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Conflitos e polêmicas durante a implantação e expansão da telegrafia sem fio no Brasil
(1902-1922)
Arthur Cavalcanti de Oliveira Damasceno1
[email protected] UFBA
Introdução Durante a segunda metade do século XIX, o mundo observou uma rápida expansão
dos meios de transporte e comunicação. Ferrovias, navios a vapor, primeiros automóveis,
linhas telefônicas e telegráficas. De todos os avanços que ajudaram a diminuir as distâncias,
expandir o comércio e as relações entre os povos, sejam elas relações equilibradas ou de
dominação e exploração, o telégrafo foi uma das mais notáveis. Desenvolvido na década de
1830 por Samuel Finley Breese Morse (1791-1872), o telégrafo teve seu primeiro teste em
1844 através da implantação da primeira linha telegráfica que ligaria Baltimore a Washington
nos Estados Unidos. Desde então, ocorreu em uma vertiginosa expansão de milhares de linhas
telegráficas pelo mundo, inclusive dentro do território nacional.
No Brasil, a implantação da telegrafia se deu a partir da segunda metade do século
XIX, mais precisamente em 1852. Nas décadas seguintes, a telegrafia elétrica se expandiria
pelo país a um ritmo intenso, impulsionada, especialmente, pela necessidade de controle e
presença do governo brasileiro das áreas mais afastadas do litoral, sobretudo as que faziam
fronteiras com os países vizinhos. Entretanto, nos anos finais do século XIX, o mundo
assistiria à demonstração de uma nova forma de comunicação que prometia a transmissão de
sinais sem a necessidade de nenhum cabo ou meio físico entre dois pontos: radiotelegrafia. Os
processos de implantação da telegrafia e da telegrafia sem fios foram distintos, tanto
politicamente, quanto economicamente. Enquanto a telegrafia surgiu e se estabeleceu durante
o período imperial, a radiotelegrafia se desenvolveu já no século XX e foi transformada em
1 Mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências. Trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.
tecnologia estratégica durante as primeiras décadas da República. No entanto, as duas
tecnologias foram marcadas por diversas polêmicas envolvendo a União, os estados e
empresas estrangeiras, caracterizadas por interesses políticos diversos. No caso da telegrafia
sem fio, as polêmicas tornaram-se mais acentuadas por conta de seu contexto global. Desde o
início, a radiotelegrafia foi uma tecnologia polêmica por sua própria natureza. O envio de
mensagens pelo ar trouxe uma possibilidade de expansão de estações telegráficas com menor
custo de implantação e manutenção, competindo diretamente com as empresas de cabos
submarinos (FIGURA 1), que apenas na década de 1860 conseguiram superar as barreiras
tecnológicas que dificultavam a comunicação telegráfica entre os continentes. Desenvolvida a
partir dos trabalhos do italiano Guglielmo Marconi (1874-1937), a telegrafia sem fio se
espalhou pelo mundo após o sucesso na transmissão de sinais entre a estação transmissora de
Poldhu em Cornwall, Inglaterra, e a estação radiotelegráfica canadense localizada em
Newfoundland em 12 de dezembro de 1901. Marconi conseguiu tal feito após um período de
cinco anos, dada a apresentação do telegrafo sem fio em 1896, superando rapidamente as
décadas transcorridas pela telegrafia comum no sucesso da primeira transmissão transatlântica
via cabo submarino.
FIGURA 1: Reportagem da Pall Mall Gazette sobre a chegada da telegrafia sem fio como concorrente dos cabos submarinos, com a caricatura de Marconi enfrentando um cabo submarino em formato de serpente. Dezembro de 1901.2
Poucos anos depois do primeiro sucesso na transmissão de sinais radiotelegráficos
entre continentes, a telegrafia sem fio passou a ser instalada em embarcações europeias,
facilitando a comunicação e reconhecimento dos navios próximos à costa. A rápida expansão
da tecnologia aplicada aos navios do continente contou com o surgimento e aumento do
número de novos sistemas e empresas de diversas nacionalidades disputando o mercado dos
aparelhos de radiotelegrafia. Os conflitos surgidos em decorrência dessa nova disputa
tecnológica forçaram o surgimento da primeira reunião internacional para tratar da telegrafia
sem fio: a Conferência Preliminar de Telegrafia sem Fio, realizada em 1903 na cidade de
Berlim. A conferência, de caráter quase emergencial, cuidou da falta de regulamentação que
criava um ambiente onde os diferentes sistemas criavam barreiras para a comunicação entre
si, ocasionando recusas de comunicação, especialmente entre estações móveis, localizadas em
navios, e estações fixas, como foi o caso da Marconi Wireless Telegraph Company, que
decretou que seus sistemas aceitassem radiotelegramas apenas entre eles (WATERBURY,
1903).
2 FALCIASECCA, G.; SELLERI, S.; PELOSI, G.; VALOTTI, B. Guglielmo Marconi e la campagna radiotelegráfica del 1902 della R.N. Carlo Alberto: la sostadi Cagliari. Pisa: PLUS-Pisa University Press, 2004.
Foi em meio a um quadro internacional tão polêmico que o Brasil iniciou a
implantação dos seus primeiros sistemas radiotelegráficos. De um lado havia o interesse do
governo republicano brasileiro que via a tecnologia como estratégica, capaz de alcançar os
sertões do país que sofriam com a frágil comunicação que oferecia o telégrafo comum, e do
outro as empresas estrangeiras e investidores nacionais, que pretendiam explorar
comercialmente a telegrafia sem fio.
Início e desenvolvimento da telegrafia sem fio no Brasil
Em 1902, os estados do Pará e do Amazonas ofereceram concessões para a exploração
do uso da radiotelegrafia na região à empresas privadas com o intuito de fazer a ligação
telegráfica entre as cidades de Belém e Manaus. As primeiras tentativas em obter permissão
para o uso da radiotelegrafia foram pedidas inicialmente para o empresário Joaquim
Gonçalves de Lalos, onde o objetivo era estabelecer uma rede sem fio que desse conta da
demanda e integrasse a região compreendida entre os rios Tocantins, Purús, Madeira e
Amazonas, onde a Amazon Telegraph Company (ATC) enfrentava grande dificuldade em
realizar essa integração. Após ter conseguido as concessões estaduais, Lalos se dirigiu ao
Congresso Nacional para ratificá-la, onde uma comissão competente da Câmara dos
Deputados se manifestou de forma contrária e votou contra as concessões no mesmo ano,
defendendo o monopólio da União sobre o serviço de telegrafia sem fio (BHERING, 1914).
Em novembro do mesmo ano, houve um debate na Câmara sobre as concessões feitas pelo
estado do Amazonas a esse empresário,3 onde foi destacada a preocupação com a telegrafia
sem fio, da qual a Câmara já estava bastante ciente. Segundo o orador, o deputado e também
engenheiro, Manuel Vitorino de Paula Ramos (1860-1925)4, a Constituição garantia aos
estados o direito de estabelecerem, dentro de seus territórios, comunicações telegráficas onde
o serviço da União não alcançava, contudo, a radiotelegrafia, por ser uma recente tecnologia,
estava além do estabelecido pela Constituição de 1891. Assim, a telegrafia sem fio não
poderia ser utilizada em território nacional, muito menos nas mãos de particulares por não
apresentar ainda regulamentação própria e poder colocar em risco a telegrafia da União.
3 Diário do Congresso Nacional, Ano XIII, n° 221; 19 de novembro de 1902, p. 4369 4 Engenheiro pernambucano, formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1883 e deputado estadual desde 1894. Membro do Partido Republicano e engenheiro-chefe em diversas obras de engenharia, sobretudo no estado de Minas Gerais. Paula Ramos foi também diretor do Serviço de Propaganda e Expansão do Brasil na Europa, cargo que assumiu em 1907 após renunciar ao seu quinto mandato como deputado federal.
Ainda em 1902, outro empresário, o oficial reformado da Marinha do Brasil, José
Libanio Lamenha Lins de Souza, entra com pedido na Câmara para a concessão de exploração
da radiotelegrafia em estações a serem implantadas na costa e no território nacional por
cinquenta anos, contudo, a Repartição Geral dos Telégrafos se manifestou contrariamente a
esse pedido, expressando o seu caráter conservador. No ano seguinte, 1903, foi informado
pela RGT mais um requerimento pedindo concessão para explorar o serviço, dessa vez feita
pelo também empresário do ramo automobilístico Henrique Christiano Rohe, onde o objetivo
seria a utilização do sistema marconiano, desenvolvido pela empresa de Guglielmo Marconi,
a Marconi Wireless Telegraph Company, no estabelecimento de comunicações entre Manaus
e o Acre, pedido esse que também foi negado (BHERING, 1914). Pode-se perceber que
mesmo não investindo à época na regulamentação e desenvolvimento da telegrafia sem fio,
considerada por Bhering neste período como um equipamento que deveria ser utilizado
apenas onde seria “impossível” o uso da telegrafia ordinária, a União e a RGT prezavam pelo
controle da mesma, tanto por questões de segurança nacional, quanto para manter seguro o
serviço telegráfico da União de concorrentes.
Em 1905, a ATC, após diversas tentativas frustradas de ligação com seus cabos
fluviais, apresentou um requerimento para que fosse dada a permissão de explorar a telegrafia
sem fio como solução para a interrupção dos seus cabos, no entanto a RGT novamente se
manifestou contra a tentativa de utilização da telegrafia sem fio na região por empresas
privadas. Neste caso, a motivação para o indeferimento partiu do princípio de que a
companhia já explorava o serviço convencional na região, sendo esta a administradora dos
cabos fluviais, o que seria uma grande desvantagem para o governo federal e o serviço
telegráfico público. Em seguida, a Associação Comercial do Amazonas também enviou um
requerimento para o Ministério da Indústria para que se pudesse estabelecer ligações sem fio
na região, alegando urgência na comunicação que foi interrompida por problemas nos cabos
fluviais. Do mesmo modo, no ano seguinte, outro pedido para concessão, dessa vez
solicitando autorização para funcionar por 30 anos, foi negado, para a Amazon Wireless
Telegraph and Telephone Company, empresa norte-americana especializada em
radiotelegrafia e criada especialmente para trabalhar na Amazônia.
Retornando para 1902, naquele ano foi apresentado pelo diretor e engenheiro da
Repartição Geral dos Telégrafos (RGT), Álvaro de Melo Coutinho de Vilhena, um
requerimento de representantes da empresa alemã Siemens & Halske, para que o engenheiro-
chefe Francisco Bhering (1866-1924) estudasse na Europa os mais diversos sistemas de
telegrafia sem fio, especialmente na Alemanha e na França. A proposta foi apresentada em
conjunto com a sugestão para a compra de instrumentos que viessem possibilitar a ligação
sem fio entre a capital da República e Ilha Grande, como solução para as interrupções de
comunicação do já bastante danificado cabo submarino responsável pelo serviço (BHERING,
1914). Através deste acordo com a empresa europeia, um engenheiro alemão veio auxiliar a
RGT na implantação dos sistemas Telefunken entre duas fortalezas pertencentes à Marinha,
Itacurussá, em Magaratiba, e Ponta de Castelhanos, em Ilha Grande, separadas por uma
distância de 110 km. Apesar das trocas de mensagens que conseguiram ser realizadas entre as
duas estações, dificuldades técnicas impediram a continuidade das transmissões, ocasionando
em constantes interrupções no serviço (DA SILVA, 2008). Estes foram os primeiros
experimentos da repartição com a tecnologia e auxiliados diretamente por uma empresa
estrangeira.
Por serem os principais integrantes do quadro de engenheiros da seção técnica da RGT
desde o século XIX, Bhering e Leopoldo Weiss (?-1922) foram enviados pela direção para
aprenderem sobre os mais modernos sistemas de radiotelegrafia e acompanhar o
desenvolvimento desta tecnologia na Europa a partir da segunda metade da década de 1900. O
objetivo de estudar e aperfeiçoar os conhecimentos sobre a telegrafia sem fio e aplicá-los na
construção do serviço radiotelegráfico no Brasil surtiu um rápido efeito. Após o retorno,
Weiss apresentou um relatório sobre os aspectos técnicos da radiotelegrafia, incluindo o
estudo para estabelecimento de mais estações dotadas do sistema Telefunken (BHERING,
1914). É interessante observar as atitudes tomadas pelos engenheiros e a visão destes sobre a
telegrafia sem fio, os quais eram responsáveis pela implantação de nossos sistemas
tecnológicos, pois suas linhas de pensamento estavam encarregadas do avanço da
infraestrutura capaz de colocar o Brasil no caminho das economias centrais e diminuir a
distância entre essas e sua condição periférica. Deste modo, como explica Figueiroa, “os
engenheiros se mostraram, a um só tempo, não apenas os iniciadores de numerosas mudanças
técnicas, mas também os organizadores e administradores dos novos sistemas técnicos,
garantindo sua continuidade e correta implementação” (GRELON, 2001 apud FIGUEROA,
2005).
Num relatório publicado em 1905, no Clube de Engenharia,5 Francisco Bhering
apresentou os principais problemas e a situação das comunicações na Amazônia naquele
momento, onde é destacada a urgência do estabelecimento de comunicações telegráficas
confiáveis. Boa parte das dificuldades das quais sofriam as comunicações na Amazônia,
5 BHERING, Francisco. O Vale do Amazonnas e suas comunicações telegráficas. Revista do Clube de Engenharia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n.13, 1905, p. 20
segundo Bhering, estaria na diferença entre as margens dos rios da região que, por possuírem
trechos de difícil navegação, constituíam grande desafio também para o transporte e o uso
deste na expansão do comércio da borracha. Ainda segundo o engenheiro, a radiotelegrafia
deveria ser descartada por parte da RGT por não possuir estabilidade o suficiente para garantir
a comunicação entre as capitais. Em um estudo sobre a topografia da região, Bhering incluiu a
apresentação dos lugares mais favoráveis para a instalação dos cabos em ambas as margens
do Rio Amazonas, os traçados que deveriam ser seguidos a partir do Mato Grosso e utilizados
por uma nova comissão de construção de linhas telegráficas, assim como um mapa com as
devidas rotas de instalação das linhas telegráficas na Amazônia com o objetivo de se chegar
até Manaus.
Houve, no Brasil, uma necessidade de modernização, presente nos discursos
científicos, que traziam essas ideias modernizadoras que encontraram espaço nas
interpretações sobre país que envolviam território e espaço, sem ainda utilizar a geografia, e
sim teorias sociais e ideologias científicas (FIGUEROA, 2005). Bhering se formou quando
essas discussões de território e seus ocupantes aconteciam, já à luz da geografia. O Brasil
passava a ser interpretado geograficamente. Ele passou a desenvolver planos que se traduziam
em “obsessões geográficas” de levantamento e síntese das chamadas áreas incógnitas do
território brasileiro (PEREIRA, 2002 apud DUARTE, 2011). Esse profundo conhecimento do
território serviria aos ideais de civilização e modernização do país. O engenheiro foi engajado
defensor no que diz respeito à infraestrutura das comunicações no país e seu território. Diante
disso não deixou de se envolver em diversas polêmicas no decorrer de sua vida pública, como
as intensas discussões com Leopoldo Weiss, envolvendo os sistemas de comunicação a serem
implantados na Amazônia e o traçado da Comissão Rondon.
Bhering serviu no Gabinete do Ministro de Aviação e Obras Públicas, de janeiro de
1912 a abril de 1915, e ali deu início às pesquisas sobre cabos submarinos e telefônicos6.
Nesse período, Bhering participou de alguns eventos de radiotelegrafia, como as Conferência
Radiotelegráfica Internacional, sediada em Londres em junho de 1912, e a Conferência
Internacional da Hora, realizado em Paris em outubro de 1912. Nesses eventos teve contato
com representantes de outros países e pode examinar documentos da Argentina e da França,
sobre os temas pesquisados. O engenheiro afirmava que a legislação telegráfica daquela
época, tanto nacional e internacional, e os princípios constitucionais brasileiros permitiriam o
progresso deste ramo da engenharia. Se em 1912, quando buscava convencer o Governo
6 BHERING, Francisco. A Propósito da Jurisprudência Telegráfica. Rio de Janeiro. Typographia Lenziger, 1915. p. 31
Federal a modernizar e ampliar o serviço radiotelegráfico do país, fazendo uso de um
propagandeado patriotismo, em 1915, Bhering já criticava o monopólio do governo nesses
serviços. Para ele, a rotina telegráfica do Brasil era esterilizadora, quase sempre retrógrada e o
monopólio do Estado fechava, ou pelo menos embaraçava, o campo de ação dos cabos
submarinos, dos telefones e da radiotelegrafia. Segundo o mesmo, o Estado não poderia ser
construtor de obras e explorador de serviços, pois não possuía requisitos para ser bem-
sucedido como empresa, pois faltava o interesse individual, o estímulo e o freio da
concorrência. Também criticava a política monopolizadora de Capanema 7 (1824-1908)
seguida pela direção da RGT desde o século XIX. Em seus argumentos, disponibilizou dados
estatísticos e econômicos da telefonia e telegrafia mundiais, para demonstrar que os serviços
controlados por empresas privadas eram mais baratos8. Enumerou todos os monopólios de
serviços a cargo do Governo Federal e explicou que nos EUA o serviço telefônico está a
cargo de companhias particulares. No Chile também, porém a exploração está sujeita a
regulamentos municipais.
Bhering citou e definiu os dois sistemas principais relativos à execução das obras
públicas:
1º O Sistema anglo-americano – nele confiava-se as grandes obras públicas aos particulares,
às corporações e, em último caso, às localidades interessadas. O Estado intervém
discretamente.
2º O Sistema continental europeu, ou mais exatamente, o alemão – considera o Estado o
grande organizador, o empreiteiro-mor da maioria dos trabalhos públicos. Os particulares,
nesse sistema, intervêm apenas como auxiliares.
Para Bhering, o sistema alemão convém à Alemanha porque ali há “provisão
governamental, riqueza e disciplina militar”9. Bhering também publicou, como estratégia de
apoio aos seus argumentos, uma tabela com os preços, de três minutos de conversação, em
dólares, mostrando que nos EUA o preço é menor, citando as vantagens do sistema anglo-
americano e afirmando que é o mais conforme com a equidade e que o desperdício é
característico de obras públicas quase sempre realizadas com lentidão. Percebe-se, assim, todo
um discurso voltado para a afirmação de que os serviços radiotelegráficos, no Brasil, 7 Guilherme Schuch de Capanema foi diretor da RGT desde sua fundação em 1855 até a Proclamação da República em 1889. Filho do doutor Roque Schuch e de dona Cecilia Bors, nascido no estado de Minas Gerais em 1824, foi doutor em matemática e ciências físicas pela antiga escola militar do Rio de Janeiro, engenheiro pela Escola Politécnica de Viena, lente da Escola Politécnica, professor honorário da Academa de Bellas Artes, fundador da Sociedade de Estatística e ex-diretor da Repartição dos Telégrafos. 8 BHERING, Francisco. A Propósito da Jurisprudência Telegráfica. Rio de Janeiro. Typographia Lenziger, 1915. p. 32 9 Idem
deveriam ser privatizados para tornarem-se modernos e eficientes; A defesa dessa posição,
como era de costume de sua personalidade, foi seguida de intensos argumentos e longos
exemplos.
O novo avanço estrangeiro
O período entre o final da década de 1910 e os primeiros anos da década de 1920 foi
marcado pelo fim do monopólio estatal e da promulgação de novos regulamentos que
expandiram o uso da radiotelegrafia para além dos domínios do Estado. Em 1919 a
Companhia Radiotelegráfica Brasileira (Radiobrás), empresa subsidiária da Radio
Corporation of America (RCA) é instalada no Brasil com o objetivo de exploração privada da
tecnologia sem fio. Tal empresa permaneceu até a década de 1970 fazendo uso das concessões
públicas oferecidas pelo governo brasileiro. A RCA foi fundada a partir da compra da
Marconi Wireless Company of America (MWCA) por empresários norte-americanos em 1919.
Nos EUA, ainda no início da década de 1910, era comum a exploração do serviço por
empresas estrangeiras e públicas. Tal modelo, baseado na convivência da exploração estatal
do serviço sem fio com a comercialização privada, foi largamente utilizado durante a
expansão das redes de telegrafia ordinária no Brasil e em outros países. O serviço
radiotelegráfico público oferecido pela United Wireless Telegraph Company foi sucateado e
comprado em 1912 pela MWCA que implantou mais estações de telegrafia sem fio no país,
dominando parte daquele mercado. Durante e após a Primeira Guerra Mundial, o governo
assume a operação das estações da MWCA e em 1919 as estações são compradas por
empresários norte-americanos com o objetivo de manter as comunicações do país em um
monopólio nacional, excluindo a participação de empresas estrangeiras, defendendo a
soberania dos Estados Unidos (FERRARETTO, 2017, p.8). O avanço de empresas
estrangeiras pode ser observado como parte do lobby realizado por engenheiros brasileiros
defensores desse modelo de expansão. No Brasil a maior parte da exploração do serviço
comum privado era realizado pelas companhias de estradas de ferro. Tais companhias
dominavam boa parte do fluxo telegráfico (SILVA, 2008, p. 241), especialmente nas pequenas
localidades, atendidas pelas linhas ferroviárias. A telegrafia sem fio, sempre considerada
estratégica e de sinais facilmente interceptáveis, foi sempre sensível no que tange à concessão
para uso de terceiros.
De acordo com Bourdieu (1976), a ciência é um campo social como qualquer outro,
onde há relações de força e monopólios, interesses, lucros e lutas. Francisco Bhering com seu
posicionamento incisivo pode ser apontado como um dos responsáveis pelo lobby que abriu a
exploração da radiotelegrafia nacional aos interesses estrangeiros privados. Por mais que
Bhering apareça como principal voz a favor de um modelo privado para a expansão da
radiotelegrafia na década de 1910, seus discursos, provavelmente, podem conter interesses de
grupos que procuravam no final da década permitir a operação de companhias privadas,
sobretudo, no comando do tráfego radiotelegráfico internacional. Em 1919,10 o anúncio do
início das operações da Radiobrás dividiu opiniões. Grupos contra e a favor da entrada de
empresas estrangeiras com acesso às comunicações sem fio organizaram movimentos
antagônicos. Se por um lado havia grupos dentro do Estado que justificavam as operações da
Radiobrás como necessárias para o estabelecimento das comunicações internacionais, já que
tais comunicações de maneira alguma poderiam ser realizadas por instituições pertencentes à
governos, outro, mais nacionalista em sua forma de protesto, era contra a presença de tais
instituições na administração do tráfego radiotelegráfico civil e militar. No mesmo ano,11 foi
entregue ao presidente Epitácio da Silva Pessoa (1865-1942) um memorando de um grupo de
radiotelegrafistas contra a concessão da exploração da telegrafia sem fio às empresas
estrangeiras. Tal memorando expunha a total insatisfação daquele movimento quanto ao rumo
que a telegrafia sem fio brasileira tomava pois, como uma tecnologia estratégica e sensível,
sua exploração por companhias estrangerias era um extremo atentado à soberania nacional.
Nos primeiros anos da década de 1910 a MWC possuía diversas estações ao redor do
mundo, fixada em muitos países. Não era apenas uma das primeiras empresas de telegrafia
sem fio a surgir (1887), era uma gigante que possuía a administração do maior fluxo de
radiotelegramas do planeta. A empresa era composta de três grupos que realizavam operações
em diversas partes da Terra. Um grupo inglês que estabelecia comunicações na Grã-Bretanha
e seu entorno, um grupo africano que administrava estações compreendidas no Egito e na
África do Sul e o grupo norte-americano que incluía estações nos EUA, Panamá, Havaí e
partes do sudeste asiático. Ainda em 1913 é permitido pelo governo brasileiro a instalação de
uma antena de radiotelegrafia pela referida empresa em um prédio na capital federal. A
instalação possuía apenas fins educativos, pois seria utilizada por uma escola de
radiotelegrafia. Apesar da permissão, a instalação e operação da antena estaria sobre imediata
fiscalização da RGT.12 O estabelecimento da Radiobrás no país era justificado pela própria
repartição.
10 Revista Brasil-Ferro-Carril, ano X, 1919, p. 535 11 Revista Brasil-Ferro-Carril, ano X, 1919 p. 651 12 Revista Brasil-Ferro-Carril, ano IV, 1913 p. 227 e 327
A abertura do serviço telegráfico comum brasileiro para o capital estrangeiro, ocorrida
nas décadas finais do século XIX, trouxe críticas e insatisfação de Capanema, que delegava ao
Estado a exploração e guarda das comunicações. Em 1910 o governo brasileiro negou o
pedido da Companhia Marconi para instalar seis estações radiotelegráficas no Brasil. Assim
como Argentina, Peru, Chile e Uruguai, o Brasil preferiu manter o monopólio sobre a
telegrafia sem fio e encomendar, ao invés disso, novas estações à Telefunken.13 Desde as
primeiras tentativas das empresas estrangeiras em explorar o telegrafo sem fio no Brasil,
ainda na década de 1900, a pressão não teve fim. Contudo, o Estado se manteve firme em sua
política monopolizadora até a chegada da Radiobrás, inclusive abrindo mão da compra de
mais aparelhos de telegrafia sem fio da Telefunken, empresa alemã, após a Primeira Guerra.
Não por acaso Bhering assumiu a diretoria da RGT em 1922 após a exoneração do antigo
diretor. Ao assumir o cargo, o engenheiro acaba por montar todo seu gabinete com novos
nomes da repartição. Neste mesmo ano, a Radiobrás conseguiu permissão para explorar o
serviço de radiotelegrafia internacional dentro do Brasil e passa a fornecer tecnologia para as
forças armadas e agências do governo em geral.
Considerações Finais
A polêmicas apresentadas foram palcos dos projetos telegráficos e radiotelegráficos
que entraram em choque no Brasil: o que defendia o controle e o dever do estado nas
telecomunicações e aquele que buscava encerrar esse projeto se alinhar aos interesses de
investidores privados, disputaram os modelos de domínio e organização desses sistemas
dispostos em redes. Tais projetos são mais que discussões da esfera econômica, são projetos
de poder. A quase onipresença de algumas empresas que buscavam operar sistemas de nível
mundial, que já transportavam nossos sistemas de negociações financeiras, ordem política,
militar e movimentações sociais, que em um primeiro momento, antes da Guerra, sentiam a
resistência de diversas nações, passaram a orientar suas redes internas. Contudo, também
podemos dizer que a radiotelegrafia foi um dos pontos de partida para a revolução da
comunicação sem fio que até hoje testemunhamos, em grande parte fruto das pesquisas e
trabalho de muitos pesquisadores que estudaram e reinventaram as diversas ferramentas de
comunicação por ondas de rádio.
13 Revista Marítima Brasileira, Ano XXX, Abril de 1911, nº 10, p. 486
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