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Conflitos e polêmicas durante a implantação e expansão da telegrafia sem fio no Brasil (1902-1922) Arthur Cavalcanti de Oliveira Damasceno 1 [email protected] UFBA Introdução Durante a segunda metade do século XIX, o mundo observou uma rápida expansão dos meios de transporte e comunicação. Ferrovias, navios a vapor, primeiros automóveis, linhas telefônicas e telegráficas. De todos os avanços que ajudaram a diminuir as distâncias, expandir o comércio e as relações entre os povos, sejam elas relações equilibradas ou de dominação e exploração, o telégrafo foi uma das mais notáveis. Desenvolvido na década de 1830 por Samuel Finley Breese Morse (1791-1872), o telégrafo teve seu primeiro teste em 1844 através da implantação da primeira linha telegráfica que ligaria Baltimore a Washington nos Estados Unidos. Desde então, ocorreu em uma vertiginosa expansão de milhares de linhas telegráficas pelo mundo, inclusive dentro do território nacional. No Brasil, a implantação da telegrafia se deu a partir da segunda metade do século XIX, mais precisamente em 1852. Nas décadas seguintes, a telegrafia elétrica se expandiria pelo país a um ritmo intenso, impulsionada, especialmente, pela necessidade de controle e presença do governo brasileiro das áreas mais afastadas do litoral, sobretudo as que faziam fronteiras com os países vizinhos. Entretanto, nos anos finais do século XIX, o mundo assistiria à demonstração de uma nova forma de comunicação que prometia a transmissão de sinais sem a necessidade de nenhum cabo ou meio físico entre dois pontos: radiotelegrafia. Os processos de implantação da telegrafia e da telegrafia sem fios foram distintos, tanto politicamente, quanto economicamente. Enquanto a telegrafia surgiu e se estabeleceu durante o período imperial, a radiotelegrafia se desenvolveu já no século XX e foi transformada em 1 Mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências. Trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.

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Conflitos e polêmicas durante a implantação e expansão da telegrafia sem fio no Brasil

(1902-1922)

Arthur Cavalcanti de Oliveira Damasceno1

[email protected] UFBA

Introdução Durante a segunda metade do século XIX, o mundo observou uma rápida expansão

dos meios de transporte e comunicação. Ferrovias, navios a vapor, primeiros automóveis,

linhas telefônicas e telegráficas. De todos os avanços que ajudaram a diminuir as distâncias,

expandir o comércio e as relações entre os povos, sejam elas relações equilibradas ou de

dominação e exploração, o telégrafo foi uma das mais notáveis. Desenvolvido na década de

1830 por Samuel Finley Breese Morse (1791-1872), o telégrafo teve seu primeiro teste em

1844 através da implantação da primeira linha telegráfica que ligaria Baltimore a Washington

nos Estados Unidos. Desde então, ocorreu em uma vertiginosa expansão de milhares de linhas

telegráficas pelo mundo, inclusive dentro do território nacional.

No Brasil, a implantação da telegrafia se deu a partir da segunda metade do século

XIX, mais precisamente em 1852. Nas décadas seguintes, a telegrafia elétrica se expandiria

pelo país a um ritmo intenso, impulsionada, especialmente, pela necessidade de controle e

presença do governo brasileiro das áreas mais afastadas do litoral, sobretudo as que faziam

fronteiras com os países vizinhos. Entretanto, nos anos finais do século XIX, o mundo

assistiria à demonstração de uma nova forma de comunicação que prometia a transmissão de

sinais sem a necessidade de nenhum cabo ou meio físico entre dois pontos: radiotelegrafia. Os

processos de implantação da telegrafia e da telegrafia sem fios foram distintos, tanto

politicamente, quanto economicamente. Enquanto a telegrafia surgiu e se estabeleceu durante

o período imperial, a radiotelegrafia se desenvolveu já no século XX e foi transformada em

1 Mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências. Trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.

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tecnologia estratégica durante as primeiras décadas da República. No entanto, as duas

tecnologias foram marcadas por diversas polêmicas envolvendo a União, os estados e

empresas estrangeiras, caracterizadas por interesses políticos diversos. No caso da telegrafia

sem fio, as polêmicas tornaram-se mais acentuadas por conta de seu contexto global. Desde o

início, a radiotelegrafia foi uma tecnologia polêmica por sua própria natureza. O envio de

mensagens pelo ar trouxe uma possibilidade de expansão de estações telegráficas com menor

custo de implantação e manutenção, competindo diretamente com as empresas de cabos

submarinos (FIGURA 1), que apenas na década de 1860 conseguiram superar as barreiras

tecnológicas que dificultavam a comunicação telegráfica entre os continentes. Desenvolvida a

partir dos trabalhos do italiano Guglielmo Marconi (1874-1937), a telegrafia sem fio se

espalhou pelo mundo após o sucesso na transmissão de sinais entre a estação transmissora de

Poldhu em Cornwall, Inglaterra, e a estação radiotelegráfica canadense localizada em

Newfoundland em 12 de dezembro de 1901. Marconi conseguiu tal feito após um período de

cinco anos, dada a apresentação do telegrafo sem fio em 1896, superando rapidamente as

décadas transcorridas pela telegrafia comum no sucesso da primeira transmissão transatlântica

via cabo submarino.

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FIGURA 1: Reportagem da Pall Mall Gazette sobre a chegada da telegrafia sem fio como concorrente dos cabos submarinos, com a caricatura de Marconi enfrentando um cabo submarino em formato de serpente. Dezembro de 1901.2

Poucos anos depois do primeiro sucesso na transmissão de sinais radiotelegráficos

entre continentes, a telegrafia sem fio passou a ser instalada em embarcações europeias,

facilitando a comunicação e reconhecimento dos navios próximos à costa. A rápida expansão

da tecnologia aplicada aos navios do continente contou com o surgimento e aumento do

número de novos sistemas e empresas de diversas nacionalidades disputando o mercado dos

aparelhos de radiotelegrafia. Os conflitos surgidos em decorrência dessa nova disputa

tecnológica forçaram o surgimento da primeira reunião internacional para tratar da telegrafia

sem fio: a Conferência Preliminar de Telegrafia sem Fio, realizada em 1903 na cidade de

Berlim. A conferência, de caráter quase emergencial, cuidou da falta de regulamentação que

criava um ambiente onde os diferentes sistemas criavam barreiras para a comunicação entre

si, ocasionando recusas de comunicação, especialmente entre estações móveis, localizadas em

navios, e estações fixas, como foi o caso da Marconi Wireless Telegraph Company, que

decretou que seus sistemas aceitassem radiotelegramas apenas entre eles (WATERBURY,

1903).

2 FALCIASECCA, G.; SELLERI, S.; PELOSI, G.; VALOTTI, B. Guglielmo Marconi e la campagna radiotelegráfica del 1902 della R.N. Carlo Alberto: la sostadi Cagliari. Pisa: PLUS-Pisa University Press, 2004.

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Foi em meio a um quadro internacional tão polêmico que o Brasil iniciou a

implantação dos seus primeiros sistemas radiotelegráficos. De um lado havia o interesse do

governo republicano brasileiro que via a tecnologia como estratégica, capaz de alcançar os

sertões do país que sofriam com a frágil comunicação que oferecia o telégrafo comum, e do

outro as empresas estrangeiras e investidores nacionais, que pretendiam explorar

comercialmente a telegrafia sem fio.

Início e desenvolvimento da telegrafia sem fio no Brasil

Em 1902, os estados do Pará e do Amazonas ofereceram concessões para a exploração

do uso da radiotelegrafia na região à empresas privadas com o intuito de fazer a ligação

telegráfica entre as cidades de Belém e Manaus. As primeiras tentativas em obter permissão

para o uso da radiotelegrafia foram pedidas inicialmente para o empresário Joaquim

Gonçalves de Lalos, onde o objetivo era estabelecer uma rede sem fio que desse conta da

demanda e integrasse a região compreendida entre os rios Tocantins, Purús, Madeira e

Amazonas, onde a Amazon Telegraph Company (ATC) enfrentava grande dificuldade em

realizar essa integração. Após ter conseguido as concessões estaduais, Lalos se dirigiu ao

Congresso Nacional para ratificá-la, onde uma comissão competente da Câmara dos

Deputados se manifestou de forma contrária e votou contra as concessões no mesmo ano,

defendendo o monopólio da União sobre o serviço de telegrafia sem fio (BHERING, 1914).

Em novembro do mesmo ano, houve um debate na Câmara sobre as concessões feitas pelo

estado do Amazonas a esse empresário,3 onde foi destacada a preocupação com a telegrafia

sem fio, da qual a Câmara já estava bastante ciente. Segundo o orador, o deputado e também

engenheiro, Manuel Vitorino de Paula Ramos (1860-1925)4, a Constituição garantia aos

estados o direito de estabelecerem, dentro de seus territórios, comunicações telegráficas onde

o serviço da União não alcançava, contudo, a radiotelegrafia, por ser uma recente tecnologia,

estava além do estabelecido pela Constituição de 1891. Assim, a telegrafia sem fio não

poderia ser utilizada em território nacional, muito menos nas mãos de particulares por não

apresentar ainda regulamentação própria e poder colocar em risco a telegrafia da União.

3 Diário do Congresso Nacional, Ano XIII, n° 221; 19 de novembro de 1902, p. 4369 4 Engenheiro pernambucano, formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1883 e deputado estadual desde 1894. Membro do Partido Republicano e engenheiro-chefe em diversas obras de engenharia, sobretudo no estado de Minas Gerais. Paula Ramos foi também diretor do Serviço de Propaganda e Expansão do Brasil na Europa, cargo que assumiu em 1907 após renunciar ao seu quinto mandato como deputado federal.

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Ainda em 1902, outro empresário, o oficial reformado da Marinha do Brasil, José

Libanio Lamenha Lins de Souza, entra com pedido na Câmara para a concessão de exploração

da radiotelegrafia em estações a serem implantadas na costa e no território nacional por

cinquenta anos, contudo, a Repartição Geral dos Telégrafos se manifestou contrariamente a

esse pedido, expressando o seu caráter conservador. No ano seguinte, 1903, foi informado

pela RGT mais um requerimento pedindo concessão para explorar o serviço, dessa vez feita

pelo também empresário do ramo automobilístico Henrique Christiano Rohe, onde o objetivo

seria a utilização do sistema marconiano, desenvolvido pela empresa de Guglielmo Marconi,

a Marconi Wireless Telegraph Company, no estabelecimento de comunicações entre Manaus

e o Acre, pedido esse que também foi negado (BHERING, 1914). Pode-se perceber que

mesmo não investindo à época na regulamentação e desenvolvimento da telegrafia sem fio,

considerada por Bhering neste período como um equipamento que deveria ser utilizado

apenas onde seria “impossível” o uso da telegrafia ordinária, a União e a RGT prezavam pelo

controle da mesma, tanto por questões de segurança nacional, quanto para manter seguro o

serviço telegráfico da União de concorrentes.

Em 1905, a ATC, após diversas tentativas frustradas de ligação com seus cabos

fluviais, apresentou um requerimento para que fosse dada a permissão de explorar a telegrafia

sem fio como solução para a interrupção dos seus cabos, no entanto a RGT novamente se

manifestou contra a tentativa de utilização da telegrafia sem fio na região por empresas

privadas. Neste caso, a motivação para o indeferimento partiu do princípio de que a

companhia já explorava o serviço convencional na região, sendo esta a administradora dos

cabos fluviais, o que seria uma grande desvantagem para o governo federal e o serviço

telegráfico público. Em seguida, a Associação Comercial do Amazonas também enviou um

requerimento para o Ministério da Indústria para que se pudesse estabelecer ligações sem fio

na região, alegando urgência na comunicação que foi interrompida por problemas nos cabos

fluviais. Do mesmo modo, no ano seguinte, outro pedido para concessão, dessa vez

solicitando autorização para funcionar por 30 anos, foi negado, para a Amazon Wireless

Telegraph and Telephone Company, empresa norte-americana especializada em

radiotelegrafia e criada especialmente para trabalhar na Amazônia.

Retornando para 1902, naquele ano foi apresentado pelo diretor e engenheiro da

Repartição Geral dos Telégrafos (RGT), Álvaro de Melo Coutinho de Vilhena, um

requerimento de representantes da empresa alemã Siemens & Halske, para que o engenheiro-

chefe Francisco Bhering (1866-1924) estudasse na Europa os mais diversos sistemas de

telegrafia sem fio, especialmente na Alemanha e na França. A proposta foi apresentada em

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conjunto com a sugestão para a compra de instrumentos que viessem possibilitar a ligação

sem fio entre a capital da República e Ilha Grande, como solução para as interrupções de

comunicação do já bastante danificado cabo submarino responsável pelo serviço (BHERING,

1914). Através deste acordo com a empresa europeia, um engenheiro alemão veio auxiliar a

RGT na implantação dos sistemas Telefunken entre duas fortalezas pertencentes à Marinha,

Itacurussá, em Magaratiba, e Ponta de Castelhanos, em Ilha Grande, separadas por uma

distância de 110 km. Apesar das trocas de mensagens que conseguiram ser realizadas entre as

duas estações, dificuldades técnicas impediram a continuidade das transmissões, ocasionando

em constantes interrupções no serviço (DA SILVA, 2008). Estes foram os primeiros

experimentos da repartição com a tecnologia e auxiliados diretamente por uma empresa

estrangeira.

Por serem os principais integrantes do quadro de engenheiros da seção técnica da RGT

desde o século XIX, Bhering e Leopoldo Weiss (?-1922) foram enviados pela direção para

aprenderem sobre os mais modernos sistemas de radiotelegrafia e acompanhar o

desenvolvimento desta tecnologia na Europa a partir da segunda metade da década de 1900. O

objetivo de estudar e aperfeiçoar os conhecimentos sobre a telegrafia sem fio e aplicá-los na

construção do serviço radiotelegráfico no Brasil surtiu um rápido efeito. Após o retorno,

Weiss apresentou um relatório sobre os aspectos técnicos da radiotelegrafia, incluindo o

estudo para estabelecimento de mais estações dotadas do sistema Telefunken (BHERING,

1914). É interessante observar as atitudes tomadas pelos engenheiros e a visão destes sobre a

telegrafia sem fio, os quais eram responsáveis pela implantação de nossos sistemas

tecnológicos, pois suas linhas de pensamento estavam encarregadas do avanço da

infraestrutura capaz de colocar o Brasil no caminho das economias centrais e diminuir a

distância entre essas e sua condição periférica. Deste modo, como explica Figueiroa, “os

engenheiros se mostraram, a um só tempo, não apenas os iniciadores de numerosas mudanças

técnicas, mas também os organizadores e administradores dos novos sistemas técnicos,

garantindo sua continuidade e correta implementação” (GRELON, 2001 apud FIGUEROA,

2005).

Num relatório publicado em 1905, no Clube de Engenharia,5 Francisco Bhering

apresentou os principais problemas e a situação das comunicações na Amazônia naquele

momento, onde é destacada a urgência do estabelecimento de comunicações telegráficas

confiáveis. Boa parte das dificuldades das quais sofriam as comunicações na Amazônia,

5 BHERING, Francisco. O Vale do Amazonnas e suas comunicações telegráficas. Revista do Clube de Engenharia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n.13, 1905, p. 20

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segundo Bhering, estaria na diferença entre as margens dos rios da região que, por possuírem

trechos de difícil navegação, constituíam grande desafio também para o transporte e o uso

deste na expansão do comércio da borracha. Ainda segundo o engenheiro, a radiotelegrafia

deveria ser descartada por parte da RGT por não possuir estabilidade o suficiente para garantir

a comunicação entre as capitais. Em um estudo sobre a topografia da região, Bhering incluiu a

apresentação dos lugares mais favoráveis para a instalação dos cabos em ambas as margens

do Rio Amazonas, os traçados que deveriam ser seguidos a partir do Mato Grosso e utilizados

por uma nova comissão de construção de linhas telegráficas, assim como um mapa com as

devidas rotas de instalação das linhas telegráficas na Amazônia com o objetivo de se chegar

até Manaus.

Houve, no Brasil, uma necessidade de modernização, presente nos discursos

científicos, que traziam essas ideias modernizadoras que encontraram espaço nas

interpretações sobre país que envolviam território e espaço, sem ainda utilizar a geografia, e

sim teorias sociais e ideologias científicas (FIGUEROA, 2005). Bhering se formou quando

essas discussões de território e seus ocupantes aconteciam, já à luz da geografia. O Brasil

passava a ser interpretado geograficamente. Ele passou a desenvolver planos que se traduziam

em “obsessões geográficas” de levantamento e síntese das chamadas áreas incógnitas do

território brasileiro (PEREIRA, 2002 apud DUARTE, 2011). Esse profundo conhecimento do

território serviria aos ideais de civilização e modernização do país. O engenheiro foi engajado

defensor no que diz respeito à infraestrutura das comunicações no país e seu território. Diante

disso não deixou de se envolver em diversas polêmicas no decorrer de sua vida pública, como

as intensas discussões com Leopoldo Weiss, envolvendo os sistemas de comunicação a serem

implantados na Amazônia e o traçado da Comissão Rondon.

Bhering serviu no Gabinete do Ministro de Aviação e Obras Públicas, de janeiro de

1912 a abril de 1915, e ali deu início às pesquisas sobre cabos submarinos e telefônicos6.

Nesse período, Bhering participou de alguns eventos de radiotelegrafia, como as Conferência

Radiotelegráfica Internacional, sediada em Londres em junho de 1912, e a Conferência

Internacional da Hora, realizado em Paris em outubro de 1912. Nesses eventos teve contato

com representantes de outros países e pode examinar documentos da Argentina e da França,

sobre os temas pesquisados. O engenheiro afirmava que a legislação telegráfica daquela

época, tanto nacional e internacional, e os princípios constitucionais brasileiros permitiriam o

progresso deste ramo da engenharia. Se em 1912, quando buscava convencer o Governo

6 BHERING, Francisco. A Propósito da Jurisprudência Telegráfica. Rio de Janeiro. Typographia Lenziger, 1915. p. 31

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Federal a modernizar e ampliar o serviço radiotelegráfico do país, fazendo uso de um

propagandeado patriotismo, em 1915, Bhering já criticava o monopólio do governo nesses

serviços. Para ele, a rotina telegráfica do Brasil era esterilizadora, quase sempre retrógrada e o

monopólio do Estado fechava, ou pelo menos embaraçava, o campo de ação dos cabos

submarinos, dos telefones e da radiotelegrafia. Segundo o mesmo, o Estado não poderia ser

construtor de obras e explorador de serviços, pois não possuía requisitos para ser bem-

sucedido como empresa, pois faltava o interesse individual, o estímulo e o freio da

concorrência. Também criticava a política monopolizadora de Capanema 7 (1824-1908)

seguida pela direção da RGT desde o século XIX. Em seus argumentos, disponibilizou dados

estatísticos e econômicos da telefonia e telegrafia mundiais, para demonstrar que os serviços

controlados por empresas privadas eram mais baratos8. Enumerou todos os monopólios de

serviços a cargo do Governo Federal e explicou que nos EUA o serviço telefônico está a

cargo de companhias particulares. No Chile também, porém a exploração está sujeita a

regulamentos municipais.

Bhering citou e definiu os dois sistemas principais relativos à execução das obras

públicas:

1º O Sistema anglo-americano – nele confiava-se as grandes obras públicas aos particulares,

às corporações e, em último caso, às localidades interessadas. O Estado intervém

discretamente.

2º O Sistema continental europeu, ou mais exatamente, o alemão – considera o Estado o

grande organizador, o empreiteiro-mor da maioria dos trabalhos públicos. Os particulares,

nesse sistema, intervêm apenas como auxiliares.

Para Bhering, o sistema alemão convém à Alemanha porque ali há “provisão

governamental, riqueza e disciplina militar”9. Bhering também publicou, como estratégia de

apoio aos seus argumentos, uma tabela com os preços, de três minutos de conversação, em

dólares, mostrando que nos EUA o preço é menor, citando as vantagens do sistema anglo-

americano e afirmando que é o mais conforme com a equidade e que o desperdício é

característico de obras públicas quase sempre realizadas com lentidão. Percebe-se, assim, todo

um discurso voltado para a afirmação de que os serviços radiotelegráficos, no Brasil, 7 Guilherme Schuch de Capanema foi diretor da RGT desde sua fundação em 1855 até a Proclamação da República em 1889. Filho do doutor Roque Schuch e de dona Cecilia Bors, nascido no estado de Minas Gerais em 1824, foi doutor em matemática e ciências físicas pela antiga escola militar do Rio de Janeiro, engenheiro pela Escola Politécnica de Viena, lente da Escola Politécnica, professor honorário da Academa de Bellas Artes, fundador da Sociedade de Estatística e ex-diretor da Repartição dos Telégrafos. 8 BHERING, Francisco. A Propósito da Jurisprudência Telegráfica. Rio de Janeiro. Typographia Lenziger, 1915. p. 32 9 Idem

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deveriam ser privatizados para tornarem-se modernos e eficientes; A defesa dessa posição,

como era de costume de sua personalidade, foi seguida de intensos argumentos e longos

exemplos.

O novo avanço estrangeiro

O período entre o final da década de 1910 e os primeiros anos da década de 1920 foi

marcado pelo fim do monopólio estatal e da promulgação de novos regulamentos que

expandiram o uso da radiotelegrafia para além dos domínios do Estado. Em 1919 a

Companhia Radiotelegráfica Brasileira (Radiobrás), empresa subsidiária da Radio

Corporation of America (RCA) é instalada no Brasil com o objetivo de exploração privada da

tecnologia sem fio. Tal empresa permaneceu até a década de 1970 fazendo uso das concessões

públicas oferecidas pelo governo brasileiro. A RCA foi fundada a partir da compra da

Marconi Wireless Company of America (MWCA) por empresários norte-americanos em 1919.

Nos EUA, ainda no início da década de 1910, era comum a exploração do serviço por

empresas estrangeiras e públicas. Tal modelo, baseado na convivência da exploração estatal

do serviço sem fio com a comercialização privada, foi largamente utilizado durante a

expansão das redes de telegrafia ordinária no Brasil e em outros países. O serviço

radiotelegráfico público oferecido pela United Wireless Telegraph Company foi sucateado e

comprado em 1912 pela MWCA que implantou mais estações de telegrafia sem fio no país,

dominando parte daquele mercado. Durante e após a Primeira Guerra Mundial, o governo

assume a operação das estações da MWCA e em 1919 as estações são compradas por

empresários norte-americanos com o objetivo de manter as comunicações do país em um

monopólio nacional, excluindo a participação de empresas estrangeiras, defendendo a

soberania dos Estados Unidos (FERRARETTO, 2017, p.8). O avanço de empresas

estrangeiras pode ser observado como parte do lobby realizado por engenheiros brasileiros

defensores desse modelo de expansão. No Brasil a maior parte da exploração do serviço

comum privado era realizado pelas companhias de estradas de ferro. Tais companhias

dominavam boa parte do fluxo telegráfico (SILVA, 2008, p. 241), especialmente nas pequenas

localidades, atendidas pelas linhas ferroviárias. A telegrafia sem fio, sempre considerada

estratégica e de sinais facilmente interceptáveis, foi sempre sensível no que tange à concessão

para uso de terceiros.

De acordo com Bourdieu (1976), a ciência é um campo social como qualquer outro,

onde há relações de força e monopólios, interesses, lucros e lutas. Francisco Bhering com seu

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posicionamento incisivo pode ser apontado como um dos responsáveis pelo lobby que abriu a

exploração da radiotelegrafia nacional aos interesses estrangeiros privados. Por mais que

Bhering apareça como principal voz a favor de um modelo privado para a expansão da

radiotelegrafia na década de 1910, seus discursos, provavelmente, podem conter interesses de

grupos que procuravam no final da década permitir a operação de companhias privadas,

sobretudo, no comando do tráfego radiotelegráfico internacional. Em 1919,10 o anúncio do

início das operações da Radiobrás dividiu opiniões. Grupos contra e a favor da entrada de

empresas estrangeiras com acesso às comunicações sem fio organizaram movimentos

antagônicos. Se por um lado havia grupos dentro do Estado que justificavam as operações da

Radiobrás como necessárias para o estabelecimento das comunicações internacionais, já que

tais comunicações de maneira alguma poderiam ser realizadas por instituições pertencentes à

governos, outro, mais nacionalista em sua forma de protesto, era contra a presença de tais

instituições na administração do tráfego radiotelegráfico civil e militar. No mesmo ano,11 foi

entregue ao presidente Epitácio da Silva Pessoa (1865-1942) um memorando de um grupo de

radiotelegrafistas contra a concessão da exploração da telegrafia sem fio às empresas

estrangeiras. Tal memorando expunha a total insatisfação daquele movimento quanto ao rumo

que a telegrafia sem fio brasileira tomava pois, como uma tecnologia estratégica e sensível,

sua exploração por companhias estrangerias era um extremo atentado à soberania nacional.

Nos primeiros anos da década de 1910 a MWC possuía diversas estações ao redor do

mundo, fixada em muitos países. Não era apenas uma das primeiras empresas de telegrafia

sem fio a surgir (1887), era uma gigante que possuía a administração do maior fluxo de

radiotelegramas do planeta. A empresa era composta de três grupos que realizavam operações

em diversas partes da Terra. Um grupo inglês que estabelecia comunicações na Grã-Bretanha

e seu entorno, um grupo africano que administrava estações compreendidas no Egito e na

África do Sul e o grupo norte-americano que incluía estações nos EUA, Panamá, Havaí e

partes do sudeste asiático. Ainda em 1913 é permitido pelo governo brasileiro a instalação de

uma antena de radiotelegrafia pela referida empresa em um prédio na capital federal. A

instalação possuía apenas fins educativos, pois seria utilizada por uma escola de

radiotelegrafia. Apesar da permissão, a instalação e operação da antena estaria sobre imediata

fiscalização da RGT.12 O estabelecimento da Radiobrás no país era justificado pela própria

repartição.

10 Revista Brasil-Ferro-Carril, ano X, 1919, p. 535 11 Revista Brasil-Ferro-Carril, ano X, 1919 p. 651 12 Revista Brasil-Ferro-Carril, ano IV, 1913 p. 227 e 327

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A abertura do serviço telegráfico comum brasileiro para o capital estrangeiro, ocorrida

nas décadas finais do século XIX, trouxe críticas e insatisfação de Capanema, que delegava ao

Estado a exploração e guarda das comunicações. Em 1910 o governo brasileiro negou o

pedido da Companhia Marconi para instalar seis estações radiotelegráficas no Brasil. Assim

como Argentina, Peru, Chile e Uruguai, o Brasil preferiu manter o monopólio sobre a

telegrafia sem fio e encomendar, ao invés disso, novas estações à Telefunken.13 Desde as

primeiras tentativas das empresas estrangeiras em explorar o telegrafo sem fio no Brasil,

ainda na década de 1900, a pressão não teve fim. Contudo, o Estado se manteve firme em sua

política monopolizadora até a chegada da Radiobrás, inclusive abrindo mão da compra de

mais aparelhos de telegrafia sem fio da Telefunken, empresa alemã, após a Primeira Guerra.

Não por acaso Bhering assumiu a diretoria da RGT em 1922 após a exoneração do antigo

diretor. Ao assumir o cargo, o engenheiro acaba por montar todo seu gabinete com novos

nomes da repartição. Neste mesmo ano, a Radiobrás conseguiu permissão para explorar o

serviço de radiotelegrafia internacional dentro do Brasil e passa a fornecer tecnologia para as

forças armadas e agências do governo em geral.

Considerações Finais

A polêmicas apresentadas foram palcos dos projetos telegráficos e radiotelegráficos

que entraram em choque no Brasil: o que defendia o controle e o dever do estado nas

telecomunicações e aquele que buscava encerrar esse projeto se alinhar aos interesses de

investidores privados, disputaram os modelos de domínio e organização desses sistemas

dispostos em redes. Tais projetos são mais que discussões da esfera econômica, são projetos

de poder. A quase onipresença de algumas empresas que buscavam operar sistemas de nível

mundial, que já transportavam nossos sistemas de negociações financeiras, ordem política,

militar e movimentações sociais, que em um primeiro momento, antes da Guerra, sentiam a

resistência de diversas nações, passaram a orientar suas redes internas. Contudo, também

podemos dizer que a radiotelegrafia foi um dos pontos de partida para a revolução da

comunicação sem fio que até hoje testemunhamos, em grande parte fruto das pesquisas e

trabalho de muitos pesquisadores que estudaram e reinventaram as diversas ferramentas de

comunicação por ondas de rádio.

13 Revista Marítima Brasileira, Ano XXX, Abril de 1911, nº 10, p. 486

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