Conciliação e Mediação como pilares do novo Judiciário

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  • 7/28/2019 Conciliao e Mediao como pilares do novo Judicirio

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    CONCILIAO E MEDIAO COMO PILARES DO NOVO JUDICIRIO

    ANDR GOMMA DE AZEVEDO

    Um dos grandes desafios para o Poder Judicirio no sculo XXI consiste em desafiarposies singularistas de que para cada conflito de interesse s pode haver uma soluocorreta a do magistrado, que sendo mantida ou reformada em grau recursal, torna-se averdadeira soluo para o caso. A ideia de que o jurisdicionado, quando busca o PoderJudicirio, o faz na nsia de receber a soluo de um terceiro para suas questes vemprogressivamente sendo alterada para uma viso de Estado que oriente as partes paraque resolvam de forma mais consensual e amigvel seus prprios conflitos e, apenasexcepcionalmente, como ltima hiptese, se decidir em substituio s partes.

    Naturalmente, essa noo de substituio e excepcionalidade no se mostra, ao menosno campo terico, em nada inovadora. Processualistas tm sustentado h quase umsculo que a jurisdio deve ocupar o campo destinado atividade secundria deresoluo de disputas. Isso porque a jurisdio possui uma propriedade fundamentaldenominada substitutividade. Essa tida como a atribuio do Estado de substituir avontade das partes envolvidas no conflito para, quando provocado, definitivamentecompor a lide.

    Desde o incio da dcada de 1990, iniciou-se o estmulo conciliao por meio dereformas legislativas como poltica pblica de alterao sistmica do Poder Judicirio. Como incio do Movimento pela Conciliao, do Conselho Nacional de Justia, em 2006,passou-se a trabalhar a noo de que o Estado precisa preparar o jurisdicionado paraadequadamente utilizar o sistema pblico de resoluo de disputas.Alegoricamente, imagine-se um cirurgio que, ao adentrar uma sala de cirurgia, nota queo paciente est com roupas cotidianas e sujo no passou pela assepsia usual a essaprtica. O mesmo, com adaptaes necessrias, foi identificado na prtica brasileira daconciliao. Frequentemente, partes chegavam conciliao sem a adequadapreparao: pelo conciliador, pela empresa, ou mesmo pela parte pessoa fsica. Ocirurgio recebia apenas breves apontamentos tericos de como operar e ospacientes, sem nenhuma orientao de como se prepararem. O tempo da cirurgia eradefinido pela pauta do cirurgio e no pela complexidade do caso. No era sem motivo apatente insatisfao com a conciliao no final do sculo XX e nos primeiros anos dosculo atual.

    O ano de 2012, no mbito da conciliao, foi marcado pela preparao de conciliadores eprepostos para uma atuao mais profissional na conciliao e na mediao. Merecemdestaque as seguintes iniciativas: i) o lanamento, pela Secretaria de Reforma doJudicirio e pelo Conselho Nacional de Justia, da Escola Nacional de Mediao eConciliao Enam; ii) a formao de instrutores em mediao judicial e conciliao pelaEnam/CNJ-SRJ; iii) os cursos de capacitao de prepostos de empresas; e iv) a adoode meios de Resoluo de Disputas Online (RDOs) por empresas que, por intermdio deatendentes treinados em tcnicas de negociao e mediao, lograram ndices nuncaantes obtidos.

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    i) A Escola Nacional de Mediao e Conciliao EnamPouco tempo aps o Movimento pela Conciliao ser lanado, em 2006, a Secretaria deReforma do Judicirio, do Ministrio da Justia, apoiou a iniciativa. Construiu-se, ento,uma das mais importantes parcerias entre os Poderes Executivo e Judicirio para a

    implantao de novas forma de soluo de disputas. Desde ento, tem-se trabalhado coma premissa de que possvel uma abordagem mais pluralista dentro do prprio PoderJudicirio, aceitando-se que podem existir diversas respostas concomitantementecorretas (e legtimas) para uma mesma questo levada a juzo. Nessa hiptese, cabe spartes construrem a soluo para suas prprias questes e, assim, encontrarem aresposta que melhor se adeque ao seu contexto ftico. Dessa forma, passa-se a buscar oresgate, sempre que possvel, do relacionamento social pr-existente ao conflito. Aospoucos, abandona-se a perspectiva de que, no Poder Judicirio, as partes esto em ladosopostos, para se adotar a viso de que podem estar do mesmo lado.

    Nesse contexto, com o intuito de criar conjuntamente um centro de difuso deconhecimento e prtica de mtodos consensuais de resoluo de conflitos, criou-se aEscola Nacional de Mediao e Conciliao - Enam, cuja atuao se dar em trs eixos.So eles: i) capacitao de operadores do Direito, membros da academia e da sociedadecivil; ii) realizao de seminrios e outros eventos de difuso do conhecimento; e iii)promoo de projetos e atividades de ensino e pesquisa.

    A Enam, dirigida pelo conselheiro Jos Roberto Neves Amorim, do Conselho Nacional deJustia, e pelo secretrio de Reforma do Judicirio, Flvio Caetano, do Ministrio daJustia, comea os seus trabalhos com um ambicioso objetivo: melhorar a percepo dojurisdicionado em relao ao Poder Judicirio e desfazer a viso de que este consisteexclusivamente em uma instituio de sentenas. Assim, adota-se progressivamente aperspectiva de que o Poder Judicirio essencialmente um rgo de aproximao depessoas em conflito ou um hospital de relaes sociais.

    ii) A formao de novos instrutores em mediao judicial e conciliao pelaEnam/CNJ-SRJAps a identificao do reduzido nmero de instrutores em mediao e conciliao nopas, o CNJ e a SRJ envidaram esforos para multiplicar o nmero de instrutores emmediao e conciliao no Brasil, visando a formao de efetivos facilitadores quedesempenhem suas funes satisfatoriamente para a populao. As aulas foramministradas para servidores dos tribunais de Justia e voluntrios, com a condio de jpossurem ampla experincia em mediao. Os novos instrutores, para receberem seuscertificados, devem lecionar cinco cursos bsicos de mediao sem custo aos tribunaisou aos participantes e so tambm avaliados pelos seus prprios alunos.

    iii) Cursos de capacitao de prepostos de empresasSeguindo preocupao de melhor preparar os usurios para utilizar adequadamente osistema pblico de resoluo de disputas ou, como indicado acima, preparar opaciente para a cirurgia , diversos tribunais, dentre os quais o TJ-DF, o TJ-RJ e o TJSP,iniciaram treinamento de capacitao de prepostos. Nesses treinamentos, advogadose diretores jurdicos e financeiros das empresas so estimulados a identificar falhas

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    comuns na atuao cotidiana em conciliaes, dentre as quais destacam-se: a)desconsiderar o custo de imagem que uma conciliao mal administrada pode gerarpara a empresa. Muitas empresas despendem significativos recursos para captar novosclientes, mas no consideram o custo de perder um cliente em razo de uma atuaodescuidada do preposto na conciliao. Nesses treinamentos, estimula-se as empresas a

    considerarem o custo da captao do novo cliente (gasto com propaganda e marketingdividido pelo nmero de novos clientes por ano) ao planejarem como ser a atuao dosseus prepostos na conciliao; b) negociar na conciliao como se estivesse emaudincia de instruo. No que concerne adequada compreenso das partes eadvogados quanto s caractersticas intrnsecas da conciliao, cumpre registrar que huma prtica profissional especfica em processos autocompositivos. Na conciliao, aadoo de uma postura do preposto deve ser humanizada, zelosa e solucionadora, sobpena do outro interessado/parte no se engajar de forma plena no processo de resoluode problemas que, em essncia, o trabalho da conciliao. A compreenso de que aconciliao seria uma instruo disfarada somente contribui para a imprpria conduoda conciliao e, por conseguinte, baixa resolutividade, excessiva litigiosidade e,naturalmente, insatisfao das partes com seu desenvolvimento; c) tentar vencer oconflito. Ao tratar o conflito como uma dinmica na qual um dos envolvidos pode saircomo claro vencedor, transformando o outro em patente perdedor, frequentemente aspartes envolvidas se engajam em condutas competitivas visando mais do que vencer,incutir a perda ao outro. Como resultado, ao menos parcialmente, ambos tendem a perdere inadvertidamente abdicam de diversos interesses que possuem, como a manuteno dorelacionamento social pr-existente com a outra parte ou a resoluo dos pontoscontrovertidos como objetivamente apresentados no incio do conflito, no em razo deum acirramento do conflito que se expandiu tornando-se independente de suas causasiniciais. A percepo, em um determinado conflito, de que necessrio que a partevena a outra e no objetivamente resolva os pontos em relao aos quais aspartes divergem faz com que as partes envidem esforos para prejudicar uma outrae no necessariamente apenas resolvam os pontos controvertidos; d) perceber aconciliao como alternativa. A experincia dos ltimos 30 anos tem mostrado que ocomprometimento com a forma de resoluo de disputa adotada (com respectivascaractersticas) influi significativamente no adequado desenvolvimento do processo e, porconseguinte, na satisfao das partes com a soluo alcanada. Empresas e escritriosde advocacia que tratam a conciliao ou mediao como uma forma secundria deresoluo de disputas tendem a no investir em treinamento de seus advogados eadministradores. Como consequncia, h o exerccio intuitivo desses processos, que emregra se resume a aplicar a conduta profissional caracterstica do processo judicial mediao ou conciliao. Naturalmente, como visto acima, essa prtica intuitiva, emregra, leva ao desvirtuamento da conciliao e a consequentes custos mais elevados (oureduo dos nveis de satisfao dos usurios).

    Merece destaque que, aps o treinamento de prepostos e advogados no TJ-DF, osndices de conciliao subiram em mais de 120%. Empresas como Vivo, Tim e Casas Bahiareceberam treinamento e o Ncleo Permanente de Mediao e Conciliao ofereceu essetreinamento sem nenhum custo aos participantes.

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    iv) o estmulo adoo de meios de Resoluo de Disputas Online (RDOs) porempresas, por intermdio de atendentes treinados em tcnicas de negociao emediao.

    A empresa de telecomunicaes SKY Brasil Servios Ltda. recebeu o prmio Conciliar

    legal do Conselho Nacional de Justia em razo do desenvolvimento de um projeto depreveno de litgios. Trata-se de um totem de negociao direta, informalmentechamado de totem de conciliao, ao qual se redireciona uma demanda queoriginalmente seria proposta em um juizado especial para uma videoconferncia com umatendente treinado em tcnicas de negociao e mediao. Com isso, a referida empresabuscou reduzir a perda de clientes em razo de demandas judiciais propostas. O projetoiniciado no primeiro semestre deste ano at o presente momento alcanou ndices deacordo de quase 100%. Da referida prtica, merece destaque a preocupao da SkyBrasil de manter clientes ao final do processo de resoluo de disputas e zelar pelaestratgia de marketing da empresa, cuja preocupao de ter os clientes maissatisfeitos tem se estendido do momento da captao de novos clientes at odirecionamento de processos de resoluo de disputa. Ademais, como indicado acima,consta implicitamente a poltica institucional da citada empresa de que a conciliao sejao principal meio de resoluo de disputas, deixando-se o processo judicial como meioexcepcional.

    Com muito bem indicado pelo conselheiro Neves Amorim, o Poder Judicirio tem passadopor mudanas profundas quanto sua essncia, deixando de ser um espaodesumanizado de prolao de sentenas para ser um centro vivo de solues reais para ojurisdicionado. Nota-se a formao de um Judicirio 2.0, que correlaciona o conceito deacesso Justia no com o acesso norma positivada aplicada ao caso concreto oque o manteria significativamente singularista , mas com a efetiva satisfao dojurisdicionado, dentro de parmetros realizveis, com o processo de resoluo dedisputas. Dessa forma, a prpria concepo de Direito costurada com uma abordagemmais pluralista. Esse Judicirio 2.0 est to somente adequando-se essa novaconcepo de Direito apresentada contemporaneamente por diversos autores, dos quaisse destaca Boaventura de Souza Santos, segundo o qual concebe-se o direito como oconjunto de processos regularizados e de princpios normativos, considerados justificveisnum dado grupo, que contribuem para a identificao e preveno de litgios e para aresoluo destes atravs de um discurso argumentativo, de amplitude varivel, apoiadoou no pela fora organizada[1].

    [1] SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia daretrica jurdica. Porto Alegre : Fabris, 1988, p. 72.

    ANDR GOMMA DE AZEVEDO juiz de Direito na Bahia, pesquisador associado daUniversidade de Braslia e membro do Comit Gestor da Conciliao do ConselhoNacional de Justia.

    Texto publicado originalmente no Conjur, em 01/01/2013.

    http://www.conjur.com.br/2013-jan-01/retrospectiva-2012-conciliacao-mediacao-pilares-judiciariohttp://www.conjur.com.br/2013-jan-01/retrospectiva-2012-conciliacao-mediacao-pilares-judiciario