Concurso para o Ministério Público Federal: um testemunho

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CONCURSO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: UM TESTEMUNHO 1 Bruno Costa Magalhães 2 Campinas, 07 de abril de 2011. Gente, boa tarde! Então vamos começar? Hoje teremos a última palestra do nosso ciclo de palestras para os estagiários e servidores – última e décima sétima palestra do nosso ciclo, que foi muito bem-sucedido. Ele começou de propósito com um tema sobre o Ministério Público. E termina também de propósito com um tema sobre o Ministério Público, mas agora sob o enfoque do concurso. Por quê? Porque é claro que o estágio de vocês aqui – e de um modo geral qualquer estágio – é um convite ao estagiário. Você faz estágio em um escritório, você faz estágio em uma empresa, e ali há uma espécie de namoro. A empresa se mostra para o estagiário, e o estagiário se mostra para a empresa, para uma futura relação. Há ali uma espécie de conhecimento mútuo, e há uma proposta, claro, do órgão, da empresa, para que o estagiário, se cativado pela instituição em que ele fez estágio, ingresse naquele sistema agora como uma peça fundamental, como uma peça realmente mais perene. No nosso caso aqui não há a contratação. Por melhor que vocês sejam aqui, não vai adiantar nada! Vocês não poderão entrar no órgão porque foram bons aqui. Vocês terão de prestar um concurso público, difícil – um dos mais difíceis do país, na verdade –, para, aí sim, ingressar no MPF como membros mesmo. Então há de haver um salto maior. Mas não deixa de ser verdade que aqui vocês estão conhecendo o MPF e mais ou menos tentando ver se é o seu caminho, se não é o caminho de vocês e, enfim, não sendo esse o caminho, qual será o caminho de vocês no Direito de um modo geral. É claro que existe um caminho possível entre vocês hoje 1

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CONCURSO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:

UM TESTEMUNHO1

Bruno Costa Magalhães2

Campinas, 07 de abril de 2011.

Gente, boa tarde! Então vamos começar?

Hoje teremos a última palestra do nosso ciclo de

palestras para os estagiários e servidores – última e décima sétima palestra do

nosso ciclo, que foi muito bem-sucedido. Ele começou de propósito com um

tema sobre o Ministério Público. E termina também de propósito com um tema

sobre o Ministério Público, mas agora sob o enfoque do concurso. Por quê?

Porque é claro que o estágio de vocês aqui – e de um modo geral qualquer

estágio – é um convite ao estagiário. Você faz estágio em um escritório, você

faz estágio em uma empresa, e ali há uma espécie de namoro. A empresa se

mostra para o estagiário, e o estagiário se mostra para a empresa, para uma

futura relação. Há ali uma espécie de conhecimento mútuo, e há uma proposta,

claro, do órgão, da empresa, para que o estagiário, se cativado pela instituição

em que ele fez estágio, ingresse naquele sistema agora como uma peça

fundamental, como uma peça realmente mais perene.

No nosso caso aqui não há a contratação. Por melhor

que vocês sejam aqui, não vai adiantar nada! Vocês não poderão entrar no

órgão porque foram bons aqui. Vocês terão de prestar um concurso público,

difícil – um dos mais difíceis do país, na verdade –, para, aí sim, ingressar no

MPF como membros mesmo. Então há de haver um salto maior. Mas não deixa

de ser verdade que aqui vocês estão conhecendo o MPF e mais ou menos

tentando ver se é o seu caminho, se não é o caminho de vocês e, enfim, não

sendo esse o caminho, qual será o caminho de vocês no Direito de um modo

geral.

É claro que existe um caminho possível entre vocês hoje

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e o MPF daqui para a frente, daqui a alguns anos. Esse caminho existe. Basta

que vocês consigam visualizá-lo, ver quais são os possíveis percalços no

caminho – que há pedras, é claro que há. Se a sua aprovação está, digamos,

em uma montanha, é claro que vai haver tempestades, vai haver noites

sombrias, vai haver situações muito difíceis pelas quais você terá de passar,

até chegar nessa meta final que é o concurso do MPF. É um concurso muito

difícil. E você às vezes se verá de fato como Dante Alighieri se viu no meio da

vida, na selva tenebrosa, e perdeu a estrada. E aí? Para onde é que eu vou? Isso aí é muito real!

Nesse caminho que você trilha, em relação a qualquer

coisa na vida – e o concurso do MPF para mim foi muito isso –, nesse caminho

que eu trilhei, eu me via perdido em selvas tenebrosas e não sabia muito bem

para onde ir. Mas eu logo me achei e vocês vão entender como é que isso

aconteceu na minha vida.

O que eu posso fazer por vocês é isso. Eu não posso

fazer como Virgílio fez com Dante: conduzi-los pelas mãos até o final do

concurso. Mas eu posso mostrar o que eu fiz, mostrar como eu fui conduzido,

por quem, e como eu cheguei até aqui. Talvez vocês, ouvindo isso aqui,

consigam adaptar para o caso de vocês e consigam iluminar o caminho de

vocês nesse sentido.

Eu vou dizer hoje muita coisa que já se passou há oito,

dez anos na minha vida. Enfim, também é um modo de prestar contas com o

meu passado. Eu nunca falei sobre isso assim nesses termos; eu sempre

comento uma coisa ou outra, mas eu nunca sentei para rever como foram

esses três ou quatro anos da minha vida, entre 1999 e 2003. Já se passaram de

oito a doze anos – a gente até assusta, porque já se passaram muitos anos, não

é? Mas é uma forma também de voltar atrás e, enfim, colocar um ponto final.

Eu não pretendo dar aulas de auto-ajuda, não pretendo dar aulas em cursinhos

preparatórios. Pretendo realmente só mostrar como é que eu fiz isso aqui – e

talvez isso ajude vocês.

O tema foi sugerido, se não me engano, pelo estagiário

Rogério, não é? O Rogério sugeriu esse tema: Como passar no concurso de procurador da República. Então a ideia também é a de suprir essa carência que

vocês, claro, sentem. Como é que foi isso? Eu sentia isso também! Quando eu

estava prestando concurso, eu queria saber como é que aquele cara passou. E

eu quase nunca tive acesso direto, para perguntar: Vem cá, como é que você passou? O que você fez? Eu quase nunca tive essa chance de perguntar para as

pessoas que tinham passado.

Então eu vou contar um pouco como foi a minha vida

nesse aspecto, no que importa a essa minha aprovação nos concursos públicos.

Eu sou o filho mais velho dos meus pais. Meu pai se

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formou em Direito, um pouco mais tarde que o normal, e é advogado; minha

mãe trabalhou durante muito tempo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais; e

eu mais ou menos cresci nesse ambiente de Direito. Eu não me lembro de

nenhuma fase, nenhuma época em que realmente tive que decidir fazer Direito.

Eu não tive nenhum tipo de dúvida existencial. Eu de fato não sei dizer quando

foi que eu decidi fazer Direito. Eu sei que chegou o terceiro ano, às vésperas do

vestibular, e era isso mesmo, entendeu? Eu de fato não consigo perceber

quando foi que eu decidi fazer Direito.

Ontem mesmo eu vi, com a minha esposa, o filme Hobin Hood, com o Russell Crowe, e teve uma cena que me lembrou isso. No filme ele

acaba encontrando uma espada, e nela está escrito Rise and rise again, until lambs became lions, ou seja Lute, lute e levante-se, até que os cordeiros se transformem em leões. É claro que é uma frase de inspiração bíblica – embora

não seja bíblica. Na Bíblia, Cristo é o Cordeiro e ele virá no fim dos tempos

como o Leão de Judá. Mas o que importa é que, no filme, o Russell Crowe vê

essa frase e ele não sabe ainda por quê, mas ele se sente inspirado a lutar – eu

não vou contar o filme inteiro –, a entrar na luta ali, de início contra o rei, e

depois a favor do rei. E ele passou o filme inspirado por aquela frase, e

tentando entender o porquê. Ele não consegue entender muito bem. E lá pelas

tantas, mais para o final do filme – eu posso contar porque não é o segredo do

filme, esse filme não tem o segredo, mas por quem não viu eu sinto muito, eu

vou contar porque faz parte da palestra! –, quando ele está já às beiras da luta,

ele descobre, por um rapaz que conheceu o pai dele, que na sua própria

infância ele vira essa frase pela primeira vez com o próprio pai. Então aquilo

ficou ali no fundo, no inconsciente dele, e quando ele reviu aquela frase, ele

não lembrava de onde era, mas serviu para que ele se inspirasse, serviu para

dar forças a ele, não é? Talvez haja alguma coisa assim na minha vida, alguma

relação com o meu pai de que eu ainda não consegui juntar o elo. Mas eu de

fato não sei o que foi que me fez dizer: Eu vou fazer Direito, eu vou fazer isso aí. Eu sei que foi acontecendo, e eu cheguei ao vestibular e marquei Direito, não teve outra situação.

No colégio, eu nunca fui um aluno muito excepcional.

Também não era muito medíocre. Sempre fui mediano. Eu me lembro que na 8ª

série do ensino fundamental eu caí um pouco de nível. Eu tinha notas muito

boas em Inglês, Geografia, História, Matemática, e eu caí um pouco de nível. Eu

não sei o que aconteceu, eu não me lembro muito bem o que aconteceu, eu

peguei recuperação em algumas matérias, mas consegui passar. Eu me lembro

que eu fiquei mais mediano ainda. Passava despercebido mesmo, não era

nenhum daqueles primeiros da sala, de jeito nenhum.

E isso foi importante para mim. Por quê? Porque eu

nunca foi exaltado pelos colegas de sala. Tem sempre aqueles melhores da

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turma, não é? – Esse aí vai passar em Medicina na UFMG, Esse aí vai passar em Direito, Aquele outro é o foda, Esse aí estuda demais, Aquele lá sabe tudo de Física – eu nunca fui desses. Eu sempre estava ali – sei lá – como a média.

E eu me lembro que no vestibular – lá em Belo

Horizonte, na época, havia quatro faculdades de Direito (hoje devem ter mais

de dez), que eram a UFMG, a Milton Campos, a PUC e a Fumec – eu não tentei a

Milton Campos; eu tentei a Federal, a PUC e a Fumec. Eu não sei por que, mas

eu coloquei na cabeça que eu faria a PUC. Eu falei: Olha, eu quero passar na PUC, que era uma das particulares, e eu achava que era mais viável passar na

PUC; eu achava que não era capaz de ir para a Federal. Eu não tinha essa

ambição. E na minha turma também já estava certo quem ia passar e onde, o

pessoal já tinha feito um mapa do território – lotearam as vagas das faculdades

públicas!

E eu me lembro que eu prestei o vestibular da Federal,

passei na primeira etapa, fiz um cursinho para a prova subjetiva – cursinho que

foi muito importante para mim3. E eu fui para Guarapari, a praia dos mineiros no Espírito Santo, em janeiro. Eu fiz a prova e fui para lá com o meu pai, meus

irmãos, e com algumas amigas de sala. O resultado saiu em janeiro. Eu me

lembro que eu passei a noite em claro, em alguma festa – não me lembro bem –

e amanheci no dia seguinte para comprar o jornal Estado de Minas com a lista

de quem havia passado na Federal. E estava lá o meu nome na lista de

aprovados. Passei na Federal! Falei: Caramba! Fiquei maravilhado. Meu pai não

entendeu nada, minhas colegas de turma ficaram muito assustadas com aquilo

e eu fiquei muito feliz, lógico! Passei na Federal, não esperava! Era uma

faculdade pública, a melhor de Minas e tal. E isso me serviu muito porque me

ensinou a primeira lição: Descobri o meu próprio valor. Não aceitei o consenso geral a esse respeito – que abre essa listinha aí que eu distribuí antes de

começar a palestra. Eu descobri na verdade que há duas realidades: há o

consenso geral das pessoas a seu respeito e a há a sua realidade mesmo,

aquilo que você é de verdade.

Eu acho que eu tenho uma resistência para isso; não sou

tão influenciável assim pelo meio – na verdade, sou um pouco, ninguém está

livre disso, não é? Tem gente que é isenta, passa de liso, nada influencia aquela

pessoa para o mal – e às vezes nem para o bem.

Mas eu me lembro disso. Eu vi o meu nome na lista e

olhava para aquelas pessoas que já haviam loteado as vagas na Federal e me

perguntava: Cade vocês? O que aconteceu com vocês? E concluí que aquilo

tudo que eu ouvia e sentia era pura ilusão! Não adianta você se exaltar antes

do tempo. Isso aí é pura ilusão mesmo! A hora do vamos ver é a hora da

realidade.

Isso foi muito importante para mim. De fato, eu estudei

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no Colégio Batista Mineiro, e das turmas daquele ano apenas três pessoas

passaram em Direito na Federal. Alguns outros passaram na PUC, na Fumec e

na Milton Campos.

Aquilo foi um choque positivo para mim. E eu assustei,

falei: Caramba, eu sou capaz de fazer alguma coisa, não é? Eu não tinha baixa

auto-estima – não se trata disso. Mas no consenso ali eu não estava no top ten.

Eu estava lá no meio. Então foi importante descobrir essa capacidade de vencer

os desafios. É claro que eu fiz a prova para passar. Eu não fui ali cumprir tabela.

Mas eu não tinha muita esperança de passar. O meu negócio era a PUC-Minas

mesmo, eu já estava com isso na cabeça. Mas acabou dando certo.

Uma coisa também interessante. Eu sou o primeiro filho,

o primeiro neto, o primeiro bisneto e o primeiro sobrinho da família – quando

acontece isso o pessoal cria muita expectativa em cima da gente4. Eu não sei

se algum de vocês é primeiro filho, primeiro neto, mas isso aí é muito

complicado: todo mundo quer que você seja o cara da família, não é? Isso foi

muito ruim para mim, eu me lembro que eu sentia muita pressão na infância. E

isso, com o tempo, sumiu, desapareceu. Eu fui ficando jovem, adolescente, e

tudo aquilo sumiu. Enfim, ninguém esperava nada de mim, eu era uma pessoa

normal, e a vida corre para a frente, não é? E esse mecanismo criou um certo

desajuste saudável entre o que eu esperava de mim e o que os outros

esperavam de mim. E isso foi muito importante: eu não media os meus desafios

pelo que os outros esperavam de mim – e sim eu fui colocando as minhas

próprias metas. Mas a Federal foi mesmo um susto, não foi uma meta que eu

me coloquei conscientemente e venci. Foi de fato meio que um atropelo.Sobre essa situação, eu disse que eu tenho uma certa

resistência ao meio. Há pessoas que não têm essa resistência. É importante

que vocês saibam disso. Vocês têm que ter uma capacidade de resistir ao meio.

A quem não tem muita noção de como é que isso funciona – eu também não

tinha muita noção, eu tive consciência disso há pouco tempo atrás, quando eu

fui fazendo a análise e percebendo a situação –, há um artigo interessante do

sociólogo francês Claude-Lévi Strauss chamado O feiticeiro e sua magia, que

está em um dos livros dele – Antropologia Estrutural5. Ele fez um estudo com

sociedades selvagens e analisou como uma maldição, pelo chefe da tribo, pode

chegar inclusive a matar uma pessoa. Uma pessoa que é amaldiçoada pela

tribo, pelo grupo – não é algo assim sobrenatural, não é magia no sentido

misterioso da coisa; ele vai contando como é que a coisa funciona –, vai

perdendo os laços sociais dela de tal forma que ela degenera completamente, a

psique dela se degenera e ela vira um pária naquele local ali, naquela

sociedade – é claro que é um ambiente fechado –, e ela acaba morrendo

mesmo, ela se afasta da tribo para morrer. Tudo isso por efeito da sociedade, do

grupo mesmo. A morte daquela pessoa não veio do Céu, foi efeito do grupo

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dela. O pajé do grupo, digamos assim, lançou a maldição, espalhou aquilo e

aquilo vai virando verdade mesmo, as pessoas vão agindo de acordo com

aquilo.

Então você conseguir se dissociar da opinião do meio,

em alguma medida, é muito importante. Primeiro porque você pode estar sendo

rebaixado de modo indevido. As pessoas podem não ver a sua própria luz, e

você tende a não vê-la também. Você está com ela mas não consegue percebê-

la, não tem acesso a ela. E o contrário também é verdade: você pode estar

sendo exaltado de modo indevido. O colocam no trono, e na hora do vamos ver você cai, já era. Então é importante essa dissociação, em alguma medida, da

opinião geral.

Você tem sempre que escutar, é claro, pois pode ter ali

uma dica importante para você. Você pode se achar o cara, e às vezes você não

é o cara. É bom você ouvir a opinião das pessoas; você tem que ouvir os outros

para saber disso, mas não vá apenas na linha do que dizem para você; tente

também ver o que você tem de potencial, não é? Eu não tenho um método para

isso, mas vocês têm que olhar para dentro, se colocar nos desafios mesmo, e ir para a briga, vencer, perder e ver onde é que está a verdade. Se você ficar

apenas nesses consensos sociais, você irá se ferrar. Eles são poeira mesmo, são

pó, é apenas ilusão. Eles podem ter alguma pista da realidade, mas enquanto

opiniões são apenas pó, não são a realidade.

Eu passei na Federal, e comecei a fazer o curso de

Direito. Entrei no segundo semestre. E eu comecei o curso com o pé esquerdo.

Por quê? Na Federal – eu não sei se hoje ainda é assim –, havia o Ciclo Básico. O

que é isso? No primeiro semestre juntavam-se as turmas de ciências humanas –

enfim, em uma mesma turma havia alunos de Direito, de Sociologia, de

Ciências Políticas, de tudo que é tipo de ciências humanas –, para fazer o

mesmo curso, o mesmo semestre. Tínhamos aulas de Filosofia, de Política, de

Economia. É um ótimo ambiente! É bem legal mesmo! Tem gente de tudo o que

é espécie lá na Fafich. E tínhamos aulas de Direito também.

E eu me lembro que cheguei na primeira aula de Direito,

na aula de ICD – Introdução à Ciência do Direito, e eu já cheguei na segunda

aula, e atrasado. Eu não me lembro bem como foi, mas acho que me trocaram

de turma, da A para a B, e a turma B já havia tido uma aula anterior a que eu

não tinha ido. E eu cheguei no meio da segunda aula e eu vi os meus colegas

de sala falando grego. Eles falavam de propedêutica filosófica, de epistemologia jurídica. Eu entrei naquela sala e fiquei meio deslocado. Eu não estava

entendendo nada! Eu saí daquele semestre sem entender quase nada de

Direito! Eu me lembro de dois ensinamentos básicos que eu guardei da época:

a Norma Fundamental, do Hans Kelsen; e me lembro de uma frase, sobre a

norma jurídica, também do Kelsen, que a professora6 repetia sempre, que dizia

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que eficácia é condição de validade. Eu só sei disso – aliás, hoje eu sei um

pouco mais, mas eu só sabia isso na época. E foi um susto para mim. Eu era um

peixe fora d´água, eu não estava entendendo nada, eram termos que não

tinham muita ligação com o meu dia-a-dia, e eu fiquei um pouco perdido.

No segundo semestre, para piorar as coisas, houve uma

greve na Federal, de uns três ou quatro meses. E eu ficava em casa, sem fazer

muita coisa. Eu ainda não estava engajado no curso, não estava no DCE – eu

nunca fui disso. Fiquei em casa, sem ter o que fazer. E eu volvei a um hábito

antigo meu – dos 15 aos 20 anos eu tive bandas de música –, eu voltei a tocar

com as minhas bandas.

Eu tive uma banda de cover dos Beatles7, e outra de pop rock nacional – e eu voltei a tocar com eles. Só que essas bandas não tinham

muito show na época. Era difícil arrumar show para tocar Beatles. Difícil

demais! Em especial porque Beagá tem as duas melhores bandas de cover dos

Beatles do Brasil, que são a Sgt. Pepper´s e a Hocus Pocus – são bandas ótimas.

Inclusive eu ia muito aos shows deles8. Então com as minhas bandas não tinha

muita apresentação, era praticamente só diversão mesmo. E durante a greve

eu queria alguma coisa mais aninada. Então – eu vou ter que confessar aqui –

eu entrei em uma banda de pagode! É triste! Eu resisti muito! Um amigo meu

me convidou – se é que isso é convite que se faça a um amigo – e eu resisti

muito a princípio; falei: Cara, eu sou um cara honesto, eu não vou entrar nisso aí! Mas a banda tinha shows todo final de semana, eu estava em greve na

faculdade, a banda ali, todo mundo tocando, aquela coisa toda, aquela festa,

muita gente bonita e tal. Eu falei: Eu vou entrar, não custa nada! Eu comecei a

tocar pagode – isso é triste mas eu comecei a tocar! Mas eu conto isso por quê?

Porque isso fez parte do meu aprendizado da humildade.

Nessa época eu comecei a prestar concurso de nível

médio. Meu pai foi um cara muito sofrido, muito pobre. De fato ele passou um

perrengue desgraçado. E nunca me deu muita facilidade na vida. Ele conseguiu

ser um bom advogado e me deu boas condições – por exemplo, naquela época

eu já tinha ido duas vezes para fora do país, para os Estados Unidos –, mas era

um cara que tinha muita consciência de dinheiro, e começou a apertar o

orçamento, e eu comecei a ver que era hora de eu ganhar o meu dinheiro.

Então eu comecei a prestar concurso público.

O primeiro concurso que eu fiz foi um da BHTrans, que é

o órgão de trânsito de Beagá – é como se fosse a Emdec aqui de Campinas, um

órgão municipal. E eu me recordo que para esse concurso – eu nunca tinha feito

concurso na vida – eu fiz matrícula em um cursinho de Beagá chamado Orvile

Carneiro, para aprender gramática e algumas noções de Direito, que caíam

nesse concurso. E eu sei que alguns caras da banda de pagode também fizeram

esse concurso. E, na época, a coisa já inverteu: se no vestibular eu estava

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muito humilde, aí eu já estava arrogante. Por quê? Porque eu estava na Federal,

não é? É como se fosse a USP aqui em São Paulo, entenderam? Era a melhor

faculdade de Minas Gerais. E eu cheguei para fazer o concurso, que era um

concurso de nível médio, ou seja, pessoas que nem faziam Direito estavam

prestando o concurso também – os pagodeiros estavam lá fazendo o concurso!

Eu prestei o concurso e achei que tinha ido muito bem.

Aí eu conferi o gabarito e vi que eu tinha ido muito mal. Eu fui muito mal

mesmo! Eu não me lembro quantas questões tinha. Mas, digamos, em vinte

questões de gramática eu acertei três. Eu olhei aquilo e falei: Não pode ser! Tem algum equívoco aqui, não é? Não pode ser! É claro que eu fiz mais de três! É lógico! Eu sou o cara!

Mas eu conferi o gabarito oficial e de fato era isso

mesmo! Quando eu conferi a lista de aprovados, eu vi que tinha alguns caras,

não da banda, mas que estavam ali, que eram amigos da banda, que tinham

passado, que sequer faziam o curso de Direito, e que passaram no concurso –

sei lá, talvez porque tinham mais tempo de estudo e tal. E aquilo foi um choque

negativo, vocês percebem, não é? Eu fui humilhado ali. Eu falei: Caramba, eu não sei nada de gramática! Eu não sei nada, nada, nada! Um absurdo isso! Que fracasso completo! Aí eu assimilei a segunda lição: Com humildade, aceitei as minhas deficiências e trabalhei sobre elas. Eu vi que eu não sabia nada de

português, de gramática, tinha uma noção muito precária mesmo. E eu resolvi

estudar gramática. Mas não foi fácil. Eu prestei outros concursos ainda, de nível

médio. Eu prestei para o TRE-MG e para o TCE-MG, no mesmo esquema: caía

gramática e noções de Direito. Para esses dois concursos eu também fiz

cursinho e, no TRE-MG, tomei ferro, e, no TCE-MG, tomei ferro de novo. Não

consegui aprender gramática.

E aí saiu um outro concurso, que era para Oficial do

Ministério Público de Minas Gerais, um cargo de segundo grau também. Nessa

época eu já fazia estágio – depois eu voltarei a falar sobre os estágios – e

prestei esse concurso, que tinha dezoito vagas. Eu me lembro que o sócio do

meu pai – nessa época eu saía da faculdade ao final da manhã e ia ao escritório

do meu pai, almoçar com ele; ele não morava em casa e eu estava próximo

dele na hora do almoço. Foi muito bom nessa época, eu estava mais próximo

dele e a gente conversava muito –, o sócio dele, como eu ia dizendo, muito

cético, muito sarcástico, olhou aquilo e falou: Concurso, dezoito vagas, Ministério Público? Rapaz, desiste! Uma vaga é para a filha do procurador de justiça, a outra vaga é para a amante dele, a outra para a outra filha, a outra para a mulher... Você não tem chance nisso aí! Pode esquecer! Concurso público é difícil, você não vai conseguir passar nisso aí! Dezoito vagas é muito pouco! Eu olhava para aquele cara e dizia para mim mesmo: Caramba! O mundo só nos joga para baixo! O cara só quer me desanimar!

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Naquela época eu descobri que eu não ia aprender nada

em cursinhos. Eu fiz três cursinhos para aprender gramática e não aprendi

quase nada. Mas também eu era muito desatento, não é? Eu falei: Eu vou ter que aprender sozinho. Vou ter que pegar as provas antigas e vou ter que aprender. O que eu fiz? Eu comprei três gramáticas, que eu vi que eram as mais

legais: a do Domingos Paschoal Cegalla, uma azul do Hildebrando A. de André e

uma do Pasquale com o Ulisses Infante. Eu comprei as três e as li mesmo. Ali eu

estava empenhado; ali eu comecei a me empenhar de verdade nos estudos –

porque eu queria passar no concurso. Eu tinha uma certa pressão em casa, eu

estava gastando o dinheiro do meu pai, e ele falando: Espera aí, não é assim! Eu falei: Eu vou ter que ganhar dinheiro.

E eu comecei a ler e li muita gramática, li muito mesmo,

fiz centenas de exercícios de gramática. E eu de fato estava pronto para o

concurso, que tinha – não me lembro bem – quarenta ou cinquenta questões de

gramática, e eu errei apenas quatro; quase fechei a prova mesmo. Mas eu não

passei entre as dezoito vagas. Passei na 21ª vaga. Me chamaram poucas

semanas depois. Eu fui chamado e entrei nesse cargo no qual eu fiquei por dois

anos e meio. Foi um cargo que me foi muito importante durante o curso –

quando entrei nele eu estava no 5º período da faculdade. Mas eu já volto a esse

cargo, que foi o meu primeiro emprego, para contar como foi.

Eu fiz quatro estágios. O meu primeiro estágio eu fiz na

6ª Vara Cível de Contagem – um município próximo de Beagá –, com o juiz de

direito Estevão Lucchesi de Carvalho, que foi colega de faculdade do meu pai.

Era um estágio voluntário, a princípio, mas ele quis me pagar do bolso dele um

salário mínimo, que estava em R$120,00 – dava para comprar alguns livros e

pagar a passagem até Contagem. Eu pegava o 1116 na Avenida Olegário

Maciel, no centro de Beagá, gastava quase uma hora até Contagem e voltava à

tarde. Era uma função muito interessante! Eu digitava as atas de audiência

para o juiz e fazia relatórios de sentença. E – aliás, engraçado – eu já ficava à

direita do juiz – o juiz aqui, as partes ali na frente. Eu fiquei ali uns seis meses e

isso foi muito bom para mim, porque foi ali que eu decidi de fato o que eu

queria ser na vida: eu olhava para o juiz e achava um cara normal, eu olhava

para o advogado e achava um cara normal, mas quando eu olhava para o

promotor de justiça, que estava à esquerda, eu falava: É esse cara que eu vou ser! Eu não sei o que era! Era uma vara cível e de família, onde o promotor

quase não faz nada, só dá parecer. Mas eu olhava para ele e falava: É essa cara aí que eu vou ser! Eu olhava e ficava extasiado com o negócio. Vocação é isso:

você vê o negócio e fala: É isso! – tem uma ressonância mesmo. Eu fiquei ali

seis meses. E esse promotor de justiça, chamado Wagner Lúcio Teixeira Leão,

nem sabe que foi ele quem me inspirou. Ele nem sabe disso, mas foi ele que

me inspirou, quando eu o via naquela função – ele na verdade foi usado para

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isso, ele foi usado por Deus como instrumento dessa minha inspiração, não é?

Daquele ponto em diante eu falei: Eu vou ser isso aí. Eu não tinha nenhuma

dúvida de que eu queria ser esse cara aí, de que eu me sentaria ali naquela

cadeira mais cedo ou mais tarde.

O segundo estágio que eu fiz – eu já havia saído do

primeiro – foi na Biblioteca da PGJ-MG, também voluntário (esse foi voluntário

mesmo). Foi um colega de sala9 – que já estagiava lá – quem me arrumou esse

estágio; lá eu fazia contrarrazões em recursos criminais perante o Tribunal de

Justiça. Foi um estágio muito interessante. Foi lá que eu descobri o concurso de

Oficial do Ministério Público; foi de lá que eu fiz o concurso e passei.

Os dois estágios seguintes eu já os fiz trabalhando no

Ministério Público. Eu trabalhei um bom tempo lá de 7h às 13h – eu tinha uma

carga horária diária de seis horas. E à tarde eu fiz estágio – foram poucos

meses, pois era muito cansativo – por três meses na DAJ (Divisão de Assistência

Judiciária) da UFMG, onde eu assistia aos carentes, entrava com ações para

eles. Foi uma época curta, mas eu de fato advoguei, fazia audiências com os

monitores, em casos de família, causas de imóveis, brigas de vizinhos,

consumidor. Foi um estágio muito bom esse da DAJ, também voluntário.

Por fim, fiz um estágio no MPF, um estágio também

curto. Fiz a prova para estagiário, passei, e fiquei ali uns quatro meses – pois

estava muito cansativo, não estava rendendo muito. Então eu preferi manter o

meu trabalho de seis horas, que também era muito interessante, era voltado

para a área jurídica, a fazer o estágio ali. Estava muito pouco produtivo, na

verdade; não era como o estágio de vocês aqui hoje, pois aqui tem muito

trabalho, e lá tinha muito pouco trabalho – pelo menos para mim na condição

de estagiário. E eu saí. Então eu fiz esses quatro estágios.

Voltando ao meu emprego no MP: nele eu fiquei dois

anos e meio, e ele foi muito importante para mim. Por quê? Porque lá eu de fato

comecei a ver mais de perto os profissionais – e isso já é o tema da terceira

lição: Convivi com pessoas que chegaram ao objetivo que eu buscava. Eu

comecei a ver promotores de justiça que estavam atuando mesmo. E lá tinha

um grande negócio, que era o seguinte: eu estava na Promotoria da Infância e

da Juventude de Belo Horizonte, para onde iam muitos dos promotores de

justiça recém-aprovados no concurso. Eles faziam um pequeno estágio de

alguns meses lá, antes de assumirem as próprias comarcas, em algum fim-do-mundo de Minas Gerais10. Eles passavam um tempo ali. Então eu via esse

pessoal recém-aprovado. Era muito interessante isso aí. O pessoal tinha

acabado de passar, e eu sentia que eles tinha saído do forno mesmo. Eu via no

rosto deles aquela surpresa, aquele maravilhamento, aquela coisa gostosa de

acabei de passar e estou aqui fazendo o que eu quero. Era muito gostoso ver

isso neles... Eu também tinha muito contato com os promotores mais

10

Page 11: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

experientes11, eu os via fazendo a coisa na prática, eu via que eles tinham

família, que eram pessoas normais. Eu tive muito essa noção de como é ser promotor de justiça ali mesmo.

Na Promotoria da Infância eu fazia todos os ofícios e

reduzia a termo as declarações das pessoas que eram atendidas, quando era o

caso. Por uma época eu inclusive cheguei a atender aos menores infratores. Se

o adolescente é flagrado em algum ato infracional ele é levado à delegacia; se é

no mesmo dia de manhã, ótimo; se não, ele dorme na delegacia e é levado no

dia seguinte ao MP. Para quê? Para que o promotor converse com ele. Há essa

conversa antes, esse diálogo, essa oitiva do adolescente infrator, para que se

decida se se vai representá-lo (no caso, a denúncia se chama representação), ou se vai haver a remissão, que é um perdão – há também essa possibilidade,

de se perdoar o menor infrator. E eu fui escalado para acompanhar o promotor

nessa época12; eu fiquei alguns meses fazendo isso. E foi ali que eu vi que a

coisa era séria, porque eu tinha que ter postura de promotor – eu não era

promotor ainda , mas eu tinha que ter postura –, tinha que ter cara séria, tinha

que dar um sermãozinho ali no cara, não é?

Era muito triste o que eu via ali todos os dias. Eu via

jovens de 14, 15 anos, já no tráfico de drogas, roubando, pichando, às vezes já

até matando, todos eles ali na minha frente. O promotor ao meu lado,

conversando com alguns deles, e eu falando com alguns outros. É muita miséria

humana! Ali de fato eu vi o que significa esse cargo, ou pelo menos o que

significava naquele contexto da infância e da juventude: é uma luz que aquele

adolescente ainda tem – se é que ainda há alguma salvação pelas mãos

humanas ali – para ouvir alguma coisa e tentar mudar de caminho. E eu me

lembro que eu ficava bastante emocionado com a situação praticamente

irreversível de alguns jovens e ficava muito chocado com aquela miséria

humana. Não que eu vivesse isolado do mundo; eu não fui aquele cara que

viveu isolado do mundo13, mas eu não tinha muita proximidade com aquela

miséria ali – e isso foi muito importante para mim também.

Por isso é que eu falo: é bom conviver com quem passou

no concurso, com quem é aquilo que você quer ser. Isso é muito interessante

porque tem coisas que não tem como você explicar por palavras.

Vocês vejam que Platão disse que havia uma parte de

sua filosofia – a parte mais importante – que ele nunca iria escrever, porque ele

não iria conseguir explicar por meio de um texto escrito – e nem a fala mesma,

por si só, era suficiente. Só a presença dele, perante os alunos dele, é que era

capaz de passar esse conhecimento. Por exemplo, imaginem como é aprender

marcenaria ou culinária pelos livros; e aprender marcenaria e culinária vendo

alguém fazendo – vendo o marceneiro cortando a tábua, batendo os pregos, e

vendo a cozinheira cozinhando o alimento. É só olhando para a coisa que você

11

Page 12: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

vai aprender o que é aquela atividade, como é que se faz aquilo, o que há por trás daquele ser humano fazendo aquilo. Se você fizer apenas pelos livros, você

pode até aprender, mas você provavelmente não terá acesso àquela substância humana em atividade.

E foi naquele trabalho, no qual eu fiquei por dois anos e

meio, que eu consegui captar isso – a essência do que é ser promotor de

justiça. Eu decidir antes – mas foi ali que eu me animei muito a ser esse cara.

Foi ali que eu vi que era possível ser – eu via pessoas normais, seres humanos

normais que se empenharam e passaram no concurso. Eu vi os desafios que

tinham ali para ser desenvolvidos e isso foi muito bom. Foi ali que eu consegui

realmente imaginar o que é isso. Muitas vezes falta isso na gente: nós

queremos uma coisa mas não temos a noção do que é aquela coisa. Você tem

apenas o símbolo. O que é o promotor? É o cara que denuncia. Mas você não

tem noção do que é um ser humano ser promotor de justiça, você não tem essa

noção clara. É importante você perceber isso nas pessoas que já estão lá.

Eu me lembro também nessa época em que eu já estava

estudando para concurso, eu tive acesso a um texto, escrito pelo Damásio de

Jesus, que eu encontrei pela internet, chamado Para ser juiz de direito, que me

foi muito importante. É um texto curto, de umas quatro ou cinco folhas, no qual

ele conta o período de faculdade dele, em Bauru; e como foram os estudos

dele. E ele conta que enquanto os amigos dele, ou outras pessoas, estavam se

divertindo à noite e tal, ele ficava trancado no quarto à noite lendo os tratados

de Basileu Garcia, o grande penalista, enfurnado nos livros, se deliciando com

as teorias e com aquela coisa toda. E ele queria ser juiz de direito. E ele colocou

no porta do armário do quarto dele – não sei se com estilete –, ele escreveu lá:

Serei juiz. Caramba! Eu olhei aquele negócio e falei: Que força tem esse cara! Serei juiz! Ele não falou assim: Se tudo der certo, de repente, no futuro... Ele

falou: Serei juiz. Se fechou ali e estudou até ser juiz mesmo – aliás, eu não me

lembro se ele chegou a ser juiz ou se foi apenas do MP, mas, enfim, ele é super

bem-sucedido. E eu li aquele texto umas três ou quatro vezes e falei: Caramba! Que força incrível esse cara tem! Serei juiz e dane-se o mundo! Serei juiz e

acabou! O mundo pode cair – eu serei juiz! Isso foi muito importante para mim.

Eu vi ali uma força muito grande que eu tinha em mim – e eu só não tinha

achado ainda. Mas ela estava dentro de mim. Eu ia ser promotor de justiça

mesmo, eu ia ser esse cara.

Essa terceira sugestão da lista que vocês tem nas mãos

foi o que eu fiz nesse meu emprego, com essa convivência, com a observação

mesmo dos profissionais. Você não vai vencer se você não compreender o que

é aquilo, se você não conseguir assimilar aquelas qualidades em você. Você já

tem que ter aquilo de algum modo em você. Tem que ter coragem,

perseverança, força de vontade. E vai ter que ir incorporando aos poucos, e não

12

Page 13: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

há forma melhor de fazer isso do que assimilar isso dos outros, não é? Isso é

uma grande dádiva de Deus, os outros estão aí para nos ensinar mesmo. É uma

troca muito importante com aqueles que venceram. E eu tive isso, graças a

Deus, nesse meu primeiro emprego.

Eu me lembro inclusive que eu era tão a fim de passar

em concurso que eu até escrevia cartas para as pessoas. Eu me lembro, por

exemplo, que eu fiquei sabendo que alguém passou para juiz de direito e foi

para tal cidade. E eu conhecia a pessoa por ouvir dizer, porque era amigo de

um amigo, e eu mandava carta para essa pessoa e falava: Vem cá, como é que você passou? Como é que você fez? Me explica aí... Ninguém nunca respondeu,

não é? Mas eu precisava saber como é que era aquilo, como é que se fazia

aquele negócio. Havia alguns segredos que eu ainda não sabia e precisava

saber. E foi tendo essas pessoas por perto – eu nunca perguntei: Vem cá, me ensina? – que eu comecei a observar mesmo.

Eu me lembro que eu olhava muito os livros dos

promotores de justiça lá da Promotoria da Infância e da Juventude – com a

permissão deles –, e via os grifos, os comentários e via: Poxa, esse cara estudou mesmo, esse cara pegou no pesado, ele fez por onde. E eu fui

assimilando essas qualidades em mim. Eu já tinha um pouco disso e fui

assimilando mais e mais.

E porque é importante você ir imaginando essas coisas?

Eu me lembro inclusive que, às vezes, eu pegava algumas manifestações que

eu fazia para os meus chefes – isso até hoje era segredo, mas eu vou contar

para vocês aqui –, pegava algum rascunho e eu imprimia lá, e em vez de

colocar o nome deles eu punha o meu nome: Bruno Costa Magalhães, promotor de justiça – e eu assinava! Eu era um mero oficial do Ministério Público mas eu

assinava como promotor de justiça; e eu ficava olhando aquela folha nas

minhas mãos assim e falava: Caramba, bonito pra caramba esse negócio! E eu

olhava aquilo e sentia uma ressonância com o que estava dentro de mim – É isso mesmo! Bateu! A minha assinatura que vocês conhecem hoje, um pouco

esquisita, veio daquela época. Eu falei: Eu tenho que assinar como um promotor... E inventei uma assinatura igual a de promotor mesmo, toda cheia

de confusão e tal.

Enfim, você tem que imaginar você no cargo. Se você

não consegue imaginar, meu amigo, você não vai entrar no negócio. Se é uma

coisa distante, ela vai continuar distante para você. Será sempre um sonho e

você não vai conseguir chegar até ele. Você tem que imaginar a situação. E é

curioso, ninguém sabia desse fato até hoje, vocês são os primeiros a saber.

E por que isso? Porque nossa vontade é muito variável.

Vocês sabem que vontade não é como desejo, não é? Há diferença entre desejo

e vontade. Desejo é um mero querer. O desejo é muito fraco. Por quê? Porque o

13

Page 14: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

desejo está voltado apenas para o aspecto bom da coisa – Eu desejo um bolo de chocolate, Eu desejo ganhar dinheiro –, você só deseja a parte boa das

coisas. Só que na vida as coisas vêm com todas as facetas, com os aspectos

bons e com os aspectos ruins. O desejo é fraco por isso: porque ele só deseja o

que é bom, o que é agradável. E aqui, nesta Terra aqui, em tudo há um misto

de coisas boas e de coisas ruins, na mesma situação – não tem jeito. A vontade

só é forte quando você abrange também o sacrifício, abrange também o lado

ruim das coisas. Porque tudo tem um lado ruim, tudo tem um sacrifício, não

tem jeito.

A vontade é forte por isso: ela deseja também o

caminho, ela deseja caminhar, tropeçar; a vontade aspira a tudo isso; ela aspira

ao lado ruim também da carreira – porque existe o lado ruim da carreira, a

gente sofre muito também, há sofrimento, há desafios, tem dia em que você

fica muito frustrado. A vontade abrange isso também, e por isso ela é forte: ela

abrange tudo. Ela já compreendeu o objeto, ela entendeu o que você quer e vai

fundo. Com a vontade firme você se trabalha por completo: aquele aspecto seu

que quer a coisa boa e aquele que a princípio não queria a coisa ruim – queria

fugir dela – estão no mesmo diapasão, estão na mesma toada, você está

completo na direção do objeto.

Por isso é interessante você ter uma vontade firme,

conhecer o lado ruim e querer também ele – claro, querer que ele seja o menos

ruim possível, mas também querer o lado ruim da carreira, querer o desafio,

querer perder noites de sono, querer se ferrar mesmo. É estudar demais – isso

faz parte também.

Há um poema interessante do Carlos Drummond de

Andrade, chamado A máquina do mundo, no qual ele fala um pouco disso aí.

Ele fala de um ser humano que sempre desejou as coisas, mas quando chega a

hora ele não consegue dar o passo seguinte, ele não consegue abraçar a coisa.

É um poema que começa com ele caminhando em uma

estrada de Minas, no fim da tarde. Segundo o poema deixa transparecer, ele

sempre foi desejoso de conhecimento, ele sempre quis saber os mistérios do

mundo, ele sempre quis saber como é que funcionam as coisas, sempre quis ter

acesso a esse mistério do mundo. E ele está lá, caminhando na estrada de

Minas, e aparece a máquina do mundo – que é o símbolo disso tudo para ele;

ela simboliza e mostra para ele naquele momento, num relance, tudo o que ele

sempre quis, e o chama: Vem cá!. Ele fala no poema: me chamou para seu reino augusto. E nessa hora a vontade dele vacila. Ele quis tanto aquilo, mas

naquela hora ele meio que vacila, não é? Nós temos isso em nós. Nós temos

dentro da gente uma força que briga contra a gente. Freud dizia que nós temos

o Eros e o Thanatos, o princípio do prazer e o princípio da morte. É uma luta

interna. Você acha que quer uma coisa, mas há algo em você que luta contra

14

Page 15: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

você.

E o Drummond, nesse momento em que a máquina do

mundo apareceu para ele, ele vacila mesmo, e fala – eu gosto muito desse

poema e eu sei ele de cor –: e como se outro ser, não mais aquele / habitante de mim há tantos anos, / passasse a comandar minha vontade. Ou seja, ele

queria tanto, mas na hora H, age nele um outro agente – é claro que era ele,

não é?, mas simbolicamente é outro ser, porque ele não estava reconhecendo

aquilo. Passasse a comandar minha vontade – não é ele mais que age –

vontade / que, já de si volúvel, se cerrava / semelhante a essas flores reticentes / em si mesmas abertas e fechadas. Ou seja, nem para lá nem para cá – ele

quer mas não quer. Como se um dom tardio já não fora apetecível. Ou seja, ele

queria naquela hora lá atrás, depois ele já não estava querendo muito, não é?

(…) já não fora apetecível / antes despiciendo – quer dizer, agora já não é tão

importante assim.

Aí ele fala: baixei os olhos, incurioso, lasso / desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuita a meu engenho. Ou

seja, estava lá de graça e ele já não queria mais.

Isso é para mostrar que nossa vontade nem sempre é

firme – ela quer mas não quer: a gente quer mas não quer. A gente às vezes

fala que quer, mas quando abre o edital do concurso, a gente fala: Ah, não sei, não é a minha hora.

Eu já me cansei de ver isso. Muitos amigos meus querem

passar no concurso, mas quando abre o edital eu digo: Cara, está aberto o concurso, vai lá, pô, eu te ajudo, eu te passo a indicação dos livros e tal. E

respondem: Ah, não sei, de repente... A vontade não está firme, entendeu? Se

oferecessem para a pessoa o cargo, talvez ela aceitasse, mas o concurso ela

não quer fazer.

Então a vontade tem que ser forte, firme, e a imaginação

conta muito para isso. A imaginação o ajuda a colocar suas forças na direção da

coisa. Você está inteiro naquela direção. Não há nenhuma parte de você que

está contra você, você quer tudo, quer estudar, fazer, passar, quer sofrer o

negócio mesmo, e quer chegar lá e vencer. Você não quer só ganhar o dinheiro,

você não quer só estar ali, com a pompa e as honras do cargo; você quer todo o

trajeto, você quer tudo – isso é a vontade! O desejo é muito fraco. Então é bom

ver se vocês apenas desejam o concurso ou se vocês querem – têm vontade –

realmente. É isso o que está na quarta lição: Fortaleci minha vontade: certifiquei-me da minha vocação e trabalhei sobre a minha imaginação.

Muitas pessoas, com muita legitimidade, já tem família –

então, por exemplo, o cara quer ser juiz de direito, mas ele já está casado e

tem três filhos jovens. É difícil, não é? Imaginem que ele está lá em Minas

Gerais, que é um estado muito grande. No concurso ele pode ir lá para Manga,

15

Page 16: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

que é um município no extremo Norte do estado. Ele vai pensar, vai olhar para

a mulher dele, que já tem emprego na cidade em que eles moram, vai olhar

para os filhos que já estão estudando. Tudo aquilo vai enfraquecer um pouco a

vontade dele, não é? Claro! Ele tem que levar em conta aquilo. Ele não está

errado em levar em conta isso, pois são fatores que são ele agora, fazem parte

da vida dele. Ele não pode largar tudo. Mas, às vezes, pessoas jovens, que têm

apenas uma mochila nas costas, que não têm nem um passarinho para cuidar,

ficam vacilantes: Eu não sei, estou com medo, de repente, eu posso fracassar, vão saber que eu não passei... Tudo isso conta contra a gente!

Então é importante que vocês consigam algum modo de

fortalecer a vontade de vocês, para ter essa vontade firme em direção a essa

meta – seja qual for ela. Os desafios virão e você será forte o suficiente para

sequer perceber as barreiras. Você passará pelos desafios fácil, fácil, porque a

vontade está firme ali. Os vetores da sua alma estão todos em uma só direção.

Às vezes você não sabe se você quer ser juiz, promotor

de justiça ou AGU. Tudo bem, mas você terá que ter alguma coisa que te force a

estudar. Você não pode ficar muito vacilante entre as situações. Ah, eu não sei se eu quero ser médico, engenheiro ou juiz de direito. Pô, você vai se ferrar, porque não tem como unir as três coisas em uma só. É difícil! Você tem que ter

algumas metas que o integrem em uma só unidade. E foi isso o que eu

consegui fazer: eu só queria o Ministério Público.

Decidido a passar no concurso, eu comecei a ver como

eu iria estudar. Eu pegava as provas antigas, os editais, os programas e vi que

era muita matéria, era muita coisa! É matéria que não acaba mais! E eu

comecei a comparar os programas com os manuais clássicos, que estavam na

moda da época. Eu comecei a ver que havia muita afinidade entre os

programas e os grandes manuais. E eu vi que nas grandes matérias, nas

matérias básicas, eu iria ter que pegar os manuais e iria ter que ler tudo, de

cabo a rabo mesmo.

Esse processo foi muito solitário. Eu tinha amigos na

época, mas esse como-fazer, esse como-estudar, de fato fui eu quem foi

descobrindo. É isso o que eu registrei na quinta lição que vocês tem nas mãos:

Encontrei o meu próprio método e montei minha própria bibliografia.

Eu fui lendo, ouvindo pessoas, mas foi muito pouco o

que eu absorvi dos outros. Eu fui montando o meu próprio método. Eu peguei o

programa do concurso do MPMG – que era o que eu queria mesmo na época –,

fui lendo os manuais e comparando com os programas.

O meu método foi um pouco exótico e deu muito

trabalho – mas foi por isso que eu passei, não é? Não teve jeito. As matérias

básicas: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito

Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Civil e Direito Penal, eu fui

16

Page 17: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

pegando os grandes manuais e fui fazendo o seguinte: por exemplo, em

Constitucional, eu peguei o livro do José Afonso da Silva, que já era grande à

época, em 2001-2002, e eu li ele todo. E eu grifava – mas não as palavras ou

expressões mais importantes, mas sim as frases mais importantes – de modo a

fazer um resumo que combinasse uma frase com a outra. Eu fiz isso aí por quê?

Porque eu já imaginava que eu teria que complementar isso depois. Olha, deu

muito trabalho, viu! Foram três anos.

Eu pegava esse livro, já com as frases grifadas, ditava

aquilo em voz alta e gravava aquele resumo inteiro em algumas fitas cassete. E

aí vocês percebem que a matéria inteira já passou duas vezes pela cabeça:

uma para fazer o resumo e a outra para ler para a fita. Depois, o que eu fazia?

Eu ouvia a fita e ia digitando o resumo no computador. E eu tinha ali no final um

resumo de cerca de cem páginas, ou um pouco menos, do livro inteiro. Mas era

um resumo muito harmônico, porque não eram apenas tópicos, eram frases

que tinham uma fluência.

Na segunda etapa de uma mesma matéria, eu pegava

um outro livro – no caso foi o do Alexandre de Moraes –, eu peguei o livro do

Moraes, com o resumo do lado, já impresso, e eu lia o livro inteiro e

complementava as opiniões do José Afonso com as opiniões do Moraes. E eu ia

meio que cotejando ali, na margem da folha, o que não tinha no José Afonso da

Silva.

Depois – deu muito trabalho, foi exaustivo, mas valeu a

pena –, eu digitava esse complemento no resumo inicial, e na terceira fase, se

fosse uma matéria importante – por exemplo, com Direito Civil eu não fiz essa

terceira fase porque eram seis ou sete disciplinas (Parte Geral, Obrigações,

Contratos, Direitos Reais, Família e Sucessões) –, como Direito Constitucional ou

Direito Penal, por exemplo, eu fazia mais uma etapa: eu pegava temas

específicos que não tinham naqueles manuais, porque eram coisas mais

recentes ou específicas mesmo, e colocava ainda naquele resumo, e o

complementava ainda mais. No fim eu não chegava a ler o resumo de novo; e

nem era necessário, não é? Eu já tinha feito tudo aquilo.

Naquele processo de estudo eu depurei a matéria cerca

de quatro ou cinco vezes. Aquilo ficou na cabeça e estava aqui na ponta da

língua mesmo. Isso foi importante não só para saber a matéria, mas para ter a

segurança de que eu sabia. Eu sabia o seguinte: Olha, a banca pode vir com 'gracinha' para cima de mim, mas eu não tenho culpa, porque eu li tudo. A

banca pode inventar o que for – tem gente aí que inventa umas coisas que

ninguém nunca viu; eu vou falar mais à frente das provas abertas.

Há surpresas, sim, nas provas, tem coisa de que você

nunca ouviu falar. Você leu tudo mas você não sabe o que é aquilo. Mas eu

sabia o seguinte: eu li mais do que quase tudo mundo, eu li muito mesmo. Não

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Page 18: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

vai ter muita surpresa para mim na prova. Enfim, eu já ia para a prova seguro

daquilo, eu via a matéria quatro ou cinco vezes. Por exemplo: de Direito Penal

eu li uns quatro ou cinco livros; de Processo Penal eu li os quatro volumes do

Tourinho Filho duas vezes, eu li o Capez, li o Pacelli duas vezes, li o Paulo Rangel

– lendo e anotando, lendo e resumindo. E esse processo exaustivo chegava

nesses resumos que eu fazia – que tinham, cada um, cerca de duzentas

páginas. Ao todo foram milhares de páginas escritas.

Com matérias específicas eu fazia algo parecido, mas

não tão complexo assim. Eu também lia e fazia uma espécie de resumo de

tópicos: em Direito Ambiental, em Direito do Consumidor, eu não lia todo o

livro, mas eu pegava os tópicos importantes e, principalmente, olhava as

provas antigas. Um dos itens aqui fala sobre isso; é a sexta lição: Fiz o reconhecimento do território (concursos públicos em geral) e sondei o exército adversário (as provas e a banca examinadora).

Você tem que saber o que é que já caiu nas provas, qual

é a tradição do concurso. Embora a prova possa mudar de feição, embora a

banca possa mudar radicalmente, você tem que ter noção do que se enfrenta

em um concurso, para você não ter surpresas.

Eu desconfio que grande parte dos brancos que se têm

nas provas – o tão temível branco – vêm dessas surpresas que nós não

esperávamos. A gente chega lá na hora da prova e tem alguma coisa assim

inesperada que bate e caramba! e não-sei-o-quê e você se esquece. Quanto

melhor e mais bem preparado você for para a prova, com mais conhecimento

incorporado e com mais bagagem14, tanto melhor, porque menos surpresas

você terá.

E por que ler as provas antigas? Porque se você estudar

sem ver as provas antigas você estará lendo para qualquer fim, menos para o

concurso. Você tem que ler para aquele fim, para preencher a prova objetiva,

para escrever na prova subjetiva, para fazer aquela prova. Você pode ser um

erudito no Direito e não saber fazer a prova; pode saber tudo, fazer discursos

jurídicos e não-sei-o-quê, e não hora da prova você não sabe fazê-la, porque

você nunca viu uma prova. Você chega lá e precisará de alguns macetes que

você nunca viu.

Você tem que ler as provas antigas daquele concurso e

ver qual é a tradição, o que costumam fazer ali, o que costumam cobrar, o que

pedem, qual é a nuance da matéria que você tem que saber mais, qual enfoque

você tem que dar naquela matéria. E às vezes as provas antigas mostram

muito isso – e isso é muito importante.

Eu me lembro que eu li nessa época um livro de um tal

de Sun Tzu, chamado A arte da guerra, que hoje está muito famoso, mas na

época não era tão famoso assim. Alguns colegas meus riam da minha cara e

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falavam: Mas que bobeira esse livro, um livro bobão, escrito por um guerreiro da antiguidade na China. O livro é um manual de guerra chinês, e há uma frase

no livro em que ele fala: Se você quer ir para a guerra, você tem que conhecer o território e o inimigo. Não tem outro jeito. Você entrará no território, o território pode lhe ferrar, você não sabe por onde passar, e o seu inimigo pode ser mais forte que você, você não sabe qual é a fraqueza dele.

Há uma passagem nos Evangelhos15 que fala sobre isso;

é uma parábola em que Cristo fala sobre isso aí, para você olhar como é que

está o seu exército. Se você estiver mal, manda alguém lá para fazer um acordo

com o inimigo, senão você vai se ferrar. Você não está pronto para a briga

ainda, não é? É claro que ele está falando de outra coisa, sob o aspecto

espiritual, mas você pode ver também por esse aspecto prático. Esse livro me

mostrou isso: eu tinha que saber qual era o território em que eu ia entrar, saber

o que é um concurso público, saber quais são as fases, como é que se

comporta em uma sala de prova, o que eu vou encontrar lá, como é aquele

ambiente, como são as provas.

Eu nunca simulei fazer as provas em casa – sentar e

fazer a prova em quatro horas –, mas eu sempre li muitas provas e sempre

estava muito ambientado a elas. E mais: eu via gente que havia passado no

concurso e eu sabia em qual ele havia passado e sabia que aquele cara havia

feito aquela prova ali. Eu conseguia – não sei como é isso – ver uma realidade

muito forte naquela situação e falava: Olha, alguém passou por isso aqui e eu vou passar também! Não é impossível!

Eu me lembro que também nessa época caiu nas minhas

mãos o livro do William Douglas chamado Como passar em provas e concursos,

que hoje está famoso também. Eu não o li por inteiro, mas li boa parte dele, e

tem coisas muito legais ali, muito interessantes. Ele fala: Olha, faça a análise de sua família, onde você mora. A sua família pode jogar contra você, a seu favor, ou pode ser neutra. Você tem que ver onde você mora, se a sua família é, nesse ponto, sua parceira ou não. Eu me lembro que em casa, quando eu

estava prestando concursos de nível médio, eu às vezes me trancava no

banheiro de empregada para estudar! Era difícil! Eu tinha quatro irmãos em

casa, menores do que eu – dos quais dois eram crianças na época –, brincando

em casa, gritando e tal. E eu às vezes não tinha ambiente em casa para

estudar, e eu me trancava no banheiro de empregada! Vejam que tragédia! Mas

era necessário, não tinha jeito. Às vezes você tem que estar em silêncio para

estudar. Eu não consigo concentrar com barulho. Então você tem que fazer a

análise do seu ambiente, como é que você o trabalhará.

Se você tem uma namorada ou um namorado que cobra

muito a presença de vocês, que não entendem o seu estudo, é difícil também.

Eu não tive esse problema, graças a Deus! Os meus amigos e a minha

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namorada me compreendiam e estavam comigo na época no mesmo barco.

Mas é difícil! Eu sei de casos em que a pessoa não consegue compreender – Pô, você vai estudar sábado à noite? Como é que é isso? Que absurdo! Então você acha mais importante o estudo que eu? Poxa, às vezes o pior é que é mesmo –

às vezes é mais importante o estudo do que aquela amizade ou do que aquela

namorada. Às vezes é isso mesmo. Você terá que abrir mão de algumas coisas,

não tem jeito. Se for de fato amor, a pessoa terá que entendê-lo, não é? Agora,

se for possessão, não tem jeito, você terá que largar. É isso mesmo!

O livro do William Douglas foi importante para mim,

porque me deu dicas pontuais, de método de estudo, de horário de estudo, ver

o ambiente em que você mora, onde você trabalha – e isso é muito importante.

Eu até conheci o William Douglas depois. Eu fiz algumas

audiências com ele em Niterói, RJ. Ele é juiz federal lá. Eu trabalhava em Volta

Redonda, RJ, fui fazer uma audiência em Niterói e falei com ele: Olha, cara, eu li o seu livro, hein! Ele disse: É mesmo? Que legal! Então conta isso aí para as pessoas... Me ajude a divulgar! Eu falei que não ele precisava, porque o livro

estava vendendo muito. Ele disse: Claro que preciso! Se até a Coca-cola faz propaganda, como é que eu não vou fazer!? Divulga aí para a gente, ajude a vender! A propósito, ele é um cara muito cristão. Em toda audiência, depois dos

trabalhos, ele pergunta aos réus e às testemunhas se são religiosos e, então,

ele dá uma Bíblia à pessoa, e acaba conversando um pouco com alguns deles,

fazendo um saudável apostolado. Todo mundo que vai lá ganha uma Bíblia dele

– desde que aceite, é claro.

Então, quer dizer: eu criei o meu método, mas é claro

que eu peguei dicas de outras pessoas, não é? O William Douglas é um cara

que tinha dicas muito boas para dar e foi importante para mim.

Quanto à bibliografia, o pessoal pergunta muito: O que eu devo ler? Olha, eu nunca perguntei isso a ninguém! Eu fui achando o meu

caminho. É claro que eu pegava as dicas – eu sentia o que estava no ar. O que você está lendo? Como é esse livro aí? Eu nunca fiz cursinhos preparatórios – e

essa é a nona lição, que eu explicarei melhor mais à frente –, mas eu sabia o

que estavam dizendo ali. Eu tinha amigos que faziam cursinho e com eles eu

conversava, pegava dicas. Então eu fui montando a minha lista de livros, eu fui

comprando os livros, fui folheando, vendo se determinado livro era ou não era

completo, pegava o programa, comparava, e eu mesmo montava a minha lista

de livros e os comprava com base nisso aí.

Eu não tenho como dizer hoje para vocês o que eu li

porque já se passaram oito ou nove anos, e a coisa mudou muito. As minhas

dicas hoje talvez não sirvam para vocês. Mas eu aconselho: vocês têm que

estar antenados no que está acontecendo no mercado editorial e ver se o livro

é bom para você. Às vezes é um livro fantástico, mas você não consegue digeri-

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lo – ele é ruim para você. Você lê e não consegue entender. Às vezes o seu

gênio não bate com o do autor, não é?

Uma outra coisa: eu tive muitos amigos nessa época da

faculdade – não muitos, mas dois ou três16 – , que respiravam esse mesmo

ambiente que eu – e essa é a sétima lição: Tive amigos com os quais trocava ideias. A minha impressão – eu não sei se estou certo nisso – é que as mulheres

têm mais dificuldade nisso aí, de ter amizade nesse ponto. Para os homens é

mais fácil, o homem senta junto e quer discutir mesmo, ele quer brigar pelo

Direito, você está errado e tal. Eu tive isso e foi muito bom para mim. Eu tive

bons amigos nessa época com os quais eu me sentava, discutia Direito, falava

dos concursos. É importante você ter o feed back do outro, do cara que está

próximo de você. Não é bom você se isolar por completo do mundo. Você terá

que perder algumas coisas, mas se isolar é ruim também. E a amizade é aquilo

que falava Santo Agostinho: é você querer as mesmas coisas e odiar as

mesmas coisas17. Ou seja, você está olhando na mesma direção da pessoa. A

amizade, como disse Platão, leva para o alto mesmo, ela te levanta, desde que

tenha essa comunhão de propósitos.

Então é bom você saber que você terá que se isolar um

pouco do mundo, mas também é importante saber que é preciso ter vínculos

com pessoas que tenham comunhão de interesses com você. Se é um amigo

que o joga para baixo, largue-o porque isso não serve para nada. Se a pessoa

fica criticando você o tempo todo, fica disputando maldosamente com você,

tem inveja, se a pessoa quer outra coisa, isso não vai adiantar: ela vai tirar suas

energias e vai lhe fazer mal. Então ter amizades boas, condizentes com o seu

estado, é muito importante.

Uma outra coisa, que já é a oitava lição: Preenchi o meu tempo com coisas úteis e saudáveis. Não temi a solidão. Em resumo: não

percam tempo! Se vocês querem esse concurso, ou um concurso difícil que

seja, qualquer um que seja difícil, vocês não podem perder tempo. Perder

tempo, por exemplo, com um churrasco no sábado à tarte inteira. Isso aí é

impossível, não tem jeito! Eu me lembro que nesses três anos – é claro que

houve altos e baixos –, houve um período crítico que eu efetivamente não tinha

muita diversão pública – eu ia no máximo ao um cinema no final-de-semana, lia

algum livro não-jurídico, mas em regra era só Direito mesmo. Eu trabalhava de

manhã, de 7h às 13h, quando fiz estágio era geralmente de 14h às 18h, e ia

para a faculdade à noite, de 19h às 22h. E estudava nos buracos entre uma

atividade e outra, no ônibus, em casa à noite, no estágio.

Eu me lembro que fiz estágio no MPF e, nos quatro

meses, eu li os dois livros inteiros de Direito Penal – Parte Especial do Mirabete,

no estágio. Tinha pouco trabalho – eu não enrolava no estágio, não era isso,

mas tinha pouco trabalho mesmo. A minha dupla no estágio, o Marcus Vinícius –

21

Page 22: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

o Marquito é hoje baterista e está na AGU – lia Guerra e paz, do Tolstói. Ele

ficava lá e eu acho que ele fez bem – é um bom livro também. Mas, enfim, a

gente tinha esse tempo livre no estágio. E no trabalho também, eu fazia o meu

trabalho e no tempo livre eu estudava. Não tinha jeito, era o tempo que

sobrava. O estágio estava muito cansativo e eu acabei saindo dele. Então eu

tinha a tarde livre para estudar.

Foram três anos de muito estudo. A todo momento eu

estudava mesmo. Não tinha hora livre. Às vezes até no domingo. Eu tinha

namorada, claro, estava com ela muitas vezes, mas diversões, baladas, isso aí

ficou muito para depois. Se o convite fosse para ir a um bar para falar sobre

Direito eu até iria, mas se fosse para conversar sobre outros assuntos eu não

estava disponível – eu estava ali direcionado mesmo para o concurso.

Eu estava tão aclimatado com os estudos pro concurso

que, algumas vezes, quando eu já estava na cama para dormir – naquela hora

em que você ainda não dormiu mas também já não está totalmente acordado –,

eu ficava pensando em algum assunto que eu tinha visto naquele dia. E me

dava um certo desespero de não saber qual era a posição de tal ou qual

doutrinador a respeito! É claro que nessas horas em tinha de levantar da cama

e ir procurar nos livros algum alívio para aquela situação. Só depois de ler sobre

o tema é que eu conseguia cair no sono... Eu não ia conseguir esperar o dia

seguinte!

E aí aconteceu o seguinte: eu me formei na Federal, mas

antes de me formar abriu concurso para a AGU, que foi o concurso de 2001-

2002, e eu fiz esse concurso antes de formar. E – caramba! – eu passei nesse

concurso antes de me formar mesmo. E eu fiquei na seguinte situação: a posse

estava marcada para o mês de agosto de 2002. E houve uma segunda greve

durante o meu curso, na Federal. Então, a minha turma se formaria em outubro

de 2002 e a posse na AGU seria em julho ou agosto – não estava muito certa a

data ainda. E eu estava sem o diploma, eu estava em pleno 10º período, e

fiquei desesperado. Caramba! Se não fosse a greve estaria tudo certo. O que eu

fiz? Eu tinha oito disciplinas naquele período e eu teria que cumpri-las em

tempo record. Eu falei com todos os professores, muitos deles foram muito

solícitos comigo18. Eu fiz muitos trabalhos adiantados, fiz algumas provas

adiantadas e consegui me formar a tempo. Um dos professores, muito

sistemático, me segurou até os últimos dias. Ele falou que poderia, sim, me

passar alguns trabalhos adiantados. Mas chegou nos últimos dias, nas vésperas

da posse, do dia D, ele falou: Olha, Bruno, tem um problema aí: você tem a pontuação, não é? Mas você não tem a frequência mínima ainda, você tem que ter a frequência de 75%. E você só a terá em setembro. Eu pensei: E aí? Como é que vai ser isso aí? Aí em conversei muito com ele, pedi muito. E aí ele

conseguiu achar uma espécie de alínea f do parágrafo único do artigo 36,

22

Page 23: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

digamos assim, de uma norma da universidade, que permitia fazer um trabalho

para suprir a frequência. Aí eu fiz mais trabalhos ainda e consegui colar grau no

dia 30 de julho de 2002 e tomei posse na AGU na segunda-feira seguinte, dia 02

de agosto. Foi muito complicada essa época para mim!

Eu também tive uma briga com a OAB – não vale a pena

contá-la inteira aqui –, para me dar a carteira da ordem. Eles queriam me

processar porque eu estava exercendo a AGU sem a inscrição na OAB. Mas eu

já havia passado no exame de ordem, o meu caso não era julgado na OAB de

modo algum, o pessoal ficava discutindo firulas jurídicas19. Eles quase

mandaram o meu caso para o Ministério Público, por um suposto exercício ilegal

da profissão, porque eu estava na AGU sem carteira da OAB. Foi uma época

muito tumultuada mesmo – e tudo isso aconteceu enquanto eu estava

estudando para concurso.

Eu fiquei na AGU por um ano e meio20 – nesse tempo eu

prestei um concurso para o MPMG e não passei. Isso foi muito traumático para

mim! Eu já estava afiadíssimo, mas eu não passei na prova subjetiva – e aquilo

para mim foi o meu mundo caiu. Eu fiquei realmente muito frustrado. Eu me

lembro que eu pegava o livro para estudar em casa, olhava para ele e não

entendia nada, as letras estavam todas embaralhadas. E ficava assim: Como é que eu vou recomeçar? Ó mundo, ó céus! Foi muito difícil. Mas depois de duas

semanas eu consegui voltar ao ritmo normal.

Esse concurso de Minas é muito famoso porque tem

algumas surpresas muito chatas. Em um deles, que ficou muito famoso, foram

aprovados apenas cinco candidatos – dos milhares que fizeram apenas cinco

passaram no final. Havia dezenas de vagas e apenas cinco caras passaram. É

claro que houve algum exagero nessa seleção. E algumas provas cobram coisas

que a gente nunca viu na vida. Nessa prova que eu não passei, por exemplo –

não foi por isso que eu não passei; eu não passei porque não estava pronto

mesmo –, na prova de Direito Civil, o membro da banca narrou um caso de

conflito de vizinhança e perguntou, na maior cara de pau, o que é supressio ou

Verwirkung – algo como: Diga como se aplica a teoria da supressio ou Verwirkung nesse caso21. Supressio! Ninguém nunca tinha ouvido falar dela na

vida! Que diabo é isso? É de comer? É claro que você vai chutar alguma coisa

ali, terá que embromar, mas com alguma razoabilidade. Você não pode chutar

completamente, não é? Mas por essas e por outras eu fiquei muito frustrado

com a prova, não passei, mas bola para a frente. Logo abriu outro concurso e

foi nesse que eu passei.

Foram dois concursos quase simultâneos: o do MPMG e o

do MPF. A prova oral dos dois foi na mesma semana. Eu fui a Brasília, dois

colegas meus também estavam fazendo os dois concursos e os três passamos

nos dois. Fiz esses dois concursos e estava muito preparado, estava sabendo

23

Page 24: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

muito mesmo. Mas há sempre o imprevisível, você sempre terá de contar com

alguma coisa que você não saberá, com alguma surpresa, com algum membro

de alguma banca que pode ser um cara esquisito, um cara que quer mostrar

conhecimento, que quer mostrar como ele é diferente, que perguntará coisas

que não estão propriamente ali no programa.

Mas o que é importante contar do concurso? As provas

objetivas são muito simples, não é necessário explicar como é, não há muita

surpresa. Na prova aberta do MPMG acontecem muitas surpresas, essas

perguntas que ninguém sabe do que se trata. Por exemplo, perguntaram em

uma época lá – não foi no meu concurso – na prova de Processo Penal: o que é o princípio da suficiência da ação penal? Suficiência da ação penal? Ninguém

nunca tinha visto aquilo. Depois eu vim a saber que aquilo estava em um livro

de perguntas e respostas de Processo Penal de algum autor não sei de onde.

Quer dizer: para quê isso, não é? Eu soube depois que tinha alguma coisa a ver

com os efeitos da sentença condenatória penal na área cível. Como é que o

candidato iria descobrir isso? Quer dizer: tem coisas que podem vir de surpresa,

mas não é uma surpresa só para você, mas para todo mundo. É muito

agradável na hora da prova você ver que tem lá uma surpresa dessas, olhar

para o lado e ver que todo mundo está ferrado junto, todo mundo está no

mesmo barco, ninguém sabe aquilo, ninguém nunca viu aquilo, só o cara da

banca mesmo.

Por exemplo, esse caso da supressio, depois eu vim a

saber, estava citado em um único, singular e miserável acórdão do Superior

Tribunal de Justiça – STJ. E aí o ministro do STJ citou um autor português. Poxa,

como é que é isso? Não tinha como saber isso aí! É aquela questão para ferrar mesmo. Se uma questão assim cai na prova objetiva, menos mal. Porque ali é

um número maior de questões, você pode errar aquela e você pode suprir por

outras questões. Agora, na prova subjetiva é mais difícil, pois são três ou quatro

questões, e se você zerou uma dessas, é difícil, não é?

Na prova aberta do MPF eu tive também uma surpresa,

mas essa surpresa foi muito boa, muito agradável. Isso de fato foi um presente

de Deus para mim – alguns chamam de sorte, outros chamam de Deus. Na

prova de Direito Penal e Processo Penal, caiu uma questão sobre um assunto

que não era muito falado na época. Era um tema que estava começando a ser

discutido na época. Hoje já há emenda constitucional sobre isso – que é o tema

da federalização dos crimes contra os direitos humanos. Estava lá na minha

prova aberta do MPF e eu tinha estudado esse tema – eu não me lembro se ele

estava explicitamente no programa –, por sorte ou por Deus, semanas atrás,

em um relatório daquela organização internacional Human Right´s Watch, um

relatório dela sobre o Brasil – eu não sei como é que eu descobri esse texto aí,

mas eu acabei achando ele pela internet, não sei como é que isso me caiu às

24

Page 25: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

mãos. Mas eu o li e ele falava do situação policial e jurídica do Brasil à época. É

uma ONG internacional que vem aqui fazer uma análise, e estava lá o relatório

dizendo sobre as prisões do Brasil, aquela coisa horrorosa e tal. E uma das

sugestões desse relatório era federalizar os crimes contra os direitos humanos,

ou seja, em algumas situações excepcionais passar os processos relativos a

esses crimes para a área federal. Por quê? Porque há uma suposição de que

porque se trata de uma justiça menos capilarizada, ela está mais distante do

fato, é mais imparcial e menos sujeita a pressões locais. Então tinha esse item

lá no relatório – que falava também de uma Proposta de Emenda Constitucional

– PEC que estava no Congresso Nacional sobre esse assunto. E na hora da prova

eu fui agraciado com essa benção, de cair essa questão, que valia 40 pontos

em 100. E a minha nota nessa questão foi essencial para eu passar. Eu tirei 50

na prova, em cima da risca – o mínimo necessário na prova subjetiva era 50

pontos. Eu tirei 35 nessa questão – foi uma das notas mais altas nessa questão

– e eu tirei zero em duas outras. Havia essa questão maior que valia 40 pontos,

que era a mais extensa, e havia três outras de 20 pontos. Eu zerei duas outras

e tirei 15 na terceira – ou zerei uma delas e tirei 5 e 10 nas outras, não me

lembro bem, mas eu zerei uma delas. Então se não fosse essa questão eu não

tinha passado, não tinha jeito, era ferro mesmo.

Então tem sempre o imprevisível, não tem jeito, você

tem que contar com isso aí. Tem que ter algum jogo de cintura, você tem que

estar antenado nos temas que estão surgindo mais ou menos por aí. Não dá

para ficar só nos manuais, mas também não dá para ficar só nesses temas,

porque se você não tem a base você não vai dissertar sobre a coisa. Você tem

que efetivamente saber os fundamentos. O conhecimento é como uma

pirâmide: se você só tem o topo ela não tem fundamento, ela cairá fatalmente.

Então é essencial ficar nessas duas situações, na base (com os manuais) e nas

situações especiais, nos temas novos e tal.

Eu tenho algumas coisas interessantes para contar das

duas provas orais. Eu sempre quis saber como era uma prova oral, e ninguém

nunca me contou isso. Eu às vezes assistia a algumas provas orais do MPMG,

mas era muito de longe, porque os candidatos ficavam fechados em uma

espécie de curralzinho em uma grande sala no último andar, e a plateia era

muito distante. Eu conseguia ver mais ou menos como era uma prova oral, mas

eu nunca soube dos detalhes, como era o ambiente mais próximo, como era o

nervosismo dos candidatos. Foi só fazendo mesmo que eu vi. Aliás eu fiz uma

prova oral antes, mas foi para o concurso de estagiário da DAJ, mas é como se

fosse um ensaio, não era o jogo mesmo. Ali eu iria entrar no jogo mesmo.

A prova oral não é algo para assustar. Eu tinha receio de

ficar nervoso, porque eu sou um pouco gago. Eu tinha medo de ficar muito

nervoso na hora da prova oral. Porque o cara da banca fica geralmente mais

25

Page 26: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

alto que você, a cadeira dele já é uma cadeira de autoridade. E você está ali,

miserável e pedindo clemência. E eu tinha algum receio disso aí.

Em Minas há também a prova de tribuna. É uma prova

em que você vai a uma tribuna, fica de pé, todo mundo te vendo e te examinando, e você fala sobre um tema sorteado no mesmo dia. Há uma lista

prévia de temas – por exemplo, Direito Penal tem quatro ou cinco temas. Mas

sorteiam no dia o tema sobre o qual você falará. Então sorteiam algum tema,

por exemplo, sorteiam um tema de Direito Constitucional ou de Direito do

Consumidor, e você tem algumas horas para elaborar o seu texto e ir para a

tribuna falar durante cinco minutos. Você dissertará oralmente sobre o tema e

mostrará sua habilidade verbal. É um concurso onde os aprovados farão júris,

discursos em palanque na praça principal da cidade. Então é importante você

ter algum tipo de traquejo verbal.

A prova oral do MPMG foi muito divertida, muito legal

mesmo. Os candidatos acabam tendo muita afinidade, acabam criando laços de

amizade na hora da prova oral. Eu me lembro que às portas da prova oral o

pessoal que saía da prova comentava, por exemplo, o que tinham perguntado

em algumas das provas. Quem chegou a esse ponto do concurso não tem muita

rivalidade, ali é todo mundo junto. A gente sabe que se alguém não passar não

foi porque o outro passou, mas porque eles quiseram reprovar a pessoa. Ali no

caso não tinha um número limitante de vagas – havia menos candidatos que

vagas. Então não tinha uma rivalidade. Por isso lá fora da sala estava um clima

muito ameno.

Eu me lembro que a prova de Direito Civil era com o

representante da OAB. Em Processo Penal, por exemplo, o que corria ali nos

bastidores era que o membro da banca tinha uma listinha de umas quinze

perguntas e ele não saía muito disso. Então o pessoal já sabia que ele ia

perguntar mais ou menos aquilo ali. Por exemplo: Quais são os cinco princípios da ação penal, segundo Mirabete? Então o pessoal ficava mais ou menos

preparado, sabendo qual era a resposta. A gente ia mais ou menos pronto. É

claro que havia algumas surpresas na hora. Por exemplo, para vocês terem

ideia, ele tinha vários manuais sobre a mesa dele (Mirabete, Pacelli, enfim, os

mais famosos, uns dez manuais), ele pedia para você escolher um dos manuais

que ele tinha na mesa, e abrir em uma página, onde você quisesse. Eu escolhi o

livro do Eugênio Pacelli e caiu lá em uma página que fazia referência à Lei nº

6.368/76 – (antiga) Lei de Entorpecentes. E então ele me contou um caso:

imagine que você passou no concurso, foi para a sua comarca, e chegou às suas mãos um inquérito policial por tráfico de drogas – isso é ele me contando o caso, para depois me perguntar –, você denunciou o sujeito, o processo correu tranquilamente, sem nenhuma nulidade, o juiz, na sentença, condenou o sujeito, a pena foi justa, mas você quer recorrer da sentença. Me diga aí qual é

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Page 27: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

o motivo que você tem para recorrer da sentença. O que você poderia alegar? A

questão não foi muito bem colocada – vocês percebem. Ele foi narrando um

caso e me perguntou o que eu poderia alegar. Me veio uma luz na hora – não

havia nenhum indício ali, nada. Na época havia uma discussão que não era

muito forte ainda, sobre o regime de cumprimento de pena dos condenados por

tráfico de drogas. Mas na hora da arguição, o examinador não havia falado

nada sobre regime de cumprimento da pena, nada disso. Mas na hora eu pensei

que a resposta estava clara. Por quê? O Supremo Tribunal Federal – STF estava

dizendo na época que se na sentença condenatória constasse expressamente

regime inicialmente fechado, o réu poderia progredir; se na sentença constasse

regime integralmente fechado, não poderia progredir. E o MPMG, claro, é MP,

com sangue no olho, quer ver o réu preso até o final. Eu falei: É claro, doutor, eu iria recorrer – aí eu expliquei para ele o que eu havia imaginado, e de fato

era isso o que ele queria ouvir – eu iria recorrer para que na sentença constasse regime integralmente fechado, porque segundo o STF... Quer dizer,

essa questão foi uma surpresa, eu não sabia que ele iria perguntar isso, é

lógico, mas eu já tinha lido muito sobre o assunto, eu estava antenado nas

discussões, e eu pude responder o que ele estava esperando. Houve também

outras questões mais ou menos complexas que essa. Em geral cada banca te segura por um tempo que varia entre dez e quinze minutos.

Em outra banca, a de Processo Civil, foi muito

interessante. A cara também me contou um caso: imagine que você foi aprovado no concurso, chegou na comarca e você entrou com uma ação civil pública ambiental, mas o Ministério Público não tem dinheiro para pagar a perícia. A perícia, no caso, é cara. Você está alegando, então tem que provar. Aí

ele perguntou como eu iria resolver a questão, como eu iria pagar a perícia.

Como eu iria dar conta disso aí. Resolva isso aí para mim. Ele perguntou: Que solução você dará? Eu falei tudo o que eu pude imaginar, mas eu não acertei.

Eu falei: tem o fundo de direitos difusos, previsto na legislação, que tem dinheiro disponível. Ele falou: Pode esquecer! Não está disponível. No meu exemplo o fundo está sem dinheiro. Eu falei: Olha, o Estado pode pagar e, depois, o réu, se perder a ação, deverá ressarcir. É uma opção, eu brigaria por isso aí. Ele disse que não era por aí também não. Enfim, eu inventei mais

algumas saídas lá e não consegui achar a solução. Aí ele viu que eu não ia

resolver a questão e passou para a próxima. É claro que eu não fui reprovado

por isso, mas a minha pontuação não foi excelente. Aí vejam que curioso: anos

depois, eu estava com a minha esposa no carro – ainda não era minha esposa

na época – eu estava em Volta Redonda, e eu me lembro que na época havia

uma discussão sobre a inversão do ônus da prova, como ocorre no Direito do

Consumidor, para essa situação. Ou seja, inverter o ônus da prova, mas aqui no

aspecto processual e financeiro. Pelos princípios ambientais você fará com que

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Page 28: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

aquele infrator – ainda que o seja de modo presumido – adiante o valor da

perícia – você inverterá o ônus. É você quem alega mas é ele quem vai pagar –

inverter o ônus da prova financeiramente para que ele pague. O cara queria

que eu dissesse isso; ele queria ouvir isso de mim. Mas eu, no carro com a

minha esposa, pensando em outra coisa, não sei o que deu na hora: Caramba, é isso o que ele queria ouvir! Isso aconteceu anos depois, eu não estava

falando com ela sobre Direito, aquele assunto estava ali no fundo da consciência, e foi ali que eu, lembrando da prova oral, anos depois, cinco ou

seis anos depois, falei: Ah tá, era isso o que você queria ouvir, não é? Agora eu já sei! É interessante: nem sempre você tem a resposta; às vezes ela chegará

anos depois. Você tem que juntar os dados. Eu não juntei A com B – na época,

no fundo eu não sabia dessa teoria, eu não sabia mesmo. Eu não imaginava

que fosse isso aí. Eu soube depois da teoria, e depois ainda eu juntei A com B.

Então nem sempre você vai saber tudo, nem sempre você vai conseguir ter

controle de tudo, não tem jeito.

Uma outra coisa interessante nessa prova oral do MPMG

foi o seguinte. Tinha lá um sujeito da banca examinadora com um livro de

doutrina, era um resumo, desses resumões que estão famosos hoje, e a gente

achava aquilo muito engraçado. Por quê? É um membro da banca, poxa. É o

cara que sabe, é o cara, não é? É o cara que sabe o negócio. E está lá com um

resumão do lado dele, exibindo orgulhosamente aquele resumo. Enquanto

outros estão lá com tratados, compêndios, ele estava lá com um resumão!

Esquisito isso aí, não é? E a gente não sabia como reagir a isso aí. Porque você

pensa: será que ele está querendo enganar a gente? Ele quer falar que sabe

pouco – é um senhor mais antigo na carreira –, para enganar a gente, para a

gente relaxar e para ele então enfiar a faca? Ou será que ele de fato é modesto

e humilde e vai se sentir ferido por uma resposta mais bem dada? Também tem

isso, não é? O cara que é muito humilde, domina apenas o feijão com arroz, se

você quiser falar bonito com ele, ele vai te cortar! Ele é quem manda ali! Então

isso foi um mistério para a gente. A gente não sabia que reação ter perante ele.

Valia mais a pena ficar no feijão com arroz ali e não pisar muito fora.

Em uma outra banca a pessoa tinha um caderno

brochura, com perguntas escritas à caneta, e ela perguntava, como se fosse um

ditado mesmo: O que você tem a dizer sobre isso? E olhava assim para você,

por cima do caderno, e você tinha que responder. Fale sobre a classificação de não-sei-quem. E aí ela olhava assim e você falava: Segundo não-sei-quem... Era

muito engraçado! Era muito singelo aquilo, não tinha nenhuma maldade

naquele negócio.

Em uma outra banca eu já fiquei um pouco intimidado.

Cada banca era composta por duas pessoas. Nessa banca, um deles tinha a

cara de mais bravo, de inquisidor, e o outro era mais amigável. Houve

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Page 29: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

perguntas sobre Direito Econômico, Direito do Consumidor – era uma banca de

legislação especial. Eu sei que eu fui respondendo e a prova acabou durando

um pouco mais que as outras. Eu fui ficando à vontade com eles, fui relaxando

e fui baixando na cadeira. Quando eu menos percebi eu já estava bem à

vontade. Aí o mais amigável olhou para mim – eu não percebi que eu estava à

vontade – e disse: Por favor, o senhor queira se recompor na cadeira. Eu logo

percebi, voltei à postura formal, e pedi desculpas. Eu fiquei muito sem graça

por perceber aquele estado meu. Eu estava muito à vontade ali, eu estava

sabendo as questões, e eu relaxei mesmo, eu estava relaxado ali, como quem

está em casa conversando com amigos. E aquilo me grilou tanto, eu fiquei a

semana inteira, até o resultado final, me perguntando: Será que aquele cara vai

me ferrar? Será que ele vai me tirar do concurso por isso? Porque, de fato, é

uma postura meio esquisita, não é? Você está ali na banca, de terno, naquele

ambiente formal, e, poxa, relaxado como quem está achando tudo muito bom.

Eu realmente fiquei com muito medo disso, de não passar por isso. Mas no final

das contas eles me aprovaram e não tive nenhum problema com isso.

No Ministério Público Federal a prova oral é mais ou

menos assim também. É uma sala, onde cada banca ocupa uma mesa, e você

fica circulando de mesa em mesa e vai passando por todos os carrascos e

tomando tapas, não é? Eu não posso dizer que é mais tranquila e nem que é

mais difícil. É uma prova tranquila também. Não tem muitas surpresas. E lá, em

especial, é mais previsível. Por quê? O nosso edital do MPF vem por tópicos.

Então cada disciplina tem 20 ou 25 tópicos e cada tópico tem três itens. Na

hora da prova oral eles sorteiam um dos itens – eu não me lembro se é um dos

números, com três itens, ou se é uma das alíneas – sorteiam um tema e você

terá ou que dissertar oralmente sobre aquele tema ou terá que responder a

perguntas sobre ele.

Eu me lembro que o subprocurador membro da banca de

Direito Civil e Processo Civil sorteou um tema de registro civil e um outro de

ações possessórias e ele me mandou falar sobre isso: Ah, então fale sobre o que você sabe sobre isso aí. Sobre o tema das ações possessórias eu sabia – eu

tinha lido muito sobre isso. Eu li em Direito Civil e em Processo Civil. Eu sabia

tudo, não é? Sabia das três ações, dos graus de ataque à posse, tudo na

cabeça. Mas na hora não saíam os nomes das ações! Eu me esqueci deles na

hora da prova! Eu expliquei para ele: Olha, eu sei quais são as ações... –

expliquei com muita calma – … sei que elas variam de acordo com o ataque à posse: em uma delas o ataque não aconteceu ainda, em outra o ataque já aconteceu, mas não se completou, e na outra a posse já está perdida, mas eu me esqueci os nomes, mas são essas aí que o senhor bem sabe... Apesar disso

eu passei bem nessa matéria, mas o branco às vezes vem mesmo.

É uma hora muito solene. Vocês sabem que o prédio da

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PGR parece um disco voador, é muito bonito, não é? E eu estava lá dentro

daquele negócio ali, é um negócio muito bonito. E eu estava li naquele lugar

maravilhoso, eu estava na prova oral do MPF, no primeiro concurso que eu fiz

para a PGR. É uma situação que geralmente deixa as pessoas um pouco mais

nervosas, mais tensas, não é? Então a última coisa de que eu me lembraria ali

seria o nome das ações possessórias. Eu não me lembrei mesmo!

O outro cara da banca – era a banca de Direito

Financeiro e Tributário – fez uma pergunta sem pé nem cabeça: Vem cá, como é a importação de peças de aeronave? Que tributos incidem sobre a importação desse produto? Eu não tinha a menor noção de como era isso aí. Eu respondi

como eu achei que tinha que responder, mas eu não tinha nem noção se eu

tinha acertado ou não. E ele fez também outras perguntas que eu soube

responder. Mas tem sempre o folclore das provas orais, e não tem como

escapar dele.

Em geral é isso: você tem que manter a calma, tem que

dominar um pouco os temas. No MPF você tem que saber que pode cair para

você um tema que será pura surpresa. Há vários itens ali e na sua prova oral

pode ser aquele, entendeu? Você tem que dominar mais ou menos a coisa. No

meu concurso foi interessante porque os candidatos que foram para a prova

oral conseguimos nos reunir por e-mail, e nós dividimos o programa inteiro do

concurso entre os candidatos – éramos um pouco mais de noventa pessoas –, e

cada um ficou com três tópicos para resumir e mandar para o grupo. Então nós

conseguimos fazer várias apostilas com um resumo de todos os tópicos. Porque

era mesmo uma surpresa. Poderia cair para você ali um item que você nunca

viu na vida. Vocês podem ver o programa do 25º Concurso, que está disponível

aí, e verão coisas ali que, meu amigo, é difícil! Você nunca mais os verá na

vida! Só nesse concurso mesmo. Então isso foi importante para a gente saber

bem sobre temas sobre os quais nós não tínhamos muita ideia, para você ir

com alguma coisa para falar, alguma nuance, alguma classificação, algum

indício de conhecimento sobre aquele tema.

Mas diante de tudo isso aí, eu ainda olho para trás –

como eu falei, já se passaram oito, nove anos, de tudo isso aí, em alguns casos

mais de dez anos – e fica sempre alguma coisa que faltou entender. Eu ainda

não entendo muito bem o que é que de fato me tirou daquela situação, um

menino normal ali, pô, e num concurso com vinte mil candidatos, passam

noventa e eu estou ali entre eles! É claro que eu estudei muito, ralei demais, foi

muito difícil, mas ainda falta alguma coisa que eu não sei explicar, sabe? Faltam

alguns elos. É engraçado pensar sobre isso! Parece que foi algo que Deus me

deu de graça! Ele me mostrou o caminho, e eu o fui seguindo, mas chegou uma

hora em que eu não sabia o que fazer – talvez nem soubesse que tinha algo a

fazer –, uma hora em que eu não dominava a situação, uma hora em que eu

30

Page 31: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

não sabia o que estava acontecendo mesmo, e foi ele quem me levou.

Porque, olha, essa mania de controle que nós temos –

alguns têm mais, outros têm menos –, mania de controlar, mania de saber tudo

– claro, o concurseiro tem que ter essa mania de controle, ele tem que saber

tudo mesmo, e um pouco mais –, isso é só uma meta, é só um anseio, você

nunca chegará a esse conhecimento absoluto. Não tem jeito. E mais: algumas

coisas nesse trajeto são imprevisíveis, não é? Há situações que podem te surpreender no meio do caminho: você pode se apaixonar, você pode se casar!

E aí, como é que fica o seu programa que estava em andamento? Você pode ter

que mudar de cidade, em razão do emprego. Você pode desistir e querer outro

concurso, e aí terá que pegar o programa e adaptá-lo. Tudo isso pode acontecer.

E nesse meu trajeto houve algumas mudanças, e eu de fato fico me

perguntando de onde veio essa força. Coisas imprevisíveis que eu não estava

preparado para superar, que eu não sabia como superar, mas que eu nem

percebi e passei por aquilo tranquilamente – hoje, olhando para trás, eu vejo

que passei por muitas dificuldades da vida sem sequer percebê-las, certamente

porque Deus estava do meu lado, me levando pelas mãos. E essa é décima

lição: Diante do imprevisível, contei com Deus.

Eu fico pensando às vezes: é como aquela criança que

passa o dia brincando, fazendo o dever de casa, e dorme na sala, com os pais,

vendo televisão. Ela, inocente, não foi para a cama. Quem carrega ela para a

cama é o pai, não é? A mãe prepara a cama dela e o pai pega ela no colo e a

leva para a cama – e ela nem percebe, ela nem sabe, ela nem viu isso aí, não

é? O pai dela dá conta de tudo, tranca a porta da casa, confere o gás, coloca o

despertador; a mãe passa a roupa dela, prepara o café da manhã – e esses

cuidados nem passaram pela cabeça dessa criança! Ela nem sabe que a vida, a

saúde, a segurança e o conforto dela dependem desse pai e dessa mãe – tudo o

que ela fez foi brincar, fazer o para casa e dormir na sala. Aí ela acorda no dia

seguinte, restabelecida, descansada e pronta para o novo dia, para novos

desafios, brincadeiras e aprendizado.

E quando eu penso nisso tudo eu vejo que é como se eu

fosse essa criança que cumpriu o seu papel, fez o seu dever de casa, brincou

um pouco, se divertiu – isso foi divertido mesmo, eu olho para trás e acho muita

graça –, mas chegou o momento em que eu dormi na sala mesmo, eu não tinha

noção do que estava acontecendo nesse fundo muitas vezes incontrolável das

nossas vidas, eu não tinha controle da situação – eu não estou dizendo que

houve desespero, não é isso! Mas tem coisas que você não vai controlar, não é?

Não é você que vai resolver aquilo. Você é incapaz mesmo, você não está

pronto para aquilo e muitas vezes você sequer sabe que tem um problema ali

para você resolver.

É como se eu fosse essa pessoa, essa criança que

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Page 32: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

dormiu ali na sala e de fato tinha uma cama pronta para ela dormir, e é Deus

quem pega você nos braços e te leva para a cama, foi Ele quem me deu a

segurança. Na época eu não era religioso (eu me converti à Igreja Católica há

pouco tempo; eu fui batizado quando criança mas fiquei longe da Igreja por

muito tempo), mas eu sempre rezei em casa. E eu olho para trás e sinto isso:

que foi Ele quem me pegou pelas mãos, me pôs na cama, para descansar

mesmo, e cuidou de tudo o que era necessário enquanto eu estava ali meio

adormecido, enfim, foi Ele quem coroou mesmo essa vitória, me colocou ali,

onde eu descansei – e eu já acordei adulto, no susto, descansado, e pronto para

a batalha, para esse desafio que é o Ministério Público.

A mensagem que eu tenho a dar para vocês a esse

respeito é essa: façam o que vocês têm de fazer mesmo, mas não adianta:

haverá alguma coisa ali que você não conseguirá suprir – e às vezes você nem

saberá o que é! Às vezes é isso, um artigo que cai nas suas mãos na hora certa,

na véspera da prova! Poxa, não foi você que foi atrás, o artigo chegou às suas

mãos! Você tem que reconhecer isso aí! Você não é gênio a ponto de descobrir

o que vai cair na prova. Caiu nas suas mãos, foi um presente. Está lá na sua

mão um artigo da Human Rigth´s Watch, e aí? Como é que é isso aí?

No concurso do MPMG eu não me lembro de nenhum

fato surpreendente – é claro que houve ação divina, lógico, mas não tem

nenhum fato surpreendente. No MPF houve. Realmente se não fosse esse artigo

eu não tinha passado, não tinha passado mesmo.

Então é isso. É preciso contar com essa válvula de

escape para o transcendente, que é Deus, que é o Infinito, o Insuperável. Você

vai ter que ter isso aí com você. Você não vai conseguir passar sozinho, tem

que ter os amigos, tem que ter família, se possível a seu favor – às vezes não é

possível, não é? Se não for possível, você se mantenha um pouquinho ali, e às

vezes fuja da família para estudar. Isso também funciona. Mas é importante

saber qual é a sua parte e qual é a parte de Deus – porque Ele tem a parte dele

também.

Então, pessoal, essa é a minha história.

Com essa exposição a gente encerra o nosso Ciclo de

Palestras e eu fico à disposição para perguntas, outras questões que vocês

tenham, algum comentário, alguma dúvida sobre essa minha trajetória. Eu

queria agradecer muito à Lúcia, por estar todos os dias aqui com a gente, e

fazer parte desse Ciclo de Palestras – e também à Lígia, minha estagiária, que

está fazendo e digitando os resumos das palestras. Eu espero que esse ciclo se

repita no próximo semestre. Eu não estarei aqui no próximo semestre, pois eu

farei uma permuta com um colega de Minas Gerais, mas eu espero que esse

espaço aqui se multiplique, pois ele foi muito importante. Esse espaço aberto,

esse diálogo com os estagiários e com os servidores é muito importante. A

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Page 33: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

gente estava precisando disso aqui. Porque, enfim, a gente aprende muito um

com o outro.

Então é isso!

Comentário da plateia: Eu só quero complementar a fala do Dr. Bruno, eu há vários anos trabalhei com estágio. E eu sempre tive relação com o estágio. E já comentei isso com o doutor, que eu sempre achei que esse tipo de evento não é apenas importante, mas sim essencial para o desenvolvimento do estagiário. Porque ele chega sem praticamente conhecer o órgão, vem muito imaturo, mesmo porque nem o curso ele encerrou ainda. E eu sempre tive isso muito claro dentro de mim, que isso faz parte realmente do processo de aprendizagem do estágio. E eu falei com o Dr. Bruno, quando ele comentou comigo a respeito dessa iniciativa, que eu a achava muito louvável, porque era uma expectativa que eu tinha dentro de mim, em relação a qualquer estágio, e principalmente aqui dentro eu acho que tinha que ser feito isso. E eu deixo o meu depoimento de que eu o parabenizo pela iniciativa. E sempre falei com eles, quando eu dou posse para eles, quando eles chegam no primeiro dia, que aproveitem mesmo, é ou não é? Porque tem a parte da faculdade, tem a parte da instituição, mas principalmente tem a parte de vocês estagiários. Então é isso.

Pergunta da plateia: O doutor não sente uma pontinha de saudade da atividade de dia-a-dia do Ministério Público estadual?

Exatamente, esse era um ponto que eu gostaria de ter

abordado, mas acabei me perdendo. Eu sinto muita falta mesmo! Eu tenho

muita saudade da época em que eu era promotor de justiça! Muita saudade!

Era muito gostoso aquilo! E foi muito bom também estar no MPF em outras

cidades. Aqui em Campinas a atividade é muito específica, não é? A gente só

trabalha com o criminal – eu estou na parte criminal aqui. Mas mesmo no MPF,

eu já trabalhei em lugares onde eu, de fato, atuava na parte de tutela coletiva,

e era muito dinâmico. Aqui eu tive esse azar, os crimes são muito técnicos e

você quase não vê os atores do processo, e isso por um lado é muito ruim. Tem

gente que gosta disso, tem gente que adora esse trabalho. Mas eu sinto falta

daquele trabalho do MPE. Esse é um dos motivos pelos quais eu estou voltando

para Minas. Eu vou para uma PRM de dois procuradores e eu espero que eu

fique mais satisfeito. Lá eu pegarei os casos da vida real, não é? Eu verei as

pessoas, eu atuarei em campo mesmo. Mas em especial o MPMG para mim foi

muito importante. Eu aprendi demais lá. Eu fiquei um ano lá e aprendi muito

mesmo. Eu tenho muitas saudades daquele tempo.

Eu não sei se estaria satisfeito se ainda estivesse lá. Eu

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Page 34: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

tenho colegas que passaram comigo no MPMG, que passaram antes de mim,

que passaram depois de mim, e que estão no MPF hoje. Mas eu não sei, essa é

uma dúvida que eu levarei para o túmulo. Se seria melhor ter ficado, se seria

melhor ter vindo. Mas eu tenho muita saudade mesmo. Foi muito gratificante o

trabalho lá, eu aprendi muito. Eu sempre morei na capital, em Belo Horizonte,

sempre morei em apartamento – como se diz, menino criado em apartamento –

e fui para uma cidade de quinze mil habitantes onde eu era promotor de justiça

e tinha muito poder nas mãos, não é? Eu aprendi muito, bati muito a cabeça.

Em me desiludi muito também: a gente chega lá achando que vai mudar a

cidade, não é? Esta cidade está agora sob as minhas mãos! Existem as leis e existem os fora-da-lei! Mas eu fui vendo – eu até já lhes falei sobre isso – que o buraco é mais embaixo. Você quer mudar tudo mas nem tudo pode ser mudado

por você naquele momento. Inicialmente eu me frustrei muito com isso aí, mas

eu fui aprendendo, eu fui vendo qual era realmente o lugar do promotor de

justiça. É de fato uma atuação que tem que ser em conjunto com a sociedade,

você tem que ir mais ou menos entendendo como é que funciona o fluxo social,

como é que os anseios e as expectativas funcionam ali dentro, para você ir

entrando e conseguir apertar o botão certo. Porque nem sempre você vai

chegar com um murro e vai resolver. Eu aprendi isso lá. Porque, é claro, você

passa no concurso, está com o poder nas mãos, com as leis todas, e acha que é

só aplicá-las. Mas não é assim! Eu tenho muita saudade dessa época, que foi de

muito aprendizado. E foi uma época de muito contato humano também. Eu tive

a felicidade de ter um juiz comigo, um gaúcho, o José Henrique Mallmann, que

era socialmente muito ativo. A gente, por exemplo, chegou a organizar uma

ONG ambiental lá em Águas Formosas, MG, a gente plantava junto com a

população nas margens dos rios, fazendo a recomposição das matas ciliares,

preservação de nascentes, fazíamos passeatas ecológicas com os alunos das

escolas – juntávamos os órgãos ambientais, IEF, Feam, Ibama e foi bem

interessante. A coisa durou um tempo depois que eu saí de lá, mas hoje não

existe mais.

Mas aconteceu o seguinte: eu passei nos dois concursos

ao mesmo tempo. Os resultados saíram no mesmo dia, em 05 de dezembro de

2003, que foi o dia mais feliz da minha vida até então. E eu tive que escolher.

No MPE eu já podia entrar direto, porque eles pediam um ano de formatura ou

de experiência. Eu já tinha feito estágio, já tinha sido oficial do Ministério

Público. Somando tudo eu já tinha tempo suficiente para entrar. Então eu tomei

posse e entrei direto. O MPF pedia dois anos de formatura – não eram dois anos

de experiência. Então eu teria que esperar de um modo ou de outro. Então eu

entrei no MPMG, fiquei lá um ano e pouco e fiquei de decidir se ia ou se não ia.

Era muito difícil decidir por não ir, não é? Um concurso difícil como esse.. eu

estava gostando demais da cidade. Mas um concurso como esse é uma vez na

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Page 35: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

vida e outra na morte! Então a chance estava aberta e eu resolvi entrar. Eu não

me arrependo não, mas eu tenho muita saudade. Se houvesse a possibilidade

de fazer um intercâmbio eu voltaria por um tempinho lá para fazer alguns júris

– eu tenho muita saudade do Tribunal do Júri, que era bem interessante.

Comentário da plateia: Eu acho que a tutela vai devolver um pouco... (inaudível)

Talvez devolva!

Pergunta da plateia: O senhor, que teve a oportunidade de passar nos dois, tanto no estadual como no federal, o senhor acha que a gente, que está começando agora, que vai ainda delinear qual caminho quer, é importante ou é necessário escolher se vai ser na área federal ou na estadual, porque muda muito as matérias, ou o senhor acha que não, que a gente tem que estudar tudo, qual é a sua impressão sobre isso, já que o senhor conseguiu os dois?

Olha, o meu enfoque foi mesmo no MPMG, que era o que

eu queria. Agora você há de convir que não há muita diferença na essência do

cargo: é um cargo acusador, fiscal da lei. Nesse caso eu não tive muito

problema. Havia algumas matérias específicas do MPF – e eu tive que estudá-

las também. No meu caso eu não passei por esse dilema de ter que escolher.

No meu caso eu acho que valeu a pena mesmo focar no MPMG e estudar para o

MPF o que faltava. Eu não tive um problema muito grande. Agora, estudar para

o concurso de juiz de direito e para o de juiz federal já é muito diferente. Eu não

saberia dizer se vale a pena se direcionar para um ou para outro ou se vale a

pena ficar entre os dois. Eu não sei mesmo dizer.

O que importa saber é que se você abrir um leque muito

grande será difícil. Se você quer ser delegado, AGU, juiz ou promotor – e se

puder também alguma outra coisa –, você não vai conseguir se centrar, entendeu? Agora se você está disposto a ser MP mesmo e quer chegar um dia

no MPF, eu acho que vale a pena investir no MPE, que tende a ser um pouco

mais fácil – é difícil, mas tende a ser mais fácil – e aí quando abrir o MPF você

tenta. Eu não acho que tenha algum risco – o risco é você gostar de ser

promotor de justiça e querer ficar no MPE!

Eu não sei se eu faria o MPF de novo se ainda estivesse

no MPMG. Eu tive colegas que fizeram, já estavam lá exercendo o cargo,

tentaram o MPF e passaram. Mas eu não sei se eu teria feito isso aí. Não sei

mesmo.

E não sei se vale a pena focar em um só. O risco de focar

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Page 36: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

em um só é aquele negócio: podem ter pedras no caminho que você não vai

perceber. Então o cara só quer ser juiz federal. Pô, às vezes você não

conseguirá, pois pode haver alguma coisa intransponível que você não está

conseguindo ver, algum obstáculo que você não consegue superar naquele

concurso. Entendeu? Ou então o tempo vai passando, abre um concurso aqui e

você não passa, abre outro e você não passa. E aí? Você tem que se definir, não

é, de algum modo! Então, eu não sei dizer sobre isso aí. Como tudo na vida, até

isso aí é um desafio: focar em um só ou abrir o leque.

Como você percebeu, eu fiz a AGU. Eu fui procurador

federal da AGU durante um ano e meio. Era muito trabalhoso o cargo. Eu estava

no JEF – Juizado Especial Federal em Minas Gerais, onde tinha muito trabalho.

Mas eu consegui não me vincular emocionalmente ao cargo. Eu fazia as coisas

direitinho, mas eu não amava o cargo. Então o meu coração estava nos

estudos. Eu saía de lá quase todos os dias 15h – às vezes tinha que ficar até

mais tarde, tinha muitas audiências, fazer carga de processo, devolver

processo. Eu chegava lá de manhã bem cedo e ficava até às 15h, e passava o

resto do dia e a noite inteira estudando. Então depende do que você quer de

verdade. Pode ser que você precise trabalhar e valha a pena você investir em

outro concurso mais fácil para você se manter durante esse tempo. Isso vale

muito a pena.

Eu me lembro que durante as férias de faculdade e de

trabalho eu rendia muito menos nos estudos. Mas muito menos mesmo. Eu não

sei o que acontece, eu não sei. Eu estudava menos tempo do que quando

estava no trabalho – me dava uma lombeira. Isso é engraçado, viu?

Se você pode ter um trabalho de meio horário, de seis

horas, é melhor. Ou um cargo em que você não precisará bater ponto e vai

conseguir fazer o trabalho bem feito em um tempo razoável. Por exemplo, na

AGU eu fazia o trabalho em mais ou menos cinco horas. Eu estava no JEF e o

trabalho era volumoso mas era muito repetitivo. Então eu consegui me

desvincular emocionalmente dali para estudar em casa. Então depende muito

da situação. Depende muito mesmo. Cada caso é um caso, e você tem que ir

sondando isso aí.

Pergunta da plateia: Agora, uma curiosidade, doutor, em relação ao seu dia de estudo. O senhor pegava duas ou três matérias e estudava simultaneamente. Como é que o senhor dividia?

O que eu fiz foi isso, eu falei desses resumos que eu

fazia. E eu criei um quadro em uma folha A4 onde eu punha as matérias e tinha

as etapas. Eu fazia um resumo com base em um livro, depois eu ditava e

transcrevia no computador e depois eu fazia ainda com o segundo livro, e

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Page 37: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

transcrevia. Então eu tinha as etapas. Eu ia marcando de acordo com a

afinidade do dia. Eu não ficava uma semana, por exemplo, só em Direito

Constitucional. Eu não fazia isso. Isso aí cansa um pouco a cabeça. Eu variava

muito. Eu me lembro que eu variava por dia, eu não me lembro de pegar duas

matérias em um mesmo dia. Cada dia eu mudava um pouco. Eu pegava até um

tal ponto em Constitucional, no dia seguinte era Direito Penal, aí eu marcava na

tabela até onde tinha ido, no dia seguinte mudava para outra matéria. Dessa

forma eu tinha o panorama completo ali naquela folha, ou em algumas folhas,

de acordo com o caso.

Sobre o tempo de estudo. Isso variava demais. Acontecia

de eu estudar entre o estágio e o trabalho, eu às vezes matava algumas aulas

na faculdade que não valiam a pena. Por exemplo: Direito do Trabalho – pô,

ninguém aguenta isso, não é? Eu saía da aula mesmo! Eu nunca fui de colar e

nunca colei na vida. Eu tinha horror ao pessoal da cola. Eu acho um

contrassenso o pessoal que gosta de se enganar – eu realmente não conseguia

entender o que estava acontecendo ali naquele grupinho. O que será que era tão interessante naquele negócio ali? Mas, por outro lado, eu quase não assistia

às aulas de Direito do Trabalho, e nas vésperas da prova eu lia um pouco os

resumos e fazia só o suficiente para passar. Não gostava de jeito nenhum dessa

disciplina. Então eu matava algumas aulas, quando não tinha aula eu ia para a

casa, ou para algum lugar, estudar.

O horário variava muito. Às vezes era a tarde inteira, às

vezes era a noite inteira. Mas nunca menos que uma hora e nunca mais que

cinco. Muito pouco tempo você ainda não esquenta para pegar a coisa, e muito

tempo você começa a não entender muito, começa a ficar cansado, o corpo

cansa e você passa a não entender mais.

Outra coisa: eu nunca fiz cursinho, nunca mesmo. Eu não

sei se eu devo aconselhar a fazer ou a não fazer. Mas no meu caso foi muito

legal não ter feito. Eu nunca fiz, mas eu assisti a uma ou a duas aulas em

cursinho. Na época da prova oral do MPMG, os cursinhos de Minas – na época

havia dois mais famosos, que eram o Praetorium e o A. Carvalho – ficavam

caçando os candidatos para fazer aulas gratuitas com eles. Para quê? Para eles

divulgarem o nome do cara: dos vinte aprovados, dezenove são do A. Carvalho – e muitas vezes o cara pisou lá apenas uma vez! Então nessa fase da prova

oral eles convidam os candidatos a assistirem às aulas deles. E nessa fase isso

pode ser importante. Por quê? Porque nessa fase o membro da banca pode

perguntar coisas de que você não suspeita. É bom conhecer o que ele está

lendo, é bom conhecer a linha de trabalho dele. É só no cursinho que eu

consegui ter acesso a isso. Eu não tinha nenhum passarinho verde para me

contar. Os caras dos cursinhos eram colegas de trabalho deles. Eu nunca vi

nenhum tipo de tráfico de influência nesses casos, claro, ninguém contava o

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Page 38: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

que iria cair nas provas. Mas eles falavam coisas do tipo: Ah, olha, hoje eu estava lá na PGJ e eu vi Fulano de tal, membro da banca, com o livro de não-sei-quem debaixo do braço. Entenderam? Então a gente sabia que o cara

estava lendo o livro de não-sei-quem. Já era um dado importante para você

sondar a linha dele. Às vezes ele poderia estar querendo enganar, não é? Pode

ser que estivesse dando uma pista falsa. Mas era importante saber disso. Então

eu fui assistir a essas aulas da prova oral. Uma ou duas. Eu não sei se valeu a

pena. Mas eu estava mais seguro, porque eu sabia que estava junto com os

outros, não é? E isso foi de algum modo importante. Nessa fase não dá para

você ir sozinho não. Você tem que ter as informações do que corre ali dentro –

informações lícitas, diga-se de passagem.

Eu não fiz cursinho, mas eu sei que o ambiente do

cursinho, se por um lado parece engraçado – tem piadinhas –, tem excelentes

professores, os caras dominam mesmo a matéria, sabem tudo; você vai no

cursinho e os professores são dinâmicos, usam muitos gráficos, setas e etc –,

mas no longo prazo o negócio começa a ficar depressivo. Há muita gente que

está ali há seis, sete concursos tentando, e não passa, não passa e não passa.

Aí você vê que a pessoa passa a ser especialista em aulas de cursinho: ela sabe

tudo sobre aquilo, sabe em que aula o professor deu aquilo, sabe qual é o

programa do professor, sabe todas as piadas que o professor conta – ela só não

sabe passar no concurso. Ela fica meio assim – eu não sei o que é. Eu vi

pessoas assim: pessoas que ficaram viciadas em cursinho.

E eu ficava pensando assim: eu vou lá para o cursinho,

aí eu tenho que ir de ônibus ou de carro, já é meia hora, até a aula esquentar, mais meia hora. Pô, uma hora de estudo é muita coisa! Aí tem o intervalo, tem

o papo com os amigos, tem a fofoca. Olha, isso é muita perda de tempo! Eu não

quis fazer por isso. Pois eu estava ali em um ritmo muito forte. Mas isso é

importante: eu estava sabendo o que eu estava fazendo, eu estava consciente

do que eu estava fazendo, eu não estava perdido no programa. Eu tinha um

programa certo a cumprir, um programa que tinha um cronograma certo, e

estava seguindo ele à risca, e isso me dava segurança – daí o título que eu dei

para a nona lição: Fugi da falsa segurança dos cursinhos preparatórios. E mais:

eu estava sempre em contato com pessoas que estava fazendo cursinho. Eu

não me isolei, eu não era contra e pronto. Eu estava em contato com eles.

Comentário da plateia: mesmo porque o cursinho tem uma atualização diária, não é, doutor? A coisa quente ali já está no cursinho.

Sim, quem dá aulas em cursinho geralmente sabe muito.

Eu dei aulas em cursinho uma vez, no Pará, na Escola da Magistratura do TJPA,

sobre Direito Eleitoral. Foram seis meses. Eu tive que estudar muito para dar

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Page 39: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

esse curso lá. O pessoal sabe muito, os alunos de cursinho sabem muito, não é?

E o professor tem que saber tudo. Há perguntas que surgem do arco-da-velha.

De fato, há alunos que sabem muito. E o professor tem que saber muito

também. Então é assim: tem muita informação, mas eu não sei, na minha

situação eu acho que eu ficaria muito deprimido naquele ambiente, entendeu?

É um ambiente que tem algum tipo de faz-de-conta também. Eles prometem

muito. Prometem muito mesmo. E na verdade não depende só deles. Eles

prometem o que eles não podem fazer. Eles não podem passar o cara no

concurso, e a pessoa vai naquela ilusão, não é? Ela está no melhor cursinho da

cidade, ela está com os melhores professores, então ela acha que aquilo vale a

pena e será suficiente.

Eu me lembro que eu vi uma vez em um cartaz na

faculdade a divulgação de um cursinho preparatório de seis meses para o

exame da OAB. Aí alguém, uma boa alma, escreveu lá de caneta uma

brincadeira bem curiosa: Aprenda em seis meses o que você não aprendeu em cinco anos. Eu falei: É isso que é o cursinho, não é? O cara que durante cinco

anos não aprendeu, ou não aprendeu o suficiente, quer aprender tudo em seis

meses. Isso não vai dar! Ele pode ir no cursinho – é por isso que eu falo, eu não

vou desrecomendar -, mas ele vai ali só respirar aquele ambiente e tem que

sair dali o mais rápido possível! Aquilo ali não é vida, é só uma passagem,

aquilo lá é só um instrumento mesmo para sentir o que é um concurso.

Muitas pessoas não têm outra oportunidade de ter essa

experiência. Eu por exemplo fiz muitos estágios, tive um bom emprego na área

jurídica, onde eu estive perto das pessoas que faziam isso. Então eu mais ou

menos peguei no ar a coisa, eu não sei explicar como eu consegui pegar, mas

eu peguei aquilo no ar. Tem pessoas que não conseguem fazer isso e são

melhores em outra coisa. Então talvez o cursinho seja bom para elas. Para elas

sintonizarem no que é um concurso, sintonizar nas matérias, no que é novo, no

que é mais antigo, e é a base. Talvez seja bom. Mas há sempre o risco de viciar.

E você se revoltará, pois se você gostar muito você acabará ficando lá um, dois

ou três anos e vai ficar se perguntando o que aconteceu: Será que eu não consigo? É porque você está olhando para o lugar errado: você tem que olhar

para você mesmo, para dentro de você. É aqui, dentro de você, que está sua

vitória, não é no cursinho.

Mas eu conheço colegas que fizeram cursinho e que

creditam a sua aprovação ao cursinho. Então eu não tenho como falar: Não façam cursinho! Eu sei que eu não fiz e para mim foi muito bom não ter feito,

porque eu ganhei mais tempo para estudar em casa.

Muito bem gente? Então está bom. Até a próxima, então.

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1 Esta é a transcrição, com adaptações e alguns pequenos acréscimos, da palestra que fechou o Ciclo de Palestras para os estagiários e servidores da Procuradoria da República no Município de Campinas, SP, ocorrido entre fevereiro e abril de 2011. As notas de rodapé – muitas delas com referências pessoais – foram acrescentadas posteriormente ao texto.No início da palestra foi distribuído à plateia um pequeno recorte de papel, com o título Como consegui ser aprovado no concurso do Ministério Público, e com as seguintes lições: 1) Descobri o meu próprio valor. Não aceitei o consenso geral a esse respeito; 2) Com humildade, aceitei as minhas deficiências e trabalhei sobre elas; 3) Convivi com pessoas que chegaram ao objetivo que eu buscava; 4) Fortaleci minha vontade: certifiquei-me da minha vocação e trabalhei sobre a minha imaginação; 5) Encontrei o meu próprio método e montei minha própria bibliografia; 6) Fiz o reconhecimento do território (concursos públicos em geral) e sondei o exército adversário (as provas e a banca examinadora); 7) Tive amigos com os quais trocava ideias; 8) Preenchi o meu tempo com coisas úteis e saudáveis. Não temi a solidão; 9) Fugi da falsa segurança dos cursinhos preparatórios; 10) Diante do imprevisível, contei com Deus.

2 Procurador da República em Campinas, SP. Antes de assumir as funções do Ministério Público Federal, foi oficial do Ministério Público, procurador federal/AGU e promotor de justiça em Minas Gerais – onde atuou na Comarca de Águas Formosas, MG. No Ministério Público Federal atuou também na Procuradoria da República no Pará e na Procuradoria da República no Município de Volta Redonda, RJ.

3 Além do cursinho pré-vestibular Cromos, na Rua da Bahia, que durou duas semanas na virada do ano de 1996, também absorvi muito das aulas do 3º Ano Integrado do Colégio Batista Mineiro, em especial as dos professores Jair Kaeser (física), Ronier (química) e Ambrogina (matemática); e as de um cursinho de História, com duração de um semestre, que acontecia às segundas-feiras à noite no Colégio Padre Machado, ministrado pela excelente professora Maria de Fátima Martins Barbosa.

4 Segundo me recordo, para Jung, os pais têm a expectativa de que os filhos façam aquilo que eles próprios não conseguiram fazer de suas próprias vidas – e sobre a alma dos pequenos imprimem, desde o berço, essas expectativas.

5 O primeiro parágrafo do texto – texto que vale a pena ser lido na íntegra – é muito elucidativo: Desde os trabalhos de Cannon, percebe-se mais claramente sobre quais mecanismos psico-fisiológicos estão fundados os casos atestados em inúmeras regiões do mundo; de morte por conjuro ou enfeitiçamento: um indivíduo, consciente de ser objeto de um malefício, é intimamente persuadido, pelas mais solenes tradições de seu grupo, de que está condenado; parentes e amigos partilham desta certeza. Desde então, a comunidade se retrai: afasta-se do maldito, conduz-se a seu respeito como se fosse, não apenas já morto, mas fonte de perigo para o seu círculo; em cada ocasião e por todas as suas condutas, o corpo social sugere a morte à infeliz vítima, que não pretende mais escapar àquilo que ela considera como seu destino inelutável. Logo, aliás, celebram-se por ela os ritos sagrados que a conduzirão ao reino das sombras. Incontinenti, brutalmente privado de todos os seus. elos familiares e sociais, excluído de todas as funções e atividades pelas quais o indivíduo tomava consciência de si mesmo, depois encontrando essas forças tão imperiosas novamente conjuradas, mas somente para bani-lo do mundo dos vivos, o enfeitiçado cede à ação combinada do intenso terror que experimenta, da retirada súbita e total dos múltiplos sistemas de referência fornecidos pela conivência do grupo, enfim, à sua inversão decisiva que, de vivo, sujeito de direitos e de obrigações, o proclama morto, objeto de temores, de ritos e proibições. A integridade física não resiste à dissolução da personalidade social.

6 À professora de ICD não pode ser atribuída, com exclusividade, a culpa pelo fracasso de meu desempenho acadêmico naquele semestre.

7 Em sua composição mais famosa, a banda Silver Boys era integrada por Bruno Borges (baixos e vocais – por assim dizer), eu mesmo (guitarras solo e vocais – por assim dizer), Felipe Pinheiro (teclados, vocais – por assim dizer – e percussão), Fábio Borges (guitarras e vocais – por assim dizer), Raimundo (bateria).

8 Os shows que aconteciam nos restaurantes Mister Beef e Pau e Pedra, em Belo Horizonte.9 Trata-se do colega de turma Raphael Luiz Corrêa de Melo.10 Não fugiram da memória os seguintes: Nívia Mônica da Silva, Fábio Barbieri Caetano e Thereza Cristina Dias

Corteletti.11 Entre eles: Lucas Rolla, Eduardo Henrique Soares Machado, Tânia Regina Soares Machado, Cláudia Spränger,

Mário César Motta, Marco Antônio Borges e José Ronald Vasconcelos de Albergaria.12 Esse fato deve ser atribuído à confiança que depositava em mim o coordenador administrativo da Promotoria de

Justiça da Infância e da Juventude, Sérgio Bispo.13 Passei toda a minha infância no Conjunto IAPI, em Belo Horizonte, que disputava fronteiras com a Pedreira Prado

Lopes, favela próxima ao bairro da Lagoinha.14 A palavra bagagem está na moda, mas não é adequada para simbolizar o verdadeiro conhecimento. O verdadeiro

conhecimento não pesa nas costas e é verdadeiramente incorporado na pessoa. O conhecimento simbolizado pela bagagem é geralmente pesado, limitado, pode prejudicar a saúde, e sobretudo não faz parte do patrimônio pessoal do indivíduo, pois não está verdadeiramente incorporado a ele.

15 Evangelho Segundo São Lucas 14:31-32.16 Entre eles está o inconfundível Frank Gonçalves Nery.17 Em latim: idem velle idem nolle.18 Lembro-me, especialmente, dos prof. Bruno Wanderley e Florivaldo Dutra de Araújo.

Page 41: Concurso para o Ministério Público Federal:   um testemunho

19 Eu havia requerido a inscrição nos quadros da OAB-MG, com base em uma norma regimental que tratava dos procuradores federais já empossados na AGU. Como eu ainda não dispunha do certificado de colação de grau, meu requerimento foi indeferido. Seguiu-se um recurso de ofício para a Câmara de Julgamentos. Nesse meio tempo, fiz o exame de seleção e fui aprovado. O meu processo foi colocado em pauta por duas ou três vezes. Após ausência do relator em uma das sessões e pedidos de vista em outras, acabei comparecendo à última sessão, onde um dos conselheiros queria efetivamente uma investigação geral e irrestrita da situação de todos os procuradores federais da AGU lotados em Minas Gerais, e para tanto solicitou ao relator a expedição de uma grande variedade de ofícios – requerimento cuja implementação efetivamente deixaria o meu processo em aberto até a consumação dos séculos. Com a importantíssima ajuda do conselheiro Moacir Lobato de Campos Filho, com a presença e o apoio moral do advogado Carlos Alberto Santos Azevedo, amigo do meu pai, e após breve e emocionada sustentação oral que eu mesmo fiz, conseguimos efetivamente dissuadir o intrépido conselheiro de sua sanha persecutória, com o que eu consegui finalmente o deferimento de minha inscrição.

20 Lembro-me com muita saudade – e, hoje, com alívio – das dificuldades que passamos na então recém-instalada agência do INSS de apoio ao Juizado Especial Federal de Belo Horizonte. Trago boas lembranças dos colegas Geraldo Magela Ribeiro de Souza (que se dispôs, com o desprendimento natural das boas almas, a aliviar, na época das provas subjetivas e orais, o pesado fardo de processos e audiências que eu então carregava), Jamerson Vieira, Marcelo Caldeira França, Sérgio Vecchio Salomon e Daniela Maria Baêta Scarpelli.

21 Em uma das salas do concurso, o amigo e candidato Raphael Corrêa perguntou, sem rodeios, ao examinador, que na ocasião fazia uma prudente visita de inspeção nas salas: Então, professor, eu tenho uma dúvida sobre uma das questões: o que é essa tal de supressio?