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Conflitos de princípios na repartição da competência material dos tribunais: os casos aut-aut e et-et* MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA SUMÁRIO: 1. Colocação do problema. 2. Ponto de partida: os princípios subjacentes à repar- tição de competências na ordem jurídica portuguesa. 3. Casos aut-aut: alternatividade de qualificações mutuamente excludentes: 3.1. Os limites à declaração de incompetência; 3.2.Vin- culação do tribunal à anterior qualificação da situação jurídica em litígio?: 3.2.1.Valores e interesses: conflito entre os princípios da segurança jurídica e da especialização dos tribunais; 3.2.2.Argumentos a favor da não vinculação; 3.2.3. Pela vinculação do tribunal à decisão proferida pelo tribunal anterior; 3.3. Balanço. 4. Os casos et-et: cumulação de qualificações compatíveis. 1. Colocação do problema O sistema português de repartição de competências entre os tribunais assenta num conjunto de regras, de carácter aparentemente rígido, tendentes a assegurar que a decisão é tomada pelo juiz mais bem colocado para aferir o mérito da causa e, assim, alcançar a decisão mais justa, garantindo, do mesmo passo, a segurança jurídica indispensável ao funcionamento do sistema judiciá- rio. A alteração das regras de competência positivamente fixadas pelo legisla- * O texto que se publica corresponde ao tema apresentado na prova oral de melhoria de Direito Processual Civil I, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano lectivo de 2009-2010, resultando da discussão com a Professora Doutora Paula Costa e Silva, a quem agra- deço as sugestões e as críticas efectuadas, bem como o incentivo à redacção e publicação do artigo. À Dr.ª Sofia Henriques e ao Dr. Nuno Trigo dos Reis, agradeço também a ajuda prestada. O Direito 142.° (2010), III, 593-615

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Conflitos de princípios na repartição da competência materialdos tribunais: os casos aut-aut e et-et*

MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA

SUMÁRIO: 1. Colocação do problema. 2. Ponto de partida: os princípios subjacentes à repar-tição de competências na ordem jurídica portuguesa. 3. Casos aut-aut: alternatividade dequalificações mutuamente excludentes: 3.1.Os limites à declaração de incompetência;3.2.Vin-culação do tribunal à anterior qualificação da situação jurídica em litígio?: 3.2.1.Valores einteresses: conflito entre os princípios da segurança jurídica e da especialização dos tribunais;3.2.2.Argumentos a favor da não vinculação; 3.2.3. Pela vinculação do tribunal à decisãoproferida pelo tribunal anterior; 3.3. Balanço. 4. Os casos et-et: cumulação de qualificaçõescompatíveis.

1. Colocação do problema

O sistema português de repartição de competências entre os tribunaisassenta num conjunto de regras, de carácter aparentemente rígido, tendentes aassegurar que a decisão é tomada pelo juiz mais bem colocado para aferir omérito da causa e, assim, alcançar a decisão mais justa, garantindo, do mesmopasso, a segurança jurídica indispensável ao funcionamento do sistema judiciá-rio. A alteração das regras de competência positivamente fixadas pelo legisla-

* O texto que se publica corresponde ao tema apresentado na prova oral de melhoria de DireitoProcessual Civil I, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano lectivo de2009-2010, resultando da discussão com a Professora Doutora Paula Costa e Silva, a quem agra-deço as sugestões e as críticas efectuadas, bem como o incentivo à redacção e publicação doartigo. À Dr.ª Sofia Henriques e ao Dr. Nuno Trigo dos Reis, agradeço também a ajuda prestada.

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dor é, porém, reclamada em casos excepcionais, em nome de valores e princí-pios distintos e conflituantes com os princípios básicos que regem a distribui-ção legal de competências. É o que pretendemos demonstrar, tomando comoobjecto principal de análise os casos aut-aut (“ou-ou”), que se referem a situa-ções em que os mesmos factos são susceptíveis de conduzir a diferentes quali-ficações jurídicas mutuamente excludentes, sendo que a cada qualificação corres-ponde uma diferente competência material. Secundariamente, analisamostambém os casos de qualificações materiais cumulativas – casos et-et (“e-e”) –,i.e., as situações em que os factos invocados pelo autor permitem simultanea-mente duas qualificações, que não se excluem entre si1.

Ilustre-se o nosso campo problemático com duas hipóteses:

a) Caso aut-aut: o autor propõe, num tribunal de competência genérica,acção em que pede a resolução, acompanhada de indemnização, de umcontrato invocando factos que tanto podem conduzir à sua qualificaçãocomo contrato de prestação de serviços atípico (caso em que o tribu-nal de competência genérica é competente2) ou à qualificação comocontrato de trabalho3 (caso em que a competência seria do tribunal detrabalho, enquanto tribunal de competência especializada4). Colocam--se, num caso como este, duas questões:

(i) Se o tribunal não se declarar incompetente no despacho saneadormas, no final, entender que o contrato é um contrato de trabalho,pode ainda considerar-se incompetente nesta fase? Ou, pelo con-trário, tendo aceitado à partida a sua competência com base na qua-lificação feita pelo autor, deve, nessa segunda fase, decidir antes pelaimprocedência da acção, com fundamento em não se tratar de umcontrato de prestação de serviços?

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1 São situações à margem dos casos sic-non, mais comuns, que são aqueles em que os factos ale-gados pelo autor apenas permitem uma qualificação jurídica, sendo o tribunal competente se essaqualificação estiver no âmbito da sua competência material.2 Cf. artigo 77.° da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro e artigo 110.° da Lei n.° 52/2008, de 28 deAgosto.3 Esta situação não é de estranhar. Na verdade, é frequente a dificuldade em traçar a linha de fron-teira entre um contrato de trabalho e outros contratos. Cf., por todos, PEDRO ROMANO MARTI-NEZ, Direito do trabalho, Coimbra, 2007, pp. 297 a 349.4 Cf. artigo 67.° do Código de Processo Civil e artigos 18.°, n.° 2, 78.°, al. d) e 83.° a 88.° daLei n.° 3/99, de 13 de Janeiro ou 26.°, n.° 2, 74.°, n.° 2, al. c) e 118.° a 120.° da Lei n.° 52/2008,de 28 de Agosto.

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(ii) Perante a situação, resta ao autor propor a acção num tribunal detrabalho. Pergunta-se, neste caso, se pode o tribunal de trabalhoconsiderar que não nos encontramos perante contrato de trabalhomas, afinal, perante contrato de prestação de serviços, declarando--se, consequentemente, incompetente, ou se está antes obrigado aaceitar a qualificação previamente feita pelo tribunal de competên-cia genérica?

b) Caso et-et: o empregador propõe num tribunal de competência gené-rica uma acção de responsabilidade contra o trabalhador invocando queeste, no exercício das suas funções, destruíra encomenda que deveria serentregue ao cliente no dia seguinte. O facto tanto consubstancia res-ponsabilidade aquiliana (sendo competente o tribunal de competênciagenérica) como responsabilidade contratual (sendo competente o tri-bunal de trabalho)5. Pergunta-se se o tribunal pode considerar-seincompetente, apesar de ser competente para analisar a questão sob umdos pontos de vista (o da responsabilidade delitual). Mais se questionase, aceitando a competência, o tribunal apenas está autorizado a anali-sar o caso do ponto de vista da responsabilidade delitual e não tambémda responsabilidade contratual – em nome do princípio da especializa-ção de competências – ou se, pelo contrário, não haverá determinadosvalores que apontam no sentido oposto. Este constitui o segundo com-plexo problemático cuja análise se impõe neste contexto.

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5 O problema do concurso da responsabilidade contratual e delitual tem sido amplamente dis-cutido. Na essência, confrontam-se duas teses opostas: os sistemas do cúmulo, que concedem aolesado a possibilidade de se socorrer da responsabilidade que mais lhe convenha para o efeito quepretende alcançar, e os sistemas do não cúmulo, que aplicam o regime da responsabilidade con-tratual, numa lógica de consumpção. Não tomando, porém, a lei portuguesa posição na matéria,parece-nos que tão fundada é a pretensão do lesado que visa um efeito próprio da responsabili-dade contratual como da responsabilidade extracontratual. O lesado terá, então, plena liberdadede agir (cf., neste sentido, ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. I, Coimbra, 2000, pp. 636e 637.Também MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil português, vol. II, Direito das Obri-gações,Tomo III, Coimbra, 2010, pp. 398 ss, considera que não existe uma relação de especiali-dade que permita a prevalência da imputação obrigacional. Havendo concurso de pretensões, oautor pode invocar qualquer uma delas.Aliás, seria uma “inversão conceitualista” estabelecer umaresposta apriorística. Em sentido contrário, cf. ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, Coimbra,2008, pp. 546 ss. Este Autor considera que, perante uma situação concreta, sendo aplicáveis para-lelamente as duas espécies de responsabilidade civil, o facto tem, em primeira linha, de ser con-siderado ilícito contratual. Seja qual for a posição adoptada, essencial será sempre que não hajaduplicação de acções, uma vez que existe um só dano, decorrente de um único facto.

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Tanto os casos aut-aut como et-et – mas especialmente os primeiros – fun-cionam como importante teste à rigidez das regras legais de repartição de com-petências.Veremos que apenas tratando a situação como problema material deconflito de princípios, surgido no âmbito de um Direito de cariz essencialmenteadjectivo, é possível obter resposta adequada para as questões que colocamos.

2. Ponto de partida: os princípios subjacentes à repartição de com-petências na ordem jurídica portuguesa

Ponto de partida da nossa análise deve ser a compreensão dos objectivos dosistema português de repartição de competências entre os tribunais. São eles,por um lado, assegurar que a decisão seja tomada pelo juiz mais bem colocadopara decidir do mérito da causa e, por outro, efectivar a máxima racionalizaçãodos recursos afectos à realização da justiça, com a finalidade última de “tornarbreve e útil a instrução e discussão e justa a decisão”6.

O problema da competência tem, na realidade, uma incidência materialefectiva, ligando-se, aliás, ao problema metodológico da decisão justa, numavertente institucional: está em causa saber quais as condições que o ordena-mento jurídico deve criar para a realização da justiça pelos tribunais7.

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6 Cf. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código Processo Civil, vol. III, Coimbra, 1960, p. 9.7 A teoria do Direito justo surge hoje, e no âmbito em que nos situamos, como problema meto-dológico e institucional. Não está, naturalmente, em causa analisar o conceito de justiça ou saberqual o seu conteúdo, interrogação que tem ocupado juristas e não juristas desde sempre.A ques-tão é, antes, a de saber se existe um método para alcançar a justiça ou, mais modestamente, paraobtermos a “melhor solução”. Cf., v.g., MICHELE TARUFFO,“Idee per una teoria della decisionegiusta”, Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1997, ano 51, n.° 2, pp. 315 -328, subli-nhando que, num contexto em que circulam ideias de justiça insatisfatórias, redutoras, unilateraise com pouca eficácia explicativa, é necessário encarar o problema da possibilidade de se alcançara decisão justa.Tal não implica, todavia, enveredar pelo relativismo axiológico (como faz ZIPPE-LIUS), devendo recordar-se até as tentativas de ultrapassar a rígida contraposição entre um pontode vista “absolutista” e outro rigidamente “relativista”, como aquela que foi protagonizada porRYFFEL e pela ideia de aproximação ao “recto em absoluto”. Particularmente relevantes, na buscada melhor solução, são as teorias do discurso e, em particular, as teorias intersubjectivas da comu-nicação defendidas por autores como KAUFMANN, Filosofia do Direito (trad. port), Lisboa, 2004 ouHABERMAS, Facticidad y Validez (trad. esp.), Madrid, 1998, que salientam que o Direito está sub-metido a uma “coacção” idealista, que o obriga a legitimar os seus imperativos. Como refereENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico (trad. port.), Lisboa, 1964, p. 326, “é frutuosa a consi-deração da teoria do Direito justo sob o aspecto metodológico” e isto, acrescentaríamos, sob umadupla perspectiva: por um lado, é essencial perguntar como é possível obter a melhor decisão de

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Porém, há determinados casos em que estes princípios podem ser postosem causa e em que outros princípios, de sentido oposto, podem reclamar apli-cação, determinando, directa ou indirectamente, a alteração das regras de com-petência positivamente fixadas pelo legislador.

É possível identificar, no próprio Direito positivo, algumas situações quedemonstram que os princípios atrás fixados devem, por vezes, ceder:

(i) No caso da competência territorial, se o tribunal onde for proposta a acçãose considerar territorialmente incompetente, remete o processo para otribunal competente, sendo a remessa vinculativa para este (artigo111.°, n.os 2 e 3). Excepciona-se, assim, o princípio Kompetenz-Kom-petenz8, uma vez que o segundo tribunal não é livre de apreciar a suaprópria competência. Ainda que a decisão do primeiro tribunal nãoseja a correcta, constitui caso julgado formal, por se tratar de decisãosobre a relação jurídica processual (artigo 672.°). Impede-se a reapre-ciação da competência relativa do tribunal, ainda que com base emdiferente fundamento, bem como que o tribunal remetido se declarerelativamente incompetente9. O objectivo é evitar um real conflito

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uma perspectiva substantiva, explorando, designadamente, o papel do sistema, enquanto conjunto detodos os valores fundamentais constitutivos de uma ordem jurídica e lembrando que a decisãojusta é a decisão valorativamente adequada e conforme à unidade do sistema, i.e., como apontaCANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito (trad. port.), Lisboa, 1989,pp. 178 ss., a solução “justa perante o sistema” é também a solução “materialmente justa”; poroutro lado, e de uma perspectiva institucional ou organizativa, cabe determinar as condições que oordenamento jurídico deve criar para a realização da justiça pelos tribunais, relevando regrascomo a independência, imparcialidade, inamovibilidade e fungibilidade do juiz, o princípio docontraditório ou o dever de fundamentação das decisões, por exemplo. Sobre a justiça como pro-blema institucional, cf. BARBAS HOMEM, “Reflexões sobre o justo e o injusto: a injustiça comolimite do Direito”, RFDUL, vol. 39, n.° 2, 1998, pp. 588-650 (614 ss.) e JOSÉ LAMEGO,“Funda-mentação ‘Material’ e Justiça da Decisão.A meta de decisões ‘materialmente justas’ e os seus limi-tes”, Revista Jurídica, n.° 8, 1986, pp. 69-93 (83 ss.).8 Do princípio Kompetenz-Kompetenz decorre que cada tribunal aprecia a sua competência comtotal autonomia e que nenhum tribunal pode coadjuvar outro na apreciação da sua competên-cia (cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, Lisboa, 1994,p. 37). Este princípio é expressamente excepcionado em três situações: quando a apreciação dacompetência resulta da decisão de um conflito de competência ou jurisdição (artigo 115.°),quando a decisão do tribunal sobre a competência tem uma função preventiva desse conflito(artigo 107.°, n.° 1) e ainda nos casos, já mencionados em texto, em que o tribunal remete o pro-cesso para o tribunal competente (artigo 111.°, n.os 1, 2.ª parte, e 3).9 Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lisboa, 1997, p. 133; JOSÉ

LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.° (artigos 1.° a 380.°), Coimbra, 1999,p. 216.

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negativo de competência em razão do território, pelo que o legisladoradopta uma solução preventiva de tal conflito. Se a questão da com-petência territorial voltar a ser, indevidamente, apreciada pelo segundotribunal, havendo, então, duas decisões contraditórias, ter-se-á quecumprir a que passou em julgado em primeiro lugar (artigo 675.°).

(ii) No caso da competência material, a especialização dos tribunais cede mui-tas vezes perante considerações de economia de meios ou de econo-mia processual: há comarcas onde não se justifica a existência de tri-bunais de competência especializada10, além de que a repartição decompetências pode deixar de valer, por exemplo, quando surjam ques-tões incidentais (artigo 96.°, n.° 1) ou prejudiciais (artigo 97.°, n.° 1).Na verdade, a competência que a lei reconhece ao tribunal da causaestende-se aos incidentes e à matéria da defesa suscitada pelo réu.Mais: verificada uma questão prejudicial, o juiz, ao invés de suspendera instância, pode prosseguir na apreciação e no julgamento da acção,decidindo ele próprio a questão prejudicial, que poderá ser da com-petência de um tribunal criminal ou administrativo. Embora em qual-quer dos casos a decisão transitada apenas forme caso julgado formal,não deixa de ser manifesto o confronto entre o princípio da celeri-dade processual – que aconselha que as questões incidentais ou preju-diciais sejam desde logo decididas pelo juiz da causa – e os princípiosda justiça e acerto da decisão – que recomendam o seu exaustivoconhecimento em acção própria, com o inconveniente do protela-mento da acção onde a questão é incidentalmente ou prejudicial-mente suscitada11.

Com este ponto de partida, o problema que se coloca é o de saber se nãohaverá outros casos em que a repartição de competências deve ser modificada,apesar de a lei não o determinar expressamente: em concreto, os casos aut-aute et-et. Vejamos.

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10 Cf. Mapa VI do Decreto-Lei n.° 186.°-A/99, de 31 de Maio, parcialmente alterado peloDecreto-Lei n.° 25/2009, de 26 de Janeiro.11 Cf., sobre este conflito de princípios, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código..., cit., pp. 180-188, emespecial pp. 181 e 186.

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3. Casos aut-aut: alternatividade de qualificações mutuamente exclu-dentes

3.1. Os limites à declaração de incompetência

Primeira questão levantada pelos casos aut-aut respeita aos limites tempo-rais que se colocam à apreciação pelo tribunal da sua competência. O tribunaldeve assegurar a sua competência absoluta, apreciando-a antes do julgamentodo mérito: dispondo dos elementos que lhe permitem concluir pela sua faltade competência para apreciar a acção, deve julgar-se incompetente e recusar-se a conhecer do mérito da causa. Não se trata de qualquer retorno ao dogmada prioridade da apreciação dos pressupostos processuais face à apreciação domérito da causa12. Antes a competência absoluta constitui pressuposto indis-pensável, de tal maneira que, à luz do regime em vigor, nos casos em que faltaa competência absoluta o tribunal não pode apreciar o mérito da causa. Nestecaso, impõe-se que o tribunal conheça da falta do pressuposto e não aguardepela possibilidade de apreciar o mérito para se pronunciar sobre a admissibili-dade da acção13.

No entanto, importa distinguir diferentes hipóteses, tomando em conta oexemplo anterior, ligeiramente alterado: suponha-se que o autor pede que sejadeclarada a invalidade da resolução do contrato (que qualifica como contratoatípico de prestação de serviços) que havia sido levada a cabo pelo réu comfundamento em incumprimento de determinadas instruções, alegando o autorque não estava obrigado a cumprir as mesmas. Na situação mais simples, podesuceder que, logo no despacho saneador, o juiz esteja em condições de deter-minar se o negócio jurídico controvertido configura um contrato de prestaçãode serviços ou um contrato de trabalho, concluindo pela sua incompetência nosegundo caso. Sendo, porém, a qualificação do negócio mais complexa edependendo da produção posterior da prova, o juiz ou se pronuncia generica-mente sobre a competência14 ou difere a decisão para momento posterior, uma

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12 Sobre este dogma e a sua crítica, cf. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos…, cit., pp. 83 e ss. e “Sobreo sentido e a função dos pressupostos processuais.Algumas reflexões sobre o dogma da aprecia-ção prévia dos pressupostos processuais na acção declarativa”, ROA 49 (1989), pp. 85 ss.13 Cf. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos…, cit., p. 83.14 Em termos que se tem considerado não formar caso julgado, uma vez que o juiz apenas emiteuma afirmação genérica, no despacho saneador, de que inexistem excepções dilatórias ou nuli-dades processuais, não apreciando questões concretas. Para que se formasse caso julgado e fosseimodificável teria de apreciar questões concretas, afirmando, por exemplo, que o tribunal é com-

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vez que só poderia julgar-se incompetente no caso de resultar da qualificaçãodo contrato a competência material de outro tribunal. Surgem aqui as dificul-dades suscitadas pelos casos aut-aut.

Não se declarando o tribunal incompetente, a acção prossegue nos termosgerais, passando-se à fase da instrução do processo, com a produção de provapelas partes. Na realidade, é discutida e apreciada a questão material subjacente(existência do poder de direcção e qualificação do contrato) exactamentecomo se o tribunal assumisse a sua competência. Uma vez produzida toda aprova, o juiz está apto a pronunciar-se quanto ao mérito da causa. Suponha-seque o juiz, ponderados todos os elementos carreados para o processo, concluique a qualificação do autor não é correcta e que o contrato é um contrato detrabalho (razão pela qual a acção seria improcedente). Pergunta-se: o juiz nestecaso deve ou pode limitar-se a julgar-se incompetente ou, pelo contrário, devepronunciar-se quanto ao mérito? Julgamos que a decisão a proferir deve ser demérito. Esta é a solução do artigo 102.°, n.° 2.

Poderia haver dúvidas quanto à aplicabilidade directa deste artigo aos casosaut-aut, por se tratar de casos em que é particularmente difícil para o juiz afe-rir a sua competência. No entanto, parece-nos que, estando em condições deformular um juízo substantivo, o juiz deve fazê-lo. Não só pode dizer-se queestá ao alcance da sua competência apreciar se a acção é procedente com basena qualificação feita pelo autor (contrato de prestação de serviços), uma vezque esta determina a competência do tribunal – podendo o juiz rejeitar essaqualificação e considerar consequentemente a acção improcedente –, comoessa é a solução que melhor respeita o princípio de prevalência das decisões demérito vigente no nosso Direito processual civil, que tem subjacente razões deeconomia processual. Se é certo que o tribunal de competência genérica nãoé competente para apreciar o contrato de trabalho e a possibilidade de resolu-ção, já é competente para considerar que a pretensão do autor, assente numaqualificação afinal errónea, não é procedente: podendo emitir uma decisão demérito, deve emiti-la, ainda que a apreciação que faz seja limitada a determi-nado ponto de vista, pois que a especialização dos tribunais o impede de apre-ciar a causa sob o ponto de vista da qualificação do negócio como contrato detrabalho.

Dir-se-ia que o princípio invocado, da prevalência da decisão de mérito,não valeria aqui, por se tratar de um caso de competência absoluta do tribu-

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petente por um determinado motivo específico. Cf. REMÉDIO MARQUES, Acção declarativa à luzdo Código revisto, Coimbra, 2009, pp. 520 ss.

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nal. Nestes casos, estando em causa um pressuposto que visa a protecção directade um interesse público, a sua falta, para TEIXEIRA DE SOUSA15, tornaria inad-missível o conhecimento do mérito da acção. Esta solução vai, aliás, no sentidodo artigo 660.°, n.° 1, que determina que a sentença conhece, em primeirolugar, as questões processuais que possam determinar a absolvição da instância.Já quanto aos restantes pressupostos processuais – que não visem a protecçãodirecta de um interesse público, mas apenas de interesses das partes –, seriaadmissível o conhecimento do mérito da causa, apesar da falta do pressuposto.São casos em que o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuaisnão é operante.

É certo que a competência material – competência absoluta – não consti-tui pressuposto processual dispensável, como são os pressupostos que, ao invésde tutelarem um interesse público (caso da especialização em razão da maté-ria), tutelam um interesse das partes e relativamente aos quais o artigo 288.°,n.° 3, 2.ª parte admite que o tribunal julgue imediatamente do mérito caso adecisão seja integralmente favorável à parte que o pressuposto em causa visaproteger. Porém, nestas situações verifica-se uma consumpção do pressuposto pelomérito: a averiguação do pressuposto processual (competência material)depende de um elemento integrante do mérito da causa (qualificação do con-trato). I.e., o mesmo facto é relevante para aferir o pressuposto e o mérito16, oque leva a que deva existir uma prevalência da decisão de mérito. Nos casosaut-aut a definição do contrato como de trabalho ou de prestação de serviçosatípico é simultaneamente determinante do pressuposto processual – compe-tência material – e do mérito da causa e, por esse motivo, considera-se que alógica do artigo 660.°, n.° 1, não deve ser aplicada.

Decisivo, também, no sentido do proferimento de uma decisão de méritopelo juiz, após a produção de toda a prova que permite a formulação de umjuízo material, é sobretudo a consideração do papel que o princípio da boa fédesempenha no processo civil. Em situações em que o sistema jurídico permi-tiu e obrigou as partes a produzirem toda a prova perante um tribunal, órgãode soberania no qual a ordem jurídica deposita completa confiança quanto àcorrecta resolução da causa, seria contrário às expectativas criadas nas partesque, no final, o juiz, não obstante dispor de todos os elementos para julgar aacção procedente ou improcedente à luz da qualificação invocada pelo autor,não o fizesse. Se o sistema jurídico obriga ao prosseguimento da acção e impõe

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15 Estudos…, cit., p. 84.16 Cf. TEIXEIRA DE SOUSA,“Sobre o sentido…”, cit., pp. 118 ss.

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às partes a apresentação de toda a prova, como se explicaria, à luz dos valoresessenciais do mesmo sistema jurídico, sinteticamente expressos pelo princípioda boa fé, que no final o juiz se limitasse a julgar-se incompetente? Não seria,na realidade, valorativamente contraditório o juiz determinar o prossegui-mento da acção em termos que materialmente não diferem daqueles queteriam lugar no caso de o tribunal aceitar a sua competência e, em vez detomar a decisão possível quanto ao mérito, concluísse que afinal não é com-petente para apreciar a causa, pura e simplesmente porque o não é sob um dospontos de vista possíveis, inutilizando-se todo o processo desenvolvido peranteum órgão de soberania?

O princípio da boa fé, na sua vertente da primazia da materialidade subja-cente, visa garantir a conformidade material dos exercícios jurídicos – exigindoque se realizem com efectividade os valores pretendidos pelo ordenamentojurídico –, a idoneidade valorativa – que visa garantir a harmonia do sistema –,bem como o exercício equilibrado das situações jurídicas17 – que pretende asse-gurar a sindicância dos diversos exercícios, mesmo que aparentemente permi-tidos, à luz do sistema. Ora, no caso, uma vez desenrolado todo o processoperante o tribunal como se este fosse competente, e havendo uma vertente daquestão que o mesmo pode analisar, estes três vectores que o princípio da pri-mazia da materialidade subjacente visa proteger reclamam que o tribunal nãopossa, no final, julgar-se incompetente.Trata-se, no fundo, de situação de sup-pressio18 ou de “neutralização”de uma posição jurídica19, ainda que fora da teo-ria do negócio jurídico: o tribunal, não tendo declarado a sua incompetênciano despacho saneador, fica impedido de o fazer por, de outra forma, se atentarcontra a boa fé.

Como obstáculo à tese da verificação de uma supressio poder-se-ia invocar,por um lado, a inaplicabilidade, em abstracto, da figura da supressio ao direitoprocessual civil e, por outro, a ausência de subordinação do juiz a uma cláusulageral de boa fé.

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17 Cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil português, tomo I, Coimbra, 2005, p. 416.18 Cf. MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito civil, Coimbra, 1997, pp. 797 e ss: no âmbito dateoria geral do Direito civil, ocorre, neste caso, uma supressão de certas faculdades jurídicas, pelaconjugação do tempo com a boa fé. Ou seja, é a situação de um direito que, não tendo sido, emcertas circunstâncias, exercido por um determinado lapso de tempo, não pode mais sê-lo por, deoutra forma, se contrariar a boa fé.Trata-se de situação de abuso, que se distingue do venire con-tra factum proprium pela ausência de factum. Nestes casos existe apenas uma abstenção do juiz.19 Expressão de CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Coimbra, 2004,p. 426.

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Em primeiro lugar, a supressio tem uma aplicabilidade tendencialmente glo-bal, ainda que autores, como Menezes Cordeiro20, já tenham negado, se bemque em abstracto, a sua utilidade no domínio processual, com fundamento naexistência, em Portugal, de uma rígida teia de prazos processuais21. Porém, noscasos ora em análise, a faculdade de o juiz se declarar incompetente não estásujeita a prazo, pelo que não está em causa este obstáculo genérico. Aliás, naAlemanha a figura já foi expressamente admitida no domínio processual, porexemplo, na decisão do BGH de 7 de Junho de 195122.

Quanto à segunda questão – saber se também o juiz está vinculado aoprincípio da boa fé –, a resposta é inequivocamente positiva. Contra esta posi-ção, poder-se-ia argumentar que, em sede de processo civil, só para as partesestá prevista uma cláusula geral de boa fé, a propósito da litigância de má fé(artigo 456.°).

Este argumento não é decisivo. Embora se verifiquem algumas tendênciasdoutrinárias para reduzir o espaço antes conferido à boa fé23, não podemosignorar que o pensamento jurídico tem de repousar no estudo e na meditaçãodas regras e das soluções, caso contrário, deixaria de ser jurídico24. Ora, essameditação pode e deve socorrer-se da boa fé, sem que esta necessite de estarexpressamente prevista em disposição legal25.A boa fé deve ser utilizada comoajuda na concretização do carácter aberto do sistema26, i.e., de um sistema queadmite a relevância jurídica de questões a ele estranhas27. O sistema jurídico,para além de aberto, é móvel, heterogéneo e cibernético, o que implica que

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20 Da boa fé…, cit., p. 803.21 E ainda um prazo supletivo geral no artigo 153.°.22 Trata-se de um caso de processo penal, em que foi indevidamente omitida a convocação deum defensor para a audição de um perito. Com este fundamento o R. tentou interpor recursode revista. Porém, considerou-se que o R. poderia ter contrariado o relatório do perito nodecurso do processo. Não o tendo feito, havia uma preclusão do seu direito ao recurso, ainda quetempestivo.23 Tendência assinalada por MENEZES CORDEIRO,“A boa fé nos finais do século XX”, Separatada ROA, ano 56, III, Dezembro de 1996, pp. 886-912, em especial p. 899.24 Cf. MENEZES CORDEIRO,“A boa fé…”, cit., p. 909.25 Aliás, a boa fé já muitas vezes legitimou uma interpretação criativa do Direito, tendo estadona base de institutos como a culpa in contrahendo, os deveres acessórios, o abuso de direito e a alte-ração das circunstâncias.26 Cf. CANARIS, Pensamento…, cit., pp. 109 ss.27 A abertura do sistema não é uma abertura apenas exterior; é também uma abertura interior,pois o sistema comporta em si elementos estranhos que devem ser reduzidos, com recurso, porexemplo, ao abuso de direito.

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não possa ser alheio às consequências das soluções que consagra. Precisamentepor isso, não é viável que o sistema processual consagre uma solução cujas con-sequências práticas levam a uma desprotecção da parte, que, em última análise,se poderá ver confrontada com um conflito negativo de competência. Nofundo, consideramos que o interesse público tutelado pela especialização decompetências tem de ceder perante situações em que a solução formal obri-garia a repetir todo o processo sem qualquer vantagem para as partes. Negar asubmissão do juiz à cláusula geral da boa fé seria negar a própria naturezamóvel e cibernética do sistema.

No entanto, mesmo quando se discute a litigância de má fé, admite-se queo artigo 456.° não visa prejudicar a aplicação do artigo 334.° do CC28, preci-samente porque a actuação processual não é isenta de juízos de valor substan-ciais29. Como assertivamente afirma Pedro de Albuquerque, o direito processual,tal como o civil, encontra-se sujeito e subordinado ao princípio da boa fé30.

Assim se conclui que os casos aut-aut não constituem excepção à regra doartigo 102.°, n.° 231.

3.2. Vinculação do tribunal à anterior qualificação da situação jurídica emlitígio?

Impõe-se, agora, descobrir – como dissemos – se o segundo tribunal ondeé proposta a acção fica vinculado à prévia qualificação da situação jurídica emlitígio feita pelo tribunal no qual a acção foi inicialmente proposta ou se, pelocontrário, mantém a liberdade de qualificar o contrato de diferente maneira.Pode, no exemplo inicial, o tribunal de trabalho dizer que não está perante umcontrato de trabalho mas antes perante contrato de prestação de serviços atí-pico quando o primeiro tribunal, de competência genérica, já qualificou onegócio como contrato de trabalho (e não como contrato de prestação de ser-viços atípico) e assim obrigou o autor a propor a acção no tribunal de traba-lho, ou vice-versa?

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28 Cf. PAULA COSTA E SILVA, A litigância de má fé, Coimbra, 2008, p. 625.29 Cf. PAULA COSTA E SILVA, A litigância…, cit., p. 691.30 Cf. PEDRO DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito eresponsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo, Coimbra, 2006, p. 170.31 Antes da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.° 329-A/95 este regime aplicava-se apenasquando a acção fosse da competência de tribunal especial e tivesse sido proposta no tribunal decomarca. Não contemplava outras hipóteses, como a inversa a essa, que caía na regra geral doartigo 102.°, n.° 1.

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3.2.1. Valores e interesses: conflito entre os princípios da segurança jurídica e da espe-cialização dos tribunais

Para responder à questão que colocámos, é indispensável a análise dos valo-res e princípios que nela estão em jogo. Ora, em causa está, fundamentalmente,de um lado, o princípio da segurança jurídica – que determinará que a decisão sobrea qualificação forme caso julgado quanto à questão da qualificação e que osegundo tribunal fique vinculado – e, do outro lado, o princípio da especialização dacompetência – que exigirá que seja o tribunal de competência especializada(neste caso o tribunal de trabalho) a pronunciar-se. Depois, há um conjunto deoutros argumentos que podem ser invocados em termos acessórios.

A favor da vinculação do segundo tribunal joga o princípio da segurançajurídica, conteúdo da própria ideia de Direito, enquanto forma de garantir umasegurança ordenadora, que apoie a estabilidade das instituições sociais. O Di-reito não pode, por isso, ignorar que, não raras vezes, a sua praticabilidade exigeque o valor segurança se sobreponha a qualquer outro. Uma justiça puramenteideal, desacompanhada de segurança será vazia de eficácia e, por isso, não pas-sará de piedosa intenção32-33. Ora, a forma de assegurar um efectivo acesso aoDireito e aos tribunais é atribuir à segurança jurídica um maior peso que qual-quer outro princípio com ela conflituante, o que, na prática, implica conside-rarmos que o segundo tribunal é obrigado a respeitar a qualificação do pri-meiro.

No sentido contrário aponta o princípio da especialização da competên-cia em razão da matéria, como forma de assegurar que a decisão é proferidapelo juiz mais habilitado. Ora, garantir este princípio implica plena liberdadedo tribunal para apreciar a sua competência, independentemente de juízos pre-viamente feitos por qualquer outro tribunal.

Estabelecer a harmonização destes dois princípios é o que pretendemosfazer em seguida.

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32 A expressão é de BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra,1987, p. 56.33 Certo é que segurança sem justiça representa pura situação de força, mas o que pretendemosdemonstrar é que também as exigências de justiça apontam no sentido da vinculação (cf. infra3.2.3.).

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3.2.2. Argumentos a favor da não vinculação

A tese da não vinculação do segundo tribunal é, aparentemente, impressiva.Desde logo, dir-se-ia que considerar que o segundo tribunal não pode jul-

gar-se incompetente iria contra o princípio da Kompetenz-Kompetenz: o tribu-nal não poderia decidir da sua própria competência, sem ficar vinculado peladecisão de outro tribunal, ao contrário do princípio geral da nossa ordem jurí-dica, podendo essa decisão inicial não ser a correcta.

A situação agrava-se se lembrarmos que o tribunal que decidiria sobre aqualificação do negócio não é (ou pode não ser) o tribunal competente à luzda repartição material das competências em vigor. Ora, isto significa que oprincípio da especialização em razão da matéria efectivamente seria posto emcausa se se considerasse vinculativa a decisão de um tribunal que não seriacompetente de acordo com as regras gerais.Assim, no exemplo anterior, a deci-são sobre a qualificação de determinado negócio como contrato de trabalhoficaria entregue a um tribunal de competência genérica e não ao tribunal decompetência especializada, não obstante a complexidade da tarefa.

Poderia ainda argumentar-se que assim se estaria a aproximar a incompe-tência absoluta e a incompetência relativa, contra o sistema em vigor: a solu-ção da vinculatividade valeria, nos termos do artigo 111.°, n.° 2, apenas noscasos de incompetência relativa e não nos de incompetência absoluta. Ora, assu-mir que a solução deve ser a mesma, independentemente do tipo de incompe-tência concretamente verificado, seria ignorar a diferença entre os dois regimes.

Encontramos, à primeira vista, argumentos suficientes para permitir aosegundo tribunal onde é proposta a acção decidir livremente da sua compe-tência. Neste caso, existiria uma situação próxima de um conflito negativo decompetências.Repare-se que o primeiro tribunal não se declara incompetente,antes julga improcedente a acção por a qualificação alegada pelo autor (aquelapara que é competente) não ser procedente. Por esse motivo, ainda que osegundo tribunal declare a sua incompetência, nunca existiria verdadeiro con-flito negativo de competências.A situação seria, no entanto, próxima: no exem-plo em estudo, o primeiro tribunal considera improcedente a acção por onegócio não corresponder a contrato atípico de prestação de serviços (mas sima contrato de trabalho); o segundo tribunal declarar-se-ia incompetente ouconsideraria a acção não procedente por não se tratar de contrato de trabalho,mas sim de contrato de prestação de serviços. Perante a aparente analogiamaterial entre a hipótese em estudo e os casos de conflitos negativos de com-petências, haveria que aplicar analogicamente as regras que regulam estes con-flitos – os artigos 115.° e ss. – pelo que caberia ao presidente do Tribunal da

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Relação que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito solucionar osconflitos de competência34.

Não nos parece, todavia, que esta seja a melhor solução. Pelo contrário, jul-gamos preferível considerar vinculativa a decisão do primeiro tribunal sobre aqualificação do contrato. É o que de seguida procuramos demonstrar.

3.2.3. Pela vinculação do tribunal à decisão proferida pelo tribunal anterior

São, na realidade, decisivos os argumentos a favor da vinculação dosegundo tribunal à decisão sobre a qualificação proferida pelo primeiro.

(i) Em primeiro lugar, depõe nesse sentido o princípio da segurança e dacerteza jurídica: havendo uma sentença de um tribunal que se pro-nuncia quanto à qualificação do contrato, dificilmente se compreen-deria, do ponto de vista da confiança depositada no sistema judiciárioe da segurança jurídica em geral, que pudesse outro tribunal domesmo nível hierárquico ignorar a decisão do primeiro e pronunciar-se em sentido diverso.A segurança jurídica reclama que se forme casojulgado (material) na primeira decisão ainda que restrito à questão daqualificação35. Lembre-se, de novo, que o tribunal, na primeira sen-tença, profere uma decisão de mérito no que toca à qualificação, deci-dindo pela procedência/improcedência da acção. É esta decisão quedeve, da nossa perspectiva, adquirir a eficácia de caso julgado material.O caso julgado apenas abrange a qualificação jurídica da situação, pois,no caso contrário, tendo a acção sido julgada improcedente, o autorficaria impedido de propor a acção noutro tribunal, conclusão natu-

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34 Cf. artigos 116.°, n.° 2 e 59.°, n.° 2, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro ou 69.°, n.° 2, da Lein.° 52/2008, de 28 de Agosto.35 O caso julgado tem o efeito processual de tornar inadmissível a alteração ou substituição dadecisão por qualquer tribunal. Porém, consideramos que nestes casos a formação de caso julgadose deve restringir à questão da qualificação.Vejamos: a decisão que o tribunal profere é uma deci-são de mérito, o que significa que formará caso julgado material (artigo 671.°, n.° 1). No entanto,como o primeiro tribunal, que se declarou competente, mas afinal não o era, não poderia terconhecido aquela causa ao abrigo da real qualificação do contrato, a excepção de caso julgadoterá de ser ressalvada, admitindo-se que o autor proponha nova acção, agora no tribunal mate-rialmente competente à luz da qualificação feita pelo primeiro juiz. No entanto, tem ainda deexistir um efeito útil para a formação de caso julgado material. Parece-nos que este caso julgadodeverá ter o efeito de vincular o segundo tribunal à qualificação por si previamente feita.

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ralmente inaceitável quando é certo que a acção só foi julgada impro-cedente com base em determinada qualificação e não noutra qualifi-cação possível, porque sobre essa outra o tribunal não se poderia pro-nunciar.Do que escrevemos resulta que a favor da solução que defendemosdepõe, em última análise, a generalidade dos valores que subjazem aoprincípio do caso julgado: desde logo, a caracterização dos tribunaiscomo órgãos de soberania (artigo 202.° da CRP)36, a exigência da boaadministração da justiça, a funcionalidade dos tribunais e a salvaguardada paz social, garantindo-se a resolução definitiva dos litígios.Tudo istoresumido nos apontados valores de segurança e certeza essenciais emqualquer ordem jurídica. Bem se vê, à luz destes valores e princípios,que o caso julgado apresenta acentuada relevância constitucional e é,inclusivamente, limite à retroactividade da declaração de inconstitu-cionalidade de uma norma pelo Tribunal Constitucional, nos termosdo artigo 282.°, n.° 3 da CRP. A sua relevância reflecte-se ainda nalei ordinária: a lei interpretativa tem de respeitar os casos julgados for-mados durante a vigência anterior da lei interpretada (artigo 13.°, n.° 1,do CC) e quando o recurso da decisão proferida por um tribunal tenhapor fundamento a ofensa de caso julgado o artigo 678.°, n.° 2, a) admiterecurso ordinário qualquer que seja o valor da causa.Em suma, a ordemjurídica apresenta uma preocupação particularmente intensa em asse-gurar a definitividade das decisões proferidas pelos seus tribunais.

(ii) Acessoriamente, a favor da solução da vinculatividade da decisão dotribunal no qual a acção foi inicialmente proposta jogam a garantia deacesso ao Direito e aos tribunais, que inclui o direito à decisão num prazorazoável, bem como um imperativo de não agravamento injustificado dos cus-tos processuais. Os artigos 20.° da CRP e 6.°, n.° 1, da ConvençãoEuropeia de Direitos do Homem determinam, como é sabido, que seeliminem os obstáculos que impedem ou dificultam o acesso à justiça,estabelecendo que o objectivo do processo civil deverá ser sempre ode eliminar obstáculos que vedem ou, no mínimo, tornem mais difí-cil o acesso à justiça. Nestes termos, a divisão judiciária nunca poderá

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36 O caso julgado tem subjacente a caracterização dos tribunais como órgãos de soberania e visaassegurar que as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas (artigo205.°, n.° 2, da CRP).

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constituir um entrave ao acesso à justiça, i.e., é ilegítima, à luz dasnormas referidas, a imposição de obstáculos organizatórios ao acesso àjustiça. Ora, é inegável que a solução da não vinculação implica umamaior delonga na obtenção da decisão e maiores custos processuais. Seé certo que uma justiça tardia é melhor que a denegação da justiça,nunca é a justiça devida, razão pela qual só razões ponderosas podemlegitimar que se atrase a obtenção da decisão.O Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de Agosto, veio, é certo, simplifi-car a tramitação do incidente para a resolução do conflito de jurisdi-ção ou de competência, introduzindo um novo artigo 117.°-A. À luzdo regime anteriormente vigente, quando o juiz ou o relator enten-desse haver conflito, deveria ouvir as autoridades em conflito, deter-minando a suspensão dos processos até à decisão.Tinha lugar a pro-dução de prova oferecida, seguindo-se a alegação das partes e a vistado Ministério Público.Actualmente, a lei limita-se a referir os termosem que deve ser observado o princípio do contraditório e aqueles emque deve ser comunicada a decisão.Ainda assim, sobretudo se o presi-dente do Tribunal da Relação considerar que era competente para acausa o primeiro tribunal, vai ter de ser por este novamente apreciadaà luz da nova qualificação.Apesar de a tramitação ter sido simplificada,continua a ser um processo moroso para as partes.

(iii) A solução que defendemos é, por outro lado, conforme com o sistemavigente na nossa ordem jurídica e contra ela não joga, ao contrário doque se poderia supor, o princípio Kompetenz-Kompetenz. Na realidade,este princípio apresenta carácter relativo e cede perante outros valo-res. Isso torna-se claro na mencionada regra do artigo 111.°, quedetermina a vinculação do tribunal para o qual é remetido o processono caso de o tribunal onde a acção foi inicialmente proposta se decla-rar incompetente em razão do território.Também nos casos de con-flito de competência ou de jurisdição (artigo 115.°) ou quando a deci-são do tribunal tem um efeito preventivo do conflito (artigo 107.°,n.° 1) é posto em causa este princípio. É certo que a regra da vin-culação do segundo tribunal só está expressamente prevista nestescasos. No entanto, eles vêm precisamente mostrar a flexibilidade con-sentida pelo princípio da Kompetenz-kompetenz.

(iv) Poderia pensar-se que a solução deveria ser diferente no caso da com-petência em razão da matéria, por se tratar de competência absoluta,

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e que as regras correspondentes apresentariam maior rigidez. Nãopode, no entanto, ignorar-se a relatividade do princípio da especiali-zação em função da matéria: como sublinhámos atrás, a competênciaespecializada constantemente cede perante outros princípios e,nomeadamente, perante eventuais carências de meios ou por motivospuramente práticos, simplesmente por não se justificar a especializaçãoà luz da relação custos-benefícios. Basta pensar que, por razões de dis-ponibilidade ou proporcionalidade na utilização dos meios disponí-veis, em muitas comarcas são os tribunais comuns a decidir matériasque, noutras, pertenceriam aos tribunais de competência especializada.Ora, para um sistema jurídico, a decisão do tribunal de competênciagenérica não tem menor valor, não é menos justa, nem oferece menorconfiança do que a decisão tomada pelo tribunal de competênciaespecializada. Isto demonstra que de modo algum repugna à ordemjurídica admitir que seja um tribunal de competência genérica a deci-dir, em termos definitivos, sobre matérias que em abstracto recaem nacompetência de um tribunal de competência especializada.

(v) Esta conclusão é definitivamente confirmada pela possibilidade de otribunal se pronunciar, em sede de questões incidentais ou prejudi-ciais, sobre matérias que ultrapassam a sua competência e que podematé pertencer à competência de um tribunal criminal ou mesmo deum tribunal administrativo (artigos 96.° e 97.°). O artigo 97.° doCPC contém, inclusivamente, uma mera faculdade e não um dever deo juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronun-cie: também assim se vê que o princípio da especialização frequente-mente cede, designadamente por razões de celeridade e concentraçãoprocessual.

3.3. Balanço

Nos casos aut-aut, os argumentos contrários à vinculação do segundo tri-bunal à qualificação anteriormente realizada por outro tribunal são frágeis euma análise mais aprofundada do sistema jurídico permite afastá-los: o princí-pio da especialização em função da matéria tem um valor muito relativo nanossa ordem jurídica, como vimos, conhecendo múltiplas excepções.Tambémo princípio Kompetenz-Kompetenz não tem uma pretensão absoluta de aplica-ção. Pelo contrário, o princípio da segurança jurídica, associado ao princípio da

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garantia de acesso à justiça, constitui argumento decisivo a favor da vinculaçãodo tribunal. Deparamo-nos aqui com um conflito que tem uma clara incidên-cia material. Assim, apesar de estarmos no domínio do direito adjectivo, asregras gerais quanto à problemática do conflito de princípios devem ter plenaaplicação. Repare-se que de modo algum é posta em causa a autonomia dodireito processual por lhe aplicarmos conceitos ou estruturas de raciocínio tipi-camente associadas ao direito substantivo37. Como resolver o conflito de prin-cípios? O que caracteriza as “normas de princípio” e as distingue das “normasregra”, como explica Alexy38, é o facto de o princípio apenas indicar um “sen-tido de regulação”, apontando – mas sem determinar necessariamente – umasolução a considerar: apenas implica uma regulação prima facie, não definitiva39,apresentando razões que podem ser afastadas por outras opostas, reclamando-se um juízo de ponderação40. Tal juízo implica o estabelecimento de uma relaçãode precedência condicionada, ou seja, tomando em conta o caso, indicam-se as con-dições sob as quais um princípio precede outro. Isto significa que, tomadasoutras condições, a precedência pode ser diferente.Assim, o princípio P1 tem,num caso concreto, um peso maior que o princípio P2, o que não significa queesta relação se verifique sempre. Não pretendemos, então, estabelecer uma rela-ção de precedência incondicionada, i.e., uma relação abstracta ou absoluta deprecedência, entre os princípios mencionados. Não afirmamos que, em abs-tracto, os princípios da segurança jurídica e do acesso ao Direito e aos tribu-nais, por exemplo, devam preceder sempre outros princípios, como o da Kom-petenz-Kompetenz. Enquanto imperativos de optimização41 os princípios absorvemo que está contido no seu domínio normativo na maior medida possível até à

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37 Como salienta PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo. O dogma da irrelevância da vontade na inter-pretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra, 2003, p. 448, ainda que a propósito da interpreta-ção de actos postulativos, a autonomia do processo face ao direito material não deve obstar a que,havendo identidade de situações, se recorra a estruturas construídas, inicialmente, para outrasáreas do Direito.38 Teoría de los Derechos Fundamentales (trad. espanhola da ed. alemã de 1993), Madrid, 2002,pp. 81 e ss.39 Por isso, os princípios apresentam uma “capacidade ordenatória” particularmente alargada (porconfronto com as regras), que lhes permite realizar, relativamente ao conjunto normativo, tarefasde organização, de identificação e de consistência que as regras, em virtude da sua especificidadenormativa, não podem realizar (DAVID DUARTE, A norma de legalidade procedimental administrativa,Coimbra, 2007, p. 128).40 Diferentemente do que sucede com as regras que se aplicam em termos de “tudo ou nada”(all or nothing fashion). Cf. DWORKIN, Taking Rights Seriously, Cambridge, 2002, p. 24.41 Cf. DAVID DUARTE, A norma…, cit., p. 149.

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verificação de princípios de sinal contrário. Para concretizar o que cai nodomínio operativo de um princípio, podemos formular uma “lei” de colisão42.

Ora, se dissemos já que os princípios enunciados em 3.2.3. (P1), verificadoum caso aut-aut (circunstâncias C), precedem aqueles enunciados em 3.2.2.(P2) e se P1, nas circunstâncias C, leva à consequência R – a de que o segundotribunal onde é proposta a acção fique vinculado à prévia qualificação da situa-ção jurídica em litígio feita pelo tribunal onde inicialmente foi proposta aacção –, então, concluímos que as circunstâncias C são pressuposto da conse-quência R. Ou seja, perante um caso aut-aut deve-se concluir pela vinculaçãodo segundo tribunal.

Assim se estabelece uma relação de precedência condicionada entre osprincípios em colisão.

4. Os casos et-et: cumulação de qualificações compatíveis

Os casos et-et – em que os mesmos factos permitem diferentes qualifica-ções compatíveis entre si – colocam problemas de conflitos de princípios aná-logos àqueles que são suscitados pelos casos aut-aut. No exemplo referido deinício, era proposta uma acção num tribunal de competência genérica, comfundamento em responsabilidade civil, sendo certo que o facto em causa con-substanciava simultaneamente responsabilidade delitual (violação do direito depropriedade) e contratual (violação do contrato de trabalho). O tribunal detrabalho é competente para conhecer da causa em termos de responsabilidadecontratual, resultante de um contrato de trabalho. No entanto, a acção é pro-posta no tribunal de competência genérica. O tribunal é competente, precisa-mente porque o facto é susceptível de consubstanciar, também, responsabili-dade delitual.A competência para apreciar a questão sob esse ponto de vista nãoestá em causa.A pergunta que se faz é se o tribunal poderá apreciá-la sob todosos pontos de vista, incluindo aquele para o qual não seria prima facie competente.

Desenvolvendo o exemplo, sendo o caso tratado como responsabilidadecontratual, a culpa do réu presume-se43, não se exigindo a prova ao autor, ao

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42 A expressão é de ALEXY, Teoria…, cit., p. 94, que salienta a vantagem de criar uma lei de coli-são, como forma de concretizar princípios, que, de outra forma, não passariam de mandatos abs-tractos.43 E, porventura, também a ilicitude e o nexo de causalidade, se considerarmos que o artigo799.°, n.° 1, do CC, por influência francesa, consagra uma presunção de faute, unificando culpa

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contrário do que sucede se o caso for tratado como de responsabilidade deli-tual. Assim, se o tribunal de competência genérica apenas puder julgar o casoà luz das normas sobre responsabilidade delitual, poderá julgar a acção impro-cedente por falta de prova de culpa, quando é certo que, se pudesse apreciar ocaso como responsabilidade contratual, não seria o autor a ter o ónus da provarespectivo. Mais, se não houvesse um tribunal de competência especializada, opróprio tribunal de competência genérica apreciaria a questão sob todos ospontos de vista jurídicos relevantes. Assim, condenaria o réu mesmo que nãohouvesse prova da culpa porque, à luz do Direito aplicável, se poderia presu-mir a culpa, uma vez que o facto é susceptível de se enquadrar tanto na res-ponsabilidade civil delitual como obrigacional.

Admitamos, agora, que há especialização de competências e que o tribunalsó pode apreciar o caso da óptica da responsabilidade delitual, razão por quejulga a acção improcedente por o autor não ter demonstrado a culpa do réu.O autor teria de propor uma acção no tribunal de trabalho, podendo fazê-loporque o caso julgado só abrange a qualificação para a qual o tribunal temcompetência e não as outras. À partida o caso julgado abrange todas as possí-veis qualificações jurídicas do objecto apreciado, só relevando a identidade dacausa de pedir (i.e., dos factos com relevância jurídica) e não das qualificaçõesjurídicas que podem ser atribuídas a esse fundamento44. Porém, devem sempreficar ressalvadas as situações em que o tribunal não chega a ser competente paraapreciar o objecto alegado segundo outra qualificação.

No entanto, pergunta-se: considerando que a competência está assente eque o tribunal conhece o direito (jura novit curia), não será razoável estender acompetência do tribunal à análise de todos os aspectos da questão que reves-tem relevância jurídica? I.e., no caso em estudo, se o tribunal é competentepara analisar se determinados factos geram responsabilidade extraobrigacional,

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e ilicitude. Cf., neste sentido, MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil dos administradores dassociedades comerciais, Lisboa, 1997, pp. 469 ss.Também CARNEIRO DA FRADA (Contrato e deveres deprotecção, Coimbra, 1994, p. 191), sem fazer apelo à faute, considera a presunção de culpa exten-sível a um comportamento faltoso do devedor ou auxiliares deste, bem como à causalidade entreeste comportamento e a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso. Esta tese é, porém,contestada por OLIVEIRA ASCENSÃO, Arguição do currículo apresentado pelo Doutor António MenezesCordeiro nas provas para obtenção do título de professor agregado, RFDUL 39 (1998), pp. 821-830(825); LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, vol. I, Coimbra, 2008, pp. 352-354; PAULO

MOTA PINTO, Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo, vol. I, Coimbra, 2008, p. 1110.44 Cf. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos…, p. 576.

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não deve ser também competente para apreciar se esses mesmos factos geramsimultaneamente responsabilidade obrigacional?

Só a atribuição de um valor absoluto ao princípio da especialização decompetências, fazendo-o prevalecer ilimitadamente sobre o princípio jura novitcuria, conduzirá a essa conclusão. Não nos parece que ela deva ser acolhida.Aliás, na Alemanha, o § 17 (2), 1.ª parte da Gerichtsverfassungsgesetz (GVG) dizque o tribunal competente para apreciar a acção é competente para analisar ocaso sob todos os pontos de vista juridicamente relevantes. Pretende-se asse-gurar a concentração das decisões num único tribunal, com as vantagens quelhe são inerentes45.

Entre nós, na ausência de norma expressa, poderia pensar-se que este valornão seria tutelado pelo legislador português.Acresce que, em matéria de coli-gação, se exige que não haja diferentes competências materiais46. Simples-mente, não se trata aqui de vários pedidos mas de um único e mesmo pedido:cindir a apreciação do mesmo pedido (de responsabilidade) significa obrigar auma visão parcial da questão jurídica. Se há um só pedido, deve o tribunalpoder analisá-lo unitariamente47.

De outra maneira é o princípio jura novit curia que é posto em causa. O tri-bunal conhece o Direito e não parte do Direito. É certo que este princípiopoderia ser forçado a ceder em concreto perante o princípio da especialização.Mas este não tem força suficiente para obrigar a uma apreciação material par-celada da questão: já vimos que o princípio da especialização da competênciaé não raramente flexibilizado e deve lembrar-se a competência do tribunal paraapreciar questões prejudiciais que escapam à sua competência.

Este aspecto é importante: se o réu levantar uma questão da competênciade outro tribunal como meio de defesa, o tribunal no qual a questão é susci-tada, apesar de ser à partida incompetente, pode decidir. Perguntar-se-á, pois,se não poderá o mesmo suceder se a questão for suscitada, antes, pelo pedido

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45 MANFRED WOLF, in Münchener Kommentar zur Zivilprozessordnung mit Gerichtsverfassungsgesetzund Nebengesetz, vol. III, Munique, 2001, § 17 GVG, p. 1565.46 Cf. artigo 30.°, n.° 1, que exige como pressuposto da coligação a compatibilidade processual,que se refere à competência absoluta do tribunal. A coligação não será admissível se o tribunalnão for, por exemplo, materialmente competente para apreciar todos os pedidos. Cf. TEIXEIRA

DE SOUSA, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lisboa, 1995, pp. 87 ss.47 Em sentido contrário, cf. REMÉDIO MARQUES, Acção…, cit., p. 300. Para o Autor o tribunal ématerialmente competente se no seu âmbito de competências couber, pelo menos, uma das qua-lificações jurídicas. Porém, o tribunal, ainda que competente, apenas pode analisar a causa à luzda qualificação para que seja materialmente competente.

O Direito 142.° (2010), III, 593-615

formulado pelo autor. Mesmo que não se vá tão longe quanto defender a pró-pria a bilateralização da regra do artigo 99.°48, pelo menos é possível afirmar avalia muito relativa da especialização de competências no Direito português.

Assim, deve entender-se que, perante o conflito entre os princípios juranovit curia e da economia processual e o princípio da especialização em funçãoda matéria, os primeiros devem prevalecer em concreto, impondo-se, em con-clusão, o alargamento da competência do tribunal às causas para as quais nãoera, prima facie, competente.

Conflitos de princípios na repartição da competência material dos tribunais 615

48 Esta bilateralização implicaria que também o autor, e não apenas o réu, poderia suscitar ques-tões da competência material de outro tribunal e, ainda assim, ver essas questões decididas pelojuiz da causa principal.

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