos os meus lábios, ata­se a minha língua, um fogo sutil corre sob minha pele, tudo escu­rece ante o meu olhar, zunem­me os ouvidos, escorre por mim o suor, acometem­me tremuras e fico mais pálida que a palha: dir­se­ia que estou morta. (CARA, 1989, p. 16)

Mais do que sentimento, o que se pode afirmar é que a poesia lírica, por intermédio da musica­lidade e da liberdade de expressão, investiga a alma humana, nela explorando as reações diante da realidade (objetiva e de relações humanas) e, em especial, o inconsciente. A passagem das descrições bélicas, cívicas e coletivas (da poesia épica) para a individualidade e profundidade de exploração da alma humana não se deu num salto, de imediato. Foi passando por transformações lentas e históricas.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 13: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

57|Gêneros literários: o lírico

De uma atitude teologal, através da alegoria, pôde ensinar verdades da alma e da religião durante a Idade Média e o Renascimento.

Cumpre ressaltar que nesse período vigorou também, na poesia provençal e nas cantigas portu­guesas, uma forte corrente de poesia erótica nas cantigas d’escárnio e maldizer medievais e nos poemas de Manuel du Bocage (1765­1805) e Gregório de Matos Guerra (1623/1633­1696).

Após o Barroco, em que se filiam esses dois poetas, o movimento Iluminista do século XVIII criou uma poesia filosófica que desembocou no Romantismo do século XIX. Neste, a poesia tratou do infi­nito, do universo, da natureza e da espiritualidade, bem como – através de imagens em profusão, de símbolos e de musicalidade – dos sentimentos amorosos, da morte e da amizade. O Romantismo foi o grande responsável por essa avaliação da poesia lírica como um texto literário dominado pelo subjeti­vismo emocional, em que o poeta somente consegue atingir o ápice da arte na medida em que se deixa dominar pela esfera pessoal, por seu mundo interior. É verdade que o Romantismo traz para a arte um novo conceito de sujeito. Não mais o sujeito clássico “submetido à convenção universalista do logos – o “penso, logo existo” – que definia o ego da tradição clássica” (CARA, 1989, p. 30­31). Mas um novo con­ceito de subjetividade, relacionado à liberdade de expressão, à expressão da emotividade, à elevação do indivíduo­poeta para além da situação cotidiana e das funções sociais burguesas: o poeta se alçará à categoria de vate, um profeta inspirado pelos deuses.

Com a chegada do Simbolismo ao final do século XIX, em especial Rimbaud (1854­1891), e da vanguarda francesa, o poeta­vidente (voyant)2 mergulha no inconsciente, o que pode ser comprovado pela frase rimbaudiana: “Je est un Autre”(Eu é um Outro), indicando que a poesia fará um mergulho nas zonas nebulosas da mente, do inconsciente, procurando descobrir o monstro indecifrável que habita cada ser humano. A frase famosa foi escrita numa carta a Paul Demeny em 15 de maio de 1871 e traz uma concepção original para explicar a criação artística, pois indica que o poeta perdeu o controle so­bre o que se passa dentro dele. O poeta continua: “Assisto à eclosão de meu pensamento: eu o olho, eu o escuto...” Há um deslocamento da concepção clássica de subjetividade enquanto pólo de identidade. Perde­se essa unidade e essa referência.

O advento da Psicanálise e os estudos sobre o inconsciente, realizados por Freud, estão na base do Surrealismo e do modo automatizado de criação de poemas. O automatismo psíquico “pelo qual [os escritores] se propõem exprimir, seja oralmente, seja por escrito, seja por outras maneiras, o funciona­mento real do pensamento. Trata­se de construir poemas ditados sob a ausência de qualquer controle exercido pela razão e fora de qualquer preocupação estética ou moral” (VAILLANT, 2005, p. 26­27).

Ainda segundo Salete Cara (1989, p. 48), “o sujeito lírico moderno é aquele que, a partir do Simbo­lismo, toma consciência de que o espaço da poesia não é nem o espaço da realidade (a objetividade será impossível, portanto), nem o espaço do eu (a dita subjetividade será encarada também como ilusória).” Há, portanto, uma dissociação entre o sujeito lírico e a poesia que o expressa e o mundo dos sentimentos, cau­sada pela transformação da noção de sujeito e de subjetividade. Buscar nos poemas a manifestação exclu­siva de sentimentos equivale a desconhecer a natureza e as funções da poesia lírica contemporânea.

2 O termo aparece na obra Cartas de um Vidente (Lettres à um Voyant), de Rimbaud, publicada em 1871.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 14: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

58 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Lirismo e visualidadeUma nova percepção da linguagem poética, nascida na Grécia, vem ao encontro da vanguarda

da literatura no século XX: é a imagem visual. A construção do poema que não se restringe ao ritmo, tom ou sonoridade das palavras, mas agrega a tudo isso o componente visual. O poema se desenha juntamente com as palavras (e até mesmo sem elas), em composições que desafiam a inventividade dos poetas e a interpretação dos leitores.

Há formas diferentes de aproveitamento do espaço da página para que a imagem adquira visu­alidade e significação. A primeira forma é dos poemas figurados, “composições poéticas cujos versos se organizam de modo a sugerir a forma do objeto que lhes constitui o tema, como um ovo, coração, asa, pirâmide, altar, cálice, relógio etc.” (MOISÉS, 1997, p. 400).

Observemos um poema como o de Mário Quintana (1906­1994), reproduzido a seguir:

O mapa Mário Quintana

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 15: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

59|Gêneros literários: o lírico

Podemos perceber o quanto as palavras evocam espaços e paisagens: ruas, casas, o vento, o cor­po feminino são descritos e valorizados enquanto imagens de seres existentes no real. O leitor imagina essas imagens, sem que as palavras as desenhem de forma mimética no papel. Essa é a presença evocada das imagens numa poesia tradicional. O poema figurado traz essa imagem com palavras em posições e formatos que tentam reproduzir a referência externa. Vejamos, por exemplo, o poema abaixo:

Trata­se de um poema conhecido como “O ovo”, do grego Símias de Rodes, datado de três séculos antes de Cristo. As palavras são dispostas de maneira a reproduzir a imagem do significado que traduzem.

Guillaume Apollinaire (1880­1918) criou no início do século XX para esse tipo de texto o nome de caligrama3. Os hieróglifos egípcios foram os primeiros caligramas conhecidos. A eles segue o poema de Símias de Rodes. Esse tipo de composição existiu ao longo da Idade Média e do Barroco, mas teve seu desenvolvimento mais intenso com as criações de Guillaume Apollinaire. Também pode ser designado,

3 Do grego, que significa “escrita bela”.

Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar,

Suave mistério amoroso,

Cidade de meu andar

(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 16: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

60 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

além de poema figurado, como carmen figuratum, pattern poem, bildergedicht ou poema figurativo. Ve­rifique um exemplo de caligrama de Apollinaire:

La cravate et la montreGuillaume Apollinaire

Tircis

semaine

l’infiniredressé

par un foude philosophe

et levers

dantesqueluisant et

cadavérique.

le belinconnu

les Musesaux portes de

ton corps

Moncœur

lesyeux

l’enfant

Agla

la main

laa

beau

de

la

vie

pas

se

la

dou

leur

de

mou

rir

L A C R A V A T E

DOULOU

REUSEQUE TUPORTES

ET QUI T’ORNE O CI

VILISÉ,OTE-

LASI

TU VEUXBIEN

RESPIRER

COMME L’ ON

S ’ A M U S E

BIEN

lesheures

Ilest—

5en

fin

Ettoutserafini

Esse poema francês tem como título “A gravata e o relógio” 4. Como pode ser observado, são as pa­lavras que, por sua distribuição pelo espaço da página, constroem e visualizam as imagens. Do mesmo poeta, o poema “Paysage” sugere uma árvore:

4 Os exemplos de caligramas e de poesia visual, como os que são aqui apresentados, podem se obtidos na internet no site <www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/caligrama.htm>.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 17: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

61|Gêneros literários: o lírico

Guillaume Apollinaire

CET ARBRISSEAU

QUI SE PRÉPARE A FRUCTIFIER

TE RES SEM BLE

A inspiração de Apollinaire foi o Cubismo, arte de vanguarda que buscava geometrizar as imagens, insis­tindo, portanto, no valor visual e de síntese que a pintu­ra poderia mostrar. Apollinaire, convencido da força da imagem, denominou esses textos “lirismo visual” e in­fluenciou os artistas que o sucederam, a tal ponto que estimulou a integração entre o visual, a palavra, o som e o uso do espaço. “Várias formas modernas de poesia, como a surrealista, a experimentalista, a concreta e a visual, ex­ploraram as possibilidades de figurativização textual pro­pondo caligramas como o ‘Pêndulo’ (1962), de E. M. de Melo e Castro”, segundo Carlos Ceia (2006), à esquerda.

A presença das ima gens visuais, nascidas do de­senvolvimento da tecnologia, da sociedade imagéti­ca em que estamos imersos e da inven­tividade dos poetas

contemporâneos, fez nascer um novo tipo de poesia, denominada poesia visual. Nela, as palavras não precisam necessariamente repre­sentar a imagem. A visualidade pode vir representada por outros signos não­verbais, como no exemplo de Ernesto Manuel de Melo e Castro, ao lado.

Jayro Luna (2005, p. 74­75) assim analisa o texto:

No caso da utilização de elementos estatístico­probabilísticos na poesia concreta portuguesa, tomemos como exemplo um poema de E. M. de MeIo e Castro, “Soneto soma 14 X”, do livro Poligonia do Soneto, 1963.

É um soneto que se insere naqueles que farão a crítica do soneto como for­ma poética.

O “Soneto soma 14 X” é composto de números e, nesse sentido, conhe­cendo algumas da regras compositivas do soneto, e observando que, no caso deste poema, a soma dos números de um verso devam totalizar 14, é possível subtrair­se alguns versos e pedir a alguém que complete os versos faltantes, num raro exercício de análise matemática da forma.

P

P

P

P

P

P

P

P

Ê

Ê

Ê

Ê

Ê

Ê

N

N

N

N

N

D

D

D

D

U

U

U

L

L

O

Ernesto Manuel de Melo e Castro

Soneto soma 14 X

1 4 3 4 2 2 3 3 0 6 4 1 6 1 2 3 2 2 1 6

5 0 0 1 8 2 1 2 5 4 1 4 0 1 8 3 2 4 1 4

3 1 2 3 5 5 4 1 2 2 3 0 4 2 5

4 3 3 1 3 5 1 2 1 5 8 9 3 5 3

Ernesto Manuel de Melo e Castro

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 18: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

62 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

O soneto em questão apresenta rimas numéricas, assim, no caso da reconstituição, é possível, sabendo­se com qual determinado verso rima, já saber de antemão qual o último dos cinco números que compõem o verso. Os outros qua­tro números do verso resultaram de uma soma baseada no fato do total do verso dar 14, e de que não há um só verso repetido neste soneto. Observe­se ainda, que o último verso deste soneto, o verso “chave de ouro”, dá soma 28 (duas vezes 14), como que a querer dizer que é um verso que vale mais do que os outros.

Numericamente, portanto, é possível neste nosso exercício de reconstrução produzir variantes do soneto, mas que, funcionalmente, exerceram o mesmo papel desempenhado pelo original de Melo e Castro, que crítica justamente a forma padrão para o fazer poético.

Cabe observar, ainda, que se retirássemos não um verso, mas somente um número de cada verso, a possibilidade de reconstrução integral do soneto, em relação ao original, seria de 100%.

Trata­se da evolução do poema lírico ao longo da história da literatura, com a contribuição de no­vos tempos e novas tecnologias. Há, nessa visualidade, inteira correspondência com o modo de olhar da contemporaneidade e com a possibilidade de criar múltiplos objetos, mantendo sempre a capacidade de surpreender e de provocar descobertas no leitor.

Texto complementar(ELLIOT, 1972, p. 33-35)

Espero que todos concordem em que todo bom poeta, seja ele ou não um grande poeta, tem algo a dar além do prazer: pois, se fosse somente prazer, o próprio prazer não seria no maior grau. Além da intenção específica que a poesia possa ter [...], há sempre a comunicação de alguma experi­ência nova, de algum entendimento novo do familiar, ou a expressão de alguma coisa que sentimos mas para a qual não temos palavras, que amplia nossa conscientização, ou apura a nossa sensibilida­de. Entretanto, assim como não se refere à qualidade do prazer individual, essa conferência também não diz respeito aos benefícios individuais causados pela poesia. Creio que todos entendem quer o tipo de prazer que a poesia pode dar, quer o tipo de diferença, além do prazer, que traz a nossas vidas. Sem produzir esses dois efeitos, simplesmente não há poesia. Podemos ter conhecimento disso, mas ao mesmo tempo negligenciar algo que a poesia faz para nós coletivamente, enquanto sociedade. E digo isso no seu sentido mais amplo, pois considero importante que cada povo tenha sua própria poesia, não apenas para aqueles que gostam de poesia – esses podem sempre apren­der outras línguas e deleitar­se com sua poesia – mas porque faz realmente diferença na sociedade como um todo, e isso para as pessoas que não gostam de poesia. Estou incluindo até mesmo os que desconhecem os nomes de seus poetas nacionais. Esse o tema real dessa conferência.

Podemos observar que a poesia difere de qualquer outra arte por ter para o povo da mesma raça e língua do poeta um valor que não tem para os outros. É bem verdade que até a música e a pintura têm uma característica local e racial, mas, evidentemente, as dificuldades de apreciação dessas artes, para um estrangeiro, são bem menores... Por outro lado, é verdade também que os escritos em prosa têm, em sua própria língua, um sentido que se perde na tradução; todos nós per­cebemos, porém, que estamos perdendo muito menos ao ler um romance traduzido do que ao ler um poema: e na tradução de alguns tipos de trabalho científico a perda pode ser virtualmente nula.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 19: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

63|Gêneros literários: o lírico

Que a poesia é muito mais local do que a prosa pode ser verificado na história das línguas européias. Através da Idade Média até há algumas centenas de anos, o latim continuava sendo a língua usada para a Filosofia, Teologia e Ciência. O impulso para o uso literário das línguas dos povos começou com a poesia. E isso se torna perfeitamente natural ao percebermos que a poesia está primeira­mente ligada à expressão dos sentimentos e das emoções, e que sentimentos e essas emoções são particulares, embora isso seja geral. É mais fácil pensar numa língua estrangeira do que sentir nela. Portanto, nenhuma arte é mais obstinadamente nacional do que a poesia. E um povo pode ter sua língua extirpada, e ser obrigado a usar outra língua nas escolas, mas, a não ser que se ensine àquele povo a sentir na nova língua, não se conseguirá extirpar a antiga. E ela reaparecerá na poesia, que é o veículo do sentimento. Acabei de dizer “sentir na nova língua” e refiro­me a algo bem maior do que apenas “expressar seus sentimentos numa nova língua”. Um pensamento expresso numa língua diferente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou emoção expres­sos numa língua diferente não são o mesmo sentimento e a mesma emoção. Uma das razões para aprendermos bem pelo menos uma outra língua é a de adquirir uma espécie de personalidade suplementar; uma das razões para não assimilar uma nova língua em lugar da nossa própria é a de que nenhum de nós quer se transformar numa pessoa diferente. Uma língua superior dificilmente poderá ser aniquilada, a não ser através do extermínio do povo que a fala. Quando uma língua suplanta outra é porque, geralmente, tem vantagens que a recomendam e que oferecem não só a diferença em si, mas um nível maior e mais refinado para o pensamento e para o sentimento do que a língua inicial mais primitiva.

As emoções e os pensamentos, então, expressam­se melhor na língua comum ao povo – ou seja, a língua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som, o idioma de uma língua expres­sam a personalidade do povo que a fala. Quando digo que a poesia mais do que a prosa está ligada à expressão da emoção e do sentimento, não quero dizer que a poesia precisa despir­se de todo conteúdo intelectual ou significado, nem que a grande poesia tem conteúdo igual ao da poesia menor. Desenvolver essa pesquisa, porém, afastar­me­ia muito de minha finalidade imediata. Vou considerar como certo que todos encontram a expressão mais consciente de seus sentimentos pro­fundos na poesia de sua própria língua mais do que em qualquer outra arte ou na poesia de uma outra língua. Isso não significa, evidentemente, que a verdadeira poesia se limita aos sentimentos que qualquer um pode reconhecer e compreender; não devemos limitar a poesia popular. É sufi­ciente que num povo homogêneo os sentimentos dos mais refinados e complexos tenham algo em comum com o dos mais rudes e simples. [...]

Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só indiretamente voltado para seu povo: seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar preservar, em segundo am­pliar e melhorar. Ao expressar o que os outros sentem, ele está também modificando o sentimento, tornando­o mais consciente: está fazendo com que as pessoas percebam melhor o que sentem, ensinando­lhes, portanto, algo a respeito de si mesmas. Mas ele não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é, também, individualmente diferente das outras pessoas e também dos outros poetas, e pode fazer com que seus leitores compartilhem conscientemente novas sen­sações ainda não vivenciadas. Essa é a diferença entre o escritor meramente excêntrico ou louco e o poeta genuíno. O primeiro pode ter sensações únicas mas não partilháveis, e, portanto, inúteis; o segundo descobre novas variações de sensibilidade que podem ser utilizadas por outros. E ao expressá­las ele está desenvolvendo e enriquecendo a língua que fala.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 20: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

64 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Estudos literários1. Escolha três letras de canções populares brasileiras. A seguir, escreva essas letras em folhas sepa­

radas e descubra se elas têm características de poemas líricos.

2. Avaliação do “Soneto do amor total”, poema da obra de Vinícius de Moraes. Aplique no texto a teoria sobre poesia lírica, e discuta o resultado obtido.

Soneto do amor totalAmo­te tanto, meu amor ... não cante

O humano coração com mais verdade ...

Amo­te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade.

Amo­te afim, de um calmo amor prestante

E te amo além, presente na saudade.

Amo­te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo­te como um bicho, simplesmente

De um amor sem mistério e sem virtude

Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde

É que um dia em teu corpo de repente

Hei de morrer de amar mais do que pude.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 21: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

65|Gêneros literários: o lírico

3. A partir do soneto de Shakespeare aqui reproduzido, estabeleça comparação com o soneto de Vinícius de Moraes na atividade 2.

SonetoLanço­me ao leito, exausto de fadiga,

Repousa o corpo ao fim da caminhada;

Mais eis que a outra jornada a mente obriga

Quando é do corpo a obrigação passada.

A ti meu pensamento – na distância –

Em santa romaria então me leva,

E fico, as frouxas pálpebras em ânsia,

Olhando, como os cegos vêem na treva.

E a vista de minh’alma ali desvenda

Aos olhos sem visão tua figura,

Que igual a jóia erguida em noite horrenda,

Renova a velha face à noite escura.

Ai! que de dia o corpo, à noite a alma,

Por tua e minha culpa têm calma.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 22: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

66 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br

Page 23: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário · e Fundamentos do Texto Literário ... A concepção musical da Antigüidade | 54 Lirismo, ... [...] a extensão da composição

Gabarito

Gêneros literários: o lírico

1. O aluno deve

ver na afirmação as funções que podem estar no escrito – experiências, estados e processos ::::psíquicos;

relacionar essas funções com a necessidade de representação no palco – entoação, gestos, ::::tempos de fala, movimentos no palco;

concluir pela necessidade de unir o texto escrito e o texto encenado.::::

2. O aluno

verá que a catarse tem função de ensinamento e de moralização;::::

vai encontrar em Bertolt Brecht a mesma função de ensinamento e de objetivo social do tea-::::tro, que é o de conscientizar os espectadores;

vai verificar que as peças que tratam de problemas sociais e de denúncia de injustiças sociais ::::têm a mesma função;

deve concluir que a catarse, em sua natureza mais profunda, permanece em todo o teatro que ::::tenha como finalidade instruir e conscientizar os espectadores.

3. O aluno deve verificar que as rubricas direcionam bastante bem a ação dos atores e as expressões faciais e gestuais: declamando, guardando a carta, olha para a rua, pela janela.

Há muitos provérbios antigos ou ainda presentes em nossa cultura. Esses provérbios justificam o título da peça: “Antes assim que amortalhado”, “como Deus é servido”, “quem não deve não teme” e outros.

O conflito se dá entre a rejeição de Inês e a insistência em casar da parte de Isaías.

Esse material é parte integrante do Aulas Particulares do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.aulasparticularesiesde.com.br