Conhecer o Haiti: aspectos histórico-culturais do ... · Ide prensil la se te ansenye lang...
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Conhecer o Haiti: aspectos histórico-culturais do "kreyòlayisyen"
Wendy Ledix (UNILA)1
Resumo: Este trabalho é proposto com base na vivência da ação de extensão “Haiti: línguas e
cultura”, durante o ano de 2016, ofertado na Unila, tanto para a comunidade interna quanto
externa. O principal foco era o ensino do "crioulo haitiano", mas também teve pinceladas sobre
o francês (outra língua oficial do Haiti), culinária, hábitos culturais, música, danças, educação,
história, política, religião entre outros. Comumente chamado “Kreyòl Ayisyen”, o idioma foi
oficialmente instituído desde 1961 devido ao empenho do advogado haitiano Félix Morisseau-
Leroy. O idioma é falado pela totalidade da população haitiana. A sua criação remonta à época
colonial, em que o Haiti foi colonizado pela França e africanos foram trazidos para exercerem
trabalho escravo. Estes, que eram advindos de diversas culturas,e se comunicavam em línguas
diferentes, inventaram uma nova língua misturando as que sabiam com o que entendiam do
Francês. A configuração do idiomafoi imprescindível para a construção da Revolução Haitiana,
que fez com que o Haiti se tornasse a primeira república negra do mundo.Esta comunicação
propõe uma contribuição para entender o Haiti, principalmente a de aspectos histórico-culturais
do KreyòlAyisyen.
Palavras-chave: Haiti; ensino; língua;UNILA; cultura.
Rezime: Travay sa a pwopoze nan kad yon eksperyans ak yon aksyon ekstansyon "Haiti:
línguas e cultura", pandan ane 2016 la, UNILA te ofri pou kominote entèn ak kominote ekstèn
nan. Ide prensil la se te ansenye lang kreyòl, men tou te genyen kèk ti pale sou fransè (lòt lang
ofisyèl Ayiti a), kizin, abitid kiltirèl, mizik, dans, edikasyon, istwa, politik, relijyon ak lòt
bagay. Souvan rele "Kreyòl Ayisyen", lang lan ofisyalize depi 1961 ak asistans avoka ayisyen
an Félix Morisseau-Leroy. Tout popilasyon Ayisyen an pale lang sila. Li kreye depi nan epòk
kolonyal, kote Ayiti te kolonize pa Lafrans e anpil afriken te vini egzèse travay esklav. Sila yo
ki te gen kilti diferan, ki te konn kominike nan plizyè lang, te envante yon nouvo lang ki se
melanj tout lòt yo te konn pale yo ak kèk mo fransè yo te konn tande tou. Konfigirasyon lang
lan te endispansab pou konstriksyon revolisyon ayisyen an ki te fè Ayiti vin premye repiblik
nwa mond lan. Kominikasyon sa a pwopoze yon kontribisyon pou konprann Ayiti,
prensipalman sa ki gen a wè ak aspè istorik ak kiltirèl Kreyòl Ayisyen an.
Mo kle: Ayiti; ansèyman; lang; UNILA; kilti.
Abstract: This work is proposed based on the experience of the extension action "Haiti:
languages and culture", during the year 2016, offered at Unila, both for the internal and external
community. The main focus was teaching "Haitian Creole", but also had touches on French
(another official language of Haiti), cooking, cultural habits, music, dances, education, history,
politics, religion among others. Commonly called "Kreyòl Ayisyen", the language was
officially established since 1961 due to the commitment of the Haitian lawyer Felix Morisseau-
Leroy. The same is spoken by the entire Haitian population. It's creation dates back to colonial
times, when Haiti was colonized by France and Africans were brought in to carry out slave
1 Acadêmico do curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, de Foz do
Iguaçu. E-mail: [email protected]
labor. These, who came from different cultures, and communicated in different languages,
invented a new language by mixing those they knew with their understanding of French. The
configuration of language was essential for the construction of the Haitian Revolution, which
made Haiti the first black republic in the world. This communication proposes a contribution
to understanding Haiti, especially the historical and cultural aspects of Kreyòl Ayisyen.
Keywords: Haiti; teaching; language; UNILA; culture.
Introdução
A realidade das línguas do mundo é complexa. Não sabemos exatamente quantas
línguas são faladas no planeta e nem temos critérios claros e objetivos que nos permitam
diferenciar variedades estruturalmente próximas e decidir, sem discussão, se duas falas
"aparentadas" constituem ou não a mesma língua. O próprio carácter social e cultural do objeto
"língua" (que, como todo objeto cultural, tem uma história) faz com que seja impossível
reconhecer e delimitar idiomas sem levarmos em conta as condições sociopolíticas e históricas
das comunidades que os falam. Enquanto objetos de estudo, ou mesmo como matéria de
discussão, eles são construídos discursivamente em condições históricas concretas, por meio
de complexas representações sociais inseridas nas mais diversas relações de poder. Os falantes
veem suas práticas condicionadas por essas representações, pelo carácter performativo de
determinadas ideologias linguísticas e por intervenções diretas dos poderes políticos sobre a
realidade social da linguagem (VALLE, 2013, p. 18-19).
Assim, ao pensarmos as relações entre línguas no espaço mundial, devemos prestar
atenção às relações entre os falantes, no modo como eles interagem entre si, com falantes da
sua mesma língua e de outros idiomas. Essas relações são mediadas, por sua vez, por todo tipo
de representações em torno de ideias de beleza, utilidade, identidade, representatividade etc, e
mesmo por interdições sociais que têm a ver com os âmbitos de uso, as funções comunicativas
ou os gêneros discursivos implicados na utilização de uma ou de outra língua. Assim, por
exemplo, as "escolhas" de uso de falantes bilíngues, em situações de línguas em contato, estão
condicionadas por toda uma história de coerções sociais construídas na relação entre grupos
humanos e pelas relações de poder existentes.
Seguindo o esquema proposto por Abraam de Swaan para compreender, do ponto de
vista da sociologia e da economia política, as relações entre as línguas, Louis-Jean Calvet
(2004, p. 78-84) propõe uma descrição da realidade linguística do mundo como um grande
sistema gravitacional. Nessa galáxia, o inglês, ocupando o centro da constelação, seria a língua
hipercentral, existiria uma dezena de línguas supercentrais (árabe, russo, suaíli, francês, hindi,
espanhol, português, chinês...), uma ou duas centenas de línguas centrais (wolof, bambara,
quíchua, checo, armênio...) e por volta de quatro ou cinco mil línguas periféricas (1), entre elas,
encontra-se o Kreyòl Ayisyen.
No Haiti, o Kreyòl Ayisyen (Crioulo Haitiano), como língua materna, é falado por
todos, ou seja, hoje em dia, mais de 10 milhões de pessoas fazem uso desse idioma (LE
NOUVELLISTE, 2009). Até que o advogado haitiano Félix Morisseau-Leroy passou a
promover o Crioulo Haitiano como segunda língua oficial do Haiti em 1961. Naquela época,
ele foi diretor dos serviços da instrução pública no Ministério da Educação do país. O artigo 5
da constituição de 1987 estipula:
"Tous les Haïtiens sont unis par une Langue commune : le Créole.
- Le Créole et le Français sont les langues officielles de la République."2
Entender que a luta pela sua oficialização não foi por mero capricho ou por revolta
anticolonialista apenas, mas por uma necessidade patriótica e indenitária. Na verdade, constata-
se que no crioulo esta grande parte da identidade do povo haitiano(SPEARS et al., 2012).
Vários países, à semelhança do Haiti, lutaram e continuam na luta pela oficialização de sua
lingua nativa (anexo A). No caso do Haiti e de alguns outros países de fala crioula, a sua
utilização quer na escrita ou na fala e um passo importante rumo ao reconhecimento histórico-
identitário desses povos. Na verdade, a língua materna e o maior patrimônio restante de uma
pátria esfacelada pelos atropelos ditatoriais do pais colonizador.
O presente artigo objetiva, ainda,propor uma contribuição para entender o Haiti,
principalmente a de aspectos histórico-culturais do Kreyòl Ayisyen, fazendo uma breve
historicidade da formação dessa língua, mostrando sua resistência histórica e apontando
questões contemporâneas.
2"Todos os Haitianos são unidos por uma Língua comum: O Crioulo.
- O Crioulo e o Francês são as línguas oficiais da República."
Formação do Crioulo Haitiano (CH)
Não se sabe ao certo quando o crioulo haitiano começou, estima-se, no entanto, que
seja entre os séculos XVII e XVIII. A compreensão mais vigente é que esta nova língua foi se
formando ao longo do tempo por meio de situações de contato comunicativo entre os então
povos escravizados de origem africana com os colonos franceses. Apesar de seu status hoje
como uma linguagem co-oficial com o francês, seu progresso notável na sociedade haitiana e
o grande número de estudos científicos a que tem sido submetido, alguns falantes nativos
continuam a desvalorizá-lo, reduzindo-o à uma condição subalterna. (LE NOUVELLISTE)
Segundo Singler (1996), o crioulo haitiano se desenvolveu entre 1680 e 1740, com a
transição para o sistema de plantation – monocultura de exportação por meio de latifúndios de
força de trabalho escrava. A economia deu um salto com a importação de escravos da África
para trabalhar no cultivo da cana de açúcar e a população da ilha aumentou gradualmente. Essa
mudança, segundo Lefebvre (1998 apud CAISSE, 2012), favoreceu, até um certo ponto, a
formação do crioulo haitiano,“[...] uma comunidade linguística multilíngue com falantes de
línguas mutuamente incompreensíveis– o que gerou a necessidade de um sistema de
comunicação comum – e que tem pouco contato direto com falantes do superstrato, neste caso,
o francês” (CAISSE,2012, p. 12).
Assim, o crioulo haitiano foi se formando ao longo do tempo por meio de situações de
contato entre os então escravizados de origem africana com os colonos franceses, impelidos
pela necessidade de comunicação. Vale ressaltar, como indica Wladimir Valler Filho (2007),
que o francês falado pelos colonizadores daquela época era o francês da região da Normandia,
diferindo bastante do francês moderno. Além disso, o que torna mais difícil fazer um
levantamento histórico do crioulo é a ausência de documentos, textos escritos nessa e sobre
essa língua,já que o francês era a língua da elite, do colonizador, a instituição escrita, enquanto
o crioulo se expressava praticamente apenas no plano oral.
Uma vez transposta à forma escrita, percebe-se a semelhança com o francês, todavia,
desde o momento em que os primeiros textos em Crioulo passaram a ser escritos, mudanças
ocorreram no Haiti, desde questões linguísticas, religiosas até as decisões políticas. Com o
passar do tempo, veremos que o reconhecimento dessa língua só viria mesmo quase duzentos
anos após a independência do Haiti.
Caisse (2012)lembra que por muitos anos o crioulo haitiano não tinha uma ortografia,
era majoritariamente uma língua falada, com pouco registro escrito, sem uma ortografia
unificada. Nesse sentido, somente na década de 1940 começou-se a propor uma ortografia para
o crioulo. Em 1975, com um movimento de revalorização da língua materna dos haitianos que,
a partir de uma reforma educacional no país, esta passaria a ser ensinada nas escolas.
Obviamente, a partir deste movimento, surgiram várias propostas de ortografia o que gerou
muita polêmica. Finalmente, cessando a polêmica em torno do assunto, “o CH adquiriu uma
ortografia semioficial em 1980”.
Mesmo com a instituição do francês como língua oficial no país desde a independência,
até a constituição de 1987 – que elege também o crioulo como língua oficial– nunca a
população haitiana tem adotado de fato o francês como sua língua cotidiana. Ao contrário,
segundo o linguista haitiano Dejean (1983), o francês é uma língua estrangeira no Haiti, tanto
para o haitiano menos favorecido, sem estudo, que vê o francês como a língua dos brancos
colonizadores, como para uma elite escolarizada, com instrução que vê o francês como a língua
da França ou de outros países. Ainda de acordo com Dejean (1983, p. 190), “nos dois casos,
são conscientes do fato de que falar francês é característico do não-pertencimento à identidade
étnica ou nacional haitiana”. Isso, no plano diglóssico, obviamente ainda não mudou as
assimetrias entre as duas línguas, herança do preconceito colonial e das elites que vestiram as
máscaras brancas sobre as quais se referia Frantz Fanon.
De acordo com Rodrigues (2008), o crioulo recebeu a sua primeira grafia oficial em
1980, fruto de um movimento iniciado na década de 1940, quando pesquisadores tomaram
consciência das gravidades do analfabetismo no país e, ao mesmo tempo, se conscientizaram
de que o crioulo não era um dialeto do francês, mas uma língua diferente, e a partir disso
propuseram uma grafia que correspondesse à sua fonética própria. Com base nessa constatação,
Pradel Pompilus, um linguista haitiano, e Paul Berry, educador estadunidense que vivera por
alguns anos no Haiti, apresentaram uma proposta de mudança ortográfica com o objetivo de
aproximar a fonética do crioulo ao francês por meio da escrita e, para isso, propuseram quatro
princípios. O primeiro preconizava estratégicas ortográficas e estruturais de modo a facilitar a
leitura do crioulo para quem já fosse alfabetizado em francês. O segundo propunha que, a partir
do letramento em crioulo, o leitor pudesse ler o francês. O terceiro objetivava proporcionar a
leitura de cartazes, jornais, etc. em francês aos crioulófonos e quarto, ensejava que a ortografia
facilitasse a alfabetização dos crioulófonos monolíngues analfabetos. Tendo em consideração
essa relação foneticista, explica Rodrigues (2008, p. 109):
Com o principio inicial sendo mantido, temos entao uma ortografia de base fonologica.
Diferentemente do frances, no crioulo haitiano tudo o que se escreve se pronuncia, tudo o
que se escreve corresponde a um som. Esta correspondencia tao estreita entre o oral e o
escrito, torna a ortografia do crioulo muito simples de ser dominada: o crioulo pode ser
facilmente lido e escrito.
Em 7 de abril de 2014 apareceu no Le Moniteur3, que publica os decretos da República
do Haiti, a lei que criou a Academia Crioula, estipulada no artigo da Constituição de 1987: "É
instituída uma Academia Haitiana a fim de fixar a língua crioula e permitir o seu
desenvolvimento científico e harmonioso. "(Artigo 213) Entre as tarefas que esta instituição
deve assumir:"... incentivar trabalhos de desenvolvimento de ferramentas linguísticas, como
gramáticas, dicionários, léxicos em crioulo em todos os campos. "
Antes da promulgação do decreto que estabelece a Academia do Crioulo, um simpósio
foi realizado sob os auspícios da Universidade Estadual do Haiti intitulado: Akademi kreyòl
ayisyen: Ki avantaj? Ki pwoblèm? Ki defi? Ki avni? (Academia crioula haitiana: qual
vantagem? qual problema? qual desafio? qual futuro?). O comitê organizador do simpósio
estabeleceu objetivos ambiciosos, incluindo o seguinte:
"Esta instituição também tem a missão de fornecer modelos para o uso da
linguagem crioula na comunicação pública, encorajar trabalhos de
desenvolvimento de ferramentas linguísticas tais como gramáticas, dicionários,
léxicos em crioulos em todos os campos ... A administração pública, a justiça, o
estado em geral, e a ciência devem falar crioulo."
A resistência por meio da língua
O crioulo é a língua da revolução que instituiu, de um só golpe, três feitos históricos, a
primeira república negra da humanidade, a primeira libertação dos escravos negros do mundo
colonial e a primeira nação formada por ex-escravos. Após aproximadamente doze anos de
revoltas e batalhas, os negros que entrariam para a história como os haitianos, fizeram capitular
a então poderosa França de Napoleão, afugentaram a Espanha e a Inglaterra e, dessa forma,
3Jornal oficial da República do Haiti.
amedrontaram inúmeros senhores de engenho das Américas, especialmente no Brasil, que fez
surgir o termo haitianismo no léxico da língua portuguesa.
Segundo Carlos Eugenio Libano Soares e Flavio Gomes(2002), o termo haitianismo se
tornou sinônimo de sedições, revoltas, ideias revoltosas de negros. No contexto da revolução
haitiana, na virada do século XVIII para o XIX, o crioulo já era uma língua em ascensão. Hoje,
no século XXI, é a língua crioula mais falada do mundo, com mais de dez milhões de falantes,
residentes no Haiti e em diferentes países, dentre eles, mais recentemente, o Brasil. A língua é
um processo cultural, um aspecto constitutivo de um povo em qualquer sociedade. Não se
adquire na escola, tampouco depende dos projetos de alfabetização ou letramento para ser
adquirida. Ao contrário, é fruto da interação do ser humano com o outro e da sua necessidade
de se comunicar e ‘contracenar’ com o ‘outro’ no espaço social.
O caso do Crioulo Haitiano se revela como um modelo de superação e, ao mesmo
tempo, um exemplo de como a supremacia de interesses políticos na sociedade haitiana dita os
contornos educacionais e socioeconômicos da população e, consequentemente, a desigualdade
de classes sociais existente no Haiti como um todo. Debater essa problemática é imergir, de
certa forma, em estudos de caráter pós-colonialistas, cuja crítica questiona o eurocentrismo e
dá a voz a produções e discursos dos falantes que estão fora dessa delimitação preconceituosa.
Estudar o tripé, qual seja, poder, língua e cultura na sociedade haitiana é descrever a
luta para a independência que continua até hoje, mesmo após 200 anos de independência do
país. Como diz Rosa (2007, p. 5),“os movimentos pós-coloniais foram, de fato, motivados no
sentido de ocupação do lugar do colonizador e não necessariamente, a inversão da ordem
colonial rumo a sua completa negação.” Assim, a ideologia do colonizador é assimilada pelo
colonizado, mesmo após a independência, as práticas colonialistas geralmente são mantidas. O
Haiti, da mesma forma, segue a mesma lógica. Esta questão, de um modelo imperialista mesmo
após a independência do Haiti, permanece vivamente até hoje no cotidiano sob a forma de
aventura permanente.
Assim como o Haiti, vários países lutaram e continuam na luta pela oficialização de sua
língua nativa. No caso do Haiti e de alguns outros países de fala crioula, a sua utilização, quer
na escrita ou na fala, é um passo importante rumo ao reconhecimento histórico-identitário
desses povos. De fato, a língua materna é o maior patrimônio restante de uma pátria esfacelada
pelos pelo contínuo colonial e os atropelos ditatoriais das elites governantes.
Tomando como exemplo uma premissa alemã para a manutenção de sua identidade
étnico-linguística e cultural, como diz Seyferth (1982, p. 113), “um alemão só será reconhecido
como tal quando se expressar na sua língua materna”, a qual deve ser mantida, conservada e
honrada perpetuamente. Como Seyferth (1982, p. 140), ainda mostra no tocante a manutenção
da língua materna alemã nas comunidades alemãs no Brasil, sobre as escolas de brasileiros
com ascendências alemãs, quando se fala do sistema de ensino que envolve a escola e o lar, a
perpetuação do alemão nessas comunidades tradicionais alemães é bem mais real e bem
sucedido quando as escolas também ensinam em alemão. Há, portanto, uma complementação
entre a língua alemã ensinada em casa pela mãe e a perpetuação da mesma no ambiente escolar.
O “uso oficial”, nesse caso da língua alemã, serviu como um complemento ao que se
iniciou no lar desde muito cedo. Por conseguinte, quando um aluno inicia seu percurso escolar,
acontece uma continuidade e não a agregação de outra língua, desconhecida, usada, porsinal,
em poucas situações reais de sua vida. Em outras palavras, reconhecer que “a língua
proporciona a própria ideologia étnica” e desempenha um papel importantes obre a própria
sobrevivência de um grupo étnico (SEYFERTH, 1982, p. 216).
Língua e independência
O Haiti era a mais produtiva e a mais lucrativa de todas as possessões francesas, graças
à força de trabalho escravo. O açúcar era a mercadoria e a força de trabalho era explorada sob
o chicote nos canaviais, por uma elite branca, francesa. Menos de cem anos depois do controle
de parte da ilha, em 1792, ainda no calor da Revolução Francesa de 1789, ganha corpo um
movimento revoltoso formado por escravos. Em 18 de novembro de1803, na cidade de Cap-
Haitien, ou Okap, ou Kapayisyen, em Kreyol, cidade norte do país acontece a batalha final
contra as forças militares francesas. E a capitulação da Franca frente aos já ex-escravos. Nesse
processo, uma ferramenta crucial fez-se necessária para facilitar a comunicação entre eles: a
língua. No caso o Crioulo Haitiano.
Se por um lado o surgimento do crioulo haitiano uniu os haitianos, escravos, que
resolveram lutar pela independência, por outro lado, serviu de ameaça ao sistema colonialista
tornando-se uma força motivadora e estratégica para o avanço da revolução e posteriormente a
proclamação da independência. Não é coincidência o fato de que o próprio pacto de sangue,
pró-independência, conhecido como “Cérémonie du Bois Caiman, em 14 de agosto de 1791,
fosse ratificado com uma oração proferida em crioulo pelo sacerdote Dutty Boukman, em
rituais do vodu (HANDERSON, 2011, p. 240).
"Bondye ki fè latè, ki fè solèy ki klere nou anwo.
Bondye ki soulve lanmè, ki fè loray gwonde.
Bondye nou ki gen zòrèy pou tande: ou ki kache nan nyaj, k`ap gade nou kote ou ye a,
ou wè tout sa blan fè nou sibi.
Bondye blan yo mande krim.
Bondye ki nan nou an vle byenfè
Bondye nou an ki si bon, ki si jis, li òdone nou vanjans!
Se li k'ap kondi nou pou nou ranpòte viktwa a.
Se li k'ap bannou asistans.
Nou tout fèt pou nou jete pòtre Bondje blan an ki swaf dlo nan je.
Koute vwa libète k'ap chante nan kè nou tout."4
Questões contemporâneas: as assimetrias diglóssicas
O crioulo haitiano é a língua mais utilizada no rádio. Este é um dos raros setores onde
o progresso do crioulo se deu de modo incontestável, sobretudo a partir de 1986, ano da saída
de Jean-Claude Duvalier. Entre cerca de quarenta estações situadas na capital, as mais regulares
dedicam mais da metade do número total de horas de antena a emissões em crioulo. As
informações são dadas sistematicamente nas duas línguas. Mesmo que a maior parte delas
tenha um nome francês (Radio Antilles Internationales, Radio Cacique, Radio Caraïbes, Radio
Céleste, Radio Galaxie, Radio Haiti-Inter, Radio Mélodie, etc.), é o crioulo que domina
maciçamente. Nenhuma estação de rádio é monolíngue francesa. Quanto à televisão, o começo
4 Deus que criou a terra, que criou o sol que nos dá a luz.
Deus que detém os oceanos, que assegura o rugir do trovão.
Deus que tem ouvidos para ouvir: você que está escondido nas nuvens, olhando aonde estamos, você que o
branco nos faz sofrer.
O Deus do homem branco lhe pede de cometer crimes.
O Deus que está dentro de nós quer que nós façamos o bem.
O nosso Deus que é tão bom, tão justo, ordene-nos vingança!
É ele quem vai dirigir as nossas armas e nos levará à vitória.
É ele quem vai nos dar assistência.
Devemos todos rejeitar a imagem do Deu do homem branco que é tão implacável.
Ouça a voz da liberdade que canta em todos os nossos corações!
do uso regular do crioulo neste veículo remonta aos anos 1990. Atualmente um terço dos
programas é transmitido nessa língua, sendo os outros dois terços divididos entre francês e
inglês. Este uso do inglês se explica pelo fato de que um grande número de canais de televisão
difundem programas americanos. A imprensa escrita é majoritariamente de língua francesa. Os
dois principais jornais do país: Le Matin e Le Nouvelliste, ambos diários, são publicados apenas
em francês, assim como as revistas, semanais ou mensais (Haïti en Marche, Haïti Observateur,
Haïti Progrès, Le Messager du Nord-Ouest, Le Moniteur, L'Union, etc.). Alguns poucos jornais
são publicados em crioulo, entre os quais Libèté (semanal), Boukan, Bon Nouvèl, Solèy Leve,
etc. Alguns jornais dedicam regularmente ao crioulo uma ou duas páginas.
Muitas vezes, o uso do crioulo em relação ao francês define uma questão de poder, de
classe. As indicações nos prédios do governo são apontadas em francês. Os edifícios e órgãos
municipais levam inscrições monolíngues francesas na capital Porto Príncipe e, raramente,
bilíngues nas cidades do interior. A moeda local, os selos, a sinalização rodoviária e a
toponímia são feitas em francês. As grandes lojas e empresas da capital só fazem sua
publicidade em francês. As médias empresas, em francês e crioulo; as pequenas, em crioulo.
As empresas de exportação e importação e todas as empresas que fazem comércio exterior
utilizam o inglês e o francês, assim como as lojas para turistas. Donde se conclui que o uso do
inglês, sobretudo em Porto Príncipe, e do espanhol (no interior, próximo à República
Dominicana) tem sido cada vez mais frequente (RODRIGUES, 2008).
Não obstante, a política haitiana vem se orientando há um certo tempo em direção à
utilização do crioulo no ciclo elementar da educação. O francês no Haiti é ensinado – após uma
“iniciação” escolar em crioulo – como língua segunda, primeiramente oral, depois escrita, antes
de se tornar língua única ou principal de ensino à medida em que se avança nas séries escolares.
O francês seria, nessa perspectiva, ensinado primeiramente como língua oral para evitar o
sistema até então absurdo que consistia em ensinar às crianças a ler e a escrever numa língua
que eles não falam.
Quanto à população, pode-se dizer que a resistência ao emprego do crioulo na rede
escolar é muito mais marcante entre os pais do que entre os professores. Esta diferença de
atitude teria duas causas: A primeira reside na confusão que se cria entre os pais quanto ao
emprego do crioulo como língua de abordagem pedagógica no desejo de facilitar a aquisição
de matérias escolares, incluindo o francês, e o ensino do crioulo enquanto matéria escolar
propriamente dita. A segunda causa é mais profunda: A proibição que estabelecem os pais a
seus filhos de falar crioulo e a recusa em aceitar seu emprego no setor escolar refletem
simplesmente seu reconhecimento do lugar preponderante ocupado pelo francês na hierarquia
dos valores socioculturais e seu papel na promoção social. É uma outra manifestação da
ambivalência dos crioulófonos em relação a sua língua materna, ambivalência que apresenta
implicações sociais e econômicas.
Ao nacionalizar o sistema francês de educação, os sucessivos governos haitianos
contentavam-se em copiar frequentemente as iniciativas educativas de Paris, infelizmente, com
décadas de atraso, sem levar em conta a realidade social dos haitianos. Quando, finalmente, o
Ministro da Educação Nacional propôs, em 1980, uma reforma do ensino primário, devendo
levar progressivamente a uma reforma do ensino secundário e superior, deparou-se, desde o
início, com a oposição, tanto da elite quanto do povo, que, marcados por preconceitos
reminiscentes da empresa colonial, não queriam aceitar o crioulo como língua de
ensino(RODRIGUES, 2008).
A internacionalização do crioulo
Se por um lado, existem pessoas oprimindo o Crioulo, por outro há pessoas
promovendo-o. Isso se mostrou especificamente com a migração haitiano para o Brasil. No
começo da primeira década desse século, muitos haitianos passaram a entrar no Brasil, legal e
ilegalmente, devido ao terremoto devastador que aniquilou o Haiti no dia 12 de janeiro de 2010.
Através do edital no004/2014/PROINT-UNILA, de 17 de dezembro de 2014, alguns haitianos
tiveram a oportunidade de ingressar no ensino superior no Brasil, especificamente, na
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Assim, alguns passaram a
promover a língua nativa, dando aula por meio de ações de extensão, como: "Haiti: Línguas e
Cultura", "RASANBLEMAN: encontros com as culturas do Haiti" durante o ano de 2016. Nas
linhas a seguir, está uma avaliação feita por uma aluna do curso.
"Eu sou psicóloga e faço mestrado em Estudos Interdisciplinares Latino-Americanos, cuja
temática da minha pesquisa é com Mulheres Haitianas. O meu interesse em fazer aula, era
para que eu tivesse uma aproximação com elas, e com essa convivência, aprendesse um pouco
dos seus códigos culturais e o que mais fosse possível.
O que não imaginava é que eu teria professores tão abertos a falar sobre as suas culturas. Tão
abertos, interessados e orgulhosos. Isso foi me despertando um interesse que eu não esperava.
A ponto de eu querer REALMENTE APRENDER O CRIOULO HAITIANO. Lógico que é pouco
tempo, entrei quando as aulas já tinham começado. Mas com o que aprendi da língua, aprendi
muito mais que palavras. Aprendi também um mundo de representatividade e significados que
estão além delas.
Durante as aulas, eu ia trazendo conteúdos que, como estudo sobre o Haiti, eu tinha
descoberto por meio da leitura. O que foi muito enriquecedor. Ter um espaço para discutir
com nativos o que eles achavam sobre aquilo, me contarem suas experiências, e cada um deles,
soube contribuir da sua forma para isso.
Uma perda foi que acabei ficando sozinha nas aulas, os outros alunos tiveram seus motivos
para desistir. Mas isso fez com que estivessem ainda abertos para que eu fosse mostrando o
caminho – que eu propusesse o que queria aprender e até mesmo metodologia – isso foi
incrível! Também pensaram em fazer um grupo no whatsApp para que eu pudesse ter
convivência com a língua. Me mostraram vídeos, falaram sobre as comidas, frutas, contaram
histórias, me incentivavam a conversar com outros haitianos e haitianas....
Isso foi fundamental para que eu me sentisse afetada pela cultura, o que com certeza levarei
para a minha escrita e na minha entrega ao fazer a pesquisa. Só tenho a agradecer aos
professores Wendy e Carl pelos ensinamentos!"
Mèsi pwofesè!
Karina. ☺
Considerações finais
No Haiti, em um contexto diglóssico, a língua crioula é falada pela totalidade da
população. Baseada na oralidade, sua transcrição na vida quotidiana, embora crescente, ainda
é reduzida. Sua utilização escrita corresponde geralmente à afirmação de uma identidade e a
um posicionamento militante. O francês, por sua vez, é a língua da educação, da administração
e da maioria dos meios de comunicação.
O bilinguismo está restrito a uma ínfima parcela da sociedade e isto contribui
sensivelmente para afastar a escrita da esmagadora maioria da população, o que acentua a
situação de assimetria linguística, como num círculo vicioso. As relações linguísticas de poder
ratificam a escrita em uma das línguas, conspirando contra a outra. Quanto mais bilíngue se é,
menos se escreve na língua de menor prestígio, e isto leva ao desestímulo da leitura nesta
língua. Ora, numa situação de bilinguismo em que uma das línguas conta com uma grande
tradição escrita, enquanto a outra foi tradicionalmente ágrafa, é fácil perceber que a escrita –
ou não-escrita – é um fator determinante de discriminação.
Por mais que a escrita e a leitura em língua crioula venham a estar ao alcance de um
número cada vez maior de pessoas, os cidadãos bilíngues que dela se utilizassem, fazem no
mais por razão política do que como recurso informativo ou meio de emoção estética, uma vez
que para isso já possuem o francês.
O Crioulo Haitiano, desde o período da sua formação, vem passando por fases de
distúrbios e de difícil emancipação. Isso tudo porque representa ainda uma ferida aberta no
coração do colonialismo, o motivo da sua existência foi para conquistar a abolição da
escravidão e para sair da tutela francesa. Todas as potências imperialistas encaravam esse fato
como uma desobediência à ordem mundial de colonização daquela época. Grande parte dos
problemas sociais do Haiti advém desse ranço mal resolvido para as potências mundiais.
Afinal, a revolução haitiana, movida pela língua crioula, impôs uma ofensa histórica aos
regimes coloniais e neocoloniais no ocidente.
O que se observa hoje em dia é que cada vez mais a língua crioula penetra com força
nas áreas tradicionalmente reservadas à língua francesa: discursos ou pronunciamentos oficiais,
primeiros encontros, ensino, usos jurídicos, serviços religiosos, etc. Apesar de alguma
resistência por parte de certos indivíduos, a língua crioula conquista solidamente o espaço
linguístico, seja na Diáspora, seja no próprio Haiti. Kreyòl se lang libète, chemen endepandans
premye nasyon nwa nan mond lan.5
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5 O Crioulo é a língua da liberdade, caminho da independência da primeira nação negra do mundo.
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